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Este suplemento faz parte integrante
do Diário EconómicoNº 6297 e não pode ser
vendido separadamente | 6 Novembro 2015
MarisaMatias
Omundoéuma
aldeia
PaulaNunes
CINEMA
Conheça os melhores
trunfos do Lisbon &
Estoril Film Festival
que arranca hoje
TECNOLOGIA
Crónica de um
empreendedor que
participou na Web
Summit, em Dublin
MULHER DE COMBATE QUE NÃO VIRA A CARA
A UMA BOA LUTA, EXPLICA QUE A CANDIDATURA
À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA IRÁ “ATÉ AO FIM”.
VIDA, CAUSAS, POLÍTICA, A EXPERIÊNCIA
DO PARLAMENTO EUROPEU E, SOBRETUDO,
PESSOAS NUMA ENTREVISTA RECHEADA
DE REFLEXÕES E SENTIMENTOS.
2 E+Fim-de-Semana Sexta-feira, 6 de Novembro 2015
Otelefonetocouàsonzedanoite.Umnúmerointer-
nacional–eraMarisaMatias.Tinhasidocontactada
horasantes.Nodiaseguinte,vinhaparaPortugal.
Agendacheia:reuniões,conferências.Arranjouespa-
çoparaoEconómico.Efazquestãodeencontrartempoparatodos:é
juntodaspessoasquequerestarconformeexplicanaentrevistaa
MartaRangelcomfotosdePaulaNunes4A9ªediçãodoLisbon&Es-
torilFilmFestivalarrancahoje.PauloBranco,odirector,evocanomes
eobrasquevãomarcartrêsdiasdeCinemaereflexão[nafotoocartaz
dofilme“OCavaleirodeCopas”,dorealizadorTerrenceMalick,cuja
obraencerraoFestival].UmtrabalhodePauloJorgePereiraparalera
partirdapágina 8LeiaacrónicadoempreendedorJoséFranco,que
participounaWebSummit,emDublin11Edescubraamaiorfeirade
videojogos,queterminadomingo,emLisboa.Boasemana AntónioSarmento
EM FOCO
4
06 NOV
WebSummit
PaulaNunes
8
14
11
4 E+Fim-de-Semana Sexta-feira, 6 de Novembro 2015
Jáfaziapolítica,mesmoantesde
sermilitante:semfichadeinscri-
ção,masdealmaecoração.Com
sentidocrítico–mesmoparaela
própriaeparaosseus–acredita
queépossívelfazermelhor:sairdo
“aquário”dasinstituiçõeseestar
juntodaspessoas.Nãosepõe“em
bicosdospés”,mastambémnão
viraacaraàluta.Porisso,jura:a
candidaturaàpresidênciadaRepú-
blicaéparairatéaofim.
PorMartaRangel
fotografiasdePaulaNunes
“DurãoBarrosofoi
umárbitroquetorceu
semprepelaequipa
maisforte”
danasceuantesdotempo.Porquê?
Na altura, o BE esteve muito na vanguarda do es-
paço europeu. E é interessante analisar todo o
processo de nascimento, maturação e crise ao
longo deste período. Ocupámos um espaço que
eramesmonecessárioocupar,mas,naaltura,tal-
veznãotenhamossabidolidarbemcomisso.Ago-
ra, sabemos lidar melhor. Sem querer, acabámos
por nos institucionalizar demais. Mas o tempo
serveparairaprendendoecorrigindo.
AindacontinuaaserumBEdividido?
A imagem de há um ano da Convenção do Bloco
desapareceu completamente e não é aparente.
Foi muito visível, na última campanha, como o
partidoapareceuunidoenamesmaluta.
Também disse recentemente que era neces-
sáriaumafrenteanti-austeridadeparaunira
esquerda.Aesquerdajáestáunida?
Estamos a viver, neste momento, a reconfigura-
ção do espaço político em Portugal. O momento
que atravessamos, actualmente, é de esperança.
Nãoseicomovaiterminar,mastenhoapercepção
que algo está a mudar. E esse algo traz uma carga
positiva de luta pela dignidade e mais justiça na
sociedadeportuguesa.
OPSdeAntónioCostavirouàesquerda?
Não é necessário fazer catalogações sobre quem
virouparaquelado.Importanteéquehajaespaço
para a convergência que representa, neste caso, a
esmagadora maioria das pessoas: mais de 60%
daspessoasvotounumasoluçãodeoposição…
Mas parece-lhe possível um Governo de es-
querda?
Claroquesim!Esteéumgovernodecoligaçãodas
forçasdaoposição,pararesponderaumasituação
de urgência e para tentar garantir que coisas fun-
damentais, que nos foram retiradas, como salá-
TINHA POUCO MAIS DE 30 ANOS quando entrou,
pela primeira vez, como deputada do Bloco de
Esquerda, no Parlamento Europeu. Miguel
Portas ajudou-a a descodificar a complexidade
das instituições europeias. Quis retribuir: tor-
nou-se“amamã”detodososquechegam.
Entrou para o Bloco de Esquerda em 1999…
Estivenojantardefundaçãoe,naverdade,estava
na Associação Manifesto, que esteve na fundação
do Bloco de Esquerda. Só me tornei militante em
2005.Ditoisto,temtodaarazão:jáeradesde1999
porque era a independente mais comprometida
aocimodaterra,acabavaporfazerpartedaslistas
todaseacheiquetalveznãofossemáideiaassinar
afichadeinscrição.
