2. BÁRBARA DE OLIVEIRA LOPES
O PAPEL DO JORNALISTA NO JORNALISMO
COLABORATIVO:
ESTUDO DO CASO DO BLOG DO NASSIF
Trabalho de conclusão de curso apresentado como
exigência parcial para obtenção do grau de Bacharel
em Comunicação Social com habilitação em
Jornalismo pela Universidade Nove de Julho –
Uninove.
Orientadora: Profa. Patrícia Quevedo Kay
UNIVERSIDADE NOVE DE JULHO (UNINOVE)
COMUNICAÇÃO SOCIAL – JORNALISMO
SÃO PAULO – 2008
3. RESUMO
O papel do jornalista no jornalismo colaborativo: Estudo do caso do Blog do
Nassif. O objetivo deste trabalho é fazer um estudo da interação entre jornalista e leitores no
blog mantido por Luis Nassif. Por meio da análise, descobriuse que os leitores são
convidados a participar das coberturas e sua participação é incentivada com a publicação de
textos de leitores na área principal do blog e do elogio público a essa participação. Nassif
também compartilha com os leitores a observância pelas regras da comunidade. A análise teve
como base o estudo do jornalismo colaborativo e suas implicações em conceitos teóricos
como gatekeeping e agenda setting. Com isso, observase que esses conceitos não funcionam
da mesma maneira na internet, por esta ser um ambiente em que não há escassez de espaço,
como em meios impressos ou de tempo, como em meios eletrônicos (rádio e televisão).
Palavraschave: jornalismo colaborativo, internet, conteúdo gerado por usuários.
5. SUMÁRIO
Introdução............................................................................................................................ 5
1. A internet e a contracultura............................................................................................ 7
1.1. Aspectos técnicos..................................................................................................... 8
1.1.1. O computador........................................................................................................ 8
1.1.2. A internet............................................................................................................ 10
1.2. Implicações culturais............................................................................................. 12
1.3. Trabalho colaborativo............................................................................................ 15
2. Do jornalismo pessoal ao jornalismo colaborativo..................................................... 17
2.1. Origens................................................................................................................... 17
2.2. Jornalismo alternativo na internet......................................................................... 18
2.3. Tipos e funções da participação............................................................................ 23
2.4. Implicações para o jornalismo tradicional…........................................................ 26
3. O Blog do Nassif.......................................................................................................... 29
3.1. Biografia................................................................................................................ 29
3.2. O Blog e a participação dos leitores...................................................................... 29
3.3. O Blog, a mídia e a internet................................................................................... 31
3.4. Cobertura do acidente da TAM............................................................................. 32
3.5. Conclusão.............................................................................................................. 35
Bibliografia........................................................................................................................ 37
6.
7. 5
INTRODUÇÃO
A discussão sobre quem é e o que faz um jornalista não é nova. Isso porque a matéria
prima do jornalismo, a notícia, é, em última análise, de difícil definição, objeto de estudo de
incontáveis pensadores. A notícia separase da informação em geral apenas por um limite
muito tênue, e mesmo este por vezes desaparece. A multiplicidade de papéis do jornalista no
mercado de trabalho e a defesa aguerrida que a categoria faz da restrição dessas atividades a
profissionais credenciados tornam essa uma questão complexa – ainda mais levandose em
conta que o jornalismo sempre conviveu com produções feitas por amadores, militantes de
determinada causa ou aficionados por determinado assunto.
A complexidade aumenta com o advento da internet e a entrada em cena novos
modelos de produção e difusão de informações. O trabalho colaborativo no desenvolvimento
de programas de computador e na criação de fóruns sobre variados assuntos, que acompanha
a internet desde sua criação, no começo deste século chegou ao jornalismo. O jornalismo
colaborativo ou participativo ganhou densidade e atenção pública com o material produzido
por usuários após os atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos.
O crescimento do jornalismo colaborativo coincidiu, também, com crescentes
questionamentos sobre a indepedência dos meios tradicionais. Redações cada vez mais
enxutas e a concentração das empresas jornalísticas em poucos grandes conglomerados
acenderam discussões sobre a qualidade do serviço prestado e sobre a democratização da
imprensa.
Este novo contexto representa um desafio e uma oportunidade para o jornalista. Ele
passa a ter a disposição ferramentas inéditas até então, porém precisa desenvolver novas
habilidades para se sobressair. A participação dos leitores, que passam a ser colaboradores,
coautores, é mais uma chance de enriquecer o trabalho do jornalista que uma ameaça a sua
profissão.
Neste trabalho, decidimos analisar o blog do renomado jornalista Luis Nassif para
descobrir quais habilidades novas estavam sendo colocadas em prática. Nassif, que construiu
sua carreira na grande imprensa, também sempre manteve um olhar crítico em relação à
cobertura da mídia em casos polêmicos. Sua adesão ao formato blog, em 2006, já veio
acompanhada do convite à participação dos leitores. Restava saber se isso se deu, e de que
8. 6
forma.
Para descobrir, após uma leitura dos arquivos do Blog do Nassif, coletamos textos que
têm como assunto a participação dos leitores, comentários sobre a mídia tradicional e os
novos meios que surgem. Esta compilação, que pode ser consultada no Anexo I, permitiu
traçar um retrato da relação que o jornalista estabeleceu com seu público. Além disso,
decidimos analisar a cobertura de um caso específico: o acidente com o vôo 3054, da TAM,
em julho de 2007. Tratavase de um caso difícil, pela necessidade de conhecimentos técnicos
de aviação e pela politização por que a investigação passou em alguns momentos. Reunimos
os posts sobre o acidente publicados em julho e agosto de 2007 no Anexo II.
Para dar embasamento teórico à nossa análise, que forma o terceiro capítulo deste
trabalho, resolvemos estudar o surgimento da internet e sua relação com os ideais libertários
da contracultura, no primeiro capítulo. O segundo capítulo traz um breve panorama do
jornalismo não como empresa, mas como exercício da liberdade de expressão, antes e depois
da internet. Também no segundo capítulo, trazemos a contribuição de alguns autores no
tocante a conceitos teóricos da área de comunicação dentro do novo contexto.
9. 7
1. A INTERNET E A CONTRACULTURA
“Estamos criando agora um espaço no qual o povo do planeta pode ter um
novo tipo de relacionamento: quero poder interagir totalmente com a consciência que
está tentando se comunicar comigo”.
John Perry Barlow, músico e fundador da Electronic Frontier Foundation
(apud CASTELLS, 1999, p. 443)
A internet como é hoje existe pelo encontro de dois grupos aparentemente
antagônicos: hippies e militares. Mas a verdade é que nos anos 1960 e 1970, as principais
universidades americanas eram o ponto de convergência de ambos, especialmente na busca
pela inovação. A contracultura teve um papelchave para o modelo de comunicação mediada
por computadores, que por sua vez possibilitou a existência de novos modelos de jornalismo,
como o jornalismo colaborativo.
Desde o advento da internet, muitos estudiosos vêm se entusiasmando com as
mudanças e o potencial de mudanças trazidos pelas novas tecnologias. Para muitos, é a
realização de fato do conceito de aldeia global de McLuhan, inicialmente desenvolvido para
explicar a transformação no universo da comunicação causada pela televisão. McLuhan foi o
principal teórico a enfatizar que as mudanças tecnológicas – como a invenção da escrita ou da
imprensa – trazem mudanças cognitivas para a sociedade. A teoria da mídia, que tinha pouco
crédito nos meios acadêmicos nos anos 1980, principalmente por sua falta de ênfase nos
aspectos sociopolíticos, ganhou novo fôlego ao ser adaptada para o estudo da era digital.
É dentro dessa perspectiva que diversos autores vêm apontando a importância da era
digital, como algo que tem impacto mesmo sobre quem não está diretamente envolvido. "Esse
[a revolução da tecnologia da informação] é (...), no mínimo, um evento histórico da mesma
importância da Revolução Industrial no século XVIII, induzindo um padrão de
descontinuidade nas bases materiais da economia, sociedade e cultura” (CASTELLS, 1999, p.
68).
Diferentemente da televisão, que se constitui basicamente como uma via de mão única,
a internet trouxe como seu principal ganho a comunicação multidirecional, estabelecendo, de
fato, uma teia.
10. 8
O que torna a internet tão interessante? Dizer que ela é 'anarquista' é um modo
grosseiro e falso de apresentar as coisas. Tratase de um objeto comum, dinâmico,
construído, ou pelo menos alimentado por todos que o utilizam. Ele certamente
adquiriu esse caráter de nãoseparação por ter sido fabricado, ampliado, melhorado
pelos informatas que a princípio eram seus principais usuários. Ele faz uma ligação
por ser ao mesmo tempo o objeto comum de seus produtores e de seus exploradores.
(LÉVY, 1996, p. 1289)
Embora aspectos técnicos e culturais ocorram simultaneamente, optamos por tratálos
em tópicos separados, para preservar a cronologia e aprofundar o estudo de ambos.
