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Análise do Voto do Min. Gilmar Mendes na Reclamação 4335-5/AC
Igor de Araújo Vilella
Introdução
O presente artigo apresenta e discute os argumentos utilizados pelo Ministro
Gilmar Mendes, relator da causa, na Reclamação 4335-5. Uma vez que o Ministro é o
principal defensor, na Corte Suprema, da posição segundo a qual houve mutação
constitucional do Art. 52, X da Constituição Federal, é imprescindível, para melhor se
entender a questão, que seus argumentos sejam esmiuçados. Além de expor os
argumentos, buscar-se-á problematizá-los e, para tanto, apresentar-se-á outras
compreensões acerca do tema.
O caso
Trata-se de reclamação ajuízada pela Defensoria Pública da União em face do
juízo de execuções penais de Rio Branco que, segundo a reclamante, deixou de aplicar a
decisão do Supremo contida no HC 82.959, segundo a qual a vedação de progressão de
regime aos condenados pela prática de crimes hediondos, contida no art. 2º, § 1º da Lei
8072/90, é inconstitucional.
Com base na decisão proferida no HC 82.959, a Defensoria Pública solicitou a
progressão do regime de alguns presos por prática de crime hediondo, o que foi
denegado pelo juízo da vara de execuções. Segundo o reclamado, a decisão de
inconstitucionalidade proferida no HC 82.959 teria efeito apenas inter partes, sem
aptidão, portanto, de vincular futuras decisões judiciais. Ainda de acordo com o juízo de
execuções penais, para que uma decisão de inconstitucionalidade incidenter tantum
tenha efeito ergam omnes é imperativo que o Senado Federal, em decisão discricionária,
após ter sido comunicado do julgamento pelo STF, suspenda a validade da lei em
questão, segundo o teor do Art. 52, X da Constituição Federal. Dessa decisão do juízo a
quo a Defensoria Pública ingressou com reclamação perante o Supremo Tribunal
Federal.
O Voto
A questão cinge-se a determinar se é ou não necessário que o Senado suspenda a
execução da Lei declarada inconstitucional incidenter tantum para que tal decisão
produza efeitos gerais e abstratos. Para adentrar-se no tema, o Ministro relator tece
comentários a respeito das origens do papel do Senado federal no controle difuso de
constitucionalidade. Segundo o Ministro, essa competência foi dada ao Senado Federal,
incialmente, como uma maneira de emprestar efeito erga omnes às decisões proferidas
pelo Supremo em decisões em sede de controle difuso. A originalidade do instituto, no
entanto, despertou uma série de problemas dogmáticos.
Para Lúcio Bittencourt1, o papel do Senado sempre se resumiu a apenas tornar
pública a decisão do Senado, porque a declaração de nulidade, para surtir efeitos, não
pode depender de um juízo político. Alinhando-se a esse posicionamento, o Ministro
Gilmar Mendes argumenta que essa posição é única que se coaduna com a teoria da
nulidade da lei inconstitucional. Atribuir um sentido substantivo ao papel do Senado
seria o mesmo que negar a nulidade da lei declarada inconstitucional pelo órgão de
cúpula do judiciário. Ainda mais porque não pode o ato nulo ter seu efeito suspenso,
porque o que é nulo não gera, por definição, efeito algum2.
Entretanto, tal posicionamento sempre foi minoritário, a maioria dos
constitucionalistas entendia que a resolução do Senado tinha a capacidade de expandir
os efeitos do julgamento do Supremo, que, per si, produzia apenas efeitos inter partes,
de modo a tornar seus efeitos erga omnes. E esse, de fato, era o propósito dos
Deputados Constituintes de 1934 e 1946, conforme se comprova da leitura dos excertos
do trabalho de Ana Alencar citados pelo Ministro Gilmar Mendes.3 Nos discursos dos
deputados nota-se inclusive que o sentido teleológico de tal instrumento seria servir
como meio apto a criar economia processual, já que, desse modo, se afastaria a
necessidade de todos os prejudicados pela mesma lei inconstitucional buscarem o
judiciário.