Disse há pouco tempo que o Bloco de Esquer-
CONVERSAS COM VIDA
E+Fim-de-Semana 5Sexta-feira, 6 de Novembro 2015
[CavacoSilva]
foioPresidente
deumafacção
queestevemais
aoserviçodeum
partidodoque
doPaís
“
Desmistificação
dosucessoda
austeridadeestá
navidadecada
umdenós
Voulutarparair
àsegundavolta
[daseleições
presidenciais]
eéesseomeu
primeiro
compromisso
rios e pensões, podem ser possíveis num quadro
orçamental. O meu desejo era um Governo ainda
mais transformador. Mas acho que este já é um
passo importante para combater a austeridade e
pôrnocentrodapolíticaadignidadedaspessoase
não a vontade de alguns poderosos e dos merca-
dosfinanceiros,queteimamemmandaremnós-
esses mercados tão ingratos, que continuam a
achar que somos lixo, apesar de tudo o que faze-
mosemnomedeles.
Escreveu, recentemente, no seu Facebook,
comumaclaraironia,“CavacoSilvanãodesi-
lude”.Querexplicar?
Cavaco Silva nunca foi, não quis nem quer ser o
Presidentedetodososportugueses.Adeclaração
que fez a nomear Pedro Passos Coelho foi a com-
provação.FoioPresidentedeumafacção,quees-
tevemaisaoserviçodeumpartidodoquedoPaís.
Cavaco Silva disse, nas entrelinhas, que
não quer um Governo de esquerda com o
BE e o PCP?
UmPresidentedaRepúblicanãodevesubstituir-
-se nem aos partidos nem à Assembleia da Repú-
blica. Devia limitar-se às suas funções. Imiscuiu-
-se claramente. Nas suas declarações, Cavaco Sil-
va expulsou um milhão de portuguesas e portu-
guesesdademocracia.Eosrestantesficaramdivi-
didos ou, pelo menos, tentou dividi-los. Não é a
posturadeumPresidentequedeveestaraoservi-
çodetodososportugueses.
Olhando para outro país: ainda se revê no go-
vernogrego?
Revejo-me na luta que foi travada e no esforço
real do Governo grego para dar um futuro mui-
to melhor e alternativo. Havia soluções orça-
mentais complementares – ou que podiam
substituir - as que vinham de Bruxelas. Não foi
possibilidades…
É uma ideia que foi muito vendida e tornada pro-
paganda.Masnãoéporumamentiraserrepetida
muitasvezesquesetransformaemverdade.
Comosedesconstróiessamentira?
Descontrói-se com uma proposta alternativa cla-
raedizerque,defacto,hásoluções.Pelaprimeira
vez,emPortugal,gastamostantocomoEstadono
seu conjunto – salários, educação, saúde – como
gastamos com os juros da dívida, as parcerias pú-
blico-privadas e as rendas. As pessoas têm de
olhar para a sua vida: perceberem que houve 500
milpessoasquetiveramdeabandonaropaís,nos
últimos anos, por não terem oportunidades de
trabalho ou futuro. A desmistificação do sucesso
daausteridadeestánavidadecadaumdenós.
Nas instituições europeias, as vozes não são
todasiguais?
Issoémuitovisível.Tivemosumdebate,noPar-
lamento Europeu, em que estiveram a falar em
nome da União Europeia a senhora Merkel e o
senhor Hollande. Disseram não sei quantas ve-
zes–tivepenadenãocontar–queaquilodeque
nósprecisamosé“maisEuropa”.Nãosepodefa-
lar de “mais Europa” e, ao mesmo tempo, assu-
mir, à frente de toda à gente, que há um directó-
rio: ou melhor, há uma chanceler e um vice-
-chanceler porque a Europa é cada vez alemã. O
quemaismeassustaéaformacomosepropagou
a ideia de que há a Europa dos virtuosos, que vi-
vem a Norte, e dos preguiçosos, que vivem a Sul.
Esta ideia ficou inculcada na cabeça das pessoas
emuitoslídereseuropeuscontinuamareprodu-
ziristo,comosefosseverdade.
Durão Barroso foi árbitro?
Se foi árbitro, foi um árbitro que torceu sempre
pelamesmaequipa.
AequipadaAlemanha?
AequipadaAlemanha,masésimplistadizeristo.
Foiumárbitroquejogousempreafavordaequipa
quetinhamaispoder.
Parausarumaexpressãoquecostumausar:o
queéocretinismoparlamentar?
É uma expressão muito antiga. Vai tendo várias
formulações, mas é o risco que, às vezes, corre-
mos de ficar fechados dentro das instituições e
perder o contacto com o mundo real. Temos de
contrariarissopermanentemente.
Quando decidiu candidatar-se à presidên-
cia da República, escreveu no Facebook:
“Vivemos momentos de expectativa e de es-
perança. Em momentos como este, deve-
mos saber interpretá-los e correr riscos.”
Que riscos são esses?
Deacharqueestamosmesmoavivermomentos
de expectativa e de esperança, que a política não
tem de ser a continuidade do que conhecemos,
que há espaço para novas alianças geracionais...
Começaasentir-seessatransformaçãonasocie-
dadeportuguesa.Nãoseiseéaindatempodeco-
lheita, mas é tempo de semear. E correr riscos é
disputar toda a reconfiguração que possa haver
nasociedadeportuguesaparacriarmosumfutu-
ro de maior esperança, com lugar para todos.
Nuncafuideficaraassistiretambémnãosoude
me colocar em bicos dos pés, mas, se exercemos
funções de representação, e achamos que pode-
mos contribuir para uma forma diferente de fa-
zerpolítica,nãopodemostermedo.
Acandidaturaéparairatéaofim?
Claro!Ademocracianãoéumparêntesiseosre-
sultadosnãoestãoescritosàpartida.
Não lhe passa pela cabeça desistir em prol
deoutracandidaturaàesquerda?
Eu vou lutar para ir à segunda volta e é esse o
meuprimeirocompromisso.
por falta de alternativas. Quem manda em Bru-
xelas e fora de Bruxelas é que nunca quis acei-
tar essas propostas. O povo grego e o Governo
foram excepcionais. O resultado final é que não
éumbomacordo.
Conhecebemoprimeiro-ministrogrego.Que
tipodepessoaé?
