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GLÓRIA A DEUS
João Calvino
Professor: Qual é o principal objetivo da vida humana?
Estudante: É conhecer a Deus
Professor: Porque você diz isto?
Estudante: Porque ele nos criou e nos colocou na terra para ser glorificado
em nós. E, certamente, é correto que dediquemos nossa vida à sua glória, já
que ele é o princípio dela.
Catecismo de Genebra, 1541.1
A Crise da Teologia Reformada
Em 1921, Karl Barth deixou um pastorado campesino na Suíça para
tornar-se professor de teologia reformada na Universidade de Göttingen, na
Alemanha. Uma das primeiras tarefas de Barth foi preparar palestras acerca
da teologia dos reformadores. Em junho de 1922, ele escreveu a seu amigo
Eduardo Thurneysen sobre suas lutas com Calvino:
Calvino é uma catarata, uma floresta primitiva, um poder demoníaco, algo vindo
diretamente do Himalaia, absolutamente chinês, estranho, mitológico; perco
completamente o meio, as ventosas, mesmo para assimilar este fenômeno, sem falar
para apresenta-lo satisfatoriamente. O que recebo é apenas um pequeno e tênue jorro e o
que posso dar em retorno, então, é apenas uma porção ainda menor desse pequeno jorro.
1
Traduzido em Thomas Torrence, The School of Faith (Nova Iorque; Harper and Bros., 1959), pp. 5-6.
Outra tradução é dada em Calvin: Theological Treatises, ed. J.K.S. Reid (Londres, SCM Press, 1954), pp.
88-139.
Eu poderia feliz e proveitosamente assentar-me e passar o resto de minha vida somente
com Calvino.2
Barth não podia deixar Calvino! Lutava com ele dia e noite. “Mais
de uma vez o que eu apresentava às 7 horas não estava pronto antes das 3
ou 5 horas”. Em certa ocasião, ele até mesmo desmarcou uma aula porque
não estava completamente preparado. Dessas meditações emergiu uma
verdadeira renascença no estudo de Calvino (no qual Peter Barth, irmão de
Karl, desempenhou papel importante) e uma nova avaliação da pertinência
de Calvino para nossos tempos perturbados.
Calvino foi um reformador da segunda geração. Quando nasceu, na
França setentrional, em 1509, Lutero já estava dando conferências na
Universidade de Erfurt e Zuínglio estava-se ocupando de suas tarefas
pastorais em Glarus. Na Inglaterra, no mesmo ano, o Rei Henrique VII
morria, assistido em seu leito de morte por seu filho de 18 anos, o robusto e
recém-casado “Harry”, que em breve se tornaria o Rei Henrique VIII. No
trono papal, em Roma, estava Júlio II, conhecido como o “papa guerreiro”,
devido a seu hábito de liderar seus próprios soldados nas batalhas – o que
impeliu Erasmo a perguntar se ele não era mais o sucessor de Júlio César
do que de Jesus Cristo! Logo ele promulgaria uma indulgência plenária
para a reconstrução da Catedral de São Pedro. Quando Calvino tornou-se
protestante, no início da década de 30, herdou uma tradição e uma teologia
já bem definidas por quase duas décadas de controvérsia.
Quando o evangelho de Lutero veio a público pela primeira vez
(digamos, com seus três tratados de 1520), ele estava confiante de que seria
bem-sucedido. Logo, acreditava ele, o papado cairia, o imperador
convocaria um verdadeiro conselho reformador, os judeus e os turcos
seriam convertidos. Cristo retornaria e o diabo seria derrotado para sempre!
2
Karl Barth, Revolutionary Theology in the Making, trad. Por James D. Smart (Richmont: John Knox
Press, 1964), p. 101.
Até o final da década, porém, o otimismo apocalíptico de Lutero
chegara perto do desespero. Ele encontrava-se excomungado pelo papa e
banido pelo imperador, que estava se preparando para entrar em guerra
contra os príncipes protestantes. Os judeus não haviam demonstrado mais
interesse pelas tentativas de Lutero de evangeliza-los do que tiveram pelos
outros incontáveis esforços através dos séculos. Os turcos, longe de
sucumbir ao novo evangelho, lutavam uma jihad santa contra toda a
Europa. Já em 1525, eles tinham avançado até os portões de Viena.
Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos.
Era a primavera da esperança; era o inverno do desespero.
Íamos todos direto para o céu; íamos todos direto para o outro lado.3
Assim deve ter parecido a muitos dos cristãos sérios que seguiram o
curso dos eventos desde a Dieta de Worms, em 1521(“aqui permanço”), até
a Dieta de Speyer (onde o termo protestante foi cunhado), em 1529.
Ainda mais instável que as ameaças externas era o doloroso
desenredar interno da Reforma. Muitos dos que se haviam juntado a Lutero
em suas primeiras batalhas agora desertavam do “papa de Wittenberg”,
como Thomas Müntzer o chamava. Os humanistas tinham feito do nome de
Lutero uma palavra familiar, ao imprimir e distribuir suas Noventa e Cinco
Teses de um extremo a outro da Europa. Entretanto, a maioria deles, como
Erasmo, não estava fundamentalmente de acordo com os interesses mais
profundos de Lutero. Eles não o seguiriam até o cisma. Os espiritualistas,
anabatistas e sacramentalistas, todos estes Lutero apelidou de Schwärmer,
porque soavam como um confuso enxame de abelhas zumbindo ao redor de
uma colméia. O desacordo dos zuinglianos com os luteranos sobre a
Eucaristia aumentou, ao invés de diminuir, depois do Colóquio de
Marburgo. Todos, claro, recorriam à Bíblia. Kasper Schwenckfeld, um dos
reformadores espirituais, observou que, com base na Bíblia, “os papistas
3
Charles Dickens, A Tale of Two Cities (Nova Iorque: Merrill and Baker, 1962), p. 1.
amaldiçoam os luteranos, os luteranos amaldiçoam os zuinglianos, os
zuinglianos amaldiçoam os anabatistas e os anabatistas amaldiçoam todos
os outros”.
Nesse exato momento, com Zuínglio falecido e Erasmo morrendo,
com Lutero aquiescente (se não quieto!), a igreja romana ressurgindo, a
reforma radical fragmentada, e, logo ainda mais desacreditada pelo
espetáculo sangrento de Münster, João Calvino emergia como líder de um
novo movimento e reformulador de uma nova teologia.
Karl Holl, famoso estudioso de Lutero, certa vez referiu-se a Calvino
como o mais famoso discípulo de Lutero. Os dois reformadores nunca se
encontraram pessoalmente. Ainda assim, Lutero elogiou alguns dos
primeiros escritos de Calvino que lhe haviam sido enviados. Calvino, por
sua vez, chamou Lutero de seu “pai muito respeitável” e posteriormente
declarou: “Nós o consideramos um extraordinário apóstolo de Cristo, por
meio de cujo trabalho e ministério, acima de tudo, a pureza do evangelho
foi restaurada em nossa época”.4
Ao contrário de Zuínglio, Calvino nunca
declarou ser teologicamente independente de Lutero. Mesmo assim, não foi
um simples imitador de Lutero. A grande realização de Calvino foi tomar
os conceitos clássicos da Reforma (sola gratia, sola fide, sola scriptura) e
dar-lhes uma exposição clara e sistemática, que nem Lutero nem Zuínglio
jamais fizeram, adaptando-os ao contexto civil de Genebra. Dessa cidade,
tais conceitos assumiram vida própria e desenvolveram-se numa nova
teologia internacional, estendendo-se da Polônia e da Hungria, no Oriente,
para os Países Baixos, a Escócia, a Inglaterra (puritanismo) e, por fim, para
a Nova Inglaterra, no Ocidente. Por essa razão, o historiador francês E. G.
Leonard intitulou o último capítulo de sua History of Protestantism de
“Calvino: o Fundador de uma Civilização”.
4
CO, 6, col. 250. Para esta citação, sigo a tradução de B. A. Gerrish, “John Calvin on Luther”, in:
Interpreters of Luther, Jaroslav Pelikan, ed. (Filadélfia: Fortress Press, 1968), p. 79.
O Homem por Trás do Mito
Poucas pessoas na história do cristianismo têm sido tão
supremamente estimadas ou tão mesquinhamente desprezadas quanto João
Calvino. A maioria dos cristãos, dentre a qual grande parte dos
protestantes, conhece apenas dois aspectos a respeito dele: acreditava na
predestinação e ordenou que Serveto fosse queimado vivo. Desses dois
fatos, ambos verdadeiros, emerge a caricatura usual de Calvino como o
grande inquisidor do protestantismo, o tirano cruel de Genebra, uma figura
rabugenta, rancorosa e completamente desumana.
Essa imagem distorcida origina-se em parte da própria época de
Calvino, na qual não foi de maneira nenhuma universalmente apreciado.
Por exemplo, no ano de 1551, quando os cônegos da Catedral de Noyon,
cidade natal de Calvino, receberam a notícia da morte do reformador,
comemoraram e deram graças a Deus por tirar aquele famoso herege de seu
meio. A alegria durou pouco, entretanto, quando descobriram que os boatos
acerca de sua morte haviam sido prematuros. Ainda teriam que suportar
Calvino por mais treze anos! Em 1577, Jerome Bolsec, ex-protestante que
tinha retornado à Igreja Romana, publicou um ataque grosseiro ao caráter
de Calvino. Bolsec retratou Calvino não apenas como arrogante e mal
humorado, o que de fato ele pode ter sido, mas também como um bêbado,
adúltero e homossexual, o que ele com certeza não era. Num óbvio golpe
baixo, Bolsec também afirmou que a doença crônica de Calvino era castigo
de Deus; o fato de “seu corpo inteiro estar sendo comido por piolhos e
vermes” era a punição divina de sua heresia. Os desprezadores modernos
de Calvino não foram mais gentis. O liberalismo do século XIX viu
Calvino como “o grande fantasma negro, uma pessoa glacial, sombria,
insensível, precipitada. [...] nada nele fala ao coração”.5
Para muitos
5
Citado em Richard Stauffer, The Humanity of John Calvin, trad. Por George A. Shriver (Nashville:
Abingdon Press, 1971) p. 20. Quanto à natureza espúria das alegações de Bolsec, veja Frank Pfeilschifter,
Das Calvinbild bei Bolsec (Augsburg: F D L Berlag, 1983), pp. 123-177.
cristãos contemporâneos, Calvino é um esqueleto embaraçoso que
preferiam manter cuidadosamente trancado nos arquivos históricos.
Contaram-me que, em certa ocasião, um desses herdeiros desencantados da
Reforma colocou-se diante da famosa estátua de Calvino em Genebra e
começou a atirar ovos naquela aparência severa e com ar de desprezo.
No outro extremo da calvinofobia está a postura igualmente
preconceituosa da calvinolatria. Em 1556, o reformador escocês John Knox
descreveu a Genebra de Calvino como “a mais perfeita escola de Cristo que
jamais houve na terra desde a época dos apóstolos”.6
Outros chegaram de
retratar Calvino não apenas como o maior professor de doutrina cristã
desde Paulo, mas também com um guia quase infalível em cada aspecto da
diligência humana, desde a arte e a arquitetura até a política e a economia.
Sem dúvida, a mais notável tentativa de apresentar um “Calvino sem
protuberâncias” é a biografia clássica feita por Emile Doumergue, publica
em sete fólios por volta da virada do século. Doumergue produziu o que
certamente permanecerá como o estudo mais completo e detalhado da vida
de Calvino já escrito. Mas, a despeito das virtudes desse impressionante
trabalho, ele é essencialmente um exercício em hagiografia. O Calvino de
Doumergue é bom demais para ser verdadeiro, assim como o Calvino de
Bolsec é demoníaco demais para ser humano. Nós não servimos à verdade
retratando Calvino como angelicamente bom ou como diabolicamente mau.
Ele foi, como Lutero declarou que todos os cristãos são, ao mesmo tempo
santo e pecador.
Diferentemente de Lutero, pode-se dizer que Calvino nasceu na
igreja. Gérard Cauvin, seu pai, era o assistente administrativo do bispo de
Noyon. Diz-se que sua mãe, Jeanne, filha de um dono de hospedaria, era
mulher muito bonita e piedosa. Jeanne Cauvin morreu quando Jean, seu
quarto filho, tinha apenas 5 ou 6 anos de idade. Apesar de seu pai ter-se
6
John McNeil, The History and Character of Calvinism (Nova Iorque: Oxford University Press, 1954), p.
178.
casado logo depois, o jovem Calvino deve ter sentido a falta da mãe de
forma muito profunda. Sem dúvida isso contribuiu para seu senso de
ansiedade íntima e inquietação.7
Apesar disso, Calvino conheceu algo do
fervor da vida social a partir de seus contatos com a família aristocrática
Montmor, com quem viveu durante vários anos. Ele dedicou seu primeiro
livro a um membro dessa família, declarando: “Devo a você tudo o que sou
e tenho. [...] Quando menino, fui criado em sua casa e iniciado em meus
estudos com você. Portanto, devo à sua nobre família eu primeiro
aprendizado na vida e nas letras”.8
Embora Calvino certa vez tenha descrito
a si mesmo como “meramente um homem dentre o povo”, movia-se com
facilidade entre os altos escalões da sociedade. Era um aristocrata de
coração, se não de linhagem. Ele nunca esqueceu tal fato acerca de si
mesmo, nem deixava que os outros esquecessem disso. Certa vez, nas ruas
de Genebra, um refugiado agradecido, mas por demais entusiasmado,
chamou-o de “irmão Calvino”, apenas para ser informado de que o título
correto era “Monsieur Calvino”.
Com a idade de 12 anos, Calvino recebeu um benefício do bispo de
Noyon, graças à influência prudente de seu pai. A manutenção de um
benefício requeria a entrada nas ordens menores – João tornou-se um
clérigo e recebeu a tonsura – e o cumprimento de tarefas eclesiásticas. Na
época da Reforma, o sistema de outorgar benefícios a parentes e amigos era
um dos abusos mais comuns na igreja. Um sacerdote semi-analfabeto seria
usualmente contratado para cumprir as tarefas reais do ofício (que, no caso
de Calvino, envolvia a responsabilidade por um dos altares da catedral) por
uma soma insignificante, enquanto o incumbente recebia a maior parte do
beneficio. De fato, a renda desse benefício era um tipo de bolsa de estudo
7
Esse argumento foi impingido por Suzanne Selinger em seu perspicaz estudo, Calvin Against Himself
(Hamden, Conn.: Anchon Books, 1984), pp. 85-88. Ela vai longe demais, porém, ao derivar desse evento
traumático o suposto preconceito de Calvino contra a sexualidade e sua pretensa frieza em relação à
esposa.
8
Calvin’s Commentary on Seneca’s De Clementia, eds. Ford L. Battles e André M. Hugo (Leiden: E. J.
Brill, 1969), pp. 12-13.
pela qual o jovem Calvino, já um estudante precoce, foi capaz de continuar
seus estudos.
