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Medicina, Ribeirão Preto,                                                               Simpósio: HEMOSTASIA E TROMBOSE
34: 229-237, jul./dez. 2001                                                                       Capítulo I




                               FISIOLOGIA DA COAGULAÇÃO,
                              ANTICOAGULAÇÃO E FIBRINÓLISE

                       OVERVIEW OF COAGULATION, ANTICOAGULATION AND FIBRINOLYSIS



                                                     Rendrik F. Franco


Professor Livre-Docente de Hematologia e Hemoterapia. Coordenador do Serviço de Investigação em Hemofilia e Trombofilia, Funda-
ção Hemocentro de Ribeirão Preto. Coordenador do Laboratório de Hemostasia, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo
CORRESPONDÊNCIA: FUNDHERP, Rua Tenente Catão Roxo, 2501 – 14051-140, Ribeirão Preto, SP. E-mail: rendri@hotmail.com




           FRANCO RF. Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise. Medicina, Ribeirão Preto, 34:
             229-237, jul./dez. 2001.

               RESUMO: O presente artigo revisa aspectos de fisiologia dos sistemas de coagulação, anti-
           coagulação e fibrinólise, que são relevantes para a compreensão de mecanimos
           etiopatogênicos operantes em doenças hemorrágicas e trombóticas.

               UNITERMOS: Coagulação. Anticoagulação. Fibrinólise.




1. INTRODUÇÃO                                                    2. COAGULAÇÃO
       A formação do coágulo de fibrina no sítio de                     A formação do coágulo de fibrina envolve com-
lesão endotelial representa processo crítico para a ma-          plexas interações entre proteases plasmáticas e seus
nutenção da integridade vascular. Os mecanismos                  cofatores, que culminam na gênese da enzima trombina,
envolvidos nesse processo, constituintes do sistema              que, por proteólise, converte o fibrinogênio solúvel em
hemostático, devem ser regulados para simultanea-                fibrina insolúvel. Progressos significativos ocorreram
mente, contrapor-se à perda excessiva de sangue e                nas últimas décadas, concernentes à compreensão da
evitar a formação de trombos intravasculares, decor-             fisiologia desse sistema e dos mecanismos que o re-
rentes de formação excessiva de fibrina.                         gulam(1,2). Conforme assinalado a seguir, tais conhe-
       Os componentes do sistema hemostático inclu-              cimentos tiveram fundamental importância para a
em as plaquetas, os vasos, as proteínas da coagulação            melhor compreensão da fisiologia da hemostasia e do
do sangue, os anticoagulantes naturais e o sistema de            papel das reações hemostáticas em doenças hemor-
fibrinólise. O equilíbrio funcional dos diferentes “seto-        rágicas e trombóticas.
res” da hemostasia é garantido por uma variedade de                     Em 1964, Macfarlane e Davie & Ratnoff pro-
mecanismos, envolvendo interações entre proteínas,               puseram a hipótese da “cascata” para explicar a fisi-
respostas celulares complexas, e regulação de fluxo              ologia da coagulação do sangue(3,4). Nesse modelo
sangüíneo. No presente capítulo, abordaremos os sis-             (Figura 1), a coagulação ocorre por meio de ativação
temas de coagulação e fibrinólise, responsáveis pela             proteolítica, seqüencial de zimógenos, por proteases
formação e dissolução do coágulo de fibrina, respecti-           do plasma, resultando na formação de trombina que,
vamente. Adicionalmente, discussão acerca do papel               então, converte a molécula de fibrinogênio em fibrina.
de mecanismos reguladores desses dois sistemas será              O esquema divide a coagulação em uma via extrínse-
apresentada.                                                     ca (envolvendo componentes do sangue, mas, tam-

                                                                                                                          229
RF Franco




bém, elementos que usualmente não estão presentes               extrínseco, tal separação é atualmente entendida como
no espaço intravascular) e uma via intrínseca (inicia-          inadequada do ponto de vista de fisiologia da coagula-
da por componentes presentes no intravascular), que             ção, tendo em vista que a divisão não ocorre in vivo.
convergem no ponto de ativação do fator X (“via final           Adicionalmente, alterações conceituais ocorreram
comum”). Na via extrínseca, o fator VII plasmático              desde a descrição do modelo da cascata no que diz
(na presença do seu cofator, o fator tecidual ou                respeito à importância relativa das duas vias de ativa-
tromboplastina) ativa diretamente o fator X. Na via             ção da coagulação. Por exemplo, a julgar pela gravi-
intrínseca, ativação do fator XII ocorre quando o san-          dade das manifestações hemorrágicas, decorrentes das
gue entra em contato com uma superfície, contendo               deficiências dos “fatores intrínsecos” VIII e IX (He-
cargas elétricas negativas (por exemplo, a parede de            mofilia A e B, respectivamente), postulou-se, no pas-
um tubo de vidro). Tal processo é denominado “ativa-            sado, que a via intrínseca teria maior relevância na
ção por contato” e requer ainda a presença de outros            fisiologia da coagulação. Essa idéia todavia não é cor-
componentes do plasma: pré-calicreína (uma serino-              reta: sabe-se que a deficiência de fator XI é associa-
protease) e cininogênio de alto peso molecular (um              da a distúrbio hemorrágico leve, e deficiências dos
cofator não enzimático). O fator XIIa ativa o fator XI,         fatores da ativação por contato (fator XII, pré-
que, por sua vez, ativa o fator IX. O fator IXa, na             calicreína, cininogênio de alto peso molecular) não re-
presença de fator VIII, ativa o fator X da coagulação,          sultam em quadro hemorrágico. Os fatores intrínse-
desencadeando a geração de trombina e subseqüente               cos, portanto, não têm importância primária na gera-
formação de fibrina.                                            ção de fator IXa durante o processo hemostático nor-
       Não obstante haja a tradição de se dividir o sis-        mal, que sucede a injúria vascular. Por outro lado, a
tema de coagulação do sangue em intrínseco e                    deficiência de fator VII (crucial para a “ativação ex-




   Figura 1. Esquema da cascata da coagulação, proposto na década de 1960, com a divisão do sistema de coagulação em duas
   vias. CAPM: cininogênio de alto peso molecular; PK: pré-calicreína.