É uma excelente pessoa. Não tenho dúvidas ne-
nhumas que, independentemente do resultado
do acordo, bateu-se pela dignidade do povo grego
eporumasoluçãorealparaopaís.
Foiobrigadoaceder?
Acho que toda a gente assistiu que, na noite das
negociações, não existiu verdadeiramente nego-
ciação. Falar em negociação é eufemismo. Foi
quase tortura fecharem o primeiro-ministro de
umpaíscomoutrosquequeriamimporumanor-
ma. Hoje em dia, já ninguém pode dizer que as
instituições europeias são um grupo de gente de
boaféquequerfazerbemàEuropa.AEuropamu-
doumuito.Jánãoéumconjuntodeinstituições–
e de políticas – que procuram a coesão social ou a
convergência territorial. São instituições que,
muitas vezes, nos têm humilhado, sobretudo, aos
paísesdosul.
Como é que a minoria que luta contra a ideia
de austeridade consegue ganhar essa luta
contraamaioria?
Não acredito que seja uma minoria. É uma maio-
riasocial.Odesafioécomoéqueessamaioriaso-
cialseconvertenumamaioriapolítica.
Criou-se a ideia de que a austeridade é ne-
cessária e todos vivemos acima das nossas
6 E+Fim-de-Semana Sexta-feira, 6 de Novembro 2015
“Ensinaram-meque
sepodiadizertudo”
nós temo-las. Mas o que é interessante é que
ele ajudou-me a pôr nomes em coisas, para as
quais eu não tinha nome.
A Marisa nasceu em 1976, pouco depois do
25 de Abril. Na sua aldeia falava-se sobre o
que era a Revolução e o processo democrá-
tico?
O meio rural foi muito marcado com a partida
dos seus para a Guerra colonial. E o 25 de Abril
foi muito marcado pelo regresso dos que con-
seguiram regressar. E isso faz parte das nossas
histórias. O fim da ditadura, começar a respi-
rar liberdade, poder falar, a perda do medo…
Os efeitos da revolução e a instauração da de-
mocracia não chegaram ao mesmo tempo a to-
dos os sítios do país e, em aldeias como a mi-
nha, fomos sentindo isso ao longo dos anos.
Recordo-me de ser muito pequenina e a minha
avó achava que eu não podia ter opinião sobre
tudo… Dizia que eu era ‘muito esquentada’.
Ainda havia essas marcas. Felizmente, ensina-
ram-me que se podia dizer tudo.
Começou a trabalhar muito cedo: por ne-
cessidade, vontade de independência?
Se tivesse dependido dos meus pais, não tinha
começado logo a trabalhar. Queriam que nós
estudássemos e não nos distraíssemos a traba-
lhar. Mas fazíamos as contas à casa e percebía-
mos que era preciso ajudar e contribuir para o
orçamento familiar.
Fez um sem número de trabalhos, desde
limpezas a secretariado… O que aprendeu
sobre as pessoas e sobre a vida?
Ganhamos mais capacidade para fazer coisas e
nunca se perde o chão. É bom para ganhar ou-
tras perspectivas da vida, para compreender
outros lugares e posicionamentos.
Como é que o livro “Pela mão de Alice”, de
Boaventura Sousa Santos, mudou a sua
vida?
O livro “Pela mão de Alice” é uma imagem que
liga à Alice no País das Maravilhas. Traça um
retrato da sociedade portuguesa, desde as
questões da educação, ao trabalho e à Justiça e
os desafios que se colocam. Percebi a necessi-
dade de ter mapas também para ler a socieda-
de como precisamos da História, da Literatu-
ra, das Humanidades, da Biologia… Achei que
talvez fosse esse o instrumento para o qual ti-
vesse mais vocação.
Viveu nos EUA, Brasil e África do Sul… O
que é que essas experiências fizeram por si
pessoal e professionalmente?
A base era Portugal, mas fazia trabalhos de
campo nesses países. Foi muito importante ter
a oportunidade de conhecer o mundo e deixar
que o mundo entre nas nossas vidas. Não vale a
pena ir, com quadros formatados, senão só va-
mos encontrar o que estamos à procura. É im-
portante ter a disponibilidade de ir e voltar
com mais alguma coisa.
Nos EUA conheceu movimentos para tudo
e mais alguma coisa…
Sim, foi fascinante. Há movimentos pela Jus-
tiça ambiental, que foi com os que trabalhei
mais, e outros de carácter mais local. No meio
disso, fui descobrindo outros movimentos,
como o activismo menstrual, que nunca ima-
ginei que pudesse existir. É um movimento,
com muito sucesso, que procura demonstrar
que é um processo normal da vida da mulher,
não é uma doença. Dou este exemplo não para
ridicularizar, mas para dizer que em quase
tudo há razões para criar um movimento e
uma comunidade. Outro exemplo era uma co-
munidade que defendia a participação dos
N
asceu numa aldeia
com menos de 100
habitantes. Hoje,
vive numa aldeia
global: o Parla-
mento Europeu.
Vive, literalmente:
são tantas as horas
que passa a traba-
lhar que encontra a senhora da limpeza, logo
de manhã, e descodificou o “mito” do funcio-
nário que abre as torneiras durante a noite.
Tudo em Marisa Matias parece genuíno: o em-
penho, as convicções, a forma como diz tudo
de um só fôlego, as gargalhadas sonoras, as lá-
grimas que não travou.
Nasceu em Alcouce, no distrito de Coim-
bra. E não tinha água em casa nem TV…
Noiníciodavida,íamosbuscaráguademanhã,
à fonte, para as necessidades todas, do banho à
comida. Não tinha televisor, mas os meus avós
tinham. Íamos a casa dos meus avós, como
muitas pessoas da aldeia. Era um ritual ir ver a
novela, o noticiário.