Em agosto de 1523, João Calvino (da forma latinizada de seu nome,
Calvinus) chegou a Paris para começar seu aprendizado formal na mais
famosa universidade da Europa. No mesmo mês, um monge agostiniano
chamado Jean Vallière foi queimado vivo por pertencer ao “partido
herético de Lutero”. Ele foi o primeiro mártir da Reforma na França. Não
sabemos que impressão esse evento causou em Calvino, então com apenas
14 anos de idade. Doze anos mais tarde, ele recuaria horrorizado ao
queimarem vivo seu amigo Etienne de la Forge, um piedoso protestante
com quem vivera durante algum tempo. De fato, Calvino publicou a
primeira edição de suas Institutas em parte, como disse, “para vingar dos
imerecidos insultos meus irmãos, cuja morte foi preciosa aos olhos do
Senhor”.9
Que transformou o jovem e brilhante estudante de Noyon no
eloqüente apologista da fé? De 1523 a 1541, quando definitivamente se
instalou em Genebra, muitas forças estavam agindo para fazer de Calvino o
reformador. Podemos observar sua vida durante esses anos turbulentos sob
o aspecto de sua preparação, conversão e vocação.
A Preparação de Calvino
Calvino matriculou-se primeiro no Collège de la Marche, onde
aperfeiçoou seu conhecimento de gramática e sintaxe latina. Ali, por algum
tempo, estudou com Mathurin Cordier, um dos maiores mestres de latim de
sua época, cuja Grammatica Latina ainda estava em uso no século XIX.
Anos depois, Calvino lembrava esse venerável professor e dedicava a ele
seu comentário a respeito da 1 Tessalonicenses:
Quando eu era criança e tinha experimentado só os rudimentos do latim, meu pai
mandou-me a Paris. Lá, a bondade de Deus deu-me você como preceptor durante
algum tempo, para ensinar-me a verdadeira maneira de aprender, a fim de que eu
9
John Calvin, Commentary on the Book of Psalms, trad. Por James Anderson (Edimburgo: Calvin
Translation Society, 1845), I, p. xlii.
pudesse continuar com maior proveito [...] Fui tão auxiliado por você, que, seja
qual for o progresso que eu tenha feito desde então, atribuo-lhe com satisfação.10
Posteriormente, Cordier foi chamado por Calvino para ensinar latim
na academia de Genebra. Ele permaneceu nesse cargo até morrer (mesmo
ano de Calvino), aos 85 anos.
Calvino logo transferiu-se para o Collège de Montaigu, famosa
escola conhecida pela disciplina severa e pela péssima comida. Erasmo,
que ali estudou poucos anos antes de Calvino, queixou-se mais tarde dos
ovos estragados que ele era obrigado a comer no refeitório. Os problemas
crônicos de Calvino de indigestão e insônia provavelmente derivaram da
alimentação severa e de sua tendência de estudar até altas horas da noite em
Montaigu. Uma lenda posterior conta que, durante esses anos, seus colegas
apelidaram Calvino de “o caso acusativo”. Embora isso não seja verdade,
Beza, em sua respeitosa biografia, reconheceu que o jovem erudito era
realmente “um rigoroso censor de tudo o que era vicioso em seus
companheiros”.11
Enquanto seus colegas estavam brincando nas ruas ou
iam a festas desregradas, Calvino ocupava-se das minúcias da lógica
nominalista ou das quaestiones da teologia escolástica.
Como era um estudante compulsivo, Calvino saiu-se extremamente
bem em seus estudos, mas também adquiriu aversão pelo método
escolástico de fazer teologia. Ele estava começando a mover-se nos
círculos do humanismo francês e pode ter compartilhado a opinião de
Erasmo, que difamou os mestres de Paris chamando-os de “pseudoteólogos
[...] cujos cérebros estão podres, cuja linguagem é bárbara, cujo intelecto
está entorpecido, cujo ensino é uma cama de espinhos, cujas maneiras são
rudes, cujas vidas são hipócritas, cujas conversas estão cheias de veneno e
cujos corações são tão negros como a tinta”.12
Calvino nunca expressou-se
10
CO 13, cols. 525-526; CNTC, 8, p. 331.
11
Calvin’s Tract and Treatises, trad. Por Henry Beveridge (Grand Rapids: Eerdmans, 1958), I, p. lx.
12
EE 1, pp. 87-88 (nº 64); CWE1, p. 138.
dessa maneira, mas descreveu um curso de teologia ministrado a jovens
teólogos como “mera sofística, e sofística tão destorcida, revirada, tortuosa
e enigmática, que a teologia escolástica poderia muito bem ser descrita
como um tipo de magia esotérica. Quanto mais densa e escuridão em que
alguém ocultava um assunto e quanto mais enigmaticamente envolvia a si
mesmo e aos outros em raciocínios absurdos, maior sua fama como
perspicaz e culto”.13
Em 1528, Calvino deixou tudo isso para trás quando, por ordem de
seu pai, foi de Paris a Orléans para dedicar-se a uma nova disciplina, o
estudo de Direito. Gérard Cauvin não gozava mais das boas graças do
capítulo da catedral de Noyon e, enfrentando a velhice, também percebeu
que seu brilhante filho teria melhores possibilidades de obter maior renda
como advogado do que como servo da igreja. De qualquer forma, Calvino
concordou com a vontade de seu pai. O contraste com Lutero é
surpreendente: Lutero, em desafio ao pai, perdeu uma carreira no Direito
para tornar-se monge; Calvino, em obediência ao pai, deixou o estudo da
teologia a fim de tornar-se advogado.
Calvino lançou-se entusiasticamente ao estudo de Direito, primeiro
em Orléans, depois em Bourges. Logo estava preparado o suficiente para
dar palestras e substituir os professores nas aulas quando faltavam, como
um tipo de “monitor”. Para Calvino, o estudo de direito teve duas
influências importantes em seu trabalho futuro: primeira, providenciou uma
base completa nos assuntos práticos que seria de enorme benefício em seus
esforços para dar nova forma às instituições de Genebra; segunda, abriu
seus olhos para o mundo da antiguidade clássica e para o estudo de textos
antigos. Enquanto estava em Bourges, ele também se dedicou ao estudo do
grego, sendo tutelado por Melchior Wolmar, um erudito da Alemanha.
13
Tracts and Treatises, I, p. 40.
Quando seu pai morreu, em 1531, Calvino sentiu-se livre para deixar
o estudo de Direito por sua verdadeira paixão, a literatura clássica. Ele
mudou-se de volta para Paris e, em 1532, publicou seu primeiro livro, uma
edição do tratado de Sêneca intitulado Sobre a Clemência, complementada
com um aparato textual e um longo comentário. Era uma obra-prima de
erudição, e ele esperava que isso o firmasse como um erudito notável nos
círculos humanistas. |No prefácio, Calvino achou necessário desculpar-se
pelo fato de que, mesmo tendo somente 23 anos, aquele era apenas seu
primeiro livro: “Eu preferia não fazer nascer absolutamente nenhuma
‘criança’ a provocar abortos, como muitas vezes acontece”.14
Comercialmente falando, porém, esse livro foi um fracasso total! Teve
apenas uma edição, e o próprio Calvino teve de pagá-la. No entanto, foi
uma tentativa impressionante, que abriu caminho para seus amplos
trabalhos literários.
A Conversão de Calvino
A transição de Calvino de humanista a reformador foi marcada pelo
que ele certa vez escreveu como uma “conversão súbita” (conversio
subita). Contudo, tem sido notoriamente difícil para os estudiosos de
Calvino concordar acerca de uma data provável para essa mudança. As
suposições vão de 1527 a 1534. Há diversos motivos para essa dificuldade.
Em primeiro lugar, Calvino era reticente quanto a si mesmo. Em parte, isso
acontecia por causa de sua tendência natural à timidez e à introspecção e,
em parte, porque levou a sério a admoestação de Paulo: “Porque não
pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor ...” (2 Co 4.5). A
glória pertencia a Deus, não a João Calvino.
Além disso, embora a conversão possa ter sido “súbita”, ele
preparou-se para ela com um período de lutas, inquietações e dúvidas.
14
Battles and Hugo, p. 4.
Calvino, não menos que Lutero e Zuínglio, teve uma formação católica
tradicional e deve ter conhecido a sensação de ansiedade e opressão que
caracterizava a cultura da baixa Idade Média. Certa vez, quando ainda bem
novo, fez uma peregrinação com sua mãe para a Abadia de Ourscamp,
onde foi-lhe permitido beijar uma relíquia sagrada, o dedo de S. Ana. Mais
tarde, Calvino apresentou um quadro vívido do tipo de pregação que ele
com freqüência deve ter ouvido, com o propósito, ao que parece, de
produzir uma espiritualidade de culpa:
Diziam-nos que éramos pecadores miseráveis dependentes da sua misericórdia; a
reconciliação viria mediante retidão das obras. O método para obter tua
misericórdia era a compensação dos delitos. Então, porque eras juiz rigoroso e
vingador severo da iniqüidade, mostravam quão terrível tua presença deve ser.
Daí, eles nos mandavam buscar refúgio primeiro nos santos, para que por essa
intercessão pudesses ser mais facilmente solicitado e propício a nós.15
Como Calvino teve seu primeiro contato com as idéias evangélicas,
isso não podemos ter certeza. Alguns escritos de Lutero foram traduzidos
para o francês logo no início da década de 20, e Calvino pode muito bem os
ter lido. Ele também tinha íntima ligação com o círculo dos humanistas
evangélicos franceses, inspirados pelo grande erudito Jacques Lefèvre
d’Etaples. Alguns desses, e até seu futuro colaborador Guillaume Farel,
haviam tentado uma reforma experimental da igreja na diocese de Meaux,
perto de Paris, até serem impedidos pelas forças mais poderosas da
ortodoxia. Beza e Colladon, os primeiros biógrafos de Calvino, atribuíram
um papel significativo em sua conversão a seu primo Robert Olivétan, em
cujo Novo Testamento Francês (1535) Calvino escreveu um prefácio
intitulado “A todos os que amam a Jesus Cristo e a seu evangelho”. Esse
foi seu primeiro trabalho publicado como protestante. De um fato podemos
estar certos: Calvino não abraçou o novo evangelho de maneira rápida ou
fácil.
15
Tracts and Treatises, I, p. 62; OS 1, PP. 484-485.
Contrariado com a novidade, eu ouvia com muita má vontade e, no
início, confesso, resisti com energia e irritação; porque (tal é a firmeza ou
descaramento com os quais é natural aos homens persistir no caminho que
outrora tomaram) foi com a maior dificuldade que fui induzido a confessar
que, por toda minha vida, eu estivera na ignorância e no erro.16
Em 1555, 20 anos depois do ocorrido, Calvino recordou sua
conversão e escreveu sobre ela no prefácio de seu Comentário sobre os
Salmos. Visto ser a mais explícita referência de Calvino a esse fato crucial,
vamos citá-la aqui por inteiro:
Minha mente, que a despeito da minha juventude, estivera por demais empedernida em
tais assuntos, agora estava preparada para uma atenção séria. Por uma súbita conversão,
Deus transformou-a e trouxe-a à docilidade. Tendo, portanto, recebido um pouco de
experiência e conhecimento da verdadeira piedade, fui repentinamente inflamado com
tamanho desejo de prosseguir, que, mesmo abandonando os outros estudos
completamente, ainda assim dediquei-me a eles mais negligentemente. Mas fiquei
completamente maravilhado porque, antes que um ano se passasse, todos os que
ansiavam pela pura doutrina vinham vez após outra até mim para aprendê-la. Mesmo eu
tendo mal começado a estudá-la.
De minha parte, tendo uma natureza um tanto indelicada e retraída, sempre desejava paz
e tranqüilidade. Então comecei a procurar algum esconderijo e uma forma de afastar-me
das pessoas. Mas, longe de atingirem o desejo de meu coração, todos os retiros e lugares
de escape tornaram-se como que escolas públicas para mim. Em resumo, apesar de
sempre acalentar o objetivo de viver na privacidade, incógnito, Deus levou-me de tal
forma que me fez mudar de tais maneiras diversas, que nunca me deixou em paz em
lugar algum, até que, a despeito de minha disposição natural, colocou-me no centro das
atenções. Deixando minha França natal, parti para a Alemanha com o expresso
propósito de poder viver em paz em algum canto desconhecido, como sempre desejei.17
Três importantes tendências da piedade e da personalidade de
Calvino são evidentes nessa recordação reveladora: Em primeiro lugar, via
sua conversão como o resultado da iniciativa divina: “Deus mudou meu
coração”. Talvez fosse essa a verdadeira intenção por trás da sua descrição
da mudança como “repentina” – não tendo uma ocorrência rápida como um
relâmpago (embora possa ter sido assim, também), quando uma sensação
16
Tracts and Treatises, I, p. 62; OS 1, p. 485.
17
Essa é uma tradução feita por Ford L. Battles, impressa na introdução de sua tradução da Instituição da
Religião Cristã de 1536 – Institution of the Christian Religion (Atlanta: John Knox Press, 1975), pp.
xxiii-xxiv. A tradução de Battles foi reimpressa por Eerdmans (1986) como Institutes of the Christian
Religion: 1536 Edition. AS citações subseqüentes serão dessa última impressão.
de ser completamente dominado pela graça de Deus. Calvino não tinha
ilusões de que poderia ter conseguido uma relação adequada com Deus sem
uma prévia “mudança” da parte de Deus. “Eu permanecia tão
obstinadamente entregue às superstições do papado, que teria sido muito
difícil arrancar-me de tão profundo lamaçal”, ele observou.18
“Eu não fiz
nada, a Palavra fez tudo”. A experiência de Calvino ecoava a de Lutero.
Aqui, também, estão as raízes experimentais da tão discutida doutrina da
predestinação. Como veremos, a visão de Calvino sobre a eleição só pode
ser entendida no contexto de uma apropriação particular da salvação por
meio de Jesus Cristo.
Um segundo tema no enfoque de Calvino à fé surge do comentário
de que Deus sujeitou seu coração à docilidade. Essa palavra, docilitas,
poderia também ser traduzida por educabilidade. Há um sentido em que
Calvino aspirava a ser nada mais do que um discípulo fiel de Jesus Cristo,
discípulo em seu significado etimológico (do latim disco, aprender) de
aprendiz, alguém que é capaz de ser ensinado. Esse tema ressoa ao longo
de seus escritos sobre a vida cristã. Para Calvino, a verdadeira piedade não
consistia num medo servil de um Deus todo-poderoso, mas sim “num
sentimento sincero que ama a Deus como Pai, tanto quanto o reverencia
como Senhor”. A evidência de tal piedade era precisamente uma disposição
para tornar-se dócil, educável diante do verdadeiro Deus. “Quem quer que
tenha sido dotado dessa piedade não ousa modelar de sua própria
imprudência qualquer deus para si mesmo. Antes, busca para si mesmo o
conhecimento do Deus verdadeiro, e concebe-o apenas como ele se mostra
e declara ser”.19
Significativamente, essa definição deriva do Catecismo
apresentado por Calvino em 1537, um documento destinado à instrução de
18
CO 31, col. 22: “Ad primo quidem, quum superstionibus papatus, magis pertinaciter addictus essem,
quam ut facile esset e tam profundo luto me extrahi, animum meum, qui pro aetate nimis obduruerat
subita conversione and docilitatem subegit”. Em seu comentário sobre De Clementia, de Sêneca, Calvino
observou que “subita significa não apenas ‘súbito’, mas também ‘não-premeditado’”. Cf. Battles e Hugo,
Commentary on De Clementia, pp. 56s.