230
Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise




trínseca” da coagulação do sangue) é associada a                      contendo fosfolipídeos (em especial das plaquetas),
quadro hemorrágico similar à Hemofilia. Em conjun-                    em que essas reações acontecem (Figura 2). Os ele-
to, esses dados demonstram que a ativação do fator                    mentos biológicos que contribuem para o componente
IX não depende exclusivamente da via intrínseca e                     de fosfolipídeos da coagulação incluem tecidos
indicam que a coagulação do sangue é iniciada princi-                 vasculares lesados, células inflamatórias e plaquetas
palmente pela via do fator tecidual ou extrínseca.                    ativadas. O principal contribuinte, em termos de nú-
Adicionalmente, experimentos conduzidos nas últimas                   meros de sítios, são as membranas de plaquetas, que,
três décadas demonstraram que as vias intrínseca e                    quando ativadas, expressam sítios de ligação para os
extrínseca não exibem funcionamento independente,                     complexos fator IXa/fator VIIIa (complexo “tenase”)
conforme detalhado a seguir.                                          e fator Xa/fator Va (complexo “protrombinase”). Adi-
       Atualmente, aceita-se que mecanismos hemos-                    cionalmente, íons de cálcio são necessários em diver-
táticos, fisiologicamente relevantes estejam associa-                 sos passos das reações da coagulação.
dos com três complexos enzimáticos procoagulantes,                           A iniciação do processo de coagulação depen-
os quais envolvem serinoproteases dependentes de                      de da exposição do sangue a componentes que, nor-
vitamina K (fatores II, VII, IX e X) associadas a                     malmente, não estão presentes no interior dos vasos,
cofatores (V e VIII), todos localizados em uma su-                    em decorrência de lesões estruturais (injúria vascular)
perfície de membrana contendo fosfolipídeos(1,2). Os                  ou alterações bioquímicas (por ex., liberação de
complexos encontram-se esquematizados na Figura                       citocinas). Qualquer que seja o evento desencadeante,
2, que resume os dados apresentados a seguir.                         a iniciação da coagulação do sangue se faz medi-
       As diversas enzimas da coagulação convertem                    ante expressão do seu componente crítico, o fa-
seus substratos procofatores em cofatores, os quais                   tor tecidual (FT), e sua exposição ao espaço
localizam as proteases sobre as superfícies celulares,                intravascular.




  Figura 2: Representação esquemática dos complexos procoagulantes. O início da coagulação se faz mediante ligação do fator VIIa
  ao fator tecidual (FT), com subseqüente ativação dos fatores IX e X. O complexo fator IXa/fator VIIIa ativa o fator X com eficiência
  ainda maior, e o fator Xa forma complexo com o fator Va, convertendo o fator II (protrombina) em fator IIa (trombina). A superfície
  de membrana celular em que as reações ocorrem também encontra-se representada. Esquema adaptado da referência 1.



                                                                                                                                           231
RF Franco




        O FT é uma glicoproteína de membrana de                XIII da coagulação, que, por sua vez, estabiliza o co-
45000 Da, que funciona como receptor para o fator              águlo de fibrina.
VII da coagulação. O FT não é normalmente expres-                       A Figura 3 mostra, em maior detalhe, o conjun-
so em células em contato direto com o sangue (tais             to de reações envolvidas na coagulação do sangue,
como células endoteliais e leucócitos)(5,6), mas apre-         com ênfase para as etapas seqüenciais em que zimo-
senta expressão constitutiva em fibroblastos subjacen-         gênios de serinoproteases são transformados em en-
tes ao endotélio vascular(6). O FT é também encon-             zimas proteolíticas. Em tal esquema, fica enfatizado o
trado em queratinócitos, células epiteliais do trato res-      conceito de que não há distinção clara entre os siste-
piratório e trato gastrointestinal, cérebro, células mus-      mas intrínseco e extrínseco, que atuam de modo alta-
culares cardíacas e glomérulos renais. Células endo-           mente interativo in vivo. Em condições fisiológicas,
teliais e monócitos, que, normalmente, não expressam           as reações esquematizadas nas Figuras 2 e 3 resultam
o fator tecidual, podem expressá-lo na vigência de le-         em produção equilibrada de quantidades apropriadas
são endotelial e na presença de estímulos específicos,         de trombina e do coágulo de fibrina, em resposta ade-
tais como endotoxinas e citocinas (TNF-α e interleu-           quada e proporcional à injúria vascular existente. Com
cina-1)(7,8,9). Em indivíduos normais, níveis mínimos          efeito, no estado fisiológico não há formação e depo-
da forma ativada do fator VII da coagulação (FVIIa)            sição de fibrina no intravascular, em decorrência das
estão presentes em circulação, correspondendo a apro-          propriedades anticoagulantes do endotélio, à forma
ximadamente 1% da concentração plasmática total de             inativa das proteínas plasmáticas, envolvidas na coa-
fator VII. O FVIIa é capaz de se ligar ao FT expres-           gulação (que circulam como zimogênios ou cofatores),
so em membranas celulares, e a exposição do FT ao              e à presença de inibidores fisiológicos da coagulação
plasma resulta na sua ligação ao FVII e FVIIa, sendo           (vide infra). Por outro lado, a perda do equilíbrio di-
que somente o complexo FT-FVIIa exibe função                   nâmico das reações da coagulação têm, como conse-
enzimática ativa; o complexo é também capaz de ati-            qüência clínica, o aparecimento de distúrbios hemor-
var o FVII em processo denominado “auto-ativação”.             rágicos ou trombóticos.
O complexo FT-FVIIa tem como substratos princi-                         Finalmente, vale mencionar que, no que se re-
pais o fator IX e o fator X, cuja clivagem resulta na          fere ao sistema de coagulação, a utilização dos ter-
formação de FIXa e FXa, respectivamente, com sub-              mos “intrínseco” e “extrínseco” pode ser ainda útil na
seqüente formação de trombina e fibrina (Figura 2).            interpretação de dois exames laboratoriais, utilizados
Deve ser ressaltado, no entanto, que
quantidades mínimas de trombina são
geradas a partir do complexo “protrom-
binase” extrínseco. Todavia, uma vez que
há gênese inicial de trombina, esta enzi-
ma é capaz de ativar o fator V em fator
Va, e o fator VIII em fator VIIIa. As
duas reações, envolvendo ativação de
procofatores são fundamentais para a
geração do complexo “tenase” intrínse-
co (fator IXa/fator VIIIa), o qual con-
verte o fator X em fator Xa, e do com-
plexo “protrombinase” (fator Va/fator
Xa), que converte a protrombina em
trombina (Figura 2). Um importante as-
pecto dessas reações é que o complexo
fator IXa/fator VIIIa ativa o fator X com
eficiência 50 vezes maior que o comple-
xo fator VIIa/FT. O produto principal das
citadas reações, a trombina (IIa), exibe
atividades procoagulantes, convertendo           Figura 3: Visão atualizada da coagulação sangüínea. As diferentes reações
o fibrinogênio em fibrina, promovendo            ocorrem em superfícies de membrana, contendo fosfolípides (não
                                                 representadas no esquema).
ativação plaquetária e ativando o fator