Ia a pé para a escola, que não era assim tão
perto…
Não, mas, depois houve escola em Alcouce. In-
felizmente, já não há novamente. Era uma ani-
mação! Nos dias de Inverno, havia sempre al-
guém que nos levava e, se não houvesse, os pais
juntavam-se e pediam à Câmara Municipal
que nos ajudasse e enviasse um táxi.
Ajudava a sua família a trabalhar no cam-
po, mas não gostava muito…
Até gostava, mais de umas coisas do que de ou-
tras. Não gostava muito de apanhar azeitona,
confesso. Estava frio e ficava sem sentir as
mãos [risos]. Mas a minha tia Isabel, que já
morreu, distribuía rebuçados pelo terreno e
nós íamos apanhando azeitona e encontrando
rebuçados. Também não gostava muito de
apanhar milho, no Verão, porque fazia cortes
nas mãos…
E quantas cabras perdeu?
[risos] Algumas, mas elas foram sempre en-
contradas! Eu distraía-me muito… A minha
mãe e a minha avó iam à procura delas, quando
eu chegava a casa. E não eram muitas – essa é
que é a vergonha!
Com que sonhava ser quando fosse gran-
de?
Nunca tive o sonho de ser ou fazer qualquer
coisa. Nunca entrei no campeonato entre os
bombeiros e as cabeleireiras. Foi a vida a acon-
tecer e deixar acontecer.
Quem era Álvaro Febra?
Era vizinho dos meus avós. Faleceu há um
ano. Era o comunista da aldeia, trabalhava
mais com o sector camponês do Partido Co-
munista. Esteve muitos anos na clandestini-
dade e viveu em Alcouce a vida toda. Comecei
a ter interesse na história dele, quando ficava
com a minha avó, e ela contava que, às vezes,
estavam muito descansados em casa e chega-
va a Pide à aldeia e abria as portas todas e en-
trava pelas casas à procura dele. Parecia um
livro. Era um homem maravilhoso, um amigo
do coração. As noções de justiça e injustiça
“Nãogostava
muitode
apanhar
azeitona,
confesso.Estava
frioeficavasem
sentirasmãos
“Esquentada” desde pequenina, como dizia a avó. Em vez de brincar com os amigos,
passava horas a ouvir o vizinho comunista. Mesmo sem se aperceber, ganhou logo ali
consciência política. Não tinha grandes ambições – deixou “a vida acontecer”. Descobriu
um rumo na Sociologia, abraçou causas na política, apaixonou-se por quem defendia os
mesmos ideais. Conserva a traquinice da infância e a audácia da adolescência: quer mudar
o mundo. E, talvez, um dia, consiga.
PorMartaRangel | fotografiasdePaulaNunes
E+Fim-de-Semana 7Sexta-feira, 6 de Novembro 2015
“
Sousa?
Tenho um saco de perucas! [risos] Foi quando
a Alda Sousa veio embora, no jantar de despe-
dida. Fui comprar perucas da cor do cabelo
dela, vermelhas, e passei umas horas a cortar
cabelo, em casa, para irmos todos para o jan-
tar com o cabelo igual ao dela. Foi o jantar das
“Aldetes”.
A Marisa é um bocadinho a mamã-pato do
Pablo Iglesias, do Podemos?
[risos] Não. Eu sou um bocadinho mamã das
pessoas que vão chegando. Gosto de fazer o
que fizeram comigo. Aquilo é um mundo mui-
to difícil e complexo de perceber à primeira.
Tive pessoas excelentes a explicar como era,
não só o Miguel Portas, mas também a equipa
que estava lá. Consegui perceber, não só na
delegação do Podemos como em muitas ou-
tras, o olhar estranho, à chegada, e procurei
ajudar. Mas não fiz nada que não tivessem fei-
to comigo.
Numa publicação no seu Facebook escre-
veu há alguns anos: “Ainda é tão cedo. Fica
mais um bocado, sim? Não é cedo, não é
tarde. Foi o tempo que o tempo permitiu. O
que sentes agora? Paz. Muita paz. E agora,
Miguel? É simples. Voa.” Ainda se lembra
deste dia?
[emocionada] Sim…
E que falta é que ele (Miguel Portas) lhe
faz?
Muita.
animais domésticos na missa de domingo,
como o cão, o gato. E houve algumas igrejas
em Boston que começaram a aderir. Não con-
sigo imaginar como era a missa com os ani-
mais lá dentro… [risos]. Mas tudo serve para
criar uma comunidade.
Tem ideia de quantas horas por dia traba-
lha no Parlamento Europeu?
Não faço ideia…
Encontra, muitas vezes, a senhora da lim-
peza ainda no seu gabinete?
[risos] Encontro! Várias vezes! Agora é um ca-
sal, marido e mulher, turcos, que fazem a lim-
peza.
E o senhor que abre as torneiras de noite?
[Gargalhadas] Mas como é que sabe isso?! Por
volta das duas ou três da manhã, há um senhor
que percorre os gabinetes todos do Parlamen-
to, para deixar correr água e não permitir a
acumulação de bactérias. É um edifício muito
grande, com depósitos de água e é preciso ha-
ver muita circulação de água, sob pena de ha-
ver um problema de saúde pública, com milha-
res de pessoas que trabalham ali. Por isso, há
um senhor que passa duas vezes por semana
por todos os gabinetes para deixar correr a
água cerca de dois minutos, tanto a fria como a
quente. Essa água é reaproveitada para outras
coisas. Falei no senhor das torneiras várias ve-
zes aos meus colegas e toda a gente achava que
era um mito, que não existia. Mas, uma vez, es-
tava eu, o Renato Soeiro e a Cláudia Oliveira a
fazer uma directa e, nesse dia, calhou que o se-
nhor viesse ao meu gabinete e eu pude dizer:
“Ele existe, não é uma invenção!”
É verdade que criou um protocolo diferen-
te: dar dois beijinhos ao porteiro?