1.1. ASPECTOS TÉCNICOS
1.1.1. O computador
A inovação se tornou um fator chave para o Departamento de Defesa do governo
americano a partir da Segunda Guerra. Um dos pontos estratégicos era a decodificação de
mensagens inimigas e a elaboração de modelos de criptografia, além do desenvolvimento de
armas que chegou à bomba atômica. Castells se refere a Segunda Guerra como "a mãe de
todas as tecnologias" (1999, p. 78). A divisão do mundo após o fim do conflito continuou
impulsionando as pesquisas militares e, mais que isso, ampliando os campos de interesse das
forças armadas. Com a Guerra Fria, a competição com os soviéticos deixou de ser apenas de
poder bélico, mas também uma disputa pelos corações e mentes de todo o mundo.
Em fevereiro de 1946, seis meses após o fim da Segunda Guerra, com patrocínio das
forças armadas, uma equipe da Universidade da Pensilvânia desenvolveu o primeiro
computador para uso geral, o ENIAC (Computador e Integrador Numérico Eletrônico, na
sigla em inglês). O desenvolvimento da máquina havia começado em 1943. O Exército
investiu 500 mil dólares nas pesquisas, com o objetivo de ter uma ferramenta para cálculos
balísticos. O ENIAC pesava 30 toneladas e ocupava uma área de 180 metros quadrados.
Quando foi acionado, seu consumo de energia foi tão alto que as luzes da Filadélfia piscaram.
11. 9
Em 1947, físicos da empresa Bell Laboratories, em Nova Jersey, inventaram o
transistor o ENIAC utilizava válvulas a vácuo. A fabricação do transistor passou a ser feita
com silício em 1954, com o feito creditado à Texas Instruments. A empresa patenteou, três
anos mais tarde, o Circuito Integrado, que permitia a integração de diversos transistores
miniaturizados em um chip. Um dos inventores era Robert Noyce, fundador da Fairchild
Semiconductors e, mais tarde, da Intel, ambas no Vale do Silício, na Califórnia.
A Fairchild passou, em 1959, a utilizar o processo plano para a fabricação de circuitos
integrados. "Em apenas três anos, entre 1959 e 1962, o preço dos semicondutores caiu 85% e a
produção aumentou vinte vezes, sendo que 50% dela foi destinada a usos militares"
(CASTELLS, 1999, p.77). Essa tendência de barateamento do processamento em
computadores foi descrita por outro cofundador da Intel, Gordon E. Moore, em um artigo de
1965. Ele afirma que o número de transistores que podem ser colocados em um circuito pelo
mesmo custo cresce exponencialmente e dobra a cada dois anos. A afirmação ficou conhecida
como Lei de Moore. O preço médio de um circuito integrado caiu de 50 dólares em 1962 para
1 dólar em 1971. A mudança do coração das inovações em microeletrônica para o Vale do
Silício acabaria se consolidando ao longo dos anos seguintes.
Foi na década de 1970 que "as novas tecnologias da informação difundiramse
amplamente, acelerando seu desenvolvimento sinérgico e convergindo em um novo
paradigma" (CASTELLS, 1999, p. 76). Em 1971, o engenheiro da Intel Ted Hoff inventou o
microprocessador. Em 1975, o engenheiro Ed Roberts, da fabricante MITS, no Novo México,
criou uma "caixa de computação", batizada de Altair. A máquina era vendida em kits pelo
correio, por meio de anúncios em revistas voltadas para aficionados por eletrônica. A
expectativa da MITS era de vender apenas algumas centenas de exemplares, mas apenas no
primeiro mês, milhares de unidades foram vendidas. O Altair foi a fagulha que acendeu o
estopim da revolução do computador pessoal nos anos seguintes. Seu design serviu de
inspiração para o Apple I e, posteriormente, para o Apple II.
A história da Apple acabou se tornando uma das lendas do Vale do Silício. Fundada
em 1976, com capital de 91 mil dólares, a empresa atingiu, em 1982, a marca de mais de 500
milhões de dólares em vendas. Em 1981, a IBM (que nos anos 1950 também havia recebido
patrocínio militar) lançou uma máquina com o nome de Computador Pessoal (PC, na sigla em
inglês), que se tornaria o nome genérico do microcomputador. Como o PC foi desenvolvido
com base em tecnologias desenvolvidas para a IBM por terceiros, ficou sujeito à clonagem,
12. 10
que logo foi praticada em escala maciça, especialmente na Ásia. Embora tenha sido um golpe
para a IBM, isso permitiu a popularização do PC em lugar dos computadores da Apple. Em
1984, a Apple lança o Macintosh, o primeiro computador a usar mouse e interface gráfica,
baseado, pelo menos parcialmente, em pesquisas que a Xerox fazia na época.
O Altair também acendeu o entusiasmo de dois estudantes da Harvard, Bill Gates e
Paul Allen. Eles apresentaram para a MITS uma implementação da linguagem BASIC para o
Altair. Quando a companhia aceitou a proposta, Gates abandonou a faculdade e mudouse
para o Novo México e lá fundou a Microsoft.
Nas últimas décadas, os computadores aumentaram incrivelmente a capacidade de
processamento, armazenamento e memória, em uma escala que pode ser descrita de acordo
com a Lei de Moore. Por trás disso, está uma das características mais importantes da
revolução da informação: sua capacidade de se realimentar. Segundo Castells, o custo médio
do processamento da informação caiu de aproximadamente US$ 75 por cada milhão de
operações, em 1960, para menos de um centésimo de centavo de dólar em 1990. A tecnologia
e o design para fabricação de computadores passaram a ser aperfeiçoados pelo uso de
computadores.
O que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a centralidade de
conhecimentos e informação, mas a aplicação desse conhecimento e dessa
informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento/
comunicação da informação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre a
inovação e seu uso. (CASTELLS, 1999, p. 69)
É também o que Lévy caracteriza como "máquina darwiniana".
Os sistemas darwinianos apresentam uma capacidade de aprendizagem nãodirigida
ou (o que dá no mesmo do ponto de vista de uma teoria do espírito) de uma
capacidade de autocriação contínua. (...) As máquinas darwinianas arrastam consigo
seus ambientes no caminho de uma história irreversível. (LÉVY, 1996, p. 102)
1.1.2. A internet
Além do desenvolvimento de hardware e software, a internet também é resultado de
avanços em telecomunicações e em optoeletrônica (o uso de cabos de fibra ótica para
13. 11
transmissão de dados).
Em 1969, a Agência de Projetos de Pesquisas Avançadas (ARPA, na sigla em inglês),
do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, lançou o projeto de uma rede de
comunicação que fosse invulnerável a ataques nucleares. Vale lembrar que a experiência da
Segunda Guerra havia mostrado a importância de um meio de comunicação segura como
estratégia bélica. O modelo escolhido utilizava a troca de pacotes de dados e um sistema em
que não houvesse um comando central. Cada ponto da rede poderia se comunicar diretamente
com outro e com mais de um ponto ao mesmo tempo. Em uma rede com um servidor ou
comando central, um ataque inimigo que atingisse esse centro derrubaria toda a rede. O
sistema de comutação de pacotes de dados era um novo conceito na época o comum então
era a comutação de circuitos, como na comunicação telefônica.
Batizada de ARPANET, estabeleceu seus primeiros quatro nós na Universidade da
Califórnia em Los Angeles, no Stanford Research Institute, na Universidade da Califórnia em
Santa Bárbara e na Universidade de Utah. "Estava aberta aos centros de pesquisa que
colaboravam com o Departamento de Defesa dos EUA, mas os cientistas começaram a usála
para suas próprias comunicações, chegando a criar uma rede de mensagens entre entusiastas
de ficção científica”. (CASTELLS, 1999, p. 83)
Em 1971, Ray Tomlinsom, um programador da BBN, empresa contratada pelo
Departamento de Defesa, desenvolveu e mandou a primeira mensagem eletrônica. Esse tipo de
comunicação rapidamente se difundiu: em 1973, 75% do tráfego da ARPANET eram emails.
Em 1973, um novo serviço foi incorporado, a transferência de arquivos, via FTP (Protocolo de
Transferência de Arquivos, na sigla em inglês).
O crescimento da rede foi rápido. Em setembro de 1971, a rede contava com 15 nós e
23 hosts conectados à ARPANET, em universidades e centros de pesquisa do governo. Nesse
ano, com a rede bem estabelecida, a ARPA transferiu a operação da ARPANET para a
Agência de Comunicações do Departamento de Defesa. Em 1983, com 213 nós, a parte militar
da rede foi desmembrada, formando a MILNET.
Um dos usos mais populares da internet começou a ser feito no ano seguinte: os
grupos de discussão. Também passam a ser registrados os primeiros domínios (endereços na
internet). Os primeiros chats, do IRC, datam de 1988.
Porém vem de 1991 um dos marcos mais importantes. Uma equipe do Centro Europeu
de Pesquisa Nuclear (CERN, na sigla em francês), liderada por Tim Berners Lee, criou a
14. 12
WWW – world wide web, rede de alcance mundial – um aplicativo que organizava os sites de
acordo com sua informação.