19
OS 1, p. 379. Cf. Instruction in Faith (Filadelfia: Westminster Press, 1949), p. 19.
crianças na fé. Mais tarde, em seu Comentário de Atos (18.22), ele disse
que não pode haver nenhuma pietas sem uma instrução verdadeira, como o
nome discípulos indica. “A religião verdadeira e a adoração de Deus”, ele
dizia, “provém da fé, de modo que ninguém serve devidamente a Deus
senão aquele que foi educado em sua escola”.20
Ao longo de toda a descrição de sua conversão, Calvino declarou sua
natureza tímida e retraída, o desejo de viver em reclusão para estudos, “em
paz em algum canto desconhecido”. Não compreenderemos a pessoa de
Calvino se não levarmos em conta essa reticência, essa relutância genuína
em entrar na frente de batalha. Nesse sentido, ele diferia dos outros dois
grandes reformadores que já examinamos. Lutero foi feito para o papel, um
verdadeiro vulcão de personalidade explodindo em Worms: “Aqui
permaneço!”. Zuínglio também foi uma pessoa de ação; afinal, ele morreu
em batalha brandindo a espada de dois gumes! Mas Calvino era diferente.
Tímido a ponto de ser insociável, ele não se sairia bem numa conversa
fiada numa festa moderna. Ele teve que ser puxado, esperneando e
gritando, por assim dizer, para as fileiras dos reformadores. Contudo, o
mesmo Deus que submetera seu coração à educabilidade também firmou
seus nervos para as importantíssimas tarefas que estavam diante dele.
A Vocação de Calvino
Em 1533, no Dia de Todos os Santos, exatamente 16 anos depois que
Lutero colocou as famosas teses contra as indulgências na porta da igreja
de Wittenberg, Nicolas Cop, amigo de Calvino e reitor da Universidade de
Paris, fez um discurso numa assembléia que chocou os ouvintes. Mesmo
não sendo o que chamaríamos de um sermão evangélico caloroso, tinha
conteúdo evangélico suficiente para insultar os defensores da ortodoxia
católica. No Dia de Todos os Santos, Cop não louvou aos santos; antes,
20
CO 32, col. 249; CNTC 7, p. 142. Veja Ford L. Battles, The Piety of John Calvin (Grand Rapids: Baker
Book House, 1978), pp. 13-26.
proclamou a Cristo como o único mediador com Deus. Cop foi obrigado a
fugir para continuar vivo.
Calvino também estava envolvido nesse fato. De acordo com uma
antiga lenda, ele escapou de Paris no momento exato, com seus amigos
baixando-o de uma janela, com lençóis, enquanto a polícia batia à porta -
sombras da fuga apressada de Paulo de Damasco, num cesto!21
Os escritos
de Calvino foram confiscados; daí em diante, ele tornou-se persona non
grata em Paris. Por volta de um ano depois do discurso de Cop, alguns dos
protestantes mais maduros de Paris decidiram fazer uma demonstração
surpreendente e radical de sua fé. Um ataque ardoroso à missa e seus
adornos - "o toque dos sinos, as unções, os cânticos, os cerimoniais, as
velas, os incensos, os véus e tais espécies de bufonarias" - foi imprimido
num cartaz afixado por toda a cidade. Um deles até apareceu,
misteriosamente, na porta do quarto do Rei Francisco I. Na Alemanha,
Lutero havia lançado a Reforma atacando as indulgências, um aspecto
central do sacramento da penitência no final da Idade Média. A reforma
francesa começou com um ataque frontal aos "horríveis, enormes e
intoleráveis abusos da missa papal", como dizia o título dos cartazes.22
Agora, as forças da perseguição estavam lançadas contra os evangélicos
franceses. Calvino deixou o país apressado e encontrou refúgio na cidade
reformada de Basiléia, o lar de Cop, que já se encontrava lá.
Erasmo também estava vivendo em Basiléia nessa época. Velho e
doente, o maior dos humanistas havia retornado à sua cidade favorita para
passar seus últimos dias na terra. Erasmo faleceu em Basiléia, em junho de
1536, três meses depois da publicação da primeira edição das Institutas de
Calvino, na mesma cidade. Com Erasmo, morreram seus sonhos de paz e
aprendizado universais, suas esperanças de que um reavivamento das letras
21
Emanuel Strickelberger, em Calvin: A Life (Richmond: John Knox Press, 1954), p. 22, dá crédito a
esse relato.
22
O texto dos cartazes de 1534 foi traduzido por Ford L. Battles, aparecendo como “Apêndice I” em sua
edição das Institutas em 1536, pp. 339-342.
poderia iniciar uma "era de ouro" da Reforma. Logo no ano seguinte, em
1537, a Inquisição espanhola proibiu a leitura das obras de Erasmo. Alguns
anos depois, em 1542, os livros de João Calvino, dentre os quais suas
Institutas, também foram declarados como fora dos limites para os bons
cristãos, sendo cerimoniosamente queimados diante da Catedral de Notre
Dame, em Paris. Erasmo e Calvino, em Basiléia, significavam a intersecção
de duas eras. Calvino havia aprendido muito desse grande estudioso,
principalmente a estudar as Escrituras. Calvino não deixou de ser
humanista depois de transformar-se num reformador. Mas sua conversão e
imersão nas fontes bíblicas e patrísticas conduziram-no por um caminho
muito diferente daquele trilhado por Erasmo. O caminho de Calvino estava
bem mais próximo, porém mesmo assim distinto, do velho adversário de
Erasmo em Wittenberg.
Calvino não causou grande furor em Basiléia: "Fiquei ali escondido,
por assim dizer, e pouquíssimas pessoas me conheciam". Mas ele não
estava desocupado. O fruto de seu trabalho saiu das prensas do editor
Thomas Platter em março de 1536. Chamava-se, para dar o título completo:
O Ensino Básico da Religião Cristã, compreendendo quase a soma total da
piedade e do que é necessário conhecer sobre a doutrina da salvação. Um
trabalho recém publicado que muito merece ser lido por todos os que estudam a
piedade. Um prefácio ao mais cristão rei da França, oferecendo a ele este livro
como uma confissão de fé do autor, Jean Calvin de Noyon.23
"Um trabalho [ ... ] que muito merece ser lido" (Lectu dignissimum
opus) era uma publicidade modesta de um livro destinado a tornar-se o
principal documento da teologia protestante do século XVI. Diferentemente
do primeiro livro de Calvino sobre Sêneca, as Institutas tornaram-se um
bestseller quase da noite para o dia. A primeira edição, "apenas um
pequeno livreto", como Calvino certa vez a descreveu, era miúda o bastante
para ser escondida dentro do casaco ou secretamente ocultada entre os
23
0S 1, p. 1. A tradução é a de T. H. L. Parker, John Calvin: A Biography (Londres: Dent and Sons,
1975), p. 34.
pertences de alguém. Assim, vendedores ambulantes e mercadores
evangélicos levaram-na por toda a Europa.
O que justifica o impressionante sucesso das Institutas? Podemos
responder a essa pergunta em parte indicando duas funções distintas para as
quais a obra serviu. Em primeiro lugar, era um poderoso tratado para
aquele tempo. Como Calvino disse na epístola preliminar a Francisco I,
originariamente, ele não pretendera dirigir esse trabalho ao rei. A princípio,
Calvino planejara que o livro fosse um tipo de cartilha de teologia básica
para "os camponeses da França, muitos dos quais vi que tinham fome e
sede de Cristo".24
Contudo, a perseguição interveniente aos protestantes
franceses movera Calvino a apresentar o caso dos companheiros cristãos ao
rei, na esperança de que ele pudesse adotar uma atitude mais moderada.
Calvino lamentava que "a pobre e pequena igreja tenha sido devastada por
cruel carnificina ou banida para o exílio". Sua própria terra natal tornara-se
"como um inferno" para ele, conforme expressou numa carta a um amigo,
alguns anos depois. Ele tentou livrar os evangélicos franceses das
acusações de sedição e cisma - não eram sectários inclinados a derrubar a
ordem, mas cidadãos honestos que desejavam apenas restaurar a pureza do
evangelho. O que mais estava em jogo era - essa a idéia fundamental de
toda a teologia de Calvino - "Como a glória de Deus pode ser mantida a
salvo na terra [ ... ] como o reino de Cristo pode ser conservado em bom
estado entre nós".25
Ao longo de toda a carta, Calvino foi educado e
respeitoso para com o rei. Mas a oração final está repleta de todo o
estrondo de Elias: se Francisco não emendasse seus caminhos, então no
devido tempo o Senhor certamente apareceria, "avançando armado para
libertar os pobres de sua aflição e também punir seus detratores".26
Sem o
24
Institutas de 1536, p. 1; OS 1, p. 21.
25
Institutas de 1536, p. 3; OS 1, p. 23.
26
Institutas de 1536, p. 19; OS 1, p. 36.
saber, Calvino lançara a primeira saraivada na batalha de palavras que, no
fim, levaria às sangrentas guerras religiosas na França.
O propósito básico das Institutas, porém, era catequético. Desde a
época de sua conversão, Calvino fora pressionado a atuar como professor
daqueles que estavam famintos pela fé verdadeira. Ainda hoje se pode ver
uma caverna perto da cidade de Poitiers onde se diz que Calvino havia
ministrado aos necessitados de uma congregação (literalmente!)
subterrânea. Ele sabia, de primeira mão, 'a necessidade urgente de um
manual de instrução claramente escrito, que apresentasse os rudimentos de
uma teologia bíblica e levasse os jovens cristãos a uma maior compreensão
da fé. Era o tempo para tal livro. Outros reformadores haviam tentado fazer
algo parecido, mas com sucesso limitado. Melanchthon publicou pela
primeira vez Lugares Comuns em 1521; Zuínglio apresentou o Comentário
sobre a Religião Verdadeira e a Falsa em 1525. FareI havia até mesmo
escrito um Sumário de teologia evangélica em francês, publicado em 1534.
Cada um desses trabalhos tinha seus pontos fortes, mas não conseguia
suprir as necessidades que as Institutas satisfizeram.
Retomaremos à história das Institutas que cresceram, através de
muitas revisões, daquele modesto "pequeno livreto" de 1536 a um enorme
tomo e tesouro da dogmática protestante, na edição definitiva de 1559. Seis
breves capítulos constituíam a primeira edição. O capítulo 1, "Sobre a Lei",
era basicamente uma exposição dos dez mandamentos. O capítulo 2 tratava
da fé e abrangia um comentário sobre o Credo dos Apóstolos. Nesse
contexto, a doutrina da predestinação era apresentada; mas apenas numa
forma superficial e não-polêmica. O capítulo 3, sobre a oração, continha a
primeira exegese de Calvino sobre o pai-nosso. O capítulo 4 abordava os
sacramentos, com o que ele queria dizer o batismo e a ceia do Senhor. O
capítulo 5 era a refutação dos "cinco sacramentos falsos", enquanto o
capítulo 6 concentrava-se em três temas: a liberdade cristã, a política da
igreja e o governo civil. A seqüência dos tópicos é a mesma usada por
Lutero em seus catecismos, que Calvino pode ter copiado deliberadamente.
Para o trecho sobre a oração, Calvino devia bastante à discussão de Martin
Bucer acerca do pai-nosso, em Comentário dos Evangelhos (1530). No
todo, porém, Calvino apresentou mais claramente e de maneira mais
magistral do que qualquer um antes dele os elementos essenciais da
teologia protestante.
Talvez modestamente demais, Calvino disse que, quando as
Institutas foram publicadas em Basiléia, ninguém sabia que ele era o autor.
A primeira edição, no entanto, esgotou-se em apenas um ano. O tímido e
jovem erudito tomou-se cada vez mais conhecido como um ativo
proponente da Reforma. Por sua vez, isso levou ao que, depois da
conversão, foi o evento central da vida de Calvino.
No verão de 1536, Calvino, com seu irmão Antoine e sua meia-irmã
Marie, viajava de Paris para Estrasburgo, onde esperava estabelecer-se para
seu antigo desejo de descanso e estudo. Entretanto, os exércitos de
Francisco I e do Imperador Carlos V estavam envolvidos em manobras
militares que exigiram que a pequena caravana de Calvino desviasse para o
sul. Assim, chegaram à cidade de Genebra, situada nas fronteiras entre
França, Savóia e Suíça. Calvino não teve boa impressão da cidade e
planejou ficar apenas uma noite. Pouco antes, Guillaume FareI havia
levado a cidade a abraçar a Reforma; numa assembléia pública, em 25 de
maio do mesmo ano, os moradores de Genebra haviam votado
unanimemente por "viver de agora em diante de acordo com a lei do
evangelho e com a Palavra de Deus e abolir todos os abusos papais".27
Ainda assim, o verdadeiro trabalho de reforma mal havia começado.
FareI, tendo sido informado de que Calvino estava na cidade,
irrompeu em seu quarto de hotel e implorou a ele que ficasse em Genebra e
27
Citado de William Monter, Calvin's Geneva (Nova Iorque: John Wiley and Sons, 1967), p. 56.
ajudasse a completar a recém-conquistada Reforma. Calvino ficou
sinceramente chocado com a idéia e protestou dizendo não estar bem
preparado para uma tarefa assim. Ele poderia edificar melhor a igreja
estudando e escrevendo em paz. "O ponto mais alto de meus desejos", ele
escreveu mais tarde ao Cardeal Sadolet, "era aproveitar a tranqüilidade
literária, com algo como um cargo livre e respeitável."28
Dêem-me apenas
um canto isolado na biblioteca e deixem o resto do mundo prosseguir!
FareI, entretanto, não se intimidou com a pobre desculpa daquele jovem.
Com seus olhos flamejantes e sua temível barba ruiva, FareI trovejou a
maldição de Deus sobre Calvino em palavras que ele nunca poderia
esquecer:
A essa altura, FareI (Ardendo com um zelo assombroso pela proclamação do
evangelho) repentinamente uniu todos os seus esforços para manter-me ali.
Depois de ouvir que eu estava decidido a prosseguir meus próprios estudos
particulares - Quando percebeu que não chegaria a lugar algum com súplicas -
chegou a ponto de amaldiçoar-me: Que agradaria a Deus amaldiçoar meu lazer e
a tranqüilidade para meus estudos que eu estava buscando, se em tão grave
emergência eu me retirasse e me recusasse a prestar auxílio e socorro? Essa
palavra arrasou-me tanto, que desisti da viagem que havia começado.29
A partir daquele momento, o destino de Calvino estava ligado ao de
Genebra. Em suas primeiras cartas depois de seu chamado, ele se referia a
si mesmo como "leitor das Sagradas Escrituras à igreja de Genebra".