[risos] Na primeira recepção oficial, em 2009,
as delegações foram todas convidadas e, na
altura, enquanto chefe de delegação do Bloco
de Esquerda, com o Miguel Portas e o Rui Ta-
vares, avancei para cumprimentar. Estava, na
altura, o ministro Luís Amado, o Embaixador
Lobo Antunes e o senhor José Manuel à por-
ta, a receber. Eu cheguei e foi a primeira pes-
soa que cumprimentei. E só depois é que fiz
os cumprimentos oficiais! [risos]. Mas apren-
do rápido!
Ainda tem a peruca igual ao cabelo da Alda
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Candidatura de Marisa Matias até ao fim

  • 1. Este suplemento faz parte integrante do Diário EconómicoNº 6297 e não pode ser vendido separadamente | 6 Novembro 2015 MarisaMatias Omundoéuma aldeia PaulaNunes CINEMA Conheça os melhores trunfos do Lisbon & Estoril Film Festival que arranca hoje TECNOLOGIA Crónica de um empreendedor que participou na Web Summit, em Dublin MULHER DE COMBATE QUE NÃO VIRA A CARA A UMA BOA LUTA, EXPLICA QUE A CANDIDATURA À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA IRÁ “ATÉ AO FIM”. VIDA, CAUSAS, POLÍTICA, A EXPERIÊNCIA DO PARLAMENTO EUROPEU E, SOBRETUDO, PESSOAS NUMA ENTREVISTA RECHEADA DE REFLEXÕES E SENTIMENTOS.
  • 2. 2 E+Fim-de-Semana Sexta-feira, 6 de Novembro 2015 Otelefonetocouàsonzedanoite.Umnúmerointer- nacional–eraMarisaMatias.Tinhasidocontactada horasantes.Nodiaseguinte,vinhaparaPortugal. Agendacheia:reuniões,conferências.Arranjouespa- çoparaoEconómico.Efazquestãodeencontrartempoparatodos:é juntodaspessoasquequerestarconformeexplicanaentrevistaa MartaRangelcomfotosdePaulaNunes4A9ªediçãodoLisbon&Es- torilFilmFestivalarrancahoje.PauloBranco,odirector,evocanomes eobrasquevãomarcartrêsdiasdeCinemaereflexão[nafotoocartaz dofilme“OCavaleirodeCopas”,dorealizadorTerrenceMalick,cuja obraencerraoFestival].UmtrabalhodePauloJorgePereiraparalera partirdapágina 8LeiaacrónicadoempreendedorJoséFranco,que participounaWebSummit,emDublin11Edescubraamaiorfeirade videojogos,queterminadomingo,emLisboa.Boasemana AntónioSarmento EM FOCO 4 06 NOV WebSummit PaulaNunes 8 14 11
  • 3. 4 E+Fim-de-Semana Sexta-feira, 6 de Novembro 2015 Jáfaziapolítica,mesmoantesde sermilitante:semfichadeinscri- ção,masdealmaecoração.Com sentidocrítico–mesmoparaela própriaeparaosseus–acredita queépossívelfazermelhor:sairdo “aquário”dasinstituiçõeseestar juntodaspessoas.Nãosepõe“em bicosdospés”,mastambémnão viraacaraàluta.Porisso,jura:a candidaturaàpresidênciadaRepú- blicaéparairatéaofim. PorMartaRangel fotografiasdePaulaNunes “DurãoBarrosofoi umárbitroquetorceu semprepelaequipa maisforte” danasceuantesdotempo.Porquê? Na altura, o BE esteve muito na vanguarda do es- paço europeu. E é interessante analisar todo o processo de nascimento, maturação e crise ao longo deste período. Ocupámos um espaço que eramesmonecessárioocupar,mas,naaltura,tal- veznãotenhamossabidolidarbemcomisso.Ago- ra, sabemos lidar melhor. Sem querer, acabámos por nos institucionalizar demais. Mas o tempo serveparairaprendendoecorrigindo. AindacontinuaaserumBEdividido? A imagem de há um ano da Convenção do Bloco desapareceu completamente e não é aparente. Foi muito visível, na última campanha, como o partidoapareceuunidoenamesmaluta. Também disse recentemente que era neces- sáriaumafrenteanti-austeridadeparaunira esquerda.Aesquerdajáestáunida? Estamos a viver, neste momento, a reconfigura- ção do espaço político em Portugal. O momento que atravessamos, actualmente, é de esperança. Nãoseicomovaiterminar,mastenhoapercepção que algo está a mudar. E esse algo traz uma carga positiva de luta pela dignidade e mais justiça na sociedadeportuguesa. OPSdeAntónioCostavirouàesquerda? Não é necessário fazer catalogações sobre quem virouparaquelado.Importanteéquehajaespaço para a convergência que representa, neste caso, a esmagadora maioria das pessoas: mais de 60% daspessoasvotounumasoluçãodeoposição… Mas parece-lhe possível um Governo de es- querda? Claroquesim!Esteéumgovernodecoligaçãodas forçasdaoposição,pararesponderaumasituação de urgência e para tentar garantir que coisas fun- damentais, que nos foram retiradas, como salá- TINHA POUCO MAIS DE 30 ANOS quando entrou, pela primeira vez, como deputada do Bloco de Esquerda, no Parlamento Europeu. Miguel Portas ajudou-a a descodificar a complexidade das instituições europeias. Quis retribuir: tor- nou-se“amamã”detodososquechegam. Entrou para o Bloco de Esquerda em 1999… Estivenojantardefundaçãoe,naverdade,estava na Associação Manifesto, que esteve na fundação do Bloco de Esquerda. Só me tornei militante em 2005.Ditoisto,temtodaarazão:jáeradesde1999 porque era a independente mais comprometida aocimodaterra,acabavaporfazerpartedaslistas todaseacheiquetalveznãofossemáideiaassinar afichadeinscrição. Disse há pouco tempo que o Bloco de Esquer- CONVERSAS COM VIDA