232
Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise




na rotina da avaliação da hemostasia: o TP/INR e o                 papel inibitório sobre o complexo fator VIIa/FT.
TTPA, que são de particular importância no diagnósti-                     Outra importante via de anticoagulação do san-
co de anormalidades hemostáticas e na monitorização                gue é o sistema da PC ativada (PCa). A PC, quando
de terapêutica anticoagulante. Na execução desses                  ligada ao seu receptor no endotélio (EPCR, “endothelial
testes in vitro, criam-se, no tubo de reação, as condi-            PC receptor”), é ativada após a ligação da trombina
ções para ativação preferencial das vias ditas extrín-             ao receptor endotelial trombomodulina (TM) (Figura
seca (avaliada pelo TP) e intrínseca (avaliada pelo                5). A PCa inibe a coagulação, clivando e inativando os
TTPA). À parte da utilidade mencionada, de caráter                 fatores Va e VIIIa, processo que é potencializado pela
puramente didático e de interpretação laboratorial, a              PS, que atua como um cofator não enzimático nas re-
divisão do sistema de coagulação em duas vias é ina-               ações de inativação. A identificação do sistema da PCa
dequada para a compreensão da sua fisiologia. De fato,             implicou importante mudança conceitual no que se re-
os conceitos de que o fator tecidual é o principal ativa-          fere ao papel da trombina no sistema hemostático: não
dor da coagulação do sangue e de que a distinção en-               obstante ela tenha função procoagulante, quando ge-
tre sistemas extrínseco e intrínseco não existe na fisi-           rada em excesso, sua função, na fisiologia do sistema,
ologia do sistema representam importantes mudanças                 em que é produzida apenas em pequenas quantida-
conceituais, que devem ser assimiladas para entendi-               des, é a de um potente anticoagulante, tendo em vis-
mento correto dos eventos bioquímicos, envolvidos na               ta que sua ligação à TM endotelial representa o even-
ativação do sistema hemostático.                                   to-chave para ativação da via inibitória da PC.
                                                                          A AT (anteriormente designada AT III) é o ini-
3. MECANISMOS REGULADORES DA COA-                                  bidor primário da trombina e também exerce efeito
   GULAÇÃO SANGÜÍNEA                                               inibitório sobre diversas outras enzimas da coagula-
                                                                   ção, incluindo os fatores IXa, Xa, e XIa (Figura 6).
       As reações bioquímicas da coagulação do san-                Adicionalmente, a AT acelera a dissociação do com-
gue devem ser estritamente reguladas, de modo a evi-               plexo fator VIIa/fator tecidual e impede sua reasso-
tar ativação excessiva do sistema, formação inade-                 ciação. Assim, a AT elimina qualquer atividade
quada de fibrina e oclusão vascular. De fato, a ativida-           enzimática procoagulante excessiva ou indesejável. A
de das proteases operantes na ativação da coagula-                 molécula de heparan sulfato, uma proteoglicana pre-
ção é regulada por numerosas proteínas inibitórias, que            sente na membrana das células endoteliais, acelera as
atuam como anticoagulantes naturais. No
presente capítulo, discutiremos as que apre-
sentam maior relevância biológica, atuan-
do como inibidores fisiológicos da coagula-
ção: o TFPI (“tissue factor pathway
inhibitor”), a proteína C (PC) e a proteína
S (PS), e a antitrombina (AT) (9).
       Conforme mencionado previamente,
o complexo fator VIIa/FT atua sobre dois
subtratos principais: os fatores IX e X da
coagulação, ativando-os. Essas reações são
reguladas pelo inibidor da via do fator teci-
dual (TFPI), uma proteína produzida pelas
células endoteliais, que apresenta três do-
mínios do tipo “Kunitz”. O primeiro domí-
nio liga-se ao complexo fator VIIa/FT, ini-
bindo-o, e o segundo domínio liga-se e ini-
be o fator Xa. Assim, a ativação direta do
fator X é regulada negativamente de modo
rápido na presença do TFPI, que limita,
desta forma, a produção de fator Xa e fa-        Figura 4. Inibição da via de ativação da coagulação dependente do fator
                                                 tecidual pelo TFPI (“tissue factor pathway inhibitor”). O símbolo C indica os
tor IXa (Figura 4). A ligação do fator Xa é      pontos de inibição do TFPI.
necessária para que o TFPI exerça seu

                                                                                                                                      233
RF Franco




   Figura 5. Sistema da proteína C ativada. A ligação da trombina (IIa) ao receptor endotelial trombomodulina (TM) modifica as
   propriedades da trombina, transformando-a em um potente anticoagulante, por ativar a PC, que, juntamente com seu cofator (PS),
   inativa os fatores VIIIa e Va, suprimindo a gênese de trombina. EPCR: “endothelial PC receptor” (receptor endotelial da PC).




      Figura 6. Efeitos anticoagulantes da antitrombina (AT). A potenciação do efeito inibitório da AT pelo heparan sulfato e heparina
      encontra-se também representada.