Mesmo tendo assumido diversas outras tarefas ao longo dos anos, sua
vocação básica permaneceu a de pastor e de mestre. É importante ressaltar
que Calvino nunca se sentiu à vontade em Genebra. Na primeira menção
feita a ele nos registros do conselho da cidade, Calvino é referido como
"ille Gallus - aquele francês"! Ele tornou-se cidadão de Genebra em 1559,
apenas cinco anos antes de sua morte. Até hoje, os suíços são famosos por
seu esnobismo e provincianismo, principalmente os de Genebra. Por
exemplo, L' Eglise protestante nacionale refere-se não ao corpo nacional da
28
Calvin: Theological Treatises, p. 225: "nempe ut otio literario cum honestaaliqua ingenuaque
conditione fruerer". OS 1, p. 461.
29
Battles, p. 33; CO 31, col. 26.
igreja da Suíça, a Igreja Reformada Suíça, mas sim à igreja do cantão de
Genebra. A primeira estadia de Calvino em Genebra durou menos de dois
anos. Ele realizou coisas importantes - seu primeiro catecismo e uma
confissão de fé foram adotados - mas o conflito com o conselho sobre a
disciplina adequada da igreja levou a uma crise. Em abril de 1538, Calvino
e FareI foram expulsos da cidade. Após outra breve estada em Basiléia,
Calvino foi persuadido a mudar-se para Estrasburgo, para onde havia sido
conduzido antes de ser abordado, por assim dizer, pelo inflamado FareI.
Calvino passou três anos em Estrasburgo, e sem dúvida aqueles dias
foram os mais felizes de sua vida. Foram também, talvez, os anos mais
decisivos para seu desenvolvimento como reformador e teólogo.
Observemos cinco dimensões de sua vida durante esse período crucial.
Em primeiro lugar, Calvino era um pastor. Naquela época,
Estrasburgo não pertencia à França, mas era uma cidade imperial livre do
Sacro Império Romano. Contudo, estava suficientemente perto da França
para atrair um considerável número de refugiados franceses, os quais
procuravam asilo da perseguição em sua terra natal. Calvino foi chamado
como pastor da ecclesiola Gallicana, a pequena congregação francesa, que
se reunia na igreja de S. Nicolau. Ali, Calvino celebrava o sacramento da
ceia do Senhor e ocupava-se dos vários pormenores de seu ministério
pastoral. Ele refletiu seriamente acerca do papel da adoração na igreja e
traduziu vários salmos para a métrica francesa. Assim começou o canto
congregacional dos salmos, o que se tornou parte integrante do culto
reformado francês. Um refugiado que visitou a igreja de Calvino fez a
seguinte descrição do culto:
Todos cantam, homens e mulheres, e é um belo espetáculo. Cada um tem um
livro de cânticos nas mãos. [...] Olhando para esse pequeno grupo de exilados,
chorei, não de tristeza, mas de alegria, por ouvi-los todos cantando tão
sinceramente, enquanto cantavam agradecendo a Deus por tê-los levado a um
lugar onde seu nome é glorificado.30
30
Parker, p. 69.
Calvino deve ter tido em mente cenas como essa quando declarou,
posteriormente, que "nós sabemos por experiência que o canto tem grande
poder e vigor para mover e inflamar os corações dos homens, a fim de
invocar e louvar a Deus com zelo mais veemente e ardente" .31
Em segundo lugar, Calvino era um professor. John Sturm, também
francês e erudito da Universidade de Paris, havia organizado uma escola
em Estrasburgo para a qual Calvino foi indicado como "conferencista das
Sagradas Escrituras". Ali, Calvino dava palestras três vezes por semana,
oferecendo cursos exegéticos acerca do evangelho de João e das epístolas
paulinas. Ele também pregava quatro sermões por semana a sua
congregação. O currículo da escola de Sturm, com sua forte ênfase na
literatura clássica, tornou-se um modelo para a escola de Calvino, em
Genebra. No início, pagavam a Calvino apenas um florim semanal por suas
palestras. Ele complementava sua renda dando aulas particulares,
recebendo pensionistas, advogando nas horas vagas e, o que mais deve tê-
lo feito sofrer, vendendo algo de sua preciosa biblioteca. Ele se queixava
do alto custo de vida em Estrasburgo: "Não consigo chamar de meu um
único centavo. É impressionante como o dinheiro some em despesas
adicionais" .32
Em terceiro lugar, Calvino era um escritor. Sua publicação mais
importante foi uma edição totalmente revisada das Institutas, a qual surgiu
em agosto de 1539. Era aproximadamente três vezes mais longa que a
versão de 1536. Seu propósito expresso era "preparar e treinar estudantes
de teologia para o estudo da Palavra divina, a fim de que possam ter fácil
acesso a ela e manter-se nela sem tropeçar" .33
Em 1541, publicou-se a
primeira tradução francesa das Institutas. Foi um marco no
desenvolvimento da língua francesa, comparável em seu efeito à Bíblia de
31
Esse trecho é do prefácio ao Saltério de Calvino de 1542. Cf. McNeill, History and Character, p. 148.
32
Parker, p. 69.
33
lbid., p. 72; OS 1, pp. 25-256.
Lutero em alemão ou à Versão Autorizada em inglês. Também em 1539,
Calvino publicou seu Comentário sobre Romanos, uma abordagem
magistral do que para ele, não menos do que para Lutero, era o mais
importante livro da Bíblia. Esse foi o primeiro dos comentários bíblicos de
Calvino; no final, ele publicou comentários sobre a maioria dos livros do
Antigo Testamento e acerca de cada livro do Novo Testamento, exceto
Apocalipse e 2 e 3 João.34
Devemos mencionar três breves mas brilhantes trabalhos que
Calvino escreveu durante esses anos. Um foi a resposta ao Cardeal Jacopo
Sadoleto, um prelado católico de mente reformadora que escrevera à igreja
de Genebra tentando ganhá-la de volta para Roma. A Réplica a Sadoleto de
Calvino é um tour de force literário, talvez a melhor apologia da fé
reformada escrita no século XVI. Ele também publicou um livro de liturgia,
A Forma das Orações e Hinos Eclesiásticos, que teria um efeito duradouro
sobre a adoração reformada. O Pequeno Tratado sobre a Santa Ceia foi o
primeiro esforço respeitado de Calvino por estabelecer uma posição
intermediária entre os extremos luteranos e zuinglianos acerca da
Eucaristia. Se Calvino tivesse falecido em 1541 na idade madura de 32
anos, ainda assim ele seria reverenciado hoje como um dos maiores
teólogos e um dos mais hábeis escritores entre os reformadores.
Em quarto lugar, Calvino era um estadista da igreja. Bucer e
Wolfgang Capito, reformadores de Estrasburgo, tentaram
desesperadamente emendar o cisma entre os protestantes da Alemanha e os
da Suíça. Eles também participaram de uma série de conferências com o
objetivo de voltar a unir protestantes e católicos. A unidade ainda parecia
possível em 1540, já que o Concílio de Trento não havia sido convocado
nem as selvagens guerras religiosas tinham mostrado suas baixas. Calvino
34
A mais recente edição crítica do Comentário sobre Romanos foi publicada por T. H. L. Parker,
Iohannes Calvini Commentarius in Epistolam Pauli ad Romanos (Leiden: E. J. Brill, 1981). Veja também
T. H. L. Parker, Calvin's New Testament Commentaries (Londres: SCM Press, 1971) e Calvin's Old
Testament Commentaries (Edimburgo: T. and T. Clark, 1986).
esteve envolvido em muitas dessas discussões. Ele viajou para Frankfurt,
Hagenau e Worms como um tipo de conselheiro das delegações
protestantes em tais conferências interconfessionais. Numa delas,
encontrou Philip Melanchthon, com quem iniciou uma amizade que duraria
a vida inteira. A verdadeira importância desses encontros, para Calvino, foi
a visão universal da igreja que lhe foi confirmada. Ele lamentava o caráter
fragmentado da cristandade: "Entre os maiores males de nosso século deve
ser contado o fato de que as igrejas encontram-se tão divididas entre si e de
que mal há um relacionamento humano entre nós".35
35 Calvino não estava
disposto a comprometer pontos essenciais em favor de uma paz falsa, mas
ele tentou chamar a igreja de volta à verdadeira base de sua unidade em
Jesus Cristo.
Em quinto lugar, em Estrasburgo Calvino tomou-se um marido. Sem
dúvida Calvino era um bom partido na cidade. Bucer, o casamenteiro entre
os reformadores, tentou várias vezes conseguir uma noiva adequada para o
jovem pastor. Uma das pretendentes não falava nada de francês. Visto que
Calvino não sabia alemão, concluiu-se que haveria um problema de
comunicação. Numa carta a Farel, Calvino descreveu o que ele realmente
desejava numa esposa:
Eu não sou do tipo selvagem de amante que, ao ver pela primeira vez uma bela
figura, aceita todos os defeitos de sua amada. Eis a única beleza que me seduz, se
ela é casta, nem muito atraente nem muito desdenhosa, se é econômica, se é
paciente, se há esperanças de que venha a interessar-se por minha saúde.36
Como observou uma de minhas alunas, com esse tipo de receita, foi
uma surpresa ele ter encontrado uma esposa! De fato, ele desposou uma de
suas próprias paroquianas, Idelette de Bure, a viúva de um anabatista
francês convertida à fé reformada pelo próprio Calvino. Ela foi descrita por
35
Calvino para o Arcebispo Cranmer: CO 14, coI. 313. q. Jean Cadier, "Calvin and the Union of the
Churches", in: John Calvin: A Collection of Essays, ed. G. E. Duffield (Grand Rapids: Eerdmans, 1966),
pp. 118-130.
36
Jules Bonnet, ed., Letters of John Calvin (Nova Iorque: Burt Franklin, 1972; edição original, 1858), I,
p. 141.
FareI, que realizou o casamento, como uma mulher "íntegra e honesta" e
"até bonita" .37
Gostaríamos de saber mais acerca da vida familiar no lar de Calvino;
contudo, mais uma vez, muito disso está oculto por trás do véu da
reticência. Podemos supor que o relacionamento entre Calvino e Idelette
não foi um ardoroso caso de amor como o de Abelardo e Heloísa, nem
mesmo talvez uma satisfação jovial como o de Lutero e Katie. Mas também
não foi o acordo estóico e sem relações sexuais muitas vezes retratado
pelos detratores de Calvino. Idelette deu a Calvino apenas um filho, um
menino de nome Jacques, que nasceu prematuramente e morreu quando
ainda bebê. Obtemos um vislumbre da dor de Calvino numa carta que
escreveu a seu amigo Pierre Viret: "Certamente, na morte de nosso filho
amado o Senhor afligiu-nos com uma profunda e dolorosa ferida. Mas ele é
nosso Pai: ele sabe o que é melhor para seus filhos" .38
Quando a própria
Idelette faleceu, em 1549, Calvino novamente escreveu para Viret: "Você
conhece a ternura, ou melhor, a doçura de minha alma. [...] A razão de
minha tristeza não é comum. Fui privado de minha excelente companhia na
vida, a qual, se alguma desventura tivesse ocorrido, teria sido minha
companheira voluntária não só no exílio e na aflição, mas até na morte" .39
Calvino viveu por mais 15 anos após a morte de Idelette; contudo, não
devemos imaginar que mesmo então sua vida ficou livre dos tumultos e
aborrecimentos da vida doméstica diária. Idelette deixou duas crianças de
seu primeiro casamento, a quem Calvino continuou a propiciar um cuidado
solícito, conforme prometera à esposa em seu leito de morte. Além disso,
Antonie, irmão de Calvino, e sua família - ele tinha oito filhos de duas
esposas, sendo que da primeira ele se divorciou por causa de seu adultério
com um servo - juntamente com vários outros amigos e parentes,
37
A. L. Herminjard, ed., Correspondence des Réformateurs dans les pays de langue française (Genebra e
Paris: 1866-1897), VI, p. 285.
38
lbid., VIII, p. 109.
39
CO 13, col. 230. Citado parcialmente em Stauffer, p. 45.
partilhavam da modesta moradia do reformador no número onze da Rue
des Chanoines, em Genebra. Na maior parte de sua vida, a casa de Calvino
esteve cheia de crianças pequenas. Como um dos biógrafos sabiamente
observou, "sem dúvida as mulheres protegiam ele e as crianças uns dos
outros". Ainda assim, é sensato perceber que as Institutas e os comentários
de Calvino e seus muitos tratados e sermões não foram "escritos numa torre
de marfim, mas contra um contexto tumultuado" .40
Quando o povo de Genebra implorou a Calvino que voltasse à igreja
deles, onde as coisas tinham ido de mal a pior, ele contestou. Calvino
preferia a feliz situação em Estrasburgo ao perigoso "abismo e
redemoinho" que ele havia deixado três anos antes, "aquela cruz na qual eu
tinha de morrer mil vezes a cada dia" .41
Mas não foi precisamente isso o
que Jesus prometera a seus seguidores - uma cruz? O consenso entre os
amigos de Calvino era de que ele deveria retomar. Desta vez, Bucer
levantou o tema do julgamento divino: se você se recusar a retomar seu
ministério, estará agindo como Jonas, que tentou fugir de Deus!42
Totalmente persuadido a voltar, Calvino reentrou em Genebra em 13 de
setembro de 1541. O restante de sua carreira como reformador foi
simbolizado pelos dois atos oficiais que ele realizou ao retomar. Um foi
apresentar ao conselho da cidade um plano detalhado para a ordem e o
governo da igreja. Estas Ordenanças Eclesiásticas exigiam o
estabelecimento dos quatro ofícios de pastor, doutor (professor), ancião e
diácono, que correspondiam a doutrina, educação, disciplina e serviço
social.43
O conselho aprovou o plano de Calvino, mas ele passou o resto de
sua carreira tentando, nunca com sucesso absoluto, assegurar sua execução.
40
T. H. L. Parker, Calvin: A Portrait (Londres: SCM, 1954), p. 72.
41
Herminjard, VI, pp. 199, 325-326.
42
Assim Beza relatou em seu "Life of Calvin". Tracts and Treatises, I, p. lxxv.
43
Karl Holl, Johannes Calvin (Tübingen: J. C. B. Mohr, 1909), p. 12: "Wenn Calvin die vier Aemter der
Pastoren, Lehrer, Aeltesten, Diakonen aus dem Neuen Testament übernahm, so fand er in ihnen zugleich
die Frunktionen der Kirche ausgedrückt, die er für konstitutiv hielt: Lehre, Zucht, Jugendunterricht und
soziale Fürsorge".
