1) Friedrich Nietzsche propôs uma revisão crítica dos valores, questionando suas origens e propósitos.
2) Para Nietzsche, o conhecimento é interpretativo e depende da perspectiva e dos instintos de quem conhece.
3) Nietzsche defendia que os valores deveriam ser julgados pelo critério da vida - ou seja, por aquilo que fortalece ou enfraquece a vida humana.
1. Giordano Cássio
FRIEDRICH WILHELM NIETZSCHE
NIETZSCHE: O CRITÉRIO DA VIDA
Friedrich Nietzsche (1844-1900) procedeu a um deslocamento do problema do conhecimento,
alterando o papel da filosofia. Para ele, o conhecimento não passa de interpretação, de atribuição de
sentidos, sem jamais ser uma explicação da realidade. Conferir sentidos é, também, conferir valores, ou
seja, os sentidos são atribuídos a partir de determinada escala de valores que se quer promover ou ocultar.
Para Nietzsche, o conhecimento resulta de uma luta, do compromisso entre instintos. Ao
compreender a avaliação que foi feita desses instintos, descobre que o único critério que se impõe é a vida.
O critério da verdade, portanto, deixa de ser um valor racional para adquirir um valor de existência. O
que Nietzsche quer dizer com “critério da vida”? Ao perguntar-se que sentidos atribuídos às coisas
fortalecem nosso “querer viver” e quais o degeneram, questiona os valores para distinguir quais nos
fortalecem vitalmente e quais nos enfraquecem. Outra teoria que destaca o caráter interpretativo de todo
conhecimento é a do perspectivismo, que consiste em considerar uma ideia a partir de diferentes
perspectivas. Essa pluralidade de ângulos não nos leva a conhecer o que as coisas são em si mesmas, mas
é enriquecedora por nos aproximar mais da complexidade da vida em seu movimento.
NIETZSCHE: O CRITÉRIO DA VIDA
Friedrich Nietzsche (1844-1900) procedeu a um deslocamento do problema do conhecimento,
alterando o papel da filosofia. Para ele, o conhecimento não passa de interpretação, de atribuição de
sentidos, sem jamais ser uma explicação da realidade. Conferir sentidos é, também, conferir valores, ou
seja, os sentidos são atribuídos a partir de determinada escala de valores que se quer promover ou ocultar.
A tarefa da filosofia é a de interpretar “a escrita de camadas sobrepostas das expressões e gestos humanos”.
O trabalho interpretativo volta-se, em primeiro lugar, para o exame do conjunto do texto metafísico, a fim
de desmascarar o modo pelo qual a linguagem passou do nomear as coisas concretas para o sistematizar
verdades eternas. Como método de decifração, Nietzsche propõe a genealogia, que coloca em relevo os
diferentes processos de instituição de um texto, mostrando as lacunas, os espaços em branco mais
significativos, o que não foi dito ou foi reprimido e que permitiu erigir determinados conceitos em verdades
absolutas e eternas. A genealogia, portanto, visa a resgatar o conhecimento primeiro e que foi
transformado em verdade metafísica, estável e intemporal. Mas a vida é um devir – está sempre em
movimento – e, portanto, não é possível reduzi-la a conceitos abstratos, a significados estáveis e definitivos.
Para Nietzsche, o conhecimento resulta de uma luta, de um compromisso entre instintos. Pelo
procedimento genealógico, ao compreender a avaliação que foi feita desses instintos, descobre que o único
critério que se impõe é a vida. O critério da verdade, portanto, deixa de ser um valor racional para adquirir
um valor de existência. O que Nietzsche quer dizer com “critério da vida”? Ao fazer o exame genealógico,
2. -2-
pergunta-se que sentidos atribuídos às coisas fortalecem nosso “querer-viver” e quais o degeneram. Enfim,
a interpretação genealógica questiona os valores para saber o que nos fortalece vitalmente e o que nos
enfraquece.
A esse respeito, a professora Scarlett Marton cita Nietzsche:
Fazer qualquer apreciação passar pelo crivo da vida equivale a perguntar se ela contribui
para favorecê-la ou obstruí-la; submeter ideias ou atitudes ao exame genealógico é o
mesmo que inquirir se são signos de plenitude de vida ou da sua degeneração; avaliar uma
avaliação, enfim, significa questionar se é sintoma de vida ascendente ou declinante.1
Nietzsche dá o exemplo da dificuldade de se dizer o que é a honestidade. Pois nada sabemos de
uma qualidade essencial que se chame a honestidade, mas sabemos, isso sim, de numerosas ações
individualizadas, portanto desiguais. Ao reunir todas elas sob o conceito de honestidade, estamos diante de
uma abstração. O que se perde nesse processo é que, ao colocar seu agir sob a regência das abstrações,
as intuições são desprezadas para privilegiar o conceito. Como conhecemos, então? Para Nietzsche, o
conhecimento se vale da metáfora. Se na linguagem comum a metáfora é um ornamento e como tal não
tem significado de conhecimento propriamente dito, para ele a metáfora assume um caráter cognitivo. Só
ela consegue perceber as coisas no seu devir permanente, porque cada metáfora intuitiva é individual, e,
por isso, escapa ao “grande edifício dos conceitos”. O conceito, por sua vez, nada mais é do que “o resíduo
de uma metáfora”.