Não montaram a pesquisa na tradição da ARPANET, mas com a contribuição da
cultura dos hackers da década de 1970. Basearamse parcialmente no trabalho de
Ted Nelson que, em seu panfleto de 1974, 'Computer Lib', convocava o povo a usar o
poder dos computadores em benefício próprio. Nelson imaginou um novo sistema de
organizar informações que batizou de 'hipertexto', fundamentado em remissões
horizontais. (CASTELLS, 1999, p.88)
O CERN distribuiu gratuitamente o software WWW. Ele foi fundamental para fazer
com que a internet saísse dos ambientes acadêmicos e técnicos e atingisse o grande público.
Ao longo dos anos 1990, estimase que a internet tenha dobrado de tamanho a cada
ano, com exceção de 1996 e 1997, que tiveram um crescimento ainda mais explosivo. A
segunda metade da década também marca a descoberta da rede por empresas de todos os
tamanhos, que passaram a investir no potencial da internet. Ações de empresas de internet
tiveram enorme valorização em bolsas de valores. Essa “corrida pelo ouro” acabou não se
mostrando sustentável com o estouro da chamada “bolha pontocom”, em 2001, quando
diversas empresas foram à falência.
Em meados dos anos 2000, passam a ocupar lugar de destaque sites que oferecem
ferramentas para que os usuários possam personalizar e publicar conteúdos. Essa categoria de
sites foi agrupada sob o rótulo de Web 2.0.
1.2. IMPLICAÇÕES CULTURAIS
O desenvolvimento da internet correu simultaneamente à revolução nos costumes e
com a convergência geográfica para a Califórnia.
Enquanto empresas grandes e bem estabelecidas do leste eram rígidas (e arrogantes)
demais para reequiparse constantemente com base em novas fronteiras tecnológicas,
o Vale do Silício continuou produzindo muitas novas empresas e e praticando troca
de experiências e difusão de conhecimentos por intermédio da rotatividade de
profissionais e de cisões parciais. Conversas noturnas em bares e restaurantes, como
15. 13
o Walker's Wagon Wheel Bar e o Grill in the Mountain View, fizeram mais pela
difusão da inovação tecnológica que a maioria dos seminários de Stanford. (...)
Outro fator importante da formação do Vale do Silício foi a existência de uma rede
de empresas de capital de risco desde o início. (CASTELLS, 1999, p. 101 102).
Com isso, técnicos e engenheiros ganhariam a vizinhança de escritores, artistas em
geral e de hippies de todo o país, que convergiram para a Califórnia. Já no século XIX, por
sua localização e com a corrida pelo ouro e o estabelecimento de diversas indústrias, o
condado de São Francisco abrigava um grande número de imigrantes, especialmente latinos e
asiáticos (o bairro de Chinatown se formou por volta de 1850), criando ali uma cultura
poliglota. Desde os anos 1940, a Universidade da California em Berkeley abrigava poetas de
vanguarda, como Kenneth Rexroth, Madeline Gleason e Robert Duncan. Foi também entre
meados da década de 1940 e a década de 1960 que começou a aparecer a Geração Beat, como
ficou conhecido o grupo de escritores, incluindo Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William S.
Burroughs, que desafiava os valores americanos tradicionais, se interessava por
experimentações com drogas e pela espiritualidade oriental. A realização de leituras e festivais
fez com que o período ficasse conhecido como Renascença de São Francisco e começasse a
consolidar a imagem da região como centro da contracultura.
Em 1967, dois anos antes da criação da ARPANET, São Francisco havia sido palco do
chamado "Verão do Amor", que reuniu cerca de cem mil jovens de todos os Estados Unidos.
Essa concentração foi crucial para a visibilidade do movimento hippie. A cidade já era o
epicentro da contracultura, onde fervilhavam música, drogas psicodélicas, liberdade sexual e
revolta política. O ano de 1968 ficou marcado pelos protestos jovens ao redor do mundo.
Nos EUA, as contradições da Guerra do Vietnã davam lugar a um forte movimento
de resistência pacifista. A deserção e a desobediência civil assumiam dimensões de
radical atitude política. Surgia uma Nova Esquerda valorizando o domínio da
problemática pessoal ou de lutas tidas como secundárias a liberação sexual, a luta
dos negros, das mulheres, as reivindicações minoritárias. Bob Dylan, Allen
Ginsberg, Black Panthers... novos símbolos e formas culturais tomavam corpo,
expressando aquilo que Herbert Marcuse, filósofo de cabeceira da nova
intelligentsia, chamou de a Grande Recusa. (HOLLANDA, GONÇALVES, 1982, p.
69)
Pierre Lévy cita um exemplo de como contracultura e tecnologia se conectaram na
16. 14
época:
O movimento social californiano Computers for the People quis colocar a potência
do cálculo dos computadores nas mãos dos indivíduos , liberandoos ao mesmo
tempo da tutela dos informatas. Como resultado prático desse movimento "utópico",
a partir do fim dos anos 70 o preço dos computadores estava ao alcance das pessoas
físicas, e neófitos podiam aprender a usálos sem especialização técnica. O
significado social da informática foi completamente transformado. (LÉVY, 1999, p.
125)
Stewart Brand é um escritor que ficou conhecido pelos catálogos Whole Earth,
publicados duas vezes por ano entre 1968 e 1972, com outras edições eventuais até 1998. O
objetivo era catalisar a emergência de um domínio de poder pessoal, por meio da
disponibilização de tecnologias simples para indivíduos interessados em criar comunidades
sustentáveis as comunidades hippies que pipocaram nos Estados Unidos nesse período.
“Os revolucionários do computador pessoal eram a contracultura”, [Stewart] Brand
me lembrou (...). O cofundador da Apple Steve Jobs viajou para a Índia em busca
de iluminação; o fundador e desenvolvedor do Lotus 123, Mitch Kapor, havia sido
um professor de meditação transcendental. Eles eram cinco ou dez anos mais novos
que os hippies, mas eles vieram do mesmo zeitgeist dos anos 1960, e adotaram
muitas das idéias de libertação pessoal e iconoclastia. (RHEINGOLD, 1994,cap.2)
Steve Jobs, fundador de uma das mais importantes empresas de tecnologia até hoje, a
Apple, compara os catálogos Whole Earth a uma espécie de Google em papel, em um
discurso em uma cerimônia de formatura na Universidade de Stanford:
Quando eu era jovem, havia uma publicação incrível chamada The Whole Earth
Catalog, que foi uma das bíblias da minha geração. Foi criada por um sujeito
chamado Stewart Brand perto daqui em Menlo Park, e ele a trouxe à vida com seu
toque poético. Isso foi no fim dos anos 1960, antes de computadores pessoais e
publicação informatizada, então era feita com máquinas de escrever, tesouras e
câmeras polaróide. Era uma espécie de Google em papel, 35 anos de o Google
existir: era idealista, e repleta de dicas elegantes e grandes idéias. (JOBS, 2005)
17. 15
1.3. TRABALHO COLABORATIVO
Um dos usos da internet é facilitar o trabalho colaborativo entre equipes que não
necessariamente mantêm contato pessoal, ou que estão distantes geograficamente. Os dois
maiores exemplos deste tipo de trabalho são o movimento software livre e o desenvolvimento
da enciclopédia virtual Wikipedia.
Softwares livres são aqueles que podem ser usados, estudados, modificados e
redistribuídos sem restrições (ou com poucas restrições) de direitos autorais. Além do
programa em si, o usuário pode acessar seu códigofonte, algo como a receita do programa.
Os direitos autorais passaram a se aplicar também a programas de computador em
1980. A caixapreta fechada dos softwares começou a incomodar programadores, entre eles
Richard Stallman, que então trabalhava no Laboratório de Inteligência Artificial do MIT
(Massachusetts Institute of Technology). Em 1983, Stallman anunciou o Projeto GNU, para o
desenvolvimento de um sistema operacional livre através da contribuição em massa. Ele criou
o termo “software livre” e, em 1986, a ONG Fundação Software Livre. Além da programação,
as atividades da fundação estão voltadas para o ativismo.
Em 1988, foi publicada a Licença Pública Geral GNU, uma alternativa aos direitos de
propriedade intelectual. Foi sob essa licença que Linus Torvalds publicou, em 1991, um dos
programas essenciais para o sistema operacional sonhado por Stallman. Surgia assim o Linux
(ou GNU/Linux).
O fator significativo no êxito do Linux foi seu interminável aprimoramento em
conseqüência da contribuição de milhares de usuários, que descobriam novos usos e
aperfeiçoavam o software, depois divulgando esses aperfeiçoamentos na Rede,
gratuitamente, retribuindo assim o presente técnico que haviam recebido. Esse
esforço constante e multifacetado para melhorar a comunicabilidade da rede
constitui um notável exemplo de como a produtividade de cooperação tecnológica
através da rede acabou por aperfeiçoála. (CASTELLS, 1999, p.441)
O Linux possui uma fatia de mercado atualmente em cerca de 1%, o bastante para
incomodar a Microsoft, que tem hegemonia nesta área com o Windows. Além disso, o sucesso
do Linux inspirou o desenvolvimento de outros programas livres, como o navegador Mozilla
Firefox, que detém mais de 20% de seu mercado.
18. 16
Seguindo a mesma filosofia, foi criada, em 2001, a Wikipedia. Fundada por Jimmy
Wales e Larry Sanger, também sob uma licença que previa livre uso, modificação e
redistribuição. A enciclopédia criada por eles utiliza o software wiki, que possibilita que
qualquer pessoa edite o material ou publique novas páginas. Porém, as mudanças, as
diferentes versões de cada verbete ficam armazenadas para consulta, com indicação de quem
fez a alteração.