O outro ato de Calvino também foi de importância decisiva. No
primeiro domingo após seu retorno, ele subiu ao púlpito da Catedral de São
Pedro. A grande catedral gótica estava abarrotada de genebreses curiosos,
que esperavam ouvir um Calvino exultante açoitando seus oponentes, os
quais o haviam tirado da cidade, e lançando um inflamado sermão do tipo
"eu-os-avisei" à assembléia inteira. Numa carta a Farel, Calvino contou o
que fez: "Depois de um prefácio, continuei com a exposição de onde havia
parado - com o que mostrei que havia interrompido meu ofício de pregador
durante algum tempo, e não que tinha desistido dele inteiramente".44
Nada
poderia ter sido menos impressivo ou mais eficaz. Calvino simplesmente
começou de onde tinha parado três anos antes, no mesmo capítulo e
versículo do livro da Bíblia (não sabemos qual era, nem isso importa) que
estava pregando. Dessa forma, Calvino demonstrou que ele pretendia que
sua vida e sua teologia não fossem um recurso de sua própria criação, mas
um testemunho responsável da Palavra de Deus.
44
CO 3, p. xxxiii.

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  • 1. 5 GLÓRIA A DEUS João Calvino Professor: Qual é o principal objetivo da vida humana? Estudante: É conhecer a Deus Professor: Porque você diz isto? Estudante: Porque ele nos criou e nos colocou na terra para ser glorificado em nós. E, certamente, é correto que dediquemos nossa vida à sua glória, já que ele é o princípio dela. Catecismo de Genebra, 1541.1 A Crise da Teologia Reformada Em 1921, Karl Barth deixou um pastorado campesino na Suíça para tornar-se professor de teologia reformada na Universidade de Göttingen, na Alemanha. Uma das primeiras tarefas de Barth foi preparar palestras acerca da teologia dos reformadores. Em junho de 1922, ele escreveu a seu amigo Eduardo Thurneysen sobre suas lutas com Calvino: Calvino é uma catarata, uma floresta primitiva, um poder demoníaco, algo vindo diretamente do Himalaia, absolutamente chinês, estranho, mitológico; perco completamente o meio, as ventosas, mesmo para assimilar este fenômeno, sem falar para apresenta-lo satisfatoriamente. O que recebo é apenas um pequeno e tênue jorro e o que posso dar em retorno, então, é apenas uma porção ainda menor desse pequeno jorro. 1 Traduzido em Thomas Torrence, The School of Faith (Nova Iorque; Harper and Bros., 1959), pp. 5-6. Outra tradução é dada em Calvin: Theological Treatises, ed. J.K.S. Reid (Londres, SCM Press, 1954), pp. 88-139.
  • 2. Eu poderia feliz e proveitosamente assentar-me e passar o resto de minha vida somente com Calvino.2 Barth não podia deixar Calvino! Lutava com ele dia e noite. “Mais de uma vez o que eu apresentava às 7 horas não estava pronto antes das 3 ou 5 horas”. Em certa ocasião, ele até mesmo desmarcou uma aula porque não estava completamente preparado. Dessas meditações emergiu uma verdadeira renascença no estudo de Calvino (no qual Peter Barth, irmão de Karl, desempenhou papel importante) e uma nova avaliação da pertinência de Calvino para nossos tempos perturbados. Calvino foi um reformador da segunda geração. Quando nasceu, na França setentrional, em 1509, Lutero já estava dando conferências na Universidade de Erfurt e Zuínglio estava-se ocupando de suas tarefas pastorais em Glarus. Na Inglaterra, no mesmo ano, o Rei Henrique VII morria, assistido em seu leito de morte por seu filho de 18 anos, o robusto e recém-casado “Harry”, que em breve se tornaria o Rei Henrique VIII. No trono papal, em Roma, estava Júlio II, conhecido como o “papa guerreiro”, devido a seu hábito de liderar seus próprios soldados nas batalhas – o que impeliu Erasmo a perguntar se ele não era mais o sucessor de Júlio César do que de Jesus Cristo! Logo ele promulgaria uma indulgência plenária para a reconstrução da Catedral de São Pedro. Quando Calvino tornou-se protestante, no início da década de 30, herdou uma tradição e uma teologia já bem definidas por quase duas décadas de controvérsia. Quando o evangelho de Lutero veio a público pela primeira vez (digamos, com seus três tratados de 1520), ele estava confiante de que seria bem-sucedido. Logo, acreditava ele, o papado cairia, o imperador convocaria um verdadeiro conselho reformador, os judeus e os turcos seriam convertidos. Cristo retornaria e o diabo seria derrotado para sempre! 2 Karl Barth, Revolutionary Theology in the Making, trad. Por James D. Smart (Richmont: John Knox Press, 1964), p. 101.
  • 3. Até o final da década, porém, o otimismo apocalíptico de Lutero chegara perto do desespero. Ele encontrava-se excomungado pelo papa e banido pelo imperador, que estava se preparando para entrar em guerra contra os príncipes protestantes. Os judeus não haviam demonstrado mais interesse pelas tentativas de Lutero de evangeliza-los do que tiveram pelos outros incontáveis esforços através dos séculos. Os turcos, longe de sucumbir ao novo evangelho, lutavam uma jihad santa contra toda a Europa. Já em 1525, eles tinham avançado até os portões de Viena. Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos. Era a primavera da esperança; era o inverno do desespero. Íamos todos direto para o céu; íamos todos direto para o outro lado.3 Assim deve ter parecido a muitos dos cristãos sérios que seguiram o curso dos eventos desde a Dieta de Worms, em 1521(“aqui permanço”), até a Dieta de Speyer (onde o termo protestante foi cunhado), em 1529. Ainda mais instável que as ameaças externas era o doloroso desenredar interno da Reforma. Muitos dos que se haviam juntado a Lutero em suas primeiras batalhas agora desertavam do “papa de Wittenberg”, como Thomas Müntzer o chamava. Os humanistas tinham feito do nome de Lutero uma palavra familiar, ao imprimir e distribuir suas Noventa e Cinco Teses de um extremo a outro da Europa. Entretanto, a maioria deles, como Erasmo, não estava fundamentalmente de acordo com os interesses mais profundos de Lutero. Eles não o seguiriam até o cisma. Os espiritualistas, anabatistas e sacramentalistas, todos estes Lutero apelidou de Schwärmer, porque soavam como um confuso enxame de abelhas zumbindo ao redor de uma colméia. O desacordo dos zuinglianos com os luteranos sobre a Eucaristia aumentou, ao invés de diminuir, depois do Colóquio de Marburgo. Todos, claro, recorriam à Bíblia. Kasper Schwenckfeld, um dos reformadores espirituais, observou que, com base na Bíblia, “os papistas 3 Charles Dickens, A Tale of Two Cities (Nova Iorque: Merrill and Baker, 1962), p. 1.
  • 4. amaldiçoam os luteranos, os luteranos amaldiçoam os zuinglianos, os zuinglianos amaldiçoam os anabatistas e os anabatistas amaldiçoam todos os outros”. Nesse exato momento, com Zuínglio falecido e Erasmo morrendo, com Lutero aquiescente (se não quieto!), a igreja romana ressurgindo, a reforma radical fragmentada, e, logo ainda mais desacreditada pelo espetáculo sangrento de Münster, João Calvino emergia como líder de um novo movimento e reformulador de uma nova teologia. Karl Holl, famoso estudioso de Lutero, certa vez referiu-se a Calvino como o mais famoso discípulo de Lutero. Os dois reformadores nunca se encontraram pessoalmente. Ainda assim, Lutero elogiou alguns dos primeiros escritos de Calvino que lhe haviam sido enviados. Calvino, por sua vez, chamou Lutero de seu “pai muito respeitável” e posteriormente declarou: “Nós o consideramos um extraordinário apóstolo de Cristo, por meio de cujo trabalho e ministério, acima de tudo, a pureza do evangelho foi restaurada em nossa época”.4 Ao contrário de Zuínglio, Calvino nunca declarou ser teologicamente independente de Lutero. Mesmo assim, não foi um simples imitador de Lutero. A grande realização de Calvino foi tomar os conceitos clássicos da Reforma (sola gratia, sola fide, sola scriptura) e dar-lhes uma exposição clara e sistemática, que nem Lutero nem Zuínglio jamais fizeram, adaptando-os ao contexto civil de Genebra. Dessa cidade, tais conceitos assumiram vida própria e desenvolveram-se numa nova teologia internacional, estendendo-se da Polônia e da Hungria, no Oriente, para os Países Baixos, a Escócia, a Inglaterra (puritanismo) e, por fim, para a Nova Inglaterra, no Ocidente. Por essa razão, o historiador francês E. G. Leonard intitulou o último capítulo de sua History of Protestantism de “Calvino: o Fundador de uma Civilização”. 4 CO, 6, col. 250. Para esta citação, sigo a tradução de B. A. Gerrish, “John Calvin on Luther”, in: Interpreters of Luther, Jaroslav Pelikan, ed. (Filadélfia: Fortress Press, 1968), p. 79.
  • 5. O Homem por Trás do Mito Poucas pessoas na história do cristianismo têm sido tão supremamente estimadas ou tão mesquinhamente desprezadas quanto João Calvino. A maioria dos cristãos, dentre a qual grande parte dos protestantes, conhece apenas dois aspectos a respeito dele: acreditava na predestinação e ordenou que Serveto fosse queimado vivo. Desses dois fatos, ambos verdadeiros, emerge a caricatura usual de Calvino como o grande inquisidor do protestantismo, o tirano cruel de Genebra, uma figura rabugenta, rancorosa e completamente desumana. Essa imagem distorcida origina-se em parte da própria época de Calvino, na qual não foi de maneira nenhuma universalmente apreciado. Por exemplo, no ano de 1551, quando os cônegos da Catedral de Noyon, cidade natal de Calvino, receberam a notícia da morte do reformador, comemoraram e deram graças a Deus por tirar aquele famoso herege de seu meio. A alegria durou pouco, entretanto, quando descobriram que os boatos acerca de sua morte haviam sido prematuros. Ainda teriam que suportar Calvino por mais treze anos! Em 1577, Jerome Bolsec, ex-protestante que tinha retornado à Igreja Romana, publicou um ataque grosseiro ao caráter de Calvino. Bolsec retratou Calvino não apenas como arrogante e mal humorado, o que de fato ele pode ter sido, mas também como um bêbado, adúltero e homossexual, o que ele com certeza não era. Num óbvio golpe baixo, Bolsec também afirmou que a doença crônica de Calvino era castigo de Deus; o fato de “seu corpo inteiro estar sendo comido por piolhos e vermes” era a punição divina de sua heresia. Os desprezadores modernos de Calvino não foram mais gentis. O liberalismo do século XIX viu Calvino como “o grande fantasma negro, uma pessoa glacial, sombria, insensível, precipitada. [...] nada nele fala ao coração”.5 Para muitos 5 Citado em Richard Stauffer, The Humanity of John Calvin, trad. Por George A. Shriver (Nashville: Abingdon Press, 1971) p. 20. Quanto à natureza espúria das alegações de Bolsec, veja Frank Pfeilschifter, Das Calvinbild bei Bolsec (Augsburg: F D L Berlag, 1983), pp. 123-177.
  • 6. cristãos contemporâneos, Calvino é um esqueleto embaraçoso que preferiam manter cuidadosamente trancado nos arquivos históricos. Contaram-me que, em certa ocasião, um desses herdeiros desencantados da Reforma colocou-se diante da famosa estátua de Calvino em Genebra e começou a atirar ovos naquela aparência severa e com ar de desprezo. No outro extremo da calvinofobia está a postura igualmente preconceituosa da calvinolatria. Em 1556, o reformador escocês John Knox descreveu a Genebra de Calvino como “a mais perfeita escola de Cristo que jamais houve na terra desde a época dos apóstolos”.6 Outros chegaram de retratar Calvino não apenas como o maior professor de doutrina cristã desde Paulo, mas também com um guia quase infalível em cada aspecto da diligência humana, desde a arte e a arquitetura até a política e a economia. Sem dúvida, a mais notável tentativa de apresentar um “Calvino sem protuberâncias” é a biografia clássica feita por Emile Doumergue, publica em sete fólios por volta da virada do século. Doumergue produziu o que certamente permanecerá como o estudo mais completo e detalhado da vida de Calvino já escrito. Mas, a despeito das virtudes desse impressionante trabalho, ele é essencialmente um exercício em hagiografia. O Calvino de Doumergue é bom demais para ser verdadeiro, assim como o Calvino de Bolsec é demoníaco demais para ser humano. Nós não servimos à verdade retratando Calvino como angelicamente bom ou como diabolicamente mau. Ele foi, como Lutero declarou que todos os cristãos são, ao mesmo tempo santo e pecador. Diferentemente de Lutero, pode-se dizer que Calvino nasceu na igreja. Gérard Cauvin, seu pai, era o assistente administrativo do bispo de Noyon. Diz-se que sua mãe, Jeanne, filha de um dono de hospedaria, era mulher muito bonita e piedosa. Jeanne Cauvin morreu quando Jean, seu quarto filho, tinha apenas 5 ou 6 anos de idade. Apesar de seu pai ter-se 6 John McNeil, The History and Character of Calvinism (Nova Iorque: Oxford University Press, 1954), p. 178.
  • 7. casado logo depois, o jovem Calvino deve ter sentido a falta da mãe de forma muito profunda. Sem dúvida isso contribuiu para seu senso de ansiedade íntima e inquietação.7 Apesar disso, Calvino conheceu algo do fervor da vida social a partir de seus contatos com a família aristocrática Montmor, com quem viveu durante vários anos. Ele dedicou seu primeiro livro a um membro dessa família, declarando: “Devo a você tudo o que sou e tenho. [...] Quando menino, fui criado em sua casa e iniciado em meus estudos com você. Portanto, devo à sua nobre família eu primeiro aprendizado na vida e nas letras”.8 Embora Calvino certa vez tenha descrito a si mesmo como “meramente um homem dentre o povo”, movia-se com facilidade entre os altos escalões da sociedade. Era um aristocrata de coração, se não de linhagem. Ele nunca esqueceu tal fato acerca de si mesmo, nem deixava que os outros esquecessem disso. Certa vez, nas ruas de Genebra, um refugiado agradecido, mas por demais entusiasmado, chamou-o de “irmão Calvino”, apenas para ser informado de que o título correto era “Monsieur Calvino”. Com a idade de 12 anos, Calvino recebeu um benefício do bispo de Noyon, graças à influência prudente de seu pai. A manutenção de um benefício requeria a entrada nas ordens menores – João tornou-se um clérigo e recebeu a tonsura – e o cumprimento de tarefas eclesiásticas. Na época da Reforma, o sistema de outorgar benefícios a parentes e amigos era um dos abusos mais comuns na igreja. Um sacerdote semi-analfabeto seria usualmente contratado para cumprir as tarefas reais do ofício (que, no caso de Calvino, envolvia a responsabilidade por um dos altares da catedral) por uma soma insignificante, enquanto o incumbente recebia a maior parte do beneficio. De fato, a renda desse benefício era um tipo de bolsa de estudo 7 Esse argumento foi impingido por Suzanne Selinger em seu perspicaz estudo, Calvin Against Himself (Hamden, Conn.: Anchon Books, 1984), pp. 85-88. Ela vai longe demais, porém, ao derivar desse evento traumático o suposto preconceito de Calvino contra a sexualidade e sua pretensa frieza em relação à esposa. 8 Calvin’s Commentary on Seneca’s De Clementia, eds. Ford L. Battles e André M. Hugo (Leiden: E. J. Brill, 1969), pp. 12-13.