  • 4. E+Fim-de-Semana 5Sexta-feira, 6 de Novembro 2015 [CavacoSilva] foioPresidente deumafacção queestevemais aoserviçodeum partidodoque doPaís “ Desmistificação dosucessoda austeridadeestá navidadecada umdenós Voulutarparair àsegundavolta [daseleições presidenciais] eéesseomeu primeiro compromisso rios e pensões, podem ser possíveis num quadro orçamental. O meu desejo era um Governo ainda mais transformador. Mas acho que este já é um passo importante para combater a austeridade e pôrnocentrodapolíticaadignidadedaspessoase não a vontade de alguns poderosos e dos merca- dosfinanceiros,queteimamemmandaremnós- esses mercados tão ingratos, que continuam a achar que somos lixo, apesar de tudo o que faze- mosemnomedeles. Escreveu, recentemente, no seu Facebook, comumaclaraironia,“CavacoSilvanãodesi- lude”.Querexplicar? Cavaco Silva nunca foi, não quis nem quer ser o Presidentedetodososportugueses.Adeclaração que fez a nomear Pedro Passos Coelho foi a com- provação.FoioPresidentedeumafacção,quees- tevemaisaoserviçodeumpartidodoquedoPaís. Cavaco Silva disse, nas entrelinhas, que não quer um Governo de esquerda com o BE e o PCP? UmPresidentedaRepúblicanãodevesubstituir- -se nem aos partidos nem à Assembleia da Repú- blica. Devia limitar-se às suas funções. Imiscuiu- -se claramente. Nas suas declarações, Cavaco Sil- va expulsou um milhão de portuguesas e portu- guesesdademocracia.Eosrestantesficaramdivi- didos ou, pelo menos, tentou dividi-los. Não é a posturadeumPresidentequedeveestaraoservi- çodetodososportugueses. Olhando para outro país: ainda se revê no go- vernogrego? Revejo-me na luta que foi travada e no esforço real do Governo grego para dar um futuro mui- to melhor e alternativo. Havia soluções orça- mentais complementares – ou que podiam substituir - as que vinham de Bruxelas. Não foi possibilidades… É uma ideia que foi muito vendida e tornada pro- paganda.Masnãoéporumamentiraserrepetida muitasvezesquesetransformaemverdade. Comosedesconstróiessamentira? Descontrói-se com uma proposta alternativa cla- raedizerque,defacto,hásoluções.Pelaprimeira vez,emPortugal,gastamostantocomoEstadono seu conjunto – salários, educação, saúde – como gastamos com os juros da dívida, as parcerias pú- blico-privadas e as rendas. As pessoas têm de olhar para a sua vida: perceberem que houve 500 milpessoasquetiveramdeabandonaropaís,nos últimos anos, por não terem oportunidades de trabalho ou futuro. A desmistificação do sucesso daausteridadeestánavidadecadaumdenós. Nas instituições europeias, as vozes não são todasiguais? Issoémuitovisível.Tivemosumdebate,noPar- lamento Europeu, em que estiveram a falar em nome da União Europeia a senhora Merkel e o senhor Hollande. Disseram não sei quantas ve- zes–tivepenadenãocontar–queaquilodeque nósprecisamosé“maisEuropa”.Nãosepodefa- lar de “mais Europa” e, ao mesmo tempo, assu- mir, à frente de toda à gente, que há um directó- rio: ou melhor, há uma chanceler e um vice- -chanceler porque a Europa é cada vez alemã. O quemaismeassustaéaformacomosepropagou a ideia de que há a Europa dos virtuosos, que vi- vem a Norte, e dos preguiçosos, que vivem a Sul. Esta ideia ficou inculcada na cabeça das pessoas emuitoslídereseuropeuscontinuamareprodu- ziristo,comosefosseverdade. Durão Barroso foi árbitro? Se foi árbitro, foi um árbitro que torceu sempre pelamesmaequipa. AequipadaAlemanha? AequipadaAlemanha,masésimplistadizeristo. Foiumárbitroquejogousempreafavordaequipa quetinhamaispoder. Parausarumaexpressãoquecostumausar:o queéocretinismoparlamentar? É uma expressão muito antiga. Vai tendo várias formulações, mas é o risco que, às vezes, corre- mos de ficar fechados dentro das instituições e perder o contacto com o mundo real. Temos de contrariarissopermanentemente. Quando decidiu candidatar-se à presidên- cia da República, escreveu no Facebook: “Vivemos momentos de expectativa e de es- perança. Em momentos como este, deve- mos saber interpretá-los e correr riscos.” Que riscos são esses? Deacharqueestamosmesmoavivermomentos de expectativa e de esperança, que a política não tem de ser a continuidade do que conhecemos, que há espaço para novas alianças geracionais... Começaasentir-seessatransformaçãonasocie- dadeportuguesa.Nãoseiseéaindatempodeco- lheita, mas é tempo de semear. E correr riscos é disputar toda a reconfiguração que possa haver nasociedadeportuguesaparacriarmosumfutu- ro de maior esperança, com lugar para todos. Nuncafuideficaraassistiretambémnãosoude me colocar em bicos dos pés, mas, se exercemos funções de representação, e achamos que pode- mos contribuir para uma forma diferente de fa- zerpolítica,nãopodemostermedo. Acandidaturaéparairatéaofim? Claro!Ademocracianãoéumparêntesiseosre- sultadosnãoestãoescritosàpartida. Não lhe passa pela cabeça desistir em prol deoutracandidaturaàesquerda? Eu vou lutar para ir à segunda volta e é esse o meuprimeirocompromisso. por falta de alternativas. Quem manda em Bru- xelas e fora de Bruxelas é que nunca quis acei- tar essas propostas. O povo grego e o Governo foram excepcionais. O resultado final é que não éumbomacordo. Conhecebemoprimeiro-ministrogrego.Que tipodepessoaé? É uma excelente pessoa. Não tenho dúvidas ne- nhumas que, independentemente do resultado do acordo, bateu-se pela dignidade do povo grego eporumasoluçãorealparaopaís. Foiobrigadoaceder? Acho que toda a gente assistiu que, na noite das negociações, não existiu verdadeiramente nego- ciação. Falar em negociação é eufemismo. Foi quase tortura fecharem o primeiro-ministro de umpaíscomoutrosquequeriamimporumanor- ma. Hoje em dia, já ninguém pode dizer que as instituições europeias são um grupo de gente de boaféquequerfazerbemàEuropa.AEuropamu- doumuito.Jánãoéumconjuntodeinstituições– e de políticas – que procuram a coesão social ou a convergência territorial. São instituições que, muitas vezes, nos têm humilhado, sobretudo, aos paísesdosul. Como é que a minoria que luta contra a ideia de austeridade consegue ganhar essa luta contraamaioria? Não acredito que seja uma minoria. É uma maio- riasocial.Odesafioécomoéqueessamaioriaso- cialseconvertenumamaioriapolítica. Criou-se a ideia de que a austeridade é ne- cessária e todos vivemos acima das nossas