No final de 2001, a Wikipedia já tinha 20 mil artigos, em 18 idiomas. Atualmente, há
edições em 161 idiomas. A edição em inglês da enciclopédia superou a marca de 2,6 milhões
de verbetes. A versão em português possui cerca de 445 mil artigos. O medidor de audiência
na internet Alexa colocou a Wikipedia entre os quinze sites mais populares. Outra medida de
seu sucesso é o volume de doações arrecadadas, que sustentam um orçamento estimado em
quase 6 milhões de dólares no biênio 2008/2009.
Para lidar com as preocupações sobre a confiabilidade dos artigos, a Wikipedia
desenvolveu um modelo de comunidade, que pode indicar se um artigo sofre de parcialidade
ou carência de citações, ou até mesmo fechar a edição de verbetes relacionados a temas
polêmicos do noticiário. Em comparação com a tradicional Enciclopédia Britânica, a revista
cientfíca Nature encontrou um nível similar de acuracidade.
Também tornouse um modelo para outros empreendimentos colaborativos. A “família
Wikimedia” conta com um dicionário (Wiktionary), um canal de notícias (Wikinews), uma
biblioteca de livros virtuais (Wikibooks), entre outros projetos.
19. 17
2. DO JORNALISMO PESSOAL AO JORNALISMO COLABORATIVO
“Não retrate a comunidade. Seja a comunidade”.
Tim Porter, escritor1
2.1. ORIGENS
Ao lançarmos um olhar sobre a história da imprensa, percebese que a
profissionalização e a institucionalização nunca foram absolutas. A onipresença dos grandes
jornais, do rádio e da televisão podem ofuscar um pouco esta realidade, mas publicações
alternativas têm estado presentes em todos os momentos, especialmente durante crises,
situações de instabilidade política, tragédias, etc.
Em seu Nós, os Media, Dan Gilmor narra como panfletos contribuíram para a
independência e formação dos Estados Unidos. “Nos finais do século XVIII, um dos nossos
primeiro panfletários, Thomas Paine, inspirou muita gente com seus escritos acerca da
revolta, da liberdade e da governação” (2004, p. 22). Um dos adeptos dos panfletos era
Thomas Jefferson. Os autores anônimos dos Federalist Papers, que se dedicaram a analisar a
Constituição proposta e discutir o funcionamento da nova república,tiveram papel
importantíssimo para a aprovação da Constituição nos estados americanos. A Carta, aliás, tem
como primeira emenda a garantia da liberdade de expressão.
No Brasil, um dos momentos que fez disparar o gatilho da imprensa alternativa foi a
ditadura militar. Kucinski, em sua pesquisa sobre o assunto, afirma que no Brasil, entre 1964 e
1980, “nasceram e morreram cerca de 150 periódicos que tinham como traço comum a
oposição intransigente ao regime militar” (2003, p. 13). O número inclui jornais de âmbito
regional ou com temáticas específicas, como os feministas. Entre os de maior destaque,
estavam Pasquim, Movimento, Opinião e Versus. O autor aponta ainda que no apogeu desse
tipo de publicação, nos anos entre 1975 e 1977, os oito maiores somavam até 160 mil
exemplares por semana.
Ele também destaca a ocorrência desse fenômeno em outros momentos de agitação
política.
1 http://www.timporter.com/firstdraft/archives/000347.html. Último acesso em 12/12/2008
20. 18
Apesar de complexo, o fenômeno alternativo teve contornos nítidos no tempo, como
outros surtos na história do nosso jornalismo, entre os quais o dos pasquins
irreverentes e panfletários do período da Regência, que atingiu seu apogeu em 1830
com cerca de cinqüenta títulos, e o dos jornais anarquistas de operários, meio século
depois, com quase quatrocentos títulos. Nos três momentos, pequenos jornais sem
fins mercantis, produzidos precariamente, às vezes por um só homem, como eram
muitos pasquins, dirigiamse à sociedade civil e às classes subalternas criticando o
Estado e propondo mudanças. (KUCINSKI, 2003, p. 21)
Nos anos 1980 e 1990, proliferam em diversos países fanzines. Dessas publicações
amadoras, feitas por fãs de alguns fenômenos da cultura pop, há registro desde os anos 1930.
Porém a explosão do movimento punk e de seu do it yourself (faça você mesmo) trouxe nova
vitalidade para o gênero, em uma época marcada pela estagnação econômica e pelo
desemprego em diversas partes do mundo. Normalmente em edições fotocopiadas ou
mimeografadas e enviadas pelo correio, sem qualquer regularidade, os zines nasceram e
morreram aos milhares. Nos Estados Unidos e na GrãBretanha, alguns dos mais respeitados
críticos culturais começaram suas carreiras nesse tipo de revista. Entre eles, Greil Marcus e
Lester Bangs. (STONEMAN, 2001)
2.2. JORNALISMO ALTERNATIVO NA INTERNET
O advento da internet, além de facilitar a criação de publicações, aumentou de forma
avassaladora seu alcance. Uma das primeiras ferramentas desenhadas para o novo meio, o
wiki, em 1994, tinha como objetivo justamente possibilitar a criação colaborativa de conteúdo.
O uso mais conhecido do wiki é a enciclopédia online Wikipedia, mas há sites jornalísticos
que usam a ferramenta, como o WikiNews. (GILLMOR, 2005)
Em 1997, surge o Slashdot, site dedicado a notícias de tecnologia, em que os usuários
podem enviar links para matérias publicadas em outros sites. A novidade trazida pelo
Slashdot, entretanto, é o diálogo que se desenvolve nos comentários de cada notícia. No
começo, enquanto havia um grupo pequeno de usuários, apenas o fundador do site, Rob
Malda, organizava as mensagens e separava o “joio do trigo”. Porém, um ano depois, cerca de
50 mil pessoas participavam do espaço. Acompanhando o crescimento de seu site, Malda foi
21. 19
aprimorando uma ferramenta de programação que permite que qualquer usuário com alguma
assiduidade venha a se tornar um moderador temporariamente e dar notas aos comentários. O
número de notas é limitado. Quem navega pode optar por ver apenas as entradas com notas
mais altas, na escala que vai de 1 a 5. O histórico de notas recebidas pelo usuário compõe seu
“carma” e usuários com carmas mais elevados ganham privilégios, como terem mais chances
de serem escolhidos moderadores.
Steve Johnson incluiu o Slashdot como um dos casos em seu livro Emergência, sobre
sistemas do tipo bottomup (de baixo para cima). Tratase de sistemas que se organizam sem
uma liderança central, mas que, a partir de regras próprias e com a ação de indivíduos, cria
um todo “inteligente” (não necessariamente no sentido da inteligência humana) e evolutivo.
Em linguagem mais técnica, são complexos sistemas adaptativos que mostram um
comportamento emergente. Neles, os agente que residem em uma escala acima
deles: formigas criam colônias; cidadãos criam comunidades; um software simples
de reconhecimento de padrões aprende a recomendar novos livros. O movimento das
regras de nível baixo para a sofisticação de nível mais alto é o que chamamos de
emergência. (JOHNSON, 2003, p. 14)
O feedback – tanto positivo como negativo – é um dos mecanismos para o
funcionamento de comunidades. No caso do Slashdot o feedback positivo é dado pelo valor
atribuído à participação; o negativo, pela escassez, já que os poderes de moderação se
esgotam.
O problema para Malda era como construir um sistema homeostático que levasse o
site naturalmente àquele estado, sem que nenhum indivíduo estivesse no controle. A
solução a que ele chegou seria imediatamente reconhecido hoje: uma mistura de
feedbacks positivo e negativo, uma dose de acaso estruturado, interações entre
vizinhos e controle descentralizado. De um certo ângulo, o Slashdot hoje se parece
com uma colônia de formigas. De outro, parece uma democracia virtual. O próprio
Malda comparao às tarefas de um júri. (JOHNSON, 2003, p. 115)
O Slashdot foi pioneiro em um modelo que atualmente é utilizado em diversos sites,
como a gigante de vendas online Amazon e o respeitado Epinions, de resenhas de produtos.
Ambos computam tanto notas dadas pelos usuários aos artigos como os próprios usuários são
avaliados, pela freqüência e qualidade de participação. Também é o exemplo para sites de
22. 20
jornalismo colaborativo que atuam sem a presença de uma equipe de edição centralizada,
como veremos adiante.
Em 1999, dois acontecimentos tiveram grande impacto na maneira como as pessoas
passaram a usar a internet: os protestos antiglobalização e o surgimento dos blogs.
Desde meados dos anos 1990, movimentos populares e anticapitalistas como os
zapatistas no México, o Movimento dos Sem Terra brasileiro, o inglês Reclaim the Streets, a
Rede de Mulheres Indígenas da América do Norte, e outros começaram a se articular em uma
rede, que em 1998 ganhou o nome de Ação Global dos Povos. Um dos princípios dos grupos
envolvidos era a ausência de hierarquia; a organização deveria ser horizontal. A primeira ação
internacional foi o “Carnaval contra o Capitalismo”, que ocorreu em 18 de junho de 1999,
enquanto o G8 se reunia na Alemanha. Com o lema “Nossa resistência é tão transnacional
quanto o capital”, foram realizados protestos simultâneos em distritos financeiros de mais de
40 países, incluindo Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, França, Israel e Nigéria.