234
Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise




reações catalisadas pela AT (Figura 6). A atividade        que resulta na formação de uma serinoprotease ativa,
inibitória da AT sobre a coagulação é também poten-        a plasmina. Embora a plasmina degrade não somente
temente acelerada pela heparina (Figura 6), um polis-      a fibrina, mas, também, o fibrinogênio, fator V e fator
sacarídeo linear, estruturalmente similar ao heparan       VIII, em condições fisiológicas, a fibrinólise ocorre
sulfato.                                                   como processo que é altamente específico para a
       As diferentes vias regulatórias, citadas anteri-    fibrina, portanto de ativação localizada e restrita, e não
ormente, não operam isoladamente, pois há sinergismo       sistêmica, cumprindo, assim, sua função de remover o
entre o TFPI e a AT e entre o TFPI e o sistema da          excesso de fibrina do intravascular de modo equilibra-
PC, suprimindo a gênese de trombina. Por exemplo, a        do. Esta especificidade dependente de fibrina é resul-
AT (mas não o TFPI) inibe a ativação do fator VII,         tado de interações moleculares específicas entre os
mediada pelo fator Xa, no complexo fator VII/FT. Por       ativadores do plasminogênio, o plasminogênio, a fibrina,
outro lado, o TFPI (mas não a AT) inibe o excesso de       e os inibidores da fibrinólise. Por exemplo, o t-PA exi-
ativação do fator X pelo complexo fator VII/FT. Adi-       be baixa afinidade pelo plasminogênio na ausência de
cionalmente, o TFPI, em conjunção com o sistema da         fibrina (KM = 65 µM), afinidade que é muito aumenta-
Pca, inibe potentemente a gênese de trombina pelo          da na presença de fibrina (KM = 0,15-1,5 µM), o que
complexo fator VII/FT.                                     ocorre porque a fibrina representa uma superfície ide-
       Em condições fisiológicas (ausência de lesão        al para ligação do t-PA ao plasminogênio, e em tal
vascular) há predomínio dos mecanismos anticoagu-          reação, o plasminogênio liga-se à fibrina via resíduos
lantes sobre os procoagulantes, mantendo-se, desta         de aminoácido lisina (“lysine-binding sites”). Em con-
forma, a fluidez do sangue e preservando-se a patência     traste com esses mecanismos fisiológicos, ativação
vascular.                                                  mais extensa do sistema fibrinolítico ocorre quando
                                                           da infusão de agentes trombolíticos do tipo estrepto-
4. SISTEMA PLASMINOGÊNIO/PLASMINA                          quinase e uroquinase, que não são específicos para a
   (SISTEMA FIBRINOLÍTICO)                                 presença de fibrina.
                                                                  A inibição do sistema fibrinolítico ocorre em
       Fibrinólise pode ser definida como a degrada-       nível dos ativadores do plasminogênio mediante ação
ção da fibrina, mediada pela plasmina. O sistema           de inibidores específicos (PAIs, “plasminogen activator
fibrinolítico ou sistema plasminogênio/plasmina é com-     inhibitors”), cujo principal representante é o PAI-1, e
posto por diversas proteínas (proteases séricas e inibi-   diretamente sobre a plasmina, função inibitória exer-
dores), que regulam a geração de plasmina, uma enzi-       cida pela a2-antiplasmina (Figura 7).
ma ativa, produzida a partir de uma proenzima inativa             Recentemente, um novo componente do siste-
(plasminogênio), que tem por função degradar a fibrina     ma fibrinolítico foi identificado e designado TAFI
e ativar metaloproteinases de matriz extracelular(10).     (“thrombin-activatable fibrinolysis inhibitor”, inibidor
À parte seu papel no sistema hemostático, nos últimos      da fibrinólise, ativado pela trombina, também denomi-
anos, foram descobertas numerosas funções do siste-        nado carboxipeptidase B plasmática, procarboxipepti-
ma plasminogênio/plasmina em outros processos, in-         dase U ou procarboxipeptidase R)(11). O TAFI é um
cluindo remodelagem da matriz extracelular, cresci-        zimogênio plasmático que ocupa importante papel na
mento e disseminação tumoral, cicatrização e infec-        hemostasia, funcionando como um potente inibidor da
ção, mas tais aspectos não serão aqui abordados.           fibrinólise. O TAFI é ativado pela trombina, tripsina e
       As enzimas do sistema fibrinolítico são todas       plasmina, e, na sua forma ativada, é capaz de inibir a
serinoproteases, ao passo que os inibidores da fibrinó-    fibrinólise por remover resíduos de lisina da molécula
lise são membros da superfamília de proteínas desig-       de fibrina durante o processo de lise do coágulo,
nadas serpinas (inibidores de proteases séricas). São      suprimindo,assim, as propriedades de cofator da fibrina
conhecidos dois ativadores fisiológicos do plasmino-       parcialmete degradada na ativação do plasminogênio.
gênio: o ativador do plasminogênio do tipo tecidual        Curiosamente, a principal via de ativação do TAFI é
(t-PA, “tissue-type plasminogen activator”) e o ativa-     dependente da ligação do fator IIa (trombina) à
dor do plasminogênio do tipo uroquinase (u-PA,             trombomodulina (complexo que tem também a fun-
“urokinase-type plasminogen activator”) (Figura 7).        ção de ativar o sistema da proteína C). Dessa forma,
Os dois ativadores têm alta especificidade de ligação      a molécula do TAFI representa um ponto de conexão
com seu substrato (plasminogênio) e promovem hi-           entre os sistema de coagulação e fibrinolítico, fato ilus-
drólise de uma única ponte peptídica (Arg560-Val561),      trado na Figura 8.

                                                                                                                             235
RF Franco




   Figura 7: Representação esquemática do sistema fibrinolítico. PDF: produtos de degradação de fibrina. Outras siglas: vide texto.




  Figura 8: TAFI: ponto de conexão entre o sistema de coagulação e da fibrinólise, intermediado pelo complexo trombina/
  trombomodulina. Esquema adaptado da referência 11. PLG: plasminogênio, Pn: plasmina, TM: trombomodulina, FGN: fibrinogênio,
  PDF: produtos de degradação de fibrina.




236
Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise




            FRANCO RF. Overview of coagulation, anticoagulation and fibrinolysis. Medicina, Ribeirão Preto, 34:
               229-237, july/dec. 2001.

                 ABSTRACT: The present article revises different aspects of the coagulant, anticoagulant and
            fibrinolytic systems, which are relevant for a better understanding of aetiopathogenetic mechanisms
            operating in bleeding and thrombotic disorders.

                UNITERMS: Coagulation. Anticoagulation. Fibrinolysis.




       REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS                                        7 - VAN DEVENTER SJH; BULLER HR; TEN CATE JW; AARDEN
                                                                             LA; HACK CE & STURK A. Experimental endotoxemia in hu-
1 - JENNY NS & MANN KG. Coagulation cascade: an overview.                    mans: Analysis of cytokine release and coagulation, fibrin-
    In: LOSCALZO J & SCHAFER AI, eds. Thrombosis and hem-                    olytic and complement pathways. Blood 76: 2520-2527,
    orrhage, 2nd ed, Williams & Wilkins, Baltimore, p. 3-27, 1998.           1990.

2 - COLMAN RW; CLOWES AW; GEORGE JN; HIRSH J & MARDER                    8 - FRANCO RF; DE JONGE E; DEKKERS PEP; TIMMERMAN JJ;
    VJ. Overview of hemostasis. In: COLMAN RW; HIRSH J;                      SPEK CA; VAN DEVENTER SJH; VAN DEURSEN P; VAN
    MARDER VJ; CLOWES AW & GEORGE JN, eds. Hemostasis                        KERKHOFF L; VAN GEMEN B; TEM CATE H; VAN DER POLL
    and thrombosis. Basic principles and clinical prac-                      & REITSMA PH. The in vivo kinetics of tissue factor mRNA
    tice, 4th ed, Lippincott; Williams & Wilkins, Philadelphia, p. 3-        expression during human endotoxemia: relationship with
    16, 2001.                                                                activation of coagulation. Blood 96: 554-559, 2000.