A jurisprudência do STF, nesse primeiro momento, aderiu ao posicionamento
doutrinariamente majoritário4. Segundo o entendimento do ministro Gilmar Mendes, tal
posicionamento se ajustava ao sistema de controle de constitucionalidade de leis vigente
no período anterior a Constituição de 1988, uma vez que nesse período a ação direta só
poderia ser manejada pelo Procurador-Geral da República, o que impedia um completo
desenvolvimento do controle abstrato de constitucionalidade. O que se dava, de rigor,
era que a ação direta era a exceção, sendo a maioria dos pronunciamentos acerca da
constitucionalidade das leis proferido em sede de controle concreto. Não havia, nesse
período, muita distância entre o modelo misto brasileiro, no qual conviviam o modelo
norte-americano e o europeu, e outros modelos de controle difuso, dado o papel menor
exercido pela Ação Direta nesse contexto, nas palavras do Ministro Gilmar Mendes: “o
controle direto continuava a ser algo acidental e episódico dentro do sistema difuso”5.
Dessa forma, resguardava-se, no raciocínio do Ministro, um conceito historicamente
condicionado de separação de poderes, segundo o qual somente em casos excepcionais
1 BITTENCOURT, Lucio. O Controle Jurisdicional de Constitucionalidade da Leis. Série Arquivos do
Ministério de Justiça. Brasília: Ministério da Justiça, 1997, p.145.
2 BITTENCOURT, op. cit., p. 145
3 ALENCAR, Ana Valderez Ayres Neves. A competência do Senado Federal para suspender a execução
dos atos declarados inconstitucionais. Revista de informação legislativa, v. 15, n. 57, p. 223-328,
jan./mar. 1978.
4 Mandado de Segurança 16.512, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro.
5 BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Reclamação 4335/AC, Rel. Ministro GILMAR MENDES,
PLENO, julgado em 20/03/2014, DJe-208 DIVULG 21-10-2014 PUBLIC 22-10-2014, p. 35.
o Supremo poderia retirar do ordenamento lei tida por inconstitucional sem que o
Senado Federal editasse resolução suspendendo a eficácia da norma em questão6.
Depois da promulgação da Constituição de 1988, o número dos legitimados para
propor a ação direta cresceu significativamente, mas também foram ampliadas as
hipóteses de cabimento do controle abstrato, com a posterior criação da Ação Direta de
Constitucionalidade (ADC) e com a regulamentação da Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental (ADPF). Essa amplitude, combinada com a possibilidade do
Supremo suspender liminarmente a validade de lei considerada inconstitucional
fortaleceram, na visão do ministro Gilmar Mendes, o controle abstrato de
constitucionalidade, de modo a romper com uma antiga concepção de divisão de
poderes, concepção no seio da qual o instituto atualmente albergado no art. 52, X da
Constituição Federal teve origem. Com efeito, atualmente, a competência do Supremo
para atuar como legislador negativo é exercida amplamente, não possuindo mais o
caráter de exceção que possuía durante a vigência das outras constituições brasileiras.
De maneira que quase a totalidade das questões constitucionais passou a ser resolvida
por meio do controle abstrato.
Por outro lado, como outra manifestação da obsolescência do instituto, o
Ministro relator indica a incompatibilidade da resolução suspensiva do Senado com as
novas técnicas de decisão utilizadas no controle de constitucionalidade concreto. Criado
para uma época em que as decisões da jurisdição constitucional se resumiam a declarar
a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma em apreço, não pode causar
espécie a inutilidade da declaração suspensiva do Senado naquilo que toca a declaração
de inconstitucionalidade sem redução do texto ou nos casos de modulação dos efeitos da
declaração de inconstitucionalidade. Como esse tipo de decisão não implica na
supressão da norma inconstitucional, não pode, portanto, ser alvo da resolução a que se
refere o Art. 52, X da Constituição Federal de 1988, que é, portanto, incapaz de dotar
essas novas espécies de decisão de efeitos transcendentes.