A internet – emails e a lista de discussão – foi um fatorchave para a abrangência do
movimento e contato entre os grupos. Mas ainda havia o entrave do pouco espaço na mídia
tradicional para os protestos. Na reunião de criação da Ação Global dos Povos, um dos
participantes havia dito: “O inimigo global é relativamente bem conhecido, mas a resistência
global que ele enfrente raramente passa através do filtro da mídia” (LUDD, 2002, pp. 1516).
Assim, para as próximas manifestações, os movimentos criaram seu próprio veículo
na internet, o Indymedia – Independent Media Center (Centro de Mídia Independente). O site
foi ao ar em 24 de novembro de 1999, dias antes dos protestos contra a reunião da
Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle, nos Estados Unidos. A primeira
entrada dá o tom do que viria: “A web alterou dramaticamente o equilíbrio entre mídia
multinacional e ativista. Com apenas um pouco de programação e algum equipamento barato,
podemos estruturar um website automatizado que rivaliza com as corporações”
(INDYMEDIA, 1999).
A OMC começou a sua reunião no dia 30, mas as negociações do que seria a Rodada
do Milênio, sobre a diminuição das barreiras comerciais, sequer iniciaram2, devido a diversos
fatores, entre os quais os massivos protestos que ocorreram na data. O Indymedia foi o espaço
em que ativistas, curiosos e jornalistas buscaram notícias, fotos, áudio e vídeos sobre as
2 Um novo encontro aconteceu em novembro de 2001, em Doha, no Qatar, e a agenda estabelecida então ficou
conhecida como Rodada de Doha. As negociações, ainda em andamento, até a última reunião em 2008 em
Genebra, não levaram a um acordo, principalmente pela discordância entre países desenvolvidos e em
desenvolvimento.
23. 21
manifestações e a repressão policial – o próprio Centro de Mídia Independente, aliás, recebeu
“uma violenta visita do FBI”, como lembra Gillmor (2004, p. 148). Atualmente, há 150
versões locais e autônomas do Indymedia. A brasileira permite que qualquer pessoa publique
conteúdo, mas remove da página inicial spams, textos repetidos e em desacordo com a política
editorial do site. Esse material é reunido em uma seção chamada “Artigos escondidos”, para,
de acordo com o coletivo editorial, dar transparência ao processo.
Se o Indymedia era a possibilidade de publicar com apenas um pouco de
programação, na mesma época surgia uma ferramenta que permitia criar seu espaço na
internet mesmo a quem não tinha nenhum conhecimento de linguagem HTML. Os blogs –
abreviação para web log (registro de web) – são páginas de internet que publicam entradas em
ordem cronológica inversa, ou seja, as mais recentes acima das mais antigas. A primeira
comunidade de blogs foi a Open Diary, que foi ao ar em outubro de 1998. Além de oferecer a
criação de diários, a Open Diary logo implementou uma funcionalidade para que usuários
pudessem colocar comentários em entradas de outros diários, que depois se tornaria uma das
características mais comuns desse tipo de publicação. Em meados de 1999, mais de 10 mil
diários faziam parte da comunidade. Também em 1999, surgiram outros dois serviços online
para criação e hospedagem de blogs: o LiveJournal e o blogger.com, que rapidamente
alcançaram extrema popularidade. O blogger.com foi comprado pelo Google em 2003, por
valores não revelados.
Com o acesso cada vez maior e mais barato à conexão à internet por banda larga, os
blogs experimentaram uma explosão. O mecanismo de ranqueamento de blogs Technorati cita
a pesquisa da Universal McCann para referendar sua visão de que os blogs vieram para ficar:
em todo o mundo, 184 milhões de pessoas já criaram um blog e 346 milhões de pessoas –
77% dos usuários ativos de internet – lêem blogs. O próprio Technorati tem indexados 133
milhões de blogs desde 2002, dos quais 1,5 milhão haviam publicado algum conteúdo nos sete
dias anteriores à elaboração do relatório, em junho de 2008. (TECHNORATI, 2008)
O espectro formado por todos essas páginas vai de projetos individuais a publicações
coletivas, dos mais amadores aos corporativos; seu conteúdo vai de textos literários e fotos,
passa por cartuns e culinária, até abordagens sofisticadas.
Segundo Dan Gillmor,
Nos últimos 150 anos, dispusemos essencialmente de dois meios de comunicação:
24. 22
de um para muitos (livros, jornais, rádio e televisão) e de um para um (cartas,
telégrafo e telefone). Pela primeira vez, a Internet permitenos dispor de
comunicação de muitos para muitos e de alguns para alguns ... De muitos para
muitos, de alguns para alguns. Nestes dois casos e em todos os outros, o blogue é o
meio de comunicação. (GILLMOR, 2004, pp. 42 e 45)
As novas ferramentas para publicação já haviam conquistado algum espaço, mas um
período de tragédia as colocou à prova como instrumento de informação alternativa à mídia
tradicional. A cobertura do atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos
mobilizou milhares de pessoas que levaram à internet seus relatos, imagens, informações e
comentários.
De acordo com o Pew Internet Project, em pesquisa citada por Bowman e Willis
(2003, p. 7), os ataques geraram o maior volume de tráfego para os sites de notícias
tradicionais na história da Web até então. Muitos sites não deram conta da enorme demanda e
o público se voltou para emails, blogs e fóruns.
Gillmor (2004), falando sobre um dos blogs que ascenderam na época, o InstanPundit,
de Glenn Reynolds, descreve da seguinte forma:
Actualmente, InstanPundit.com goza de enorme aceitação. Reynolds está sempre a
publicar comentários cortantes, de tendência libertária e conservadora3, sobre uma
grande diversidade de questões. Tornouse uma estrela num firmamento que, ainda
há muito pouco tempo, não poderia ter existido, um firmamento que conseguiu o
maior impulso no dia mais cruel da história americana recente. O dia que ficou
congelado no tempo, mas as explosões dos aviões contra aquelas torres trouxeram
uma redobrada onde de calor ao glaciar dos meios de comunicação e o gelo continua
a derreterse. (GILLMOR, 2004, p. 39)
Foi a partir deste momento que ganhou em popularidade os termos jornalismo
cidadão, jornalismo participativo ou jornalismo colaborativo – além dos termos mais comuns
na área de tecnologia mídia gerada pelo usuário e conteúdo gerado pelo usuário. (Em inglês,
citizen journalism tem um caráter muito mais voltado à produção feita pelos cidadãos; em
português, a expressão pode indicar a cobertura de assuntos relacionados à cidadania. Por
3 Libertário, no contexto político americano, é aquele que defende mínima intervenção do Estado na economia
(redução de impostos, privatização da Previdência Social, pouca regulação do mercado) e em outros aspectos
da vida social, como direito ao aborto, ao porte de armas, liberação da prostituição, jogos de azar e de drogas.
(Nota da autora)
25. 23
isso, neste trabalho optamos por “jornalismo colaborativo”).
Os desdobramentos do 11 de Setembro também levaram a uma cobertura intensa na
internet e ao reconhecimento, por alguns veículos importantes, das possibilidades que
surgiam. Para cobrir as manifestações em diversos lugares que precederam a invasão
americana no Iraque, a BBC News fez um apelo para que seus leitores enviassem fotos tiradas
com câmeras digitais ou celulares com câmeras embutidas e publicou as melhores em seu site
(BOWMAN e WILLIS, 2003, p.8). Os autores também citam pesquisa mostrando que, nos
primeiros dias da guerra do Iraque, 17% dos americanos com acesso à internet usaram o meio
como principal fonte de informação sobre a guerra; logo após o 11 de Setembro, eram apenas
3%. (BOWMAN e WILLIS, 2003:8).
2.3. TIPOS E FUNÇÕES DA PARTICIPAÇÃO
O estudo do Media Center define jornalismo participativo como "o ato de um cidadão,
ou grupo de cidadãos, participa ativamente no processo de coletar, reportar, analisar e
disseminar notícias e informação. O intuito dessa participação é produzir a informação
independente, confiável, precisa, abrangente e relevante de que necessita a democracia"
(BOWMAN e WILLIS, 2003, p. 9).
Essa participação pode se dar de diversas maneiras, muitas das quais estão em um
terreno pantanoso quanto a serem de fato jornalismo ou não. Lasica (2003) propõe que em
geral o jornalismo participativo se enquadra em uma das seguintes categorias:
1. Participação do público em veículos mainstream – que inclui blogs de
membros da equipe do veículo com espaços para comentários, fóruns, artigos escritos por
leitores e fotos e vídeos enviados pelo público. No Brasil, a maioria dos jornais e portais de
notícias (Folha de S. Paulo/UOL, Estado de S.Paulo, O Globo, Terra, entre outros) conta com
espaços do gênero;
2. Sites de notícia independentes que podem ser desde blogs individuais até sites
voltados a nichos ou comunidades locais. Os blogs dos jornalistas Luis Nassif e Pedro Dória
(que não são subordinados às empresas onde eles trabalham) estão nessa categoria, assim
como o blog coletivo de tecnologia Gizmodo. Outra iniciativa de interesse no Brasil é o Rio
Body Count, em que, a exemplo do Iraq Body Count, seus criadores computam as mortes por
26. 24
violência no Rio de Janeiro.