  • 8. pela qual o jovem Calvino, já um estudante precoce, foi capaz de continuar seus estudos. Em agosto de 1523, João Calvino (da forma latinizada de seu nome, Calvinus) chegou a Paris para começar seu aprendizado formal na mais famosa universidade da Europa. No mesmo mês, um monge agostiniano chamado Jean Vallière foi queimado vivo por pertencer ao “partido herético de Lutero”. Ele foi o primeiro mártir da Reforma na França. Não sabemos que impressão esse evento causou em Calvino, então com apenas 14 anos de idade. Doze anos mais tarde, ele recuaria horrorizado ao queimarem vivo seu amigo Etienne de la Forge, um piedoso protestante com quem vivera durante algum tempo. De fato, Calvino publicou a primeira edição de suas Institutas em parte, como disse, “para vingar dos imerecidos insultos meus irmãos, cuja morte foi preciosa aos olhos do Senhor”.9 Que transformou o jovem e brilhante estudante de Noyon no eloqüente apologista da fé? De 1523 a 1541, quando definitivamente se instalou em Genebra, muitas forças estavam agindo para fazer de Calvino o reformador. Podemos observar sua vida durante esses anos turbulentos sob o aspecto de sua preparação, conversão e vocação. A Preparação de Calvino Calvino matriculou-se primeiro no Collège de la Marche, onde aperfeiçoou seu conhecimento de gramática e sintaxe latina. Ali, por algum tempo, estudou com Mathurin Cordier, um dos maiores mestres de latim de sua época, cuja Grammatica Latina ainda estava em uso no século XIX. Anos depois, Calvino lembrava esse venerável professor e dedicava a ele seu comentário a respeito da 1 Tessalonicenses: Quando eu era criança e tinha experimentado só os rudimentos do latim, meu pai mandou-me a Paris. Lá, a bondade de Deus deu-me você como preceptor durante algum tempo, para ensinar-me a verdadeira maneira de aprender, a fim de que eu 9 John Calvin, Commentary on the Book of Psalms, trad. Por James Anderson (Edimburgo: Calvin Translation Society, 1845), I, p. xlii.
  • 9. pudesse continuar com maior proveito [...] Fui tão auxiliado por você, que, seja qual for o progresso que eu tenha feito desde então, atribuo-lhe com satisfação.10 Posteriormente, Cordier foi chamado por Calvino para ensinar latim na academia de Genebra. Ele permaneceu nesse cargo até morrer (mesmo ano de Calvino), aos 85 anos. Calvino logo transferiu-se para o Collège de Montaigu, famosa escola conhecida pela disciplina severa e pela péssima comida. Erasmo, que ali estudou poucos anos antes de Calvino, queixou-se mais tarde dos ovos estragados que ele era obrigado a comer no refeitório. Os problemas crônicos de Calvino de indigestão e insônia provavelmente derivaram da alimentação severa e de sua tendência de estudar até altas horas da noite em Montaigu. Uma lenda posterior conta que, durante esses anos, seus colegas apelidaram Calvino de “o caso acusativo”. Embora isso não seja verdade, Beza, em sua respeitosa biografia, reconheceu que o jovem erudito era realmente “um rigoroso censor de tudo o que era vicioso em seus companheiros”.11 Enquanto seus colegas estavam brincando nas ruas ou iam a festas desregradas, Calvino ocupava-se das minúcias da lógica nominalista ou das quaestiones da teologia escolástica. Como era um estudante compulsivo, Calvino saiu-se extremamente bem em seus estudos, mas também adquiriu aversão pelo método escolástico de fazer teologia. Ele estava começando a mover-se nos círculos do humanismo francês e pode ter compartilhado a opinião de Erasmo, que difamou os mestres de Paris chamando-os de “pseudoteólogos [...] cujos cérebros estão podres, cuja linguagem é bárbara, cujo intelecto está entorpecido, cujo ensino é uma cama de espinhos, cujas maneiras são rudes, cujas vidas são hipócritas, cujas conversas estão cheias de veneno e cujos corações são tão negros como a tinta”.12 Calvino nunca expressou-se 10 CO 13, cols. 525-526; CNTC, 8, p. 331. 11 Calvin’s Tract and Treatises, trad. Por Henry Beveridge (Grand Rapids: Eerdmans, 1958), I, p. lx. 12 EE 1, pp. 87-88 (nº 64); CWE1, p. 138.
  • 10. dessa maneira, mas descreveu um curso de teologia ministrado a jovens teólogos como “mera sofística, e sofística tão destorcida, revirada, tortuosa e enigmática, que a teologia escolástica poderia muito bem ser descrita como um tipo de magia esotérica. Quanto mais densa e escuridão em que alguém ocultava um assunto e quanto mais enigmaticamente envolvia a si mesmo e aos outros em raciocínios absurdos, maior sua fama como perspicaz e culto”.13 Em 1528, Calvino deixou tudo isso para trás quando, por ordem de seu pai, foi de Paris a Orléans para dedicar-se a uma nova disciplina, o estudo de Direito. Gérard Cauvin não gozava mais das boas graças do capítulo da catedral de Noyon e, enfrentando a velhice, também percebeu que seu brilhante filho teria melhores possibilidades de obter maior renda como advogado do que como servo da igreja. De qualquer forma, Calvino concordou com a vontade de seu pai. O contraste com Lutero é surpreendente: Lutero, em desafio ao pai, perdeu uma carreira no Direito para tornar-se monge; Calvino, em obediência ao pai, deixou o estudo da teologia a fim de tornar-se advogado. Calvino lançou-se entusiasticamente ao estudo de Direito, primeiro em Orléans, depois em Bourges. Logo estava preparado o suficiente para dar palestras e substituir os professores nas aulas quando faltavam, como um tipo de “monitor”. Para Calvino, o estudo de direito teve duas influências importantes em seu trabalho futuro: primeira, providenciou uma base completa nos assuntos práticos que seria de enorme benefício em seus esforços para dar nova forma às instituições de Genebra; segunda, abriu seus olhos para o mundo da antiguidade clássica e para o estudo de textos antigos. Enquanto estava em Bourges, ele também se dedicou ao estudo do grego, sendo tutelado por Melchior Wolmar, um erudito da Alemanha. 13 Tracts and Treatises, I, p. 40.
  • 11. Quando seu pai morreu, em 1531, Calvino sentiu-se livre para deixar o estudo de Direito por sua verdadeira paixão, a literatura clássica. Ele mudou-se de volta para Paris e, em 1532, publicou seu primeiro livro, uma edição do tratado de Sêneca intitulado Sobre a Clemência, complementada com um aparato textual e um longo comentário. Era uma obra-prima de erudição, e ele esperava que isso o firmasse como um erudito notável nos círculos humanistas. |No prefácio, Calvino achou necessário desculpar-se pelo fato de que, mesmo tendo somente 23 anos, aquele era apenas seu primeiro livro: “Eu preferia não fazer nascer absolutamente nenhuma ‘criança’ a provocar abortos, como muitas vezes acontece”.14 Comercialmente falando, porém, esse livro foi um fracasso total! Teve apenas uma edição, e o próprio Calvino teve de pagá-la. No entanto, foi uma tentativa impressionante, que abriu caminho para seus amplos trabalhos literários. A Conversão de Calvino A transição de Calvino de humanista a reformador foi marcada pelo que ele certa vez escreveu como uma “conversão súbita” (conversio subita). Contudo, tem sido notoriamente difícil para os estudiosos de Calvino concordar acerca de uma data provável para essa mudança. As suposições vão de 1527 a 1534. Há diversos motivos para essa dificuldade. Em primeiro lugar, Calvino era reticente quanto a si mesmo. Em parte, isso acontecia por causa de sua tendência natural à timidez e à introspecção e, em parte, porque levou a sério a admoestação de Paulo: “Porque não pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor ...” (2 Co 4.5). A glória pertencia a Deus, não a João Calvino. Além disso, embora a conversão possa ter sido “súbita”, ele preparou-se para ela com um período de lutas, inquietações e dúvidas. 14 Battles and Hugo, p. 4.
  • 12. Calvino, não menos que Lutero e Zuínglio, teve uma formação católica tradicional e deve ter conhecido a sensação de ansiedade e opressão que caracterizava a cultura da baixa Idade Média. Certa vez, quando ainda bem novo, fez uma peregrinação com sua mãe para a Abadia de Ourscamp, onde foi-lhe permitido beijar uma relíquia sagrada, o dedo de S. Ana. Mais tarde, Calvino apresentou um quadro vívido do tipo de pregação que ele com freqüência deve ter ouvido, com o propósito, ao que parece, de produzir uma espiritualidade de culpa: Diziam-nos que éramos pecadores miseráveis dependentes da sua misericórdia; a reconciliação viria mediante retidão das obras. O método para obter tua misericórdia era a compensação dos delitos. Então, porque eras juiz rigoroso e vingador severo da iniqüidade, mostravam quão terrível tua presença deve ser. Daí, eles nos mandavam buscar refúgio primeiro nos santos, para que por essa intercessão pudesses ser mais facilmente solicitado e propício a nós.15 Como Calvino teve seu primeiro contato com as idéias evangélicas, isso não podemos ter certeza. Alguns escritos de Lutero foram traduzidos para o francês logo no início da década de 20, e Calvino pode muito bem os ter lido. Ele também tinha íntima ligação com o círculo dos humanistas evangélicos franceses, inspirados pelo grande erudito Jacques Lefèvre d’Etaples. Alguns desses, e até seu futuro colaborador Guillaume Farel, haviam tentado uma reforma experimental da igreja na diocese de Meaux, perto de Paris, até serem impedidos pelas forças mais poderosas da ortodoxia. Beza e Colladon, os primeiros biógrafos de Calvino, atribuíram um papel significativo em sua conversão a seu primo Robert Olivétan, em cujo Novo Testamento Francês (1535) Calvino escreveu um prefácio intitulado “A todos os que amam a Jesus Cristo e a seu evangelho”. Esse foi seu primeiro trabalho publicado como protestante. De um fato podemos estar certos: Calvino não abraçou o novo evangelho de maneira rápida ou fácil. 15 Tracts and Treatises, I, p. 62; OS 1, PP. 484-485.
  • 13. Contrariado com a novidade, eu ouvia com muita má vontade e, no início, confesso, resisti com energia e irritação; porque (tal é a firmeza ou descaramento com os quais é natural aos homens persistir no caminho que outrora tomaram) foi com a maior dificuldade que fui induzido a confessar que, por toda minha vida, eu estivera na ignorância e no erro.16 Em 1555, 20 anos depois do ocorrido, Calvino recordou sua conversão e escreveu sobre ela no prefácio de seu Comentário sobre os Salmos. Visto ser a mais explícita referência de Calvino a esse fato crucial, vamos citá-la aqui por inteiro: Minha mente, que a despeito da minha juventude, estivera por demais empedernida em tais assuntos, agora estava preparada para uma atenção séria. Por uma súbita conversão, Deus transformou-a e trouxe-a à docilidade. Tendo, portanto, recebido um pouco de experiência e conhecimento da verdadeira piedade, fui repentinamente inflamado com tamanho desejo de prosseguir, que, mesmo abandonando os outros estudos completamente, ainda assim dediquei-me a eles mais negligentemente. Mas fiquei completamente maravilhado porque, antes que um ano se passasse, todos os que ansiavam pela pura doutrina vinham vez após outra até mim para aprendê-la. Mesmo eu tendo mal começado a estudá-la. De minha parte, tendo uma natureza um tanto indelicada e retraída, sempre desejava paz e tranqüilidade. Então comecei a procurar algum esconderijo e uma forma de afastar-me das pessoas. Mas, longe de atingirem o desejo de meu coração, todos os retiros e lugares de escape tornaram-se como que escolas públicas para mim. Em resumo, apesar de sempre acalentar o objetivo de viver na privacidade, incógnito, Deus levou-me de tal forma que me fez mudar de tais maneiras diversas, que nunca me deixou em paz em lugar algum, até que, a despeito de minha disposição natural, colocou-me no centro das atenções. Deixando minha França natal, parti para a Alemanha com o expresso propósito de poder viver em paz em algum canto desconhecido, como sempre desejei.17 Três importantes tendências da piedade e da personalidade de Calvino são evidentes nessa recordação reveladora: Em primeiro lugar, via sua conversão como o resultado da iniciativa divina: “Deus mudou meu coração”. Talvez fosse essa a verdadeira intenção por trás da sua descrição da mudança como “repentina” – não tendo uma ocorrência rápida como um relâmpago (embora possa ter sido assim, também), quando uma sensação 16 Tracts and Treatises, I, p. 62; OS 1, p. 485. 17 Essa é uma tradução feita por Ford L. Battles, impressa na introdução de sua tradução da Instituição da Religião Cristã de 1536 – Institution of the Christian Religion (Atlanta: John Knox Press, 1975), pp. xxiii-xxiv. A tradução de Battles foi reimpressa por Eerdmans (1986) como Institutes of the Christian Religion: 1536 Edition. AS citações subseqüentes serão dessa última impressão.
  • 14. de ser completamente dominado pela graça de Deus. Calvino não tinha ilusões de que poderia ter conseguido uma relação adequada com Deus sem uma prévia “mudança” da parte de Deus. “Eu permanecia tão obstinadamente entregue às superstições do papado, que teria sido muito difícil arrancar-me de tão profundo lamaçal”, ele observou.18 “Eu não fiz nada, a Palavra fez tudo”. A experiência de Calvino ecoava a de Lutero. Aqui, também, estão as raízes experimentais da tão discutida doutrina da predestinação. Como veremos, a visão de Calvino sobre a eleição só pode ser entendida no contexto de uma apropriação particular da salvação por meio de Jesus Cristo. Um segundo tema no enfoque de Calvino à fé surge do comentário de que Deus sujeitou seu coração à docilidade. Essa palavra, docilitas, poderia também ser traduzida por educabilidade. Há um sentido em que Calvino aspirava a ser nada mais do que um discípulo fiel de Jesus Cristo, discípulo em seu significado etimológico (do latim disco, aprender) de aprendiz, alguém que é capaz de ser ensinado. Esse tema ressoa ao longo de seus escritos sobre a vida cristã. Para Calvino, a verdadeira piedade não consistia num medo servil de um Deus todo-poderoso, mas sim “num sentimento sincero que ama a Deus como Pai, tanto quanto o reverencia como Senhor”. A evidência de tal piedade era precisamente uma disposição para tornar-se dócil, educável diante do verdadeiro Deus. “Quem quer que tenha sido dotado dessa piedade não ousa modelar de sua própria imprudência qualquer deus para si mesmo. Antes, busca para si mesmo o conhecimento do Deus verdadeiro, e concebe-o apenas como ele se mostra e declara ser”.19 Significativamente, essa definição deriva do Catecismo apresentado por Calvino em 1537, um documento destinado à instrução de 18 CO 31, col. 22: “Ad primo quidem, quum superstionibus papatus, magis pertinaciter addictus essem, quam ut facile esset e tam profundo luto me extrahi, animum meum, qui pro aetate nimis obduruerat subita conversione and docilitatem subegit”. Em seu comentário sobre De Clementia, de Sêneca, Calvino observou que “subita significa não apenas ‘súbito’, mas também ‘não-premeditado’”. Cf. Battles e Hugo, Commentary on De Clementia, pp. 56s. 19 OS 1, p. 379. Cf. Instruction in Faith (Filadelfia: Westminster Press, 1949), p. 19.