Aqui caberia indagação a respeito da possibilidade da resolução do Senado
Federal ter sofrido mutação em outro sentido. A ampliação das técnicas decisionais,
tendo ocorrido depois da concepção do instituto, bem poderia ser absorvida pela
resolução do art. 52, X, de maneira que, por meio dela, o Senado Federal também
pudesse tornar gerais os efeitos de decisão concreta que tenha, por exemplo, promovido
interpretação de ato normativo segundo a Constituição, modulado os efeitos da
declaração de inconstitucionalidade ou, até mesmo, declarado a constitucionalidade de
ato impugnado.
Outro ponto levantado pelo Relator diz respeito às diversas alterações
introduzidas na legislação processual que possuem o condão de aproximar os efeitos do
controle difuso daqueles típicos dos efeitos do controle concentrado. Sem dúvida, há no
6 Até a possibilidade da Representação, por si só, retirar a validade da lei declarada inconstitucional teve
lenta aceitação, somente restou estabelecido a desenecessidade da participação do Senado no controle
concentrado de constitucionalidade em 1977. Cf. BRASIL, Supremo Tribunal Federal, cit., p. 26.
dispositivo da Lei 8.038/90 que permite ao relator, no curso de Recurso Especial ou
Recurso Extraordinário, negar seguimento ao recurso que contrarie súmula do Supremo
Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça uma inegável tendência a
aproximar os efeitos das decisões proferidas em sede de controle abstrato e aquelas
exaradas incidenter tantum.
A mesma tendência se sente na alteração do Código de Processo Civil7 que
autoriza o Relator de recurso a dar provimento ao pedido, sempre que a decisão
recorrida estiver em manifesto desacordo com súmula ou jurisprudência dominante do
respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal ou de Tribunal Superior. Em ambas as
alterações teve por bem o legislador extender os efeitos do julgado pelo Supremo
Tribunal para além das partes envolvidas na causa originária. O Ministro relator
consigna que essa possibilidade abrange também a jurisprudência constitucional
consolidada que dê, por exemplo, interpretação conforme a constituição a determinado
dispositivo, e todas as demais hipóteses já referidas nas quais a resolução suspensiva do
Senado é inaplicável.
Aqui é possível argumentar que o relator incorre no erro de interpretar a
Constituição de acordo com a legislação ordinária. Tal crítica não se mostraria hígida,
posto que o propósito do Ministro Gilmar Mendes não é interpretar a Constituição à luz
das leis ordinárias, mas apenas consignar a interpretação que o legislador ordinário dá
aos efeitos da decisão em sede de controle difuso8. Tal indicação assume relevo na
exposição do relator, porque está ele interessado em demonstrar que a percepção do que
seja a separação dos poderes mudou ao longo do tempo, inclusive para o legislador
ordinário. Que isso reste assentado é fundamental para que se possa sustentar a tese de
mutação constitucional que ele apresenta.
Para corroborar seu argumento o Ministro relator traz ainda a jurisprudência9, já
pacificada no Supremo, que permite seja flexibilizada a regra da reserva de plenário,
contida no art. 97 da Constituição Federal, sempre que o Supremo já houver, em sede de
controle difuso, apreciado a constitucionalidade do ato normativo em questão.
Assentou-se, portanto, que a razão de ser da reserva de plenário é a presunção de
constitucionalidade de que goza o ato normativo, elidida tal presunção por decisão do
pleno do Supremo, faculta-se aos órgãos fracionários dos demais tribunais e do próprio
STF declararem a inconstitucionalidade do ato normativo sem ser necessário o envio da
questão ao pleno ou ao órgão especial.