Assim diz Nietzsche:
O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias,
antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética
e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo
sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são,
metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e
agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas.2
Outro aspecto do caráter interpretativo de todo conhecimento é a teoria do perspectivismo, que
consiste em perseguir uma ideia a partir de diferentes perspectivas. Essa pluralidade de ângulos não nos
leva a conhecer o que as coisas são em si mesmas, mas é enriquecedora por nos aproximar mais da
complexidade da vida em seu movimento.
Genealogia. Do grego génos, “origem”, “nascimento”, “descendência”, e logos, “estudo”, “razão”. Em Nietzsche, genealogia
significa o questionamento da origem dos valores.
Metáfora. Do grego metaphorá, “mudança”, “transposição”. É uma figura de linguagem que realiza a transposição do sentido
próprio de uma palavra ao sentido figurado, estabelecendo uma comparação. Por exemplo, quando dizemos estar com “uma
fome de leão” ou que suportamos uma desilusão com “nervos de aço”.
Metonímia. Do grego metonymia, "emprego de um nome por outro". Figura de retórica que consiste no uso de uma palavra
fora do seu significado normal. Na frase “comi dois pratos”, “pratos” significa “porções de alimento”.
Canônico. Do latim canon, canonis, “lei”, “regra”, “padrão”. Referente a cânone (ou cânon), conjunto de leis eclesiásticas; por
extensão, na atividade cotidiana, comportamento social padronizado por regras.
1
2
MARTON, Scarlett. Nietzsche, a transvaloração dos valores. São Paulo: Moderna, 1993. p. 62.
NIETZSCHE, Friedrich. Introdução teorética sobre verdade e mentira no sentido extramoral, § 1.
3. -3-
NIETZSCHE: A TRANSVALORAÇÃO DOS VALORES
O pensamento de Friedrich Nietzsche (1844-1900) orienta-se no sentido de recuperar as forças
vitais, instintivas, subjugadas pela razão durante séculos. Para tanto, critica Sócrates por ter sido o primeiro
a encaminhar a reflexão moral em direção ao controle racional das paixões.
Segundo Nietzsche, a tendência de desconfiança nos instintos culmina com
o cristianismo, que acelera a “domesticação” do ser humano. Em diversas
obras, como Sobre a genealogia da Nietzsche. Edvard Munch, 1906. Após a
moral, Para além do bem e do mal e
morte de Nietzsche, prevaleceu uma
distorção de seu pensamento, para
Crepúsculo dos ídolos, em estilo
associá-lo ao nazismo e ao antissemitismo.
apaixonado e mordaz, Nietzsche faz a
Isso se deveu à atuação de sua irmã
análise histórica da moral e denuncia a
Elisabeth, que difundiu suas obras
incompatibilidade entre esta e a vida. descontextualizando trechos e sonegando
outros que melhor explicitavam sua
Em outras palavras, sob o domínio da
posição, o que desvirtuou sua filosofia,
moral, o ser humano se enfraquece,
claramente contrária ao racismo e
tornando-se doentio e culpado.
nacionalismo germânico.
Nietzsche relembra a Grécia
homérica, do tempo das epopeias e das tragédias, momento em que predominavam o que para ele eram
os verdadeiros valores aristocráticos, quando a virtude reside na força e na potência, como atributo do
guerreiro belo e bom, amado dos deuses. Segundo Homero, entre inimigos não há bom ou mau, porque
ambos são valorosos. Ao fazer a crítica da moral tradicional, Nietzsche preconiza a “transvaloração de
todos os valores”. Diz Scarlett Marton:
A noção nietzschiana de valor opera uma subversão crítica: ela põe de imediato a questão
do valor dos valores e esta, ao ser colocada, levanta a pergunta pela criação dos valores.
Se até agora não se pôs em causa o valor dos valores ‘bem’ e ‘mal’, é porque se supôs
que existiram desde sempre; instituídos num além, encontravam legitimidade num mundo
suprassensível. No entanto, uma vez questionados, revelam-se apenas ‘humanos,
demasiado humanos’; em algum momento e em algum lugar, simplesmente foram
criados.3
A genealogia da moral
Se os valores não existiram desde sempre, mas foram criados, Nietzsche propõe a genealogia
como método de investigação sobre a origem deles. Mostra assim as lacunas, o que não foi dito ou foi
recalcado, permitindo que alguns valores predominassem sobre outros, tornando-se conceitos abstratos
e inquestionáveis. Pela genealogia Nietzsche descobre que os instintos vitais foram submetidos e
degeneraram. Procura então ressaltar aqueles valores comprometidos com o “querer-viver”. Denuncia a
falsa moral, “decadente”, “de rebanho”, “de escravos”, cujos valores seriam a bondade, a humildade, a
piedade e o amor ao próximo. Distingue então a moral de escravos e a moral de senhores.