  • 15. crianças na fé. Mais tarde, em seu Comentário de Atos (18.22), ele disse que não pode haver nenhuma pietas sem uma instrução verdadeira, como o nome discípulos indica. “A religião verdadeira e a adoração de Deus”, ele dizia, “provém da fé, de modo que ninguém serve devidamente a Deus senão aquele que foi educado em sua escola”.20 Ao longo de toda a descrição de sua conversão, Calvino declarou sua natureza tímida e retraída, o desejo de viver em reclusão para estudos, “em paz em algum canto desconhecido”. Não compreenderemos a pessoa de Calvino se não levarmos em conta essa reticência, essa relutância genuína em entrar na frente de batalha. Nesse sentido, ele diferia dos outros dois grandes reformadores que já examinamos. Lutero foi feito para o papel, um verdadeiro vulcão de personalidade explodindo em Worms: “Aqui permaneço!”. Zuínglio também foi uma pessoa de ação; afinal, ele morreu em batalha brandindo a espada de dois gumes! Mas Calvino era diferente. Tímido a ponto de ser insociável, ele não se sairia bem numa conversa fiada numa festa moderna. Ele teve que ser puxado, esperneando e gritando, por assim dizer, para as fileiras dos reformadores. Contudo, o mesmo Deus que submetera seu coração à educabilidade também firmou seus nervos para as importantíssimas tarefas que estavam diante dele. A Vocação de Calvino Em 1533, no Dia de Todos os Santos, exatamente 16 anos depois que Lutero colocou as famosas teses contra as indulgências na porta da igreja de Wittenberg, Nicolas Cop, amigo de Calvino e reitor da Universidade de Paris, fez um discurso numa assembléia que chocou os ouvintes. Mesmo não sendo o que chamaríamos de um sermão evangélico caloroso, tinha conteúdo evangélico suficiente para insultar os defensores da ortodoxia católica. No Dia de Todos os Santos, Cop não louvou aos santos; antes, 20 CO 32, col. 249; CNTC 7, p. 142. Veja Ford L. Battles, The Piety of John Calvin (Grand Rapids: Baker Book House, 1978), pp. 13-26.
  • 16. proclamou a Cristo como o único mediador com Deus. Cop foi obrigado a fugir para continuar vivo. Calvino também estava envolvido nesse fato. De acordo com uma antiga lenda, ele escapou de Paris no momento exato, com seus amigos baixando-o de uma janela, com lençóis, enquanto a polícia batia à porta - sombras da fuga apressada de Paulo de Damasco, num cesto!21 Os escritos de Calvino foram confiscados; daí em diante, ele tornou-se persona non grata em Paris. Por volta de um ano depois do discurso de Cop, alguns dos protestantes mais maduros de Paris decidiram fazer uma demonstração surpreendente e radical de sua fé. Um ataque ardoroso à missa e seus adornos - "o toque dos sinos, as unções, os cânticos, os cerimoniais, as velas, os incensos, os véus e tais espécies de bufonarias" - foi imprimido num cartaz afixado por toda a cidade. Um deles até apareceu, misteriosamente, na porta do quarto do Rei Francisco I. Na Alemanha, Lutero havia lançado a Reforma atacando as indulgências, um aspecto central do sacramento da penitência no final da Idade Média. A reforma francesa começou com um ataque frontal aos "horríveis, enormes e intoleráveis abusos da missa papal", como dizia o título dos cartazes.22 Agora, as forças da perseguição estavam lançadas contra os evangélicos franceses. Calvino deixou o país apressado e encontrou refúgio na cidade reformada de Basiléia, o lar de Cop, que já se encontrava lá. Erasmo também estava vivendo em Basiléia nessa época. Velho e doente, o maior dos humanistas havia retornado à sua cidade favorita para passar seus últimos dias na terra. Erasmo faleceu em Basiléia, em junho de 1536, três meses depois da publicação da primeira edição das Institutas de Calvino, na mesma cidade. Com Erasmo, morreram seus sonhos de paz e aprendizado universais, suas esperanças de que um reavivamento das letras 21 Emanuel Strickelberger, em Calvin: A Life (Richmond: John Knox Press, 1954), p. 22, dá crédito a esse relato. 22 O texto dos cartazes de 1534 foi traduzido por Ford L. Battles, aparecendo como “Apêndice I” em sua edição das Institutas em 1536, pp. 339-342.
  • 17. poderia iniciar uma "era de ouro" da Reforma. Logo no ano seguinte, em 1537, a Inquisição espanhola proibiu a leitura das obras de Erasmo. Alguns anos depois, em 1542, os livros de João Calvino, dentre os quais suas Institutas, também foram declarados como fora dos limites para os bons cristãos, sendo cerimoniosamente queimados diante da Catedral de Notre Dame, em Paris. Erasmo e Calvino, em Basiléia, significavam a intersecção de duas eras. Calvino havia aprendido muito desse grande estudioso, principalmente a estudar as Escrituras. Calvino não deixou de ser humanista depois de transformar-se num reformador. Mas sua conversão e imersão nas fontes bíblicas e patrísticas conduziram-no por um caminho muito diferente daquele trilhado por Erasmo. O caminho de Calvino estava bem mais próximo, porém mesmo assim distinto, do velho adversário de Erasmo em Wittenberg. Calvino não causou grande furor em Basiléia: "Fiquei ali escondido, por assim dizer, e pouquíssimas pessoas me conheciam". Mas ele não estava desocupado. O fruto de seu trabalho saiu das prensas do editor Thomas Platter em março de 1536. Chamava-se, para dar o título completo: O Ensino Básico da Religião Cristã, compreendendo quase a soma total da piedade e do que é necessário conhecer sobre a doutrina da salvação. Um trabalho recém publicado que muito merece ser lido por todos os que estudam a piedade. Um prefácio ao mais cristão rei da França, oferecendo a ele este livro como uma confissão de fé do autor, Jean Calvin de Noyon.23 "Um trabalho [ ... ] que muito merece ser lido" (Lectu dignissimum opus) era uma publicidade modesta de um livro destinado a tornar-se o principal documento da teologia protestante do século XVI. Diferentemente do primeiro livro de Calvino sobre Sêneca, as Institutas tornaram-se um bestseller quase da noite para o dia. A primeira edição, "apenas um pequeno livreto", como Calvino certa vez a descreveu, era miúda o bastante para ser escondida dentro do casaco ou secretamente ocultada entre os 23 0S 1, p. 1. A tradução é a de T. H. L. Parker, John Calvin: A Biography (Londres: Dent and Sons, 1975), p. 34.
  • 18. pertences de alguém. Assim, vendedores ambulantes e mercadores evangélicos levaram-na por toda a Europa. O que justifica o impressionante sucesso das Institutas? Podemos responder a essa pergunta em parte indicando duas funções distintas para as quais a obra serviu. Em primeiro lugar, era um poderoso tratado para aquele tempo. Como Calvino disse na epístola preliminar a Francisco I, originariamente, ele não pretendera dirigir esse trabalho ao rei. A princípio, Calvino planejara que o livro fosse um tipo de cartilha de teologia básica para "os camponeses da França, muitos dos quais vi que tinham fome e sede de Cristo".24 Contudo, a perseguição interveniente aos protestantes franceses movera Calvino a apresentar o caso dos companheiros cristãos ao rei, na esperança de que ele pudesse adotar uma atitude mais moderada. Calvino lamentava que "a pobre e pequena igreja tenha sido devastada por cruel carnificina ou banida para o exílio". Sua própria terra natal tornara-se "como um inferno" para ele, conforme expressou numa carta a um amigo, alguns anos depois. Ele tentou livrar os evangélicos franceses das acusações de sedição e cisma - não eram sectários inclinados a derrubar a ordem, mas cidadãos honestos que desejavam apenas restaurar a pureza do evangelho. O que mais estava em jogo era - essa a idéia fundamental de toda a teologia de Calvino - "Como a glória de Deus pode ser mantida a salvo na terra [ ... ] como o reino de Cristo pode ser conservado em bom estado entre nós".25 Ao longo de toda a carta, Calvino foi educado e respeitoso para com o rei. Mas a oração final está repleta de todo o estrondo de Elias: se Francisco não emendasse seus caminhos, então no devido tempo o Senhor certamente apareceria, "avançando armado para libertar os pobres de sua aflição e também punir seus detratores".26 Sem o 24 Institutas de 1536, p. 1; OS 1, p. 21. 25 Institutas de 1536, p. 3; OS 1, p. 23. 26 Institutas de 1536, p. 19; OS 1, p. 36.
  • 19. saber, Calvino lançara a primeira saraivada na batalha de palavras que, no fim, levaria às sangrentas guerras religiosas na França. O propósito básico das Institutas, porém, era catequético. Desde a época de sua conversão, Calvino fora pressionado a atuar como professor daqueles que estavam famintos pela fé verdadeira. Ainda hoje se pode ver uma caverna perto da cidade de Poitiers onde se diz que Calvino havia ministrado aos necessitados de uma congregação (literalmente!) subterrânea. Ele sabia, de primeira mão, 'a necessidade urgente de um manual de instrução claramente escrito, que apresentasse os rudimentos de uma teologia bíblica e levasse os jovens cristãos a uma maior compreensão da fé. Era o tempo para tal livro. Outros reformadores haviam tentado fazer algo parecido, mas com sucesso limitado. Melanchthon publicou pela primeira vez Lugares Comuns em 1521; Zuínglio apresentou o Comentário sobre a Religião Verdadeira e a Falsa em 1525. FareI havia até mesmo escrito um Sumário de teologia evangélica em francês, publicado em 1534. Cada um desses trabalhos tinha seus pontos fortes, mas não conseguia suprir as necessidades que as Institutas satisfizeram. Retomaremos à história das Institutas que cresceram, através de muitas revisões, daquele modesto "pequeno livreto" de 1536 a um enorme tomo e tesouro da dogmática protestante, na edição definitiva de 1559. Seis breves capítulos constituíam a primeira edição. O capítulo 1, "Sobre a Lei", era basicamente uma exposição dos dez mandamentos. O capítulo 2 tratava da fé e abrangia um comentário sobre o Credo dos Apóstolos. Nesse contexto, a doutrina da predestinação era apresentada; mas apenas numa forma superficial e não-polêmica. O capítulo 3, sobre a oração, continha a primeira exegese de Calvino sobre o pai-nosso. O capítulo 4 abordava os sacramentos, com o que ele queria dizer o batismo e a ceia do Senhor. O capítulo 5 era a refutação dos "cinco sacramentos falsos", enquanto o capítulo 6 concentrava-se em três temas: a liberdade cristã, a política da
  • 20. igreja e o governo civil. A seqüência dos tópicos é a mesma usada por Lutero em seus catecismos, que Calvino pode ter copiado deliberadamente. Para o trecho sobre a oração, Calvino devia bastante à discussão de Martin Bucer acerca do pai-nosso, em Comentário dos Evangelhos (1530). No todo, porém, Calvino apresentou mais claramente e de maneira mais magistral do que qualquer um antes dele os elementos essenciais da teologia protestante. Talvez modestamente demais, Calvino disse que, quando as Institutas foram publicadas em Basiléia, ninguém sabia que ele era o autor. A primeira edição, no entanto, esgotou-se em apenas um ano. O tímido e jovem erudito tomou-se cada vez mais conhecido como um ativo proponente da Reforma. Por sua vez, isso levou ao que, depois da conversão, foi o evento central da vida de Calvino. No verão de 1536, Calvino, com seu irmão Antoine e sua meia-irmã Marie, viajava de Paris para Estrasburgo, onde esperava estabelecer-se para seu antigo desejo de descanso e estudo. Entretanto, os exércitos de Francisco I e do Imperador Carlos V estavam envolvidos em manobras militares que exigiram que a pequena caravana de Calvino desviasse para o sul. Assim, chegaram à cidade de Genebra, situada nas fronteiras entre França, Savóia e Suíça. Calvino não teve boa impressão da cidade e planejou ficar apenas uma noite. Pouco antes, Guillaume FareI havia levado a cidade a abraçar a Reforma; numa assembléia pública, em 25 de maio do mesmo ano, os moradores de Genebra haviam votado unanimemente por "viver de agora em diante de acordo com a lei do evangelho e com a Palavra de Deus e abolir todos os abusos papais".27 Ainda assim, o verdadeiro trabalho de reforma mal havia começado. FareI, tendo sido informado de que Calvino estava na cidade, irrompeu em seu quarto de hotel e implorou a ele que ficasse em Genebra e 27 Citado de William Monter, Calvin's Geneva (Nova Iorque: John Wiley and Sons, 1967), p. 56.
  • 21. ajudasse a completar a recém-conquistada Reforma. Calvino ficou sinceramente chocado com a idéia e protestou dizendo não estar bem preparado para uma tarefa assim. Ele poderia edificar melhor a igreja estudando e escrevendo em paz. "O ponto mais alto de meus desejos", ele escreveu mais tarde ao Cardeal Sadolet, "era aproveitar a tranqüilidade literária, com algo como um cargo livre e respeitável."28 Dêem-me apenas um canto isolado na biblioteca e deixem o resto do mundo prosseguir! FareI, entretanto, não se intimidou com a pobre desculpa daquele jovem. Com seus olhos flamejantes e sua temível barba ruiva, FareI trovejou a maldição de Deus sobre Calvino em palavras que ele nunca poderia esquecer: A essa altura, FareI (Ardendo com um zelo assombroso pela proclamação do evangelho) repentinamente uniu todos os seus esforços para manter-me ali. Depois de ouvir que eu estava decidido a prosseguir meus próprios estudos particulares - Quando percebeu que não chegaria a lugar algum com súplicas - chegou a ponto de amaldiçoar-me: Que agradaria a Deus amaldiçoar meu lazer e a tranqüilidade para meus estudos que eu estava buscando, se em tão grave emergência eu me retirasse e me recusasse a prestar auxílio e socorro? Essa palavra arrasou-me tanto, que desisti da viagem que havia começado.29 A partir daquele momento, o destino de Calvino estava ligado ao de Genebra. Em suas primeiras cartas depois de seu chamado, ele se referia a si mesmo como "leitor das Sagradas Escrituras à igreja de Genebra". Mesmo tendo assumido diversas outras tarefas ao longo dos anos, sua vocação básica permaneceu a de pastor e de mestre. É importante ressaltar que Calvino nunca se sentiu à vontade em Genebra. Na primeira menção feita a ele nos registros do conselho da cidade, Calvino é referido como "ille Gallus - aquele francês"! Ele tornou-se cidadão de Genebra em 1559, apenas cinco anos antes de sua morte. Até hoje, os suíços são famosos por seu esnobismo e provincianismo, principalmente os de Genebra. Por exemplo, L' Eglise protestante nacionale refere-se não ao corpo nacional da 28 Calvin: Theological Treatises, p. 225: "nempe ut otio literario cum honestaaliqua ingenuaque conditione fruerer". OS 1, p. 461. 29 Battles, p. 33; CO 31, col. 26.