3 - MACFARLANE RG. An enzyme cascade in the blood clotting               9 - COLMAN RW; HIRSH J; MARDER VJ & CLOWES AW. Over-
    mechanism, and its function as a biochemical amplifier. Na-              view of coagulation, fibrinolysis, and their regulation. In:
    ture 202: 498-499, 1964.                                                 COLMAN RW; HIRSH J; MARDER VJ; CLOWES AW & GEORGE
                                                                             JN, eds. Hemostasis and thrombosis. Basic principles
4 - DAVIE EW & RATNOFF OD. Waterfall sequence for intrinsic                  and clinical practice, 4th ed, Lippincott; Williams & Wilkins,
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5 - DRAKE TA; MORRISSEY JH & EDGINGTON TS. Selective cel-               10 - COLLEN D. The plasminogen (fibrinolytic) system. Thromb
    lular expression of tissue factor in human tissues: implica-             Haemost 82: 259-270, 1999.
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                                                                             antifibrinolytic pathway. Arterioscler Thromb Vasc Biol
6 - WILCOX JN; SMITH KM; SCHWARTZ SM; SCHWARTZ SM &                          20: 2511-2518, 2000.
    GORDON D. Localization of tissue factor in the normal vessel
    wall and in the atherosclerotic plaque. Proc Natl Acad Sci                     Recebido para publicação em 28/06/2001
    USA 86: 2839-2843, 1989.
                                                                                   Aprovado para publicação em 24/08/2001




                                                                                                                                            237

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Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise

  • 1. Medicina, Ribeirão Preto, Simpósio: HEMOSTASIA E TROMBOSE 34: 229-237, jul./dez. 2001 Capítulo I FISIOLOGIA DA COAGULAÇÃO, ANTICOAGULAÇÃO E FIBRINÓLISE OVERVIEW OF COAGULATION, ANTICOAGULATION AND FIBRINOLYSIS Rendrik F. Franco Professor Livre-Docente de Hematologia e Hemoterapia. Coordenador do Serviço de Investigação em Hemofilia e Trombofilia, Funda- ção Hemocentro de Ribeirão Preto. Coordenador do Laboratório de Hemostasia, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo CORRESPONDÊNCIA: FUNDHERP, Rua Tenente Catão Roxo, 2501 – 14051-140, Ribeirão Preto, SP. E-mail: rendri@hotmail.com FRANCO RF. Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise. Medicina, Ribeirão Preto, 34: 229-237, jul./dez. 2001. RESUMO: O presente artigo revisa aspectos de fisiologia dos sistemas de coagulação, anti- coagulação e fibrinólise, que são relevantes para a compreensão de mecanimos etiopatogênicos operantes em doenças hemorrágicas e trombóticas. UNITERMOS: Coagulação. Anticoagulação. Fibrinólise. 1. INTRODUÇÃO 2. COAGULAÇÃO A formação do coágulo de fibrina no sítio de A formação do coágulo de fibrina envolve com- lesão endotelial representa processo crítico para a ma- plexas interações entre proteases plasmáticas e seus nutenção da integridade vascular. Os mecanismos cofatores, que culminam na gênese da enzima trombina, envolvidos nesse processo, constituintes do sistema que, por proteólise, converte o fibrinogênio solúvel em hemostático, devem ser regulados para simultanea- fibrina insolúvel. Progressos significativos ocorreram mente, contrapor-se à perda excessiva de sangue e nas últimas décadas, concernentes à compreensão da evitar a formação de trombos intravasculares, decor- fisiologia desse sistema e dos mecanismos que o re- rentes de formação excessiva de fibrina. gulam(1,2). Conforme assinalado a seguir, tais conhe- Os componentes do sistema hemostático inclu- cimentos tiveram fundamental importância para a em as plaquetas, os vasos, as proteínas da coagulação melhor compreensão da fisiologia da hemostasia e do do sangue, os anticoagulantes naturais e o sistema de papel das reações hemostáticas em doenças hemor- fibrinólise. O equilíbrio funcional dos diferentes “seto- rágicas e trombóticas. res” da hemostasia é garantido por uma variedade de Em 1964, Macfarlane e Davie & Ratnoff pro- mecanismos, envolvendo interações entre proteínas, puseram a hipótese da “cascata” para explicar a fisi- respostas celulares complexas, e regulação de fluxo ologia da coagulação do sangue(3,4). Nesse modelo sangüíneo. No presente capítulo, abordaremos os sis- (Figura 1), a coagulação ocorre por meio de ativação temas de coagulação e fibrinólise, responsáveis pela proteolítica, seqüencial de zimógenos, por proteases formação e dissolução do coágulo de fibrina, respecti- do plasma, resultando na formação de trombina que, vamente. Adicionalmente, discussão acerca do papel então, converte a molécula de fibrinogênio em fibrina. de mecanismos reguladores desses dois sistemas será O esquema divide a coagulação em uma via extrínse- apresentada. ca (envolvendo componentes do sangue, mas, tam- 229
  • 2. RF Franco bém, elementos que usualmente não estão presentes extrínseco, tal separação é atualmente entendida como no espaço intravascular) e uma via intrínseca (inicia- inadequada do ponto de vista de fisiologia da coagula- da por componentes presentes no intravascular), que ção, tendo em vista que a divisão não ocorre in vivo. convergem no ponto de ativação do fator X (“via final Adicionalmente, alterações conceituais ocorreram comum”). Na via extrínseca, o fator VII plasmático desde a descrição do modelo da cascata no que diz (na presença do seu cofator, o fator tecidual ou respeito à importância relativa das duas vias de ativa- tromboplastina) ativa diretamente o fator X. Na via ção da coagulação. Por exemplo, a julgar pela gravi- intrínseca, ativação do fator XII ocorre quando o san- dade das manifestações hemorrágicas, decorrentes das gue entra em contato com uma superfície, contendo deficiências dos “fatores intrínsecos” VIII e IX (He- cargas elétricas negativas (por exemplo, a parede de mofilia A e B, respectivamente), postulou-se, no pas- um tubo de vidro). Tal processo é denominado “ativa- sado, que a via intrínseca teria maior relevância na ção por contato” e requer ainda a presença de outros fisiologia da coagulação. Essa idéia todavia não é cor- componentes do plasma: pré-calicreína (uma serino- reta: sabe-se que a deficiência de fator XI é associa- protease) e cininogênio de alto peso molecular (um da a distúrbio hemorrágico leve, e deficiências dos cofator não enzimático). O fator XIIa ativa o fator XI, fatores da ativação por contato (fator XII, pré- que, por sua vez, ativa o fator IX. O fator IXa, na calicreína, cininogênio de alto peso molecular) não re- presença de fator VIII, ativa o fator X da coagulação, sultam em quadro hemorrágico. Os fatores intrínse- desencadeando a geração de trombina e subseqüente cos, portanto, não têm importância primária na gera- formação de fibrina. ção de fator IXa durante o processo hemostático nor- Não obstante haja a tradição de se dividir o sis- mal, que sucede a injúria vascular. Por outro lado, a tema de coagulação do sangue em intrínseco e deficiência de fator VII (crucial para a “ativação ex- Figura 1. Esquema da cascata da coagulação, proposto na década de 1960, com a divisão do sistema de coagulação em duas vias. CAPM: cininogênio de alto peso molecular; PK: pré-calicreína. 230
  • 3. Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise trínseca” da coagulação do sangue) é associada a contendo fosfolipídeos (em especial das plaquetas), quadro hemorrágico similar à Hemofilia. Em conjun- em que essas reações acontecem (Figura 2). Os ele- to, esses dados demonstram que a ativação do fator mentos biológicos que contribuem para o componente IX não depende exclusivamente da via intrínseca e de fosfolipídeos da coagulação incluem tecidos indicam que a coagulação do sangue é iniciada princi- vasculares lesados, células inflamatórias e plaquetas palmente pela via do fator tecidual ou extrínseca. ativadas. O principal contribuinte, em termos de nú- Adicionalmente, experimentos conduzidos nas últimas meros de sítios, são as membranas de plaquetas, que, três décadas demonstraram que as vias intrínseca e quando ativadas, expressam sítios de ligação para os extrínseca não exibem funcionamento independente, complexos fator IXa/fator VIIIa (complexo “tenase”) conforme detalhado a seguir. e fator Xa/fator Va (complexo “protrombinase”). Adi- Atualmente, aceita-se que mecanismos hemos- cionalmente, íons de cálcio são necessários em diver- táticos, fisiologicamente relevantes estejam associa- sos passos das reações da coagulação. dos com três complexos enzimáticos procoagulantes, A iniciação do processo de coagulação depen- os quais envolvem serinoproteases dependentes de de da exposição do sangue a componentes que, nor- vitamina K (fatores II, VII, IX e X) associadas a malmente, não estão presentes no interior dos vasos, cofatores (V e VIII), todos localizados em uma su- em decorrência de lesões estruturais (injúria vascular) perfície de membrana contendo fosfolipídeos(1,2). Os ou alterações bioquímicas (por ex., liberação de complexos encontram-se esquematizados na Figura citocinas). Qualquer que seja o evento desencadeante, 2, que resume os dados apresentados a seguir. a iniciação da coagulação do sangue se faz medi- As diversas enzimas da coagulação convertem ante expressão do seu componente crítico, o fa- seus substratos procofatores em cofatores, os quais tor tecidual (FT), e sua exposição ao espaço localizam as proteases sobre as superfícies celulares, intravascular. Figura 2: Representação esquemática dos complexos procoagulantes. O início da coagulação se faz mediante ligação do fator VIIa ao fator tecidual (FT), com subseqüente ativação dos fatores IX e X. O complexo fator IXa/fator VIIIa ativa o fator X com eficiência ainda maior, e o fator Xa forma complexo com o fator Va, convertendo o fator II (protrombina) em fator IIa (trombina). A superfície de membrana celular em que as reações ocorrem também encontra-se representada. Esquema adaptado da referência 1. 231