7 Art. 557-A, §1º acrescentado pela Lei 9756/98.
8 “Ainda que a questão pudesse comportar outras leituras, é certo que o legislador ordinário, com base na
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, considerou legítima a atribuição de efeitos ampliados à
decisão proferida pelo Tribunal, até mesmo em sede de controle de constitucionalidade incidental”
BRASIL, Reclamação 4335/AC, cit., p. 33.
9 Ver RE 190.728, Rel. Ilmar Galvão, 1ª Turma, DJ Publicado em 30.05.1997; AI 168149 AgR,
Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 26/06/1995, DJ 04-08-1995 PP-
22520 EMENT VOL-01794-19 PP-03994
Trata-se, nesse caso, para Streck et alii10, de hipóteses bastante distintas. Com
efeito, a flexibilização da reserva de plenário não envolve a restrição das competências
atribuídas a outro poder, não fragiliza, portanto, o princípio da separação entre os
poderes. Além disso, no caso da reserva do plenário, é possível encontrar no texto
constitucional respaldo para a inovação introduzida pela jurisprudência do Supremo. Ao
passo que atribuir ao Senado o papel de mero publicador das decisões do STF é
inconciliável com o texto do art. 52, X da Constituição Federal, o que não é permitido
pela nossa tradição jurídica romano-germânica, baseada nos estatutos escritos. Esse é
um dos pontos centrais da discussão: talvez haja certas incongruências no sistema de
controle de constitucionalidade estabelecido pela Constituição, mas isso não autoriza
que se passe a ignorar o texto constitucional. Tendo o poder constituinte originário e
difuso delineado o processo dessa forma, é mandatário que sua autoridade seja
preservada, até para que se não permita que a força normativa da Constituição reste
enfraquecida11.
Continuando a enumerar as hipóteses em que reconheceu-se, de algum modo,
efeitos gerais às decisões em sede de controle difuso, o Ministro Gilmar Mendes passa a
tratar da declaração de inconstitucionalidade de leis municipais. Nessas hipóteses, a
jurisprudência do Supremo, indo mais longe, considera vinculante não apenas a parte
dispositiva da sentença, mas também aos próprios fundamentos vinculantes12. O fato de
até os fundamentos das decisões tornarem-se vinculantes para futuras decisões judiciais,
demonstra que a jurisprudência do STF reconhece efeitos gerais às decisões em sede de
controle difuso.
Outra situação na qual tornou-se prescindível que o Senado suspenda a execução
do ato normativo para que a decisão em sede de controle difuso tenha efeitos gerais são
as ações coletivas. O Ministro relator não vê como uma declaração de
constitucionalidade proferida incidenter tantum em mandado de segurança coletivo
pode não gozar de efeitos gerais e abstratos. Nessas hipóteses, a resolução do Senado
não possuiria nenhum efeito, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade já teria
produzido amplos efeitos. O ministro consigna ainda que o STF já declarou prejudicada
ADI que tinha por objeto ato normativo já declarado inválido em mandado de segurança
coletivo julgado pelo STJ13. No mesmo sentido, a decisão em ação civil pública (ACP)
que declara alguma lei inconstitucional não precisa ser comunicada ao Senado, uma vez
que a Lei 7347/85, art. 16 dota a decisão da ACP de efeitos erga omnes.
10 STRECK, Lenio Luiz; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni
de. A Nova Perspectiva do Supremo Tribunal Federal Sobre o Controle Difuso: Mutação Constitucional
e Limites da Jurisdição Constitucional. Revista Argumenta: Revista do Curso de Mestrado em Ciência
Jurídica, da FUNDINOPI, n. 7. Jacarezinho, 2007, p. 57.
11 STRECK et alli,cit., p. 11.
12 RE 228.844/SP, Rel. Min. Maurício Correa, DJ de 16.6.1999; RE 221.795, Rel. Min Nelson Jobim, DJ
de 16.11.2000 e RE 364.160, Rel. Min Ellen Gracie, DJ de 7.2.2003
13 ADI 1.919, Rel. Min. Ellen Gracie prejudicado pelo RMS 11.824, Rel. Francisco Peçanha Martins, DJ
27.5.2002.