a) A moral de escravos
A moral de escravos é herdeira do pensamento socrático-platônico – que provocou a ruptura
entre o trágico e o racional – e da tradição judaico-cristã, da qual deriva a moral decadente, porque baseada
na tentativa de subjugação dos instintos pela razão. O homem-fera, animal de rapina, é transformado em
animal doméstico ou cordeiro. A moral plebeia estabelece um sistema de juízos que considera o bem e o
mal valores metafísicos transcendentes, isto é, independentes da situação concreta vivida. A moral de
escravos nega os valores vitais e resulta na passividade, na procura da paz e do repouso. O indivíduo se
enfraquece e tem diminuída sua potência. A alegria é transformada em ódio à vida, o ódio dos impotentes.
A conduta humana, orientada pelo ideal ascético, torna-se vítima do ressentimento e da má consciência –
o sentimento de culpa. O ressentimento nasce da fraqueza e é nocivo ao fraco. O indivíduo ressentido,
incapaz de esquecer, é como o dispéptico: fica “envenenado” pela sua inveja e impotência de vingança.
3
MARTON, Scarlett. Nietzsche, a transvaloração dos valores. São Paulo: Moderna, 1993. p. 50. (Coleção Logos).
4. -4-
Ao contrário, o indivíduo nobre sabe “digerir” suas experiências, e esquecer é uma das condições de
manter-se saudável. O sentimento de culpa é o ressentimento voltado contra si mesmo, daí fazendo nascer
a noção de pecado, que inibe a ação. O ideal ascético nega a alegria da vida e coloca a mortificação como
meio para alcançar a outra vida num mundo superior, do além. As práticas de altruísmo destroem o amor
de si, domesticando os instintos e produzindo gerações de fracos.
b) A moral de senhores
A moral “de senhores” é a moral positiva que visa à conservação da vida e dos seus instintos
fundamentais. É positiva porque baseada no sim à vida, e configura-se sob o signo da plenitude, do
acréscimo. Funda-se na capacidade de criação, de invenção, cujo resultado é a alegria, consequência da
afirmação da potência. O indivíduo que consegue se superar é o que atingiu o além-do-homem. O sujeito
além-do-homem é aquele que consegue reavaliar os valores, desprezar os que o diminuem e criar outros
que estejam comprometidos com a vida. Assim diz Roberto Machado:
É por isso que contra o enfraquecimento do homem, contra a transformação de fortes em
fracos – tema constante da reflexão nietzschiana – é necessário assumir uma perspectiva
além de bem e mal, isto é, “além da moral”. Mas, por outro lado, para além de bem e mal
não significa para além de bom e mau. A dimensão das forças, dos instintos, da vontade de
potência permanece fundamental. “O que é bom? Tudo que intensifica no homem o
sentimento de potência, a vontade de potência, a própria potência. O que é mau? Tudo
que provém da fraqueza”.
A vontade de potência
Com o que foi exposto, talvez se pense que Nietzsche chega ao extremo individualismo e
amoralismo. Muitos inclusive o chamaram de niilista, para acusá-lo de não acreditar em nada e negar os
valores, o que não faz jus ao seu pensamento. Ao contrário, o filósofo atribuía o niilismo à moral decadente
dos valores tradicionais, que acomodaram o ser humano na mediocridade que tudo uniformiza. Destruir
esses valores é a condição para que possam nascer os valores novos do além-do-homem, o que só pode
ser alcançado pela vontade de poder. Também essa expressão leva a confusões: não se trata de poder
que domina os outros, mas das forças vitais recuperadas pelo indivíduo dentro de si “num dionisíaco dizersim ao mundo” e que se encontravam entorpecidas.
Nesse sentido, o poder é virtude no sentido de força, vigor, capacidade. Portanto, virtude é
autorrealização. Se essa moral valoriza a individualidade, o faz tanto para si como para os outros, pois cada
um pode ser ele mesmo.
Dispéptico. Que digere mal os alimentos. No contexto, o ressentido “remói” o seu fracasso.
Niilismo. Do latim nihil, “nada”.
Além-do-homem. Da expressão alemã Übermensch, que significa “sobre-humano”, “que
transpõe os limites do humano”. Também “super-homem” é usado, embora dê margens
a mal-entendidos.
Baco. Caravaggio, 1596. Baco é o nome romano de Dioniso, deus grego do vinho e do
êxtase. Nietzsche criou os termos “apolíneo” e “dionisíaco” para opor Apolo a Dioniso: o
primeiro é o deus daracionalidade, da ordem e da harmonia, enquanto Dioniso
representa o excesso, a inspiração, a exaltação da vida.
Referência
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. 4.
ed. ver. São Paulo: Moderna, 2009.