  • 4. RF Franco O FT é uma glicoproteína de membrana de XIII da coagulação, que, por sua vez, estabiliza o co- 45000 Da, que funciona como receptor para o fator águlo de fibrina. VII da coagulação. O FT não é normalmente expres- A Figura 3 mostra, em maior detalhe, o conjun- so em células em contato direto com o sangue (tais to de reações envolvidas na coagulação do sangue, como células endoteliais e leucócitos)(5,6), mas apre- com ênfase para as etapas seqüenciais em que zimo- senta expressão constitutiva em fibroblastos subjacen- gênios de serinoproteases são transformados em en- tes ao endotélio vascular(6). O FT é também encon- zimas proteolíticas. Em tal esquema, fica enfatizado o trado em queratinócitos, células epiteliais do trato res- conceito de que não há distinção clara entre os siste- piratório e trato gastrointestinal, cérebro, células mus- mas intrínseco e extrínseco, que atuam de modo alta- culares cardíacas e glomérulos renais. Células endo- mente interativo in vivo. Em condições fisiológicas, teliais e monócitos, que, normalmente, não expressam as reações esquematizadas nas Figuras 2 e 3 resultam o fator tecidual, podem expressá-lo na vigência de le- em produção equilibrada de quantidades apropriadas são endotelial e na presença de estímulos específicos, de trombina e do coágulo de fibrina, em resposta ade- tais como endotoxinas e citocinas (TNF-α e interleu- quada e proporcional à injúria vascular existente. Com cina-1)(7,8,9). Em indivíduos normais, níveis mínimos efeito, no estado fisiológico não há formação e depo- da forma ativada do fator VII da coagulação (FVIIa) sição de fibrina no intravascular, em decorrência das estão presentes em circulação, correspondendo a apro- propriedades anticoagulantes do endotélio, à forma ximadamente 1% da concentração plasmática total de inativa das proteínas plasmáticas, envolvidas na coa- fator VII. O FVIIa é capaz de se ligar ao FT expres- gulação (que circulam como zimogênios ou cofatores), so em membranas celulares, e a exposição do FT ao e à presença de inibidores fisiológicos da coagulação plasma resulta na sua ligação ao FVII e FVIIa, sendo (vide infra). Por outro lado, a perda do equilíbrio di- que somente o complexo FT-FVIIa exibe função nâmico das reações da coagulação têm, como conse- enzimática ativa; o complexo é também capaz de ati- qüência clínica, o aparecimento de distúrbios hemor- var o FVII em processo denominado “auto-ativação”. rágicos ou trombóticos. O complexo FT-FVIIa tem como substratos princi- Finalmente, vale mencionar que, no que se re- pais o fator IX e o fator X, cuja clivagem resulta na fere ao sistema de coagulação, a utilização dos ter- formação de FIXa e FXa, respectivamente, com sub- mos “intrínseco” e “extrínseco” pode ser ainda útil na seqüente formação de trombina e fibrina (Figura 2). interpretação de dois exames laboratoriais, utilizados Deve ser ressaltado, no entanto, que quantidades mínimas de trombina são geradas a partir do complexo “protrom- binase” extrínseco. Todavia, uma vez que há gênese inicial de trombina, esta enzi- ma é capaz de ativar o fator V em fator Va, e o fator VIII em fator VIIIa. As duas reações, envolvendo ativação de procofatores são fundamentais para a geração do complexo “tenase” intrínse- co (fator IXa/fator VIIIa), o qual con- verte o fator X em fator Xa, e do com- plexo “protrombinase” (fator Va/fator Xa), que converte a protrombina em trombina (Figura 2). Um importante as- pecto dessas reações é que o complexo fator IXa/fator VIIIa ativa o fator X com eficiência 50 vezes maior que o comple- xo fator VIIa/FT. O produto principal das citadas reações, a trombina (IIa), exibe atividades procoagulantes, convertendo Figura 3: Visão atualizada da coagulação sangüínea. As diferentes reações o fibrinogênio em fibrina, promovendo ocorrem em superfícies de membrana, contendo fosfolípides (não representadas no esquema). ativação plaquetária e ativando o fator 232
  • 5. Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise na rotina da avaliação da hemostasia: o TP/INR e o papel inibitório sobre o complexo fator VIIa/FT. TTPA, que são de particular importância no diagnósti- Outra importante via de anticoagulação do san- co de anormalidades hemostáticas e na monitorização gue é o sistema da PC ativada (PCa). A PC, quando de terapêutica anticoagulante. Na execução desses ligada ao seu receptor no endotélio (EPCR, “endothelial testes in vitro, criam-se, no tubo de reação, as condi- PC receptor”), é ativada após a ligação da trombina ções para ativação preferencial das vias ditas extrín- ao receptor endotelial trombomodulina (TM) (Figura seca (avaliada pelo TP) e intrínseca (avaliada pelo 5). A PCa inibe a coagulação, clivando e inativando os TTPA). À parte da utilidade mencionada, de caráter fatores Va e VIIIa, processo que é potencializado pela puramente didático e de interpretação laboratorial, a PS, que atua como um cofator não enzimático nas re- divisão do sistema de coagulação em duas vias é ina- ações de inativação. A identificação do sistema da PCa dequada para a compreensão da sua fisiologia. De fato, implicou importante mudança conceitual no que se re- os conceitos de que o fator tecidual é o principal ativa- fere ao papel da trombina no sistema hemostático: não dor da coagulação do sangue e de que a distinção en- obstante ela tenha função procoagulante, quando ge- tre sistemas extrínseco e intrínseco não existe na fisi- rada em excesso, sua função, na fisiologia do sistema, ologia do sistema representam importantes mudanças em que é produzida apenas em pequenas quantida- conceituais, que devem ser assimiladas para entendi- des, é a de um potente anticoagulante, tendo em vis- mento correto dos eventos bioquímicos, envolvidos na ta que sua ligação à TM endotelial representa o even- ativação do sistema hemostático. to-chave para ativação da via inibitória da PC. A AT (anteriormente designada AT III) é o ini- 3. MECANISMOS REGULADORES DA COA- bidor primário da trombina e também exerce efeito GULAÇÃO SANGÜÍNEA inibitório sobre diversas outras enzimas da coagula- ção, incluindo os fatores IXa, Xa, e XIa (Figura 6). As reações bioquímicas da coagulação do san- Adicionalmente, a AT acelera a dissociação do com- gue devem ser estritamente reguladas, de modo a evi- plexo fator VIIa/fator tecidual e impede sua reasso- tar ativação excessiva do sistema, formação inade- ciação. Assim, a AT elimina qualquer atividade quada de fibrina e oclusão vascular. De fato, a ativida- enzimática procoagulante excessiva ou indesejável. A de das proteases operantes na ativação da coagula- molécula de heparan sulfato, uma proteoglicana pre- ção é regulada por numerosas proteínas inibitórias, que sente na membrana das células endoteliais, acelera as atuam como anticoagulantes naturais. No presente capítulo, discutiremos as que apre- sentam maior relevância biológica, atuan- do como inibidores fisiológicos da coagula- ção: o TFPI (“tissue factor pathway inhibitor”), a proteína C (PC) e a proteína S (PS), e a antitrombina (AT) (9). Conforme mencionado previamente, o complexo fator VIIa/FT atua sobre dois subtratos principais: os fatores IX e X da coagulação, ativando-os. Essas reações são reguladas pelo inibidor da via do fator teci- dual (TFPI), uma proteína produzida pelas células endoteliais, que apresenta três do- mínios do tipo “Kunitz”. O primeiro domí- nio liga-se ao complexo fator VIIa/FT, ini- bindo-o, e o segundo domínio liga-se e ini- be o fator Xa. Assim, a ativação direta do fator X é regulada negativamente de modo rápido na presença do TFPI, que limita, desta forma, a produção de fator Xa e fa- Figura 4. Inibição da via de ativação da coagulação dependente do fator tecidual pelo TFPI (“tissue factor pathway inhibitor”). O símbolo C indica os tor IXa (Figura 4). A ligação do fator Xa é pontos de inibição do TFPI. necessária para que o TFPI exerça seu 233
  • 6. RF Franco Figura 5. Sistema da proteína C ativada. A ligação da trombina (IIa) ao receptor endotelial trombomodulina (TM) modifica as propriedades da trombina, transformando-a em um potente anticoagulante, por ativar a PC, que, juntamente com seu cofator (PS), inativa os fatores VIIIa e Va, suprimindo a gênese de trombina. EPCR: “endothelial PC receptor” (receptor endotelial da PC). Figura 6. Efeitos anticoagulantes da antitrombina (AT). A potenciação do efeito inibitório da AT pelo heparan sulfato e heparina encontra-se também representada. 234