Para o ministro relator, todas essas alterações demonstram que, atualmente, a
jurisprudência e a própria legislação compartilham uma concepção bem diferente acerca
da separação entre os poderes, daquela em voga na época da criação do instituto.
Verifica-se igualmente uma tendência a aproximar ou mesmo igualar os efeitos dos dois
modelos de controle de constitucionalidade, o STF, como já apontado, atribui às
decisões em controle difuso efeitos gerais. Do mesmo modo, os procedimentos e as
finalidades do controle abstrato e difuso são, praticamente, as mesmas.
Em seu entender, essas diversas modificações, introduzidas após o advento da
Constituição de 1988, fizeram com que a suspensão da execução da lei pelo Senado
perdesse muito da sua razão de ser, tornando-se, verdadeiramente, obsoleta. Aqui o
Ministro Gilmar Mendes cogita de mutação constitucional, como aponta o Ministro
Eros Grau, não se trata de extrair uma norma do texto constitucional, mas de substituir,
informalmente, o próprio texto constitucional. Nada obstante o texto continue o mesmo,
o sentido a ser atribuído a ele muda radicalmente, sendo até incompatível com a redação
literal. Em razão de todas essas modificações é difícil, no entender do Ministro Gilmar
Mendes, não atribuir ao controle difuso – que é mais demorado que o abstrato e no qual
a discussão tem a possibilidade de melhor amadurecer – os mesmos efeitos do controle
abstrato.
Diante dessas transformação, propõe o Ministro Gilmar Mendes que se atribua à
decisão em controle difuso os mesmos efeitos gerais e abstratos, tal qual os possui a
decisão em controle abstrato. De forma que a competência do Senado Federal fique
restrita a dar publicidade à decisão do STF. A própria decisão do STF possuíria, nessa
sistemática, força normativa, sendo desnecessário, para tanto, que haja a intervenção do
Senado, reduzida a mero dever de publicar, semelhante ao atribuído ao Chanceler
Federal na Constituição Austríaca (art. 140, 5) e ao Ministro da Justiça pela Lei
Orgânica da Corte Constitucional Alemã, art. 31, (2) 14 . Dessa forma, considera o
Ministro, ficariam superadas as incongruências entre a jurisprudência do STF e
orientação dominante na legislação processual e a doutrina constitucional majoritária.
A comparação entre o sistema alemão e o austríaco é de todo indevida, como
aponta Nelson Nery15. Lá há apenas o controle abstrato, de maneira que não existe,
como existe aqui, um sistema híbrido de controle. Além disso, naqueles dois países a
corte constitucional não faz parte do judiciário, tem seus membros indicados pelos três
poderes com mandato certo, vedada a contínua ou posterior recondução.
Conforme já expusemos, a alteração proposta pelo Ministro Gilmar Mendes não
é admitida pelo Direito brasileiro. O judiciário não pode livremente atribuir sentido ao
14 BRASIL, Reclamação 4335/AC, cit., p. 55.
15 NERY JUNIOR, Nelson. O Senado Federal e o Controle Concreto de Constitucionalidade de Leis e de
Atos Normativos: Separação de Poderes, Poder Legislativo e Interpretação da CF 52, X. Disponível em
< http://www12.senado.gov.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/outras-
publicacoes/volume-iii-constituicao-de-1988-o-brasil-20-anos-depois.-a-consolidacao-das-
instituicoes/jurisdicao-constitucional-o-senado-federal-e-o-controle-concreto-de-constitucionalidade-de-
leis-e-de-atos-normativos-separacao-de-poderes-poder-legislativo-e-interpretacao-da-cf-52-x> Acesso
em <16 mar 2015>, pp. 4-5
texto constitucional, porque isso seria elevar o Poder Judiciário a Poder Constituinte16e,
cabe ao STF, segundo o caput do art. 102 da CF, a guarda da Constituição, não a
propriedade dela17.