  • 22. igreja da Suíça, a Igreja Reformada Suíça, mas sim à igreja do cantão de Genebra. A primeira estadia de Calvino em Genebra durou menos de dois anos. Ele realizou coisas importantes - seu primeiro catecismo e uma confissão de fé foram adotados - mas o conflito com o conselho sobre a disciplina adequada da igreja levou a uma crise. Em abril de 1538, Calvino e FareI foram expulsos da cidade. Após outra breve estada em Basiléia, Calvino foi persuadido a mudar-se para Estrasburgo, para onde havia sido conduzido antes de ser abordado, por assim dizer, pelo inflamado FareI. Calvino passou três anos em Estrasburgo, e sem dúvida aqueles dias foram os mais felizes de sua vida. Foram também, talvez, os anos mais decisivos para seu desenvolvimento como reformador e teólogo. Observemos cinco dimensões de sua vida durante esse período crucial. Em primeiro lugar, Calvino era um pastor. Naquela época, Estrasburgo não pertencia à França, mas era uma cidade imperial livre do Sacro Império Romano. Contudo, estava suficientemente perto da França para atrair um considerável número de refugiados franceses, os quais procuravam asilo da perseguição em sua terra natal. Calvino foi chamado como pastor da ecclesiola Gallicana, a pequena congregação francesa, que se reunia na igreja de S. Nicolau. Ali, Calvino celebrava o sacramento da ceia do Senhor e ocupava-se dos vários pormenores de seu ministério pastoral. Ele refletiu seriamente acerca do papel da adoração na igreja e traduziu vários salmos para a métrica francesa. Assim começou o canto congregacional dos salmos, o que se tornou parte integrante do culto reformado francês. Um refugiado que visitou a igreja de Calvino fez a seguinte descrição do culto: Todos cantam, homens e mulheres, e é um belo espetáculo. Cada um tem um livro de cânticos nas mãos. [...] Olhando para esse pequeno grupo de exilados, chorei, não de tristeza, mas de alegria, por ouvi-los todos cantando tão sinceramente, enquanto cantavam agradecendo a Deus por tê-los levado a um lugar onde seu nome é glorificado.30 30 Parker, p. 69.
  • 23. Calvino deve ter tido em mente cenas como essa quando declarou, posteriormente, que "nós sabemos por experiência que o canto tem grande poder e vigor para mover e inflamar os corações dos homens, a fim de invocar e louvar a Deus com zelo mais veemente e ardente" .31 Em segundo lugar, Calvino era um professor. John Sturm, também francês e erudito da Universidade de Paris, havia organizado uma escola em Estrasburgo para a qual Calvino foi indicado como "conferencista das Sagradas Escrituras". Ali, Calvino dava palestras três vezes por semana, oferecendo cursos exegéticos acerca do evangelho de João e das epístolas paulinas. Ele também pregava quatro sermões por semana a sua congregação. O currículo da escola de Sturm, com sua forte ênfase na literatura clássica, tornou-se um modelo para a escola de Calvino, em Genebra. No início, pagavam a Calvino apenas um florim semanal por suas palestras. Ele complementava sua renda dando aulas particulares, recebendo pensionistas, advogando nas horas vagas e, o que mais deve tê- lo feito sofrer, vendendo algo de sua preciosa biblioteca. Ele se queixava do alto custo de vida em Estrasburgo: "Não consigo chamar de meu um único centavo. É impressionante como o dinheiro some em despesas adicionais" .32 Em terceiro lugar, Calvino era um escritor. Sua publicação mais importante foi uma edição totalmente revisada das Institutas, a qual surgiu em agosto de 1539. Era aproximadamente três vezes mais longa que a versão de 1536. Seu propósito expresso era "preparar e treinar estudantes de teologia para o estudo da Palavra divina, a fim de que possam ter fácil acesso a ela e manter-se nela sem tropeçar" .33 Em 1541, publicou-se a primeira tradução francesa das Institutas. Foi um marco no desenvolvimento da língua francesa, comparável em seu efeito à Bíblia de 31 Esse trecho é do prefácio ao Saltério de Calvino de 1542. Cf. McNeill, History and Character, p. 148. 32 Parker, p. 69. 33 lbid., p. 72; OS 1, pp. 25-256.
  • 24. Lutero em alemão ou à Versão Autorizada em inglês. Também em 1539, Calvino publicou seu Comentário sobre Romanos, uma abordagem magistral do que para ele, não menos do que para Lutero, era o mais importante livro da Bíblia. Esse foi o primeiro dos comentários bíblicos de Calvino; no final, ele publicou comentários sobre a maioria dos livros do Antigo Testamento e acerca de cada livro do Novo Testamento, exceto Apocalipse e 2 e 3 João.34 Devemos mencionar três breves mas brilhantes trabalhos que Calvino escreveu durante esses anos. Um foi a resposta ao Cardeal Jacopo Sadoleto, um prelado católico de mente reformadora que escrevera à igreja de Genebra tentando ganhá-la de volta para Roma. A Réplica a Sadoleto de Calvino é um tour de force literário, talvez a melhor apologia da fé reformada escrita no século XVI. Ele também publicou um livro de liturgia, A Forma das Orações e Hinos Eclesiásticos, que teria um efeito duradouro sobre a adoração reformada. O Pequeno Tratado sobre a Santa Ceia foi o primeiro esforço respeitado de Calvino por estabelecer uma posição intermediária entre os extremos luteranos e zuinglianos acerca da Eucaristia. Se Calvino tivesse falecido em 1541 na idade madura de 32 anos, ainda assim ele seria reverenciado hoje como um dos maiores teólogos e um dos mais hábeis escritores entre os reformadores. Em quarto lugar, Calvino era um estadista da igreja. Bucer e Wolfgang Capito, reformadores de Estrasburgo, tentaram desesperadamente emendar o cisma entre os protestantes da Alemanha e os da Suíça. Eles também participaram de uma série de conferências com o objetivo de voltar a unir protestantes e católicos. A unidade ainda parecia possível em 1540, já que o Concílio de Trento não havia sido convocado nem as selvagens guerras religiosas tinham mostrado suas baixas. Calvino 34 A mais recente edição crítica do Comentário sobre Romanos foi publicada por T. H. L. Parker, Iohannes Calvini Commentarius in Epistolam Pauli ad Romanos (Leiden: E. J. Brill, 1981). Veja também T. H. L. Parker, Calvin's New Testament Commentaries (Londres: SCM Press, 1971) e Calvin's Old Testament Commentaries (Edimburgo: T. and T. Clark, 1986).
  • 25. esteve envolvido em muitas dessas discussões. Ele viajou para Frankfurt, Hagenau e Worms como um tipo de conselheiro das delegações protestantes em tais conferências interconfessionais. Numa delas, encontrou Philip Melanchthon, com quem iniciou uma amizade que duraria a vida inteira. A verdadeira importância desses encontros, para Calvino, foi a visão universal da igreja que lhe foi confirmada. Ele lamentava o caráter fragmentado da cristandade: "Entre os maiores males de nosso século deve ser contado o fato de que as igrejas encontram-se tão divididas entre si e de que mal há um relacionamento humano entre nós".35 35 Calvino não estava disposto a comprometer pontos essenciais em favor de uma paz falsa, mas ele tentou chamar a igreja de volta à verdadeira base de sua unidade em Jesus Cristo. Em quinto lugar, em Estrasburgo Calvino tomou-se um marido. Sem dúvida Calvino era um bom partido na cidade. Bucer, o casamenteiro entre os reformadores, tentou várias vezes conseguir uma noiva adequada para o jovem pastor. Uma das pretendentes não falava nada de francês. Visto que Calvino não sabia alemão, concluiu-se que haveria um problema de comunicação. Numa carta a Farel, Calvino descreveu o que ele realmente desejava numa esposa: Eu não sou do tipo selvagem de amante que, ao ver pela primeira vez uma bela figura, aceita todos os defeitos de sua amada. Eis a única beleza que me seduz, se ela é casta, nem muito atraente nem muito desdenhosa, se é econômica, se é paciente, se há esperanças de que venha a interessar-se por minha saúde.36 Como observou uma de minhas alunas, com esse tipo de receita, foi uma surpresa ele ter encontrado uma esposa! De fato, ele desposou uma de suas próprias paroquianas, Idelette de Bure, a viúva de um anabatista francês convertida à fé reformada pelo próprio Calvino. Ela foi descrita por 35 Calvino para o Arcebispo Cranmer: CO 14, coI. 313. q. Jean Cadier, "Calvin and the Union of the Churches", in: John Calvin: A Collection of Essays, ed. G. E. Duffield (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), pp. 118-130. 36 Jules Bonnet, ed., Letters of John Calvin (Nova Iorque: Burt Franklin, 1972; edição original, 1858), I, p. 141.
  • 26. FareI, que realizou o casamento, como uma mulher "íntegra e honesta" e "até bonita" .37 Gostaríamos de saber mais acerca da vida familiar no lar de Calvino; contudo, mais uma vez, muito disso está oculto por trás do véu da reticência. Podemos supor que o relacionamento entre Calvino e Idelette não foi um ardoroso caso de amor como o de Abelardo e Heloísa, nem mesmo talvez uma satisfação jovial como o de Lutero e Katie. Mas também não foi o acordo estóico e sem relações sexuais muitas vezes retratado pelos detratores de Calvino. Idelette deu a Calvino apenas um filho, um menino de nome Jacques, que nasceu prematuramente e morreu quando ainda bebê. Obtemos um vislumbre da dor de Calvino numa carta que escreveu a seu amigo Pierre Viret: "Certamente, na morte de nosso filho amado o Senhor afligiu-nos com uma profunda e dolorosa ferida. Mas ele é nosso Pai: ele sabe o que é melhor para seus filhos" .38 Quando a própria Idelette faleceu, em 1549, Calvino novamente escreveu para Viret: "Você conhece a ternura, ou melhor, a doçura de minha alma. [...] A razão de minha tristeza não é comum. Fui privado de minha excelente companhia na vida, a qual, se alguma desventura tivesse ocorrido, teria sido minha companheira voluntária não só no exílio e na aflição, mas até na morte" .39 Calvino viveu por mais 15 anos após a morte de Idelette; contudo, não devemos imaginar que mesmo então sua vida ficou livre dos tumultos e aborrecimentos da vida doméstica diária. Idelette deixou duas crianças de seu primeiro casamento, a quem Calvino continuou a propiciar um cuidado solícito, conforme prometera à esposa em seu leito de morte. Além disso, Antonie, irmão de Calvino, e sua família - ele tinha oito filhos de duas esposas, sendo que da primeira ele se divorciou por causa de seu adultério com um servo - juntamente com vários outros amigos e parentes, 37 A. L. Herminjard, ed., Correspondence des Réformateurs dans les pays de langue française (Genebra e Paris: 1866-1897), VI, p. 285. 38 lbid., VIII, p. 109. 39 CO 13, col. 230. Citado parcialmente em Stauffer, p. 45.
  • 27. partilhavam da modesta moradia do reformador no número onze da Rue des Chanoines, em Genebra. Na maior parte de sua vida, a casa de Calvino esteve cheia de crianças pequenas. Como um dos biógrafos sabiamente observou, "sem dúvida as mulheres protegiam ele e as crianças uns dos outros". Ainda assim, é sensato perceber que as Institutas e os comentários de Calvino e seus muitos tratados e sermões não foram "escritos numa torre de marfim, mas contra um contexto tumultuado" .40 Quando o povo de Genebra implorou a Calvino que voltasse à igreja deles, onde as coisas tinham ido de mal a pior, ele contestou. Calvino preferia a feliz situação em Estrasburgo ao perigoso "abismo e redemoinho" que ele havia deixado três anos antes, "aquela cruz na qual eu tinha de morrer mil vezes a cada dia" .41 Mas não foi precisamente isso o que Jesus prometera a seus seguidores - uma cruz? O consenso entre os amigos de Calvino era de que ele deveria retomar. Desta vez, Bucer levantou o tema do julgamento divino: se você se recusar a retomar seu ministério, estará agindo como Jonas, que tentou fugir de Deus!42 Totalmente persuadido a voltar, Calvino reentrou em Genebra em 13 de setembro de 1541. O restante de sua carreira como reformador foi simbolizado pelos dois atos oficiais que ele realizou ao retomar. Um foi apresentar ao conselho da cidade um plano detalhado para a ordem e o governo da igreja. Estas Ordenanças Eclesiásticas exigiam o estabelecimento dos quatro ofícios de pastor, doutor (professor), ancião e diácono, que correspondiam a doutrina, educação, disciplina e serviço social.43 O conselho aprovou o plano de Calvino, mas ele passou o resto de sua carreira tentando, nunca com sucesso absoluto, assegurar sua execução. 40 T. H. L. Parker, Calvin: A Portrait (Londres: SCM, 1954), p. 72. 41 Herminjard, VI, pp. 199, 325-326. 42 Assim Beza relatou em seu "Life of Calvin". Tracts and Treatises, I, p. lxxv. 43 Karl Holl, Johannes Calvin (Tübingen: J. C. B. Mohr, 1909), p. 12: "Wenn Calvin die vier Aemter der Pastoren, Lehrer, Aeltesten, Diakonen aus dem Neuen Testament übernahm, so fand er in ihnen zugleich die Frunktionen der Kirche ausgedrückt, die er für konstitutiv hielt: Lehre, Zucht, Jugendunterricht und soziale Fürsorge".
  • 28. O outro ato de Calvino também foi de importância decisiva. No primeiro domingo após seu retorno, ele subiu ao púlpito da Catedral de São Pedro. A grande catedral gótica estava abarrotada de genebreses curiosos, que esperavam ouvir um Calvino exultante açoitando seus oponentes, os quais o haviam tirado da cidade, e lançando um inflamado sermão do tipo "eu-os-avisei" à assembléia inteira. Numa carta a Farel, Calvino contou o que fez: "Depois de um prefácio, continuei com a exposição de onde havia parado - com o que mostrei que havia interrompido meu ofício de pregador durante algum tempo, e não que tinha desistido dele inteiramente".44 Nada poderia ter sido menos impressivo ou mais eficaz. Calvino simplesmente começou de onde tinha parado três anos antes, no mesmo capítulo e versículo do livro da Bíblia (não sabemos qual era, nem isso importa) que estava pregando. Dessa forma, Calvino demonstrou que ele pretendia que sua vida e sua teologia não fossem um recurso de sua própria criação, mas um testemunho responsável da Palavra de Deus. 44 CO 3, p. xxxiii.