  • 5. 6 E+Fim-de-Semana Sexta-feira, 6 de Novembro 2015 “Ensinaram-meque sepodiadizertudo” nós temo-las. Mas o que é interessante é que ele ajudou-me a pôr nomes em coisas, para as quais eu não tinha nome. A Marisa nasceu em 1976, pouco depois do 25 de Abril. Na sua aldeia falava-se sobre o que era a Revolução e o processo democrá- tico? O meio rural foi muito marcado com a partida dos seus para a Guerra colonial. E o 25 de Abril foi muito marcado pelo regresso dos que con- seguiram regressar. E isso faz parte das nossas histórias. O fim da ditadura, começar a respi- rar liberdade, poder falar, a perda do medo… Os efeitos da revolução e a instauração da de- mocracia não chegaram ao mesmo tempo a to- dos os sítios do país e, em aldeias como a mi- nha, fomos sentindo isso ao longo dos anos. Recordo-me de ser muito pequenina e a minha avó achava que eu não podia ter opinião sobre tudo… Dizia que eu era ‘muito esquentada’. Ainda havia essas marcas. Felizmente, ensina- ram-me que se podia dizer tudo. Começou a trabalhar muito cedo: por ne- cessidade, vontade de independência? Se tivesse dependido dos meus pais, não tinha começado logo a trabalhar. Queriam que nós estudássemos e não nos distraíssemos a traba- lhar. Mas fazíamos as contas à casa e percebía- mos que era preciso ajudar e contribuir para o orçamento familiar. Fez um sem número de trabalhos, desde limpezas a secretariado… O que aprendeu sobre as pessoas e sobre a vida? Ganhamos mais capacidade para fazer coisas e nunca se perde o chão. É bom para ganhar ou- tras perspectivas da vida, para compreender outros lugares e posicionamentos. Como é que o livro “Pela mão de Alice”, de Boaventura Sousa Santos, mudou a sua vida? O livro “Pela mão de Alice” é uma imagem que liga à Alice no País das Maravilhas. Traça um retrato da sociedade portuguesa, desde as questões da educação, ao trabalho e à Justiça e os desafios que se colocam. Percebi a necessi- dade de ter mapas também para ler a socieda- de como precisamos da História, da Literatu- ra, das Humanidades, da Biologia… Achei que talvez fosse esse o instrumento para o qual ti- vesse mais vocação. Viveu nos EUA, Brasil e África do Sul… O que é que essas experiências fizeram por si pessoal e professionalmente? A base era Portugal, mas fazia trabalhos de campo nesses países. Foi muito importante ter a oportunidade de conhecer o mundo e deixar que o mundo entre nas nossas vidas. Não vale a pena ir, com quadros formatados, senão só va- mos encontrar o que estamos à procura. É im- portante ter a disponibilidade de ir e voltar com mais alguma coisa. Nos EUA conheceu movimentos para tudo e mais alguma coisa… Sim, foi fascinante. Há movimentos pela Jus- tiça ambiental, que foi com os que trabalhei mais, e outros de carácter mais local. No meio disso, fui descobrindo outros movimentos, como o activismo menstrual, que nunca ima- ginei que pudesse existir. É um movimento, com muito sucesso, que procura demonstrar que é um processo normal da vida da mulher, não é uma doença. Dou este exemplo não para ridicularizar, mas para dizer que em quase tudo há razões para criar um movimento e uma comunidade. Outro exemplo era uma co- munidade que defendia a participação dos N asceu numa aldeia com menos de 100 habitantes. Hoje, vive numa aldeia global: o Parla- mento Europeu. Vive, literalmente: são tantas as horas que passa a traba- lhar que encontra a senhora da limpeza, logo de manhã, e descodificou o “mito” do funcio- nário que abre as torneiras durante a noite. Tudo em Marisa Matias parece genuíno: o em- penho, as convicções, a forma como diz tudo de um só fôlego, as gargalhadas sonoras, as lá- grimas que não travou. Nasceu em Alcouce, no distrito de Coim- bra. E não tinha água em casa nem TV… Noiníciodavida,íamosbuscaráguademanhã, à fonte, para as necessidades todas, do banho à comida. Não tinha televisor, mas os meus avós tinham. Íamos a casa dos meus avós, como muitas pessoas da aldeia. Era um ritual ir ver a novela, o noticiário. Ia a pé para a escola, que não era assim tão perto… Não, mas, depois houve escola em Alcouce. In- felizmente, já não há novamente. Era uma ani- mação! Nos dias de Inverno, havia sempre al- guém que nos levava e, se não houvesse, os pais juntavam-se e pediam à Câmara Municipal que nos ajudasse e enviasse um táxi. Ajudava a sua família a trabalhar no cam- po, mas não gostava muito… Até gostava, mais de umas coisas do que de ou- tras. Não gostava muito de apanhar azeitona, confesso. Estava