Conforme demonstrado pelo Ministro relator, as incongruências, causadas
principalmente pela coexistência no Brasil do modelo americano e europeu, no sistema
de Controle de Constitucionalidade das leis pululam, e é função do STF reduzí-las, tanto
quanto possível. Só não é admissível que, com esse propósito, se esqueça das regras
estabelecidas pelo poder consituinte. Mais vale o respeito à vontade dos representantes
democráticos que a busca pela coerência interna do sistema. O texto é limite
intransponível para a capacidade criativa da interpretação. E em nenhuma hipótese é
possível aceitar que a redação do art. 52, X admita o sentido atribuído a ele pelo
Relator. Não pode ser competência privativa do Senado Federal publicar as decisões do
Supremo, porque aí nem se trataria de competência, mas sim de dever. Vem a propósito
Canotilho, para quem uma coisa são as transformações abrangidas pelo que se chama
programa normativo, outras são as interpretações incompatíveis com o texto, que
dariam origem a realidades constitucionais inconstitucionais 18 . Valendo-se dessa
distinção, estariamos diante, caso a decisão do Ministro relator prevalecesse, de uma
realidade constitucional inconstitucional.
Com efeito, no caso do voto do Ministro Gilmar Mendes não se trata de
interpretação, mas de reforma, uma vez que o texto constitucional é susbstituído por
outro, a ser promulgado pelos próprios juízes do Supremo. E esse não pode ser o papel
dos juízes em uma democracia, posto que não cabe ao judiciário, que não possui
legitimação democrática, inventar o Direito19.
No caso sob comento, caso a posição do Ministro Gilmar Mendes houvesse
prevalecido, o sistema de controle de constitucionalidade teria sido profundamente
modificado. Haveria uma virtual equiparação entre o controle abstrato e o concreto,
posto que a principal diferença entre os dois é a necessidade do Senado Federal se
manifestar para que a decisão em controle difuso adquira efeitos erga omnes, efeitos
esses que a decisão em controle abstrato possui ab initio.
E qual é a necessidade de que se mantenha os dois sistemas separados?
Conforme demonstrado pelo Ministro Gilmar Mendes, a jurisprudência do STF tem,
cada vez mais, buscado equiparar as duas formas de controle, e, com efeito, os mesmos
juízes que julgam o Recurso Extraordinário também julgam a Ação Direta e, em ambos
os casos, se exige o mesmo quórum de votação. A distinção entre as duas modalidades
de controle foi, no entanto, estabelecida pelo próprio poder constituinte e a existência
dessa distinção, no direito brasileiro, depende, fundamentalmente, de que se preserve a
referida competência do Senado: “se se entendesse que uma decisão em sede de
16 STRECK et alii, cit., p. 59.
17 NERY JUNIOR, op. cit., p. 9.
18 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.7ª ed. Coimbra:
Almedina, 2004, p. 1229.
19 STRECK et alii,cit., p. 59.
controle difuso tem a mesma eficácia que uma proferida em controle concentrado, cairia
por terra a própria diferença”20. Daí porque não se pode reformar informalmente o art.
52, X da CF, de modo a igualar os dois sistemas que, criados distintos pelo poder
constituinte, devem receber conformação distinta, porque “o que é diferente não pode
ter o mesmo tratamento jurídico.”21
Há, por outro lado, uma diferença essencial entre as duas formas de controle
que, como apontado por Nelson Nery22, impede que se atribua à decisão em controle
difuso os mesmos efeitos que a decisão em controle concentrado possui. O controle
incidental não constitui a causa de pedir, mas tão somente uma preliminar, em
consonância com o art. 472 do Código de Processo Civil, portanto nem mesmo entre as
partes essa decisão teria efeito de coisa julgada material. Por outro lado, no controle
concentrado a própria causa de pedir é a própria declaração de (in)constitucionalidade,
criando tal decisão coisa julgada com efeito erga omnes (art. 102, §2º, CF).