3. Sites participativos – em que o material produzidos pelo público é o principal
recurso. O coreano OhmyNews é o exemplo mais famoso, com milhões de visitantes
diariamente e dezenas de milhares de colaboradores. O OhmyNews conta com uma equipe de
profissionais que faz a edição do material e os colaboradores recebem um pagamento
simbólico em dinheiro.
4. Sites colaborativos – em que, além de enviar material, o público em geral pode
participar do processo de edição. É o que acontece no Slashdot, no Kuro5hin e no brasileiro
Overmundo.
5. Mídia magra – listas de discussão por email e newsletters. No Brasil, o Ex
Blog do César Maia pode ser considerado um exemplo.
6. Sites de transmissão pessoais – entre os quais estão os podcasts e videocasts.
Bowman e Willis (2003) fazem uma classificação partindo da função que a
colaboração do público pode exercer:
1. Comentário – o mais comum e talvez o mais importante nível de participação.
Isso se aplica tanto ao espaço para comentários em sites de notícias como textos de opinião e
análise. “... alguns defendem que o blog é a próxima geração das páginas de editoriais e
opinião dos jornais” (BOWMAN e WILLIS, 2003, p.33).
2. Filtragem e edição – que incluem filtragem, classificação, ranqueamento e
apontamento de links. São os casos em que ocorre seleção e julgamento editorial. O escândalo
da demissão de procuradores da República no governo Bush levou o então ministro da Justiça
americano, Alberto Gonzáles, a renunciar. O caso foi trazido à tona por Joshua Micah
Marshall, do blog Talking Points Memo, que recebeu o prêmio George Polke pela cobertura.
“Informado por leitores em vários cantos do país, percebeu que havia uma série de
procuradores públicos sendo demitidos. Invariavelmente, eram procuradores que haviam
aberto processos contra políticos republicanos locais. Não havia ninguém no jornalismo
tradicional atento a estas histórias que eram, essencialmente, pequenas e regionais”. (DÓRIA,
2008)
3. Checagem – um dos exemplos trazidos por Gillmor (2004, pp.185186) é o de
Kayceen Nicole, que criou um blog para falar sobre sua luta contra a leucemia. Entre 2001 e
2002, o espaço teve milhares de visitas de internautas que enviavam mensagens de apoio e
ofertas de auxílio, até que sucumbiu à doença. Porém, em 18 de maio de 2001, um usuário
27. 25
questionou no MetaFilter se ela existia de verdade. Um grupo de usuários tomou para si a
tarefa de descobrir: investigaram registros, trocaram informações, e revelaram a farsa. Se este
é um caso mais profundo, não devemos perder de vista o trabalho cotidiano de checagem
feitos pelo público de blogs e jornais.
4. Reportagem de base “Assumindo a forma de testemunhas ou relatos de
primeiramão, usuários de internet participam do processo de reportagem e reunião de fatos,
muitas vezes produzindo notícias de impacto (BOWMAN e WILLIS, 2003, p. 33). Também
se enquadram nessa categoria a participação de especialista ou diletantes, que publicam em
seu blog ou em outros espaços, especialmente quando se trata de assuntos que não têm uma
boa cobertura da mídia tradicional.
5. Reportagem extensiva – envolve a publicação de material complementar a uma
matéria. Muitos jornalistas usam seus blogs para públicar íntegras de entrevistas, versões
menos editadas de textos, etc.
6. Reportagem “código aberto” e revisão pelos pares – alguns sites começam a
permitir que leitores avaliem determinado material antes mesmo de sua publicação oficial, de
maneira similar à revisão por pares feitas em publicações científicas. Recentemente, a revista
Wired criou um blog4 para acompanhar a elaboração de um perfil do roteirista Charlie
Kaufman para a edição de novembro. Foram publicados emails internos (mas não de fontes),
áudio, vídeos, rascunhos de texto e de diagramação, numa espécie de making off em tempo
real da reportagem.
7. Transmissão de áudio e vídeo
8. Compra, venda e anúncios “O ethos igualitário que move o jornalismo
participativo não se resume meramente à disseminação de notícias e informação, mas também
abrange comércio e anúncios” (BOWMAN e WILLIS, 2003, p. 36). Há casos bem sucedidos
de jornalistas independentes que conseguiram levantar fundos com a doação de leitores, como
Chris Allbritton, que em 2003 pediu contribuição financeira a seus leitores para ir ao Iraque
fazer reportagens sobre o conflito. No total, 342 pessoas enviram cerca de 14,5 mil dólares
(GILLMOR, 2004, p.158). Outro exemplo é o site Kuro5hin, que permite que leitores
comentem os anúncios.
9. Gerenciamento de conteúdo – em que as pessoas usam blogs para coletar,
armazenar e compartilhar conhecimentos sobre determinado assunto.
4 http://blog.wired.com/storyboard/. Último acesso em 12/12/2008.
28. 26
2.4. IMPLICAÇÕES PARA O JORNALISMO TRADICIONAL
A participação do público traz à tona novamente questionamentos sobre o que é
jornalismo, o que é notícia, quem são os jornalistas. As discussões, por exemplo, se blogs são
jornalismo, tema da matéria de capa da revista Imprensa de setembro de 2008 (para a revista,
a discussão acabou: não são, como afirma na capa), acontecerem em 2003 em um programa
da rede de televisão pública americana, PBS (LASICA, 2003).
Como descreve o relatório do Media Center:
Claramente, o jornalismo está em processo de redefinição, se ajustando às forças
desordenantes que o cercam. Assim, não é surpreendente que discussões sobre
formas de jornalismo participativo, como os blogs, sejam freqüentemente
consumidas por debates defensivos sobre o que é jornalismo e quem pode,
legitimamente, se autodenominar jornalista. (BOWMAN e WILLIS, 2003, p. 11)
Na transposição para outro ambiente, a internet, alguns dos paradigmas do jornalismo
sofrem alterações5, borrando ainda mais os limites entre informação e notícia. Neste trabalho
vamos nos deter nas implicações da internet em duas teorias do jornalismo: agenda setting e
gatekeeping.
A hipótese do agenda setting propõe que “a mídia, pela seleção, disposição e
incidência de suas notícias, vem determinar os temas sobre os quais o público falará e
discutirá” (BARROS FILHO, 1995, p. 169). Simultaneamente, os assuntos excluídos pela
mídia não entram na agenda de debates das pessoas.
Porém, uma das características da internet é a personalização do noticiário que o
público recebe. Amplificada, essa personalização pode ser definida como o The Daily Me, a
previsão feita por Nicholas Negroponte em 1995 que os leitores poderiam escolher apenas os
tópicos e fontes que lhes interessassem (apud BOWMAN e WILLIS, 2003, p. 7).
Atualmente, a maioria dos portais e sites de notícias estrangeiros incluem opções para
personalização da página inicial. No iGoogle, do Google, o usuário pode escolher destaques
de diversos sites e sua disposição na página; no MyTimes, do The New York Times, é possível
escolher entre editorias do jornal, sugestões de jornalistas da equipe e material externo; o
Yahoo oferece, com o MyYahoo, um serviço similar.
5 Algumas dessas mudanças já começavam a acontecer com a transmissão televisiva via cabos de fibra ótica,
que possibilitou o surgimento de canais como a CNN.
29. 27
Mas não é necessário sequer ir até os sites. O RSS (Really Simple Sindication ou
Distribuição Realmente Fácil) é um elemento que é cada vez mais presente nos sites que têm
atualizações freqüentes. Com um programa conhecido como agregador, o usuário pode se
inscrever ou assinar os sites que deseja acompanhar. Nesse agregador, o usuário passa a
receber as atualizações de seus sites preferidos. “De um momento para o outro, o sistema RSS
põe a Internet a funcionar como deve ser. Em vez de procurar tudo, a Internet traz até nós o
que pretendemos, nas condições por nós estabelecidas” (GILLMOR, 2004, p. 54). Boa parte
dos agregadores também apresentam ferramentas de redes sociais, ao permitir que o usuário
também receba atualizações indicadas por seu grupo de amigos. Outro uso interessante é feito
pelo Google, ao oferecer assinaturas para resultados de buscas por determinadas palavras
chave. Assim, o usuário pode ficar sabendo sempre que houver um novo resultado para aquela
busca.
Com o largo espectro temático e ideológico dos blogs e sites e a cultura do link e dos
comentários, o poder do agenda setting se divide em número cada vez maior de mãos. Por
outro lado, o Daily Me não é tão individual como previsto. Como afirmam Bowman e Willis
(2003), a idéia do Daily Me está sendo substituída pelo Daily We.
O conceito de gatekeeping estabelece que o fluxo de notícias dentro dos meios de
comunicação passa por zonas filtro que definem qual material será aceito e qual será rejeitado.