frio e ficava sem sentir as mãos [risos]. Mas a minha tia Isabel, que já morreu, distribuía rebuçados pelo terreno e nós íamos apanhando azeitona e encontrando rebuçados. Também não gostava muito de apanhar milho, no Verão, porque fazia cortes nas mãos… E quantas cabras perdeu? [risos] Algumas, mas elas foram sempre en- contradas! Eu distraía-me muito… A minha mãe e a minha avó iam à procura delas, quando eu chegava a casa. E não eram muitas – essa é que é a vergonha! Com que sonhava ser quando fosse gran- de? Nunca tive o sonho de ser ou fazer qualquer coisa. Nunca entrei no campeonato entre os bombeiros e as cabeleireiras. Foi a vida a acon- tecer e deixar acontecer. Quem era Álvaro Febra? Era vizinho dos meus avós. Faleceu há um ano. Era o comunista da aldeia, trabalhava mais com o sector camponês do Partido Co- munista. Esteve muitos anos na clandestini- dade e viveu em Alcouce a vida toda. Comecei a ter interesse na história dele, quando ficava com a minha avó, e ela contava que, às vezes, estavam muito descansados em casa e chega- va a Pide à aldeia e abria as portas todas e en- trava pelas casas à procura dele. Parecia um livro. Era um homem maravilhoso, um amigo do coração. As noções de justiça e injustiça “Nãogostava muitode apanhar azeitona, confesso.Estava frioeficavasem sentirasmãos “Esquentada” desde pequenina, como dizia a avó. Em vez de brincar com os amigos, passava horas a ouvir o vizinho comunista. Mesmo sem se aperceber, ganhou logo ali consciência política. Não tinha grandes ambições – deixou “a vida acontecer”. Descobriu um rumo na Sociologia, abraçou causas na política, apaixonou-se por quem defendia os mesmos ideais. Conserva a traquinice da infância e a audácia da adolescência: quer mudar o mundo. E, talvez, um dia, consiga. PorMartaRangel | fotografiasdePaulaNunes
  • 6. E+Fim-de-Semana 7Sexta-feira, 6 de Novembro 2015 “ Sousa? Tenho um saco de perucas! [risos] Foi quando a Alda Sousa veio embora, no jantar de despe- dida. Fui comprar perucas da cor do cabelo dela, vermelhas, e passei umas horas a cortar cabelo, em casa, para irmos todos para o jan- tar com o cabelo igual ao dela. Foi o jantar das “Aldetes”. A Marisa é um bocadinho a mamã-pato do Pablo Iglesias, do Podemos? [risos] Não. Eu sou um bocadinho mamã das pessoas que vão chegando. Gosto de fazer o que fizeram comigo. Aquilo é um mundo mui- to difícil e complexo de perceber à primeira. Tive pessoas excelentes a explicar como era, não só o Miguel Portas, mas também a equipa que estava lá. Consegui perceber, não só na delegação do Podemos como em muitas ou- tras, o olhar estranho, à chegada, e procurei ajudar. Mas não fiz nada que não tivessem fei- to comigo. Numa publicação no seu Facebook escre- veu há alguns anos: “Ainda é tão cedo. Fica mais um bocado, sim? Não é cedo, não é tarde. Foi o tempo que o tempo permitiu. O que sentes agora? Paz. Muita paz. E agora, Miguel? É simples. Voa.” Ainda se lembra deste dia? [emocionada] Sim… E que falta é que ele (Miguel Portas) lhe faz? Muita. animais domésticos na missa de domingo, como o cão, o gato. E houve algumas igrejas em Boston que começaram a aderir. Não con- sigo imaginar como era a missa com os ani- mais lá dentro… [risos]. Mas tudo serve para criar uma comunidade. Tem ideia de quantas horas por dia traba- lha no Parlamento Europeu? Não faço ideia… Encontra, muitas vezes, a senhora da lim- peza ainda no seu gabinete? [risos] Encontro! Várias vezes! Agora é um ca- sal, marido e mulher, turcos, que fazem a lim- peza. E o senhor que abre as torneiras de noite? [Gargalhadas] Mas como é que sabe isso?! Por volta das duas ou três da manhã, há um senhor que percorre os gabinetes todos do Parlamen- to, para deixar correr água e não permitir a acumulação de bactérias. É um edifício muito grande, com depósitos de água e é preciso ha- ver muita circulação de água, sob pena de ha- ver um problema de saúde pública, com milha- res de pessoas que trabalham ali. Por isso, há um senhor que passa duas vezes por semana por todos os gabinetes para deixar correr a água cerca de dois minutos, tanto a fria como a quente. Essa água é reaproveitada para outras coisas. Falei no senhor das torneiras várias ve- zes aos meus colegas e toda a gente achava que era um mito, que não existia. Mas, uma vez, es- tava eu, o Renato Soeiro e a Cláudia Oliveira a fazer uma directa e, nesse dia, calhou que o se- nhor viesse ao meu gabinete e eu pude dizer: “Ele existe, não é uma invenção!” É verdade que criou um protocolo diferen- te: dar dois beijinhos ao porteiro? [risos] Na primeira recepção oficial, em 2009, as delegações foram todas convidadas e, na altura, enquanto chefe de delegação do Bloco de Esquerda, com o Miguel Portas e o Rui Ta- vares, avancei para cumprimentar. Estava, na altura, o ministro Luís Amado, o Embaixador Lobo Antunes e o senhor José Manuel à por- ta, a receber. Eu cheguei e foi a primeira pes- soa que cumprimentei. E só depois é que fiz os cumprimentos oficiais! [risos]. Mas apren- do rápido! Ainda tem a peruca igual ao cabelo da Alda Foimuito importanteter aoportunidade deconhecero mundoedeixar queomundo entrenasnossas vidas