  • 7. Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise reações catalisadas pela AT (Figura 6). A atividade que resulta na formação de uma serinoprotease ativa, inibitória da AT sobre a coagulação é também poten- a plasmina. Embora a plasmina degrade não somente temente acelerada pela heparina (Figura 6), um polis- a fibrina, mas, também, o fibrinogênio, fator V e fator sacarídeo linear, estruturalmente similar ao heparan VIII, em condições fisiológicas, a fibrinólise ocorre sulfato. como processo que é altamente específico para a As diferentes vias regulatórias, citadas anteri- fibrina, portanto de ativação localizada e restrita, e não ormente, não operam isoladamente, pois há sinergismo sistêmica, cumprindo, assim, sua função de remover o entre o TFPI e a AT e entre o TFPI e o sistema da excesso de fibrina do intravascular de modo equilibra- PC, suprimindo a gênese de trombina. Por exemplo, a do. Esta especificidade dependente de fibrina é resul- AT (mas não o TFPI) inibe a ativação do fator VII, tado de interações moleculares específicas entre os mediada pelo fator Xa, no complexo fator VII/FT. Por ativadores do plasminogênio, o plasminogênio, a fibrina, outro lado, o TFPI (mas não a AT) inibe o excesso de e os inibidores da fibrinólise. Por exemplo, o t-PA exi- ativação do fator X pelo complexo fator VII/FT. Adi- be baixa afinidade pelo plasminogênio na ausência de cionalmente, o TFPI, em conjunção com o sistema da fibrina (KM = 65 µM), afinidade que é muito aumenta- Pca, inibe potentemente a gênese de trombina pelo da na presença de fibrina (KM = 0,15-1,5 µM), o que complexo fator VII/FT. ocorre porque a fibrina representa uma superfície ide- Em condições fisiológicas (ausência de lesão al para ligação do t-PA ao plasminogênio, e em tal vascular) há predomínio dos mecanismos anticoagu- reação, o plasminogênio liga-se à fibrina via resíduos lantes sobre os procoagulantes, mantendo-se, desta de aminoácido lisina (“lysine-binding sites”). Em con- forma, a fluidez do sangue e preservando-se a patência traste com esses mecanismos fisiológicos, ativação vascular. mais extensa do sistema fibrinolítico ocorre quando da infusão de agentes trombolíticos do tipo estrepto- 4. SISTEMA PLASMINOGÊNIO/PLASMINA quinase e uroquinase, que não são específicos para a (SISTEMA FIBRINOLÍTICO) presença de fibrina. A inibição do sistema fibrinolítico ocorre em Fibrinólise pode ser definida como a degrada- nível dos ativadores do plasminogênio mediante ação ção da fibrina, mediada pela plasmina. O sistema de inibidores específicos (PAIs, “plasminogen activator fibrinolítico ou sistema plasminogênio/plasmina é com- inhibitors”), cujo principal representante é o PAI-1, e posto por diversas proteínas (proteases séricas e inibi- diretamente sobre a plasmina, função inibitória exer- dores), que regulam a geração de plasmina, uma enzi- cida pela a2-antiplasmina (Figura 7). ma ativa, produzida a partir de uma proenzima inativa Recentemente, um novo componente do siste- (plasminogênio), que tem por função degradar a fibrina ma fibrinolítico foi identificado e designado TAFI e ativar metaloproteinases de matriz extracelular(10). (“thrombin-activatable fibrinolysis inhibitor”, inibidor À parte seu papel no sistema hemostático, nos últimos da fibrinólise, ativado pela trombina, também denomi- anos, foram descobertas numerosas funções do siste- nado carboxipeptidase B plasmática, procarboxipepti- ma plasminogênio/plasmina em outros processos, in- dase U ou procarboxipeptidase R)(11). O TAFI é um cluindo remodelagem da matriz extracelular, cresci- zimogênio plasmático que ocupa importante papel na mento e disseminação tumoral, cicatrização e infec- hemostasia, funcionando como um potente inibidor da ção, mas tais aspectos não serão aqui abordados. fibrinólise. O TAFI é ativado pela trombina, tripsina e As enzimas do sistema fibrinolítico são todas plasmina, e, na sua forma ativada, é capaz de inibir a serinoproteases, ao passo que os inibidores da fibrinó- fibrinólise por remover resíduos de lisina da molécula lise são membros da superfamília de proteínas desig- de fibrina durante o processo de lise do coágulo, nadas serpinas (inibidores de proteases séricas). São suprimindo,assim, as propriedades de cofator da fibrina conhecidos dois ativadores fisiológicos do plasmino- parcialmete degradada na ativação do plasminogênio. gênio: o ativador do plasminogênio do tipo tecidual Curiosamente, a principal via de ativação do TAFI é (t-PA, “tissue-type plasminogen activator”) e o ativa- dependente da ligação do fator IIa (trombina) à dor do plasminogênio do tipo uroquinase (u-PA, trombomodulina (complexo que tem também a fun- “urokinase-type plasminogen activator”) (Figura 7). ção de ativar o sistema da proteína C). Dessa forma, Os dois ativadores têm alta especificidade de ligação a molécula do TAFI representa um ponto de conexão com seu substrato (plasminogênio) e promovem hi- entre os sistema de coagulação e fibrinolítico, fato ilus- drólise de uma única ponte peptídica (Arg560-Val561), trado na Figura 8. 235
  • 8. RF Franco Figura 7: Representação esquemática do sistema fibrinolítico. PDF: produtos de degradação de fibrina. Outras siglas: vide texto. Figura 8: TAFI: ponto de conexão entre o sistema de coagulação e da fibrinólise, intermediado pelo complexo trombina/ trombomodulina. Esquema adaptado da referência 11. PLG: plasminogênio, Pn: plasmina, TM: trombomodulina, FGN: fibrinogênio, PDF: produtos de degradação de fibrina. 236
  • 9. Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise FRANCO RF. Overview of coagulation, anticoagulation and fibrinolysis. Medicina, Ribeirão Preto, 34: 229-237, july/dec. 2001. ABSTRACT: The present article revises different aspects of the coagulant, anticoagulant and fibrinolytic systems, which are relevant for a better understanding of aetiopathogenetic mechanisms operating in bleeding and thrombotic disorders. UNITERMS: Coagulation. Anticoagulation. Fibrinolysis. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 7 - VAN DEVENTER SJH; BULLER HR; TEN CATE JW; AARDEN LA; HACK CE & STURK A. Experimental endotoxemia in hu- 1 - JENNY NS & MANN KG. Coagulation cascade: an overview. mans: Analysis of cytokine release and coagulation, fibrin- In: LOSCALZO J & SCHAFER AI, eds. Thrombosis and hem- olytic and complement pathways. Blood 76: 2520-2527, orrhage, 2nd ed, Williams & Wilkins, Baltimore, p. 3-27, 1998. 1990. 2 - COLMAN RW; CLOWES AW; GEORGE JN; HIRSH J & MARDER 8 - FRANCO RF; DE JONGE E; DEKKERS PEP; TIMMERMAN JJ; VJ. Overview of hemostasis. In: COLMAN RW; HIRSH J; SPEK CA; VAN DEVENTER SJH; VAN DEURSEN P; VAN MARDER VJ; CLOWES AW & GEORGE JN, eds. Hemostasis KERKHOFF L; VAN GEMEN B; TEM CATE H; VAN DER POLL and thrombosis. Basic principles and clinical prac- & REITSMA PH. The in vivo kinetics of tissue factor mRNA tice, 4th ed, Lippincott; Williams & Wilkins, Philadelphia, p. 3- expression during human endotoxemia: relationship with 16, 2001. activation of coagulation. Blood 96: 554-559, 2000. 3 - MACFARLANE RG. An enzyme cascade in the blood clotting 9 - COLMAN RW; HIRSH J; MARDER VJ & CLOWES AW. Over- mechanism, and its function as a biochemical amplifier. Na- view of coagulation, fibrinolysis, and their regulation. In: ture 202: 498-499, 1964. COLMAN RW; HIRSH J; MARDER VJ; CLOWES AW & GEORGE JN, eds. Hemostasis and thrombosis. Basic principles 4 - DAVIE EW & RATNOFF OD. Waterfall sequence for intrinsic and clinical practice, 4th ed, Lippincott; Williams & Wilkins, blood clotting. Science 145: 1310-1312, 1964. Philadelphia, p. 17-20, 2001. 5 - DRAKE TA; MORRISSEY JH & EDGINGTON TS. Selective cel- 10 - COLLEN D. The plasminogen (fibrinolytic) system. Thromb lular expression of tissue factor in human tissues: implica- Haemost 82: 259-270, 1999. tions for disorders of hemostasis and thrombosis. Am J Pathol 134: 1087-1097, 1989. 11 - BAJZAR L. Thrombin activatable fibrinolysis inhibitor and na antifibrinolytic pathway. Arterioscler Thromb Vasc Biol 6 - WILCOX JN; SMITH KM; SCHWARTZ SM; SCHWARTZ SM & 20: 2511-2518, 2000. GORDON D. Localization of tissue factor in the normal vessel wall and in the atherosclerotic plaque. Proc Natl Acad Sci Recebido para publicação em 28/06/2001 USA 86: 2839-2843, 1989. Aprovado para publicação em 24/08/2001 237