O jornalista atua, portanto, como um porteiro. Bruns (2003) lembra que o conceito já vinha
sendo questionado, antes mesmo da internet, devido à contaminação pela influência crescente
das assessorias de imprensa e especialistas em manipulação (spin doctors), que debilita o
processo de gatekeeping.
O gatekeeping se baseia na noção de que há uma realidade identificável de eventos,
que ultrapassa os canais de publicação, limitados seja pelo espaço, no caso dos veículos
impressos, seja pelo tempo, no caso da televisão e do rádio. Na internet, porém, não há
escassez de espaço; pelo contrário, há uma tendência a capacidades cada vez maiores de
armazenamento, como um dos corolários da Lei de Moore.
Com a internet, afirma Bruns (2003, p.4), "não apenas há uma multidão de portões
pelos quais informação e eventos potencialmente noticiáveis emergem à arena pública, como
também existe um igual número de critérios para avaliar a 'noticiabilidade' para públicos
específicos". O uso de hiperlinks permite ao autor apontar diretamente para fontes e para
outros pontos de vista.
30. 28
Ao gatekeeping, o autor contrapropõe o conceito de gatewatching. Os gatewatchers
atuam como bibliotecários especializados, selecionando quais informações são confiáveis na
área que cobrem. Os publicadores, que podem ser pessoas comuns ou partidários de uma
causa, não levam a informação para o usuário, mas sim permite que ele venha até a
informação. Ao manter os benefícios do gatekeeping, o gatewatching permite confrontar
diversos problemas na abordagem do gatekeeper:
• as matérias têm potencial para ser mais profundamente informativas, já que
os leitores podem explorar material das fontes diretamente, e de maneira completa;
• a velocidade do noticiário aumenta, já que notícias podem ser publicadas
assim que uma fonte de informação é encontrada na internet, sem a necessidade de
esperar jornalistas escreverem suas matérias ou gatekeepers completarem sua
avaliação;
• o processo de edição se torna mais transparente e não se evita que leitores
chequem as fontes de uma notícia; ao contrário, isso é encorajado;
• o viés pessoal do editor pode ainda afetar sua matéria, mas como leitores
estão mais inclinados a consultar fontes originais, esse viés tem efeito reduzido;
• gatewatchers não precisam de grandes habilidades jornalísticas, e sim de
habilidades para pesquisa geral online. (BRUNS, 2003, pp. 89)
Em relação ao terceiro e ao quarto tópico, um ponto interessante a ser considerado é o
uso que as próprias fontes fazem da internet. O Departamento de Defesa do governo
americano, por exemplo, publica em seu site6 a íntegra das entrevistas importantes do
secretário e de seu adjunto. Assim, o público tem como conhecer o contexto em que foram
dadas as declarações e julgar se foram editadas de maneira inadequada.
Qual a indústria que, por tradição, se encontra entre as menos transparentes? O
jornalismo. Temos sido uma caixa negra e, nos anos recentes, apenas conseguimos
tornarmonos ligeiramente menos opacos. O público, porém, está a exigir maior
transparência no nosso domínio e a fazer seu próprio jornalismo quando nós não
conseguimos responder de maneira satisfatória … Não estamos habituados, por mais
saudáveis que nos sintamos, a ser analisados da mesma maneira que analisamos as
outras pessoas. (GILLMOR, 2004, p. 74)
6 http://www.defenselink.mil/transcripts/
31. 29
3. O BLOG DO NASSIF
3.1. BIOGRAFIA
Luis Nassif nasceu em 1950, em Poços de Caldas, Minas Gerais. Formouse em
jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Trabalhou na
revista Veja, de 1970 a 1979. A seguir, foi para o Jornal da Tarde, onde criou a seção “Seu
Dinheiro”, de finanças pessoais, e o “Jornal do Carro”. Em 1983, foi para a Folha de S.Paulo,
onde foi colunista e membro do conselho editorial. Escrevia principalmente sobre economia,
embora um de seus espaços no jornal fosse uma coluna de crônicas. Ele ficou na Folha de
1983 a 2006, com um intervalo entre 1987 e 1991. Em 1987, criou a Agência Dinheiro Vivo,
de notícias de economia em tempo real.
É vencedor do Prêmio Esso de Reportagem, em 1986, por sua cobertura do Plano
Cruzado; do Prêmio Ayrton Senna, na categoria Jornalista Econômico, em 2003; recebeu
menção honrosa do prêmio Jabuti de 2003, categoria crônica; vencedor do prêmio de Melhor
Jornalista de Economia da Imprensa Escrita do site Comuniquese em 2003, 2005 e 2008. Ele
atuou como comentarista econômico na TV Cultura e na TV Bandeirantes. É membro do
Conselho do Instituto de Estudos Avançados da USP e do Conselho de Economia da Fiesp.
Já lançou os livros O Menino de São Benedito e Outras Crônicas (2001), O
Jornalismo dos Anos 90 (2003) e Os CabeçadePlanilha (2007). Além do trabalho como
jornalista, Nassif também é cantor e compositor, pesquisador de samba e choro.
Criou o Blog do Nassif em 30 de maio de 2006, pouco antes de deixar a Folha. O blog
continuou hospedado pelo UOL, portal pertencente ao grupo Folha da Manhã, que edita a
Folha de S. Paulo, até setembro de 2006. Desde então, está hospedado no portal iG
(www.projetobr.com.br/web/blog/5).
Em 2007, Nassif lançou o Dossiê Veja, série de textos denunciando manipulações e
distorções intencionais no noticiário da revista semanal.
3.2. O BLOG E A PARTICIPAÇÃO DOS LEITORES
Desde o início, Nassif abriu espaço no blog para as manifestações de leitores. No
32. 30
primeiro post, de apresentação (“O Blog”, 30/5/2006), ele já destaca essa participação:
Sempre que levanto um tema polêmico, costumo receber emails consistentes, de
pessoas com diferentes opiniões. Pretendo abrir espaço para esse tipo de comentário,
mais do que para os comentários curtos e impressionistas dos blogs convencionais.
Por isso mesmo, quem tiver comentários maiores a fazer, poderá escrever para
luisnassifonline@uol.com.br Os melhores serão publicados, dentro dos limites de
espaço do blog”. (Anexo I)
Cerca de uma semana depois, é publicado o primeiro comentário de leitor como post
na área principal do blog (“Do leitor”, 6/6/2006, Anexo I). Em 17/7/2006, é publicado o
primeiro post com o objetivo exclusivo de fazer elogio público à participação dos leitores (“O
Blog e os leitores”, Anexo I). Esse procedimento é uma constante no blog (por exemplo, nos
posts “O acidente da Gol”, 17/11/2006; “Livro em rede”, 27/11/2006; e “A discussão sobre o
Youtube”, 9/1/2007, Anexo I) e uma dos mecanismos utilizadas para atrair a participação
qualificada. Com o tempo, o grupo de leitores, especialmente o de contribuidores mais
freqüentes, passa a ser referido como comunidade.
Também são criadas seções específicas para a participação dos leitores. A primeira é a
“Trivial variado”, com estréia em 20/3/2007 (“Trivial variado”, Anexo I), com o objetivo de
ser um post no qual os freqüentadores poderiam publicar quaisquer comentários que não
estivessem relacionados com os assuntos dos outros posts do dia. Com o tempo, o “Trivial”
acabou por se tornar um espaço para publicação de textos literários, poemas, discussões sobre
arte e cultura e outros temas mais leves. Em agosto de 2008, criou outra seção com objetivo
similar, a “Fora de pauta” (“Fora de pauta”, 26/8/2008, Anexo I), publicada diariamente por
volta do meiodia.
Com o crescimento da popularidade do blog e aumento no número dos comentários,
alguns posts são dedicados também a esclarecer as “regras de convívio” no espaço (cabe
destacar que os comentários passam por moderação e só vão ao ar – integral ou parcialmente
– depois de aprovados). É o caso dos posts “O Estatuto da Gafieira” (3/11/2006), “Estatuto da
gafieira” (5/2/2007), “Convivência democrática” (17/6/2007), “Filtros nos comentários”
(6/7/2007), entre outros (Anexo I). A moderação veta a publicação de comentários de teor
ofensivo ou grosseiros, como define um dos posts: “Críticas pesadas contra terceiros
continuarão a não ser aceitas. Contra o blogueiro (desde que não contenham elementos de
33. 31
injúria, calúnia ou difamação) serão aceitas, mas desde que o comentarista se identifique. Só
faltava abrir um espaço democrático para receber porradas de anônimos” (“Estatuto da
gafieira”, 5/2/2007, Anexo I). Outro comportamento comum é fechar os comentários ou pedir
aos freqüentadores que não o façam quando se trata de posts com a resposta de alguém
criticado no blog, como em “A Abril se manifesta” (2/2/2008).
O Projeto Brasil surge de forma paralela, como “um empreendimento jornalístico
independente que oferece os conteúdos e ferramentas necessárias para a discussão estruturada
de temas estratégicos para o desenvolvimento nacional (...) tem como objetivo principal
mudar o foco das discussões na imprensa brasileira”7. Além do conteúdo produzido por
equipe própria, o Projeto Brasil se alimenta de fóruns de discussão. Os fóruns estão divididos
em “comunidades”, termo usado aqui com sentido levemente diferente do anteriormente
mencionado, já que neste caso os participantes são cadastrados em uma rede social, criam
perfis, podem criar grupos e interagir de formas diferenciadas em relação ao blog. São elas:
“Comunidade do Blog Luis Nassif Online”, “Comunidade Verso & Prosa” e “Comunidade
Projeto Brasil Gestão”.
A relação entre o Projeto Brasil, os fóruns e o blog é evidenciada nos posts sobre o
desenvolvimento do Projeto, com o objetivo de “1. Dar dar mais visibilidade aos artigos dos
comentaristas do Blog, publicando no PB aqueles comentários mais elaborados. 2. Permitir
mais tempo de vida às discussões permanentes, que serão transferidas para o Fórum Online”
(“Blog e Projeto Brasil”, 12/11/2007, Anexo I).
3.3. O BLOG, A MÍDIA E A INTERNET
Neste período, destacamse as discussões sobre o comportamento da imprensa
tradicional (“O papel da mídia”, 22/6/2006; “O papel da mídia – 2”, 22/6/2006, Anexo I), por
sinal, assunto analisado por Nassif no livro O Jornalismo dos Anos 90, e também sobre as
novas tecnologias e o novo modelo de comunicação surgido delas (“Conhecimento em rede”,
29/9/2006; “A nova era da comunicação”, 24/10/2006, Anexo I). Um texto em especial mostra
sua visão em relação à internet e aos blogs:
A homogeneização do pensamento acabou deixando ao relento fatias importantes do
7 Fonte: http://www.projetobr.com.br/c/portal/layout?p_l_id=PUB.1013.29. Último acesso em 12/12/1008.
34. 32
público, do leitor intelectualmente mais exigente àquele cujas preferências políticas
deixaram de ser contempladas pelo conjunto da mídia.
Todo esse quadro se formou no momento em que a proliferação de blogs, na
Internet, criou novos espaços de opinião. Antes, tinhase o jornal dando a
visibilidade a seus colunistas, emprestando parte de seu prestígio e recebendo, de
volta, a agregação de mais leitores e prestígio. Com os blogs, o aval não é mais do
jornal, mas é individual, do blogueiro.
Os blogs são apenas a parte mais visível de um processo de criação de novos centros
de opinião, como grupos de discussão, fóruns, ONGs. E novos atores de peso
entrando no jogo, como as empresas de telefonia e os portais.
Nos próximos anos, a mídia brasileira passará pelas maiores transformações da sua
história. Os jornais que entenderem o processo continuarão no jogo” (“O jogo da
convergência digital”, 29/8/2006, Anexo I).
A observação crítica da cobertura da imprensa sobre os assuntos em pauta – e falta de
cobertura sobre determinados assuntos – é um dos aspectos mais relevantes do Blog do
Nassif, que trespassa os comentários sobre. E, como espécie de epílogo virtual a O
Jornalismo dos Anos 90, em de janeiro de 2008, lançou a série “O caso Veja” (“O fenômeno
Veja”, 30/1/2008), denunciando o uso da revista semanal de maior circulação do País para
promover empresas ou atacar adversários, a partir de interesses comerciais ou intrigas
pessoais.
Até novembro de 2008 foram escritos 24 capítulos, vários deles mostrando a atuação
de jornalistas e colunistas a serviço do banqueiro Daniel Dantas, acusado de diversos crimes
financeiros. “O caso Veja” também contou com a colaboração de leitores, tanto no
levantamento de material a pedido de Nassif (tendo como exemplo o post “Preparativos”,
16/2/2008, Anexo I), como na investigação e análise. Sobre isso, diz Nassif: “Foi um trabalho
minucioso de pesquisa feito por vocês … Quando pedi a ajuda de vocês, houve quem risse do
pedido. Esse povo não sabe o que é o trabalho cooperativo em rede” (“A rede e os g00db0ys”,
21/2/2008, Anexo I).
3.4. COBERTURA DO ACIDENTE DA TAM
A cobertura do acidente com o vôo 3054 da TAM é um caso exemplar da participação
do público no Blog do Nassif. Este material foi escolhido para análise por se tratar de um
35. 33
tema em que aspectos técnicos têm grande relevância, mas que ainda assim apresentou um
forte caráter político. Assim, com informações difíceis de serem contestadas por não
especialistas e acontecendo em meio a um momento de grande polarização política, a
cobertura jornalística fica sujeita a manipulações e sensacionalismo. O material produzido
pelo blog (jornalista e leitores) é uma narrativa tanto das investigações das causas do acidente
como de como a imprensa se comportou em relação ao caso. Porém, como destacado no
capítulo anterior, momentos de tragédia acabam disparando uma grande participação amadora
no noticiário.
O acidente aconteceu em 17 de julho de 2007, quando uma aeronave Airbus A320 da
TAM Linhas Aéreas, vinda de Porto Alegre, teve problemas na aterrissagem no aeroporto de
Congonhas, em São Paulo, e chocouse contra um prédio da TAM Express. No total,
morreram 199 pessoas, sendo 187 que estavam a bordo (181 passageiros, dos quais 19
funcionários da TAM, e 6 tripulantes). É o pior acidente da aviação no Brasil.
Foram levantados 37 posts no Blog do Nassif a partir da madrugada de 18 de julho de
2007 até o fim do mês de agosto do mesmo ano (Anexo II). Outros posts no período faziam
referência indireta ou referência a assuntos relacionados (como a gestão da Agência Nacional
de Aviação Civil ou o desempenho comercial da TAM). Neste trabalho, porém, reduzimos
nossa seleção aos textos relacionados diretamente ao acidente.
O primeiro post sobre o acidente publicado por Nassif é uma contribuição feita por
leitor (“Sobre a pista de Congonhas”, 18/7/2007, Anexo II). O conteúdo é uma sugestão à
convocação dos leitoresespecialistas do blog. Outros 12 dos posts selecionados contêm
comentários ou emails enviados por leitores, seja com texto próprio, seja reproduzindo
material de outra fonte. Deste último caso, temos os posts “A hidroplanagem na aviação”
(18/7/2007), em que a leitora Silvana reproduz texto do site Air Safety Group, e “FAA aprova
sistema aéreo brasileiro” (19/7/2007), com texto da BBC enviado pela leitora Luzete (Anexo
II).
Dos textos de autoria dos comentadores, destacase o post “O peso do Airbus da TAM”
(2/8/2007), em que o leitor Gustavo faz um trabalho de cruzamento de informações oficiais da
Airbus, publicadas em seu site, do número de passageiros e quantidade de combustível no
avião, de acordo com o publicado na imprensa, e outras, para fazer um cálculo independente
do peso do avião. Na ocasião, havia a hipótese de que o excesso de peso pudesse ser um dos
fatores responsáveis pelo acidente. O cálculo, feito com base em informações públicas, era
36. 34
inédito na cobertura até aquele momento.
Também é digno de menção o post “Dos leitores” (29/7/2007), com um apanhado de
comentários curtos (em geral com quatro ou cinco frases), que tratam, em maioria, de como a
imprensa vinha tratando o acidente. A crítica à abordagem da grande imprensa também
aparece nos comentários publicados como texto principal dos leitores André Borges Lopes
(“A dura mudança de rota”, 29/7/2007) e weden (“A segunda morte dos pilotos”, 2/8/2007).
Luis Nassif chama os leitores à colaboração com a cobertura em cinco posts:
• “Sobre a pista de Congonhas” (18/7/2007), que embora reproduza comentário
de leitor, é endossado ao ser publicado como texto principal;
• “A propósito do furo do JN” (19/7/2007), em que se dirige aos leitores
especialistas em dois momentos: “os leitores especialistas me corrijam, se
estiver errado” e “Solicito que os leitores especialistas expliquem melhor essa
questão, para que se possa avaliar as seguintes questões...”. Menos de duas
horas depois da publicação deste post, é publicado “O uso do reverso”
(20/7/2007), com resposta do leitor Antonio Carlos de So aos questionamentos
do jornalista;
• “A questão IPT x ANAC” (23/7/2007), em que o convite aparece na seguinte
forma: “Quem tiver elementos, fique à vontade para enriquecer a discussão”. O
post foi editado posteriormente de modo a incluir comentários dos leitores José
e Paulo Travaglini;
• “O manual do Airbus” (25/7/2007), em que é publicado o link do manual “para
nossos especialistas”;
• “A defesa pósmorte” (1/8/2007), em que embora não nomeie leitores como
interlocutores, é constituído apenas de duas perguntas que, pelo contexto, não
podem ser consideradas apenas como recurso retórico.
Por fim, merece citação o post “O acidente aéreo e o Blog” (15/8/2007), com elogios à
participação dos leitores:
Encontrei minha colega Maria Lídia, da TV Gazeta. Me disse que a cobertura do
acidente, pelo seu jornal, se orientou fundamentalmente pelas análises e informações
que vocês ajudaram a colocar no Blog.
Especialmente o cálculo do peso do avião, preparado pelo Gustavo, que, segundo
ela, deixou todos seus entrevistados da área surpresos, por perceber que ali estava
um dos pontos centrais, que a cobertura da grande mídia não aprofundou.