Considerações Finais
Cumprir o disposto no art. 52, X da Constituição Federal é, antes de tudo, uma
questão de respeito à Democracia e aos poderes instituídos23, como já explicitado, mas
envolve também a proteção aos direitos fundamentais, especialmente ao direito do
devido processo legal e da ampla defesa24, uma vez que, caso a tese do Ministro Gilmar
Mendes houvesse vencido, estar-se-ia diante de uma restrição indevida, porque contrária
ao disposto na Constituição, ao direito ao contraditório e à ampla defesa 25. Para o
ministro relator mesmo os cidadãos que não houvessem participado do processo judicial
originário devem ser afetados pela decisão sobre a constitucionalidade do ato normativo
tomada pela Suprema Corte em sede de controle difuso.
Não é inadmissível que a decisão sobre a constitucionalidade tomada pelo STF
vincule as instâncias inferiores e afaste a posterior discussão judicial acerca do tema, em
outras ações. Essa não é, no entanto, a regra. Somente nos casos expressamente
previstos poderá a decisão do STF ser dotada de efeito vinculante, sob pena de se
restringir o direito a ampla defesa e ao contraditório indevidamente.
Com efeito, o que se dá no caso em exame é exatamente o reverso: há uma
garantia constitucional de que apenas com a chancela dos representantes eleitos a
decisão sobre a constitucionalidade do ato normativo tomada em controle difuso terá
eficácia geral. Portanto, essa garantia, instituída pelo poder constituinte originário, não
pode ser extinta, nem mesmo pelo legislativo 26, sem que se agrida frontalmente a
Constituição brasileira, negando-lhe vigência.
20 STRECK et alii,cit., p. 51.
21 NERY JUNIOR, cit., p.5.
22 NERY JUNIOR, cit., passim.
23 STRECK et alii,cit., p. 53.
24 STRECK et alii,cit., p. 53.
25 STRECK et alii,cit., pp. 52-53
26 NERY JUNIOR, cit., p. 6.
Análise do Voto do Min. Gilmar Mendes na Reclamação 4335-5/AC

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Análise do Voto do Min. Gilmar Mendes na Reclamação 4335-5/AC

  • 1. Análise do Voto do Min. Gilmar Mendes na Reclamação 4335-5/AC Igor de Araújo Vilella Introdução O presente artigo apresenta e discute os argumentos utilizados pelo Ministro Gilmar Mendes, relator da causa, na Reclamação 4335-5. Uma vez que o Ministro é o principal defensor, na Corte Suprema, da posição segundo a qual houve mutação constitucional do Art. 52, X da Constituição Federal, é imprescindível, para melhor se entender a questão, que seus argumentos sejam esmiuçados. Além de expor os argumentos, buscar-se-á problematizá-los e, para tanto, apresentar-se-á outras compreensões acerca do tema. O caso Trata-se de reclamação ajuízada pela Defensoria Pública da União em face do juízo de execuções penais de Rio Branco que, segundo a reclamante, deixou de aplicar a decisão do Supremo contida no HC 82.959, segundo a qual a vedação de progressão de regime aos condenados pela prática de crimes hediondos, contida no art. 2º, § 1º da Lei 8072/90, é inconstitucional. Com base na decisão proferida no HC 82.959, a Defensoria Pública solicitou a progressão do regime de alguns presos por prática de crime hediondo, o que foi denegado pelo juízo da vara de execuções. Segundo o reclamado, a decisão de inconstitucionalidade proferida no HC 82.959 teria efeito apenas inter partes, sem aptidão, portanto, de vincular futuras decisões judiciais. Ainda de acordo com o juízo de execuções penais, para que uma decisão de inconstitucionalidade incidenter tantum tenha efeito ergam omnes é imperativo que o Senado Federal, em decisão discricionária, após ter sido comunicado do julgamento pelo STF, suspenda a validade da lei em questão, segundo o teor do Art. 52, X da Constituição Federal. Dessa decisão do juízo a quo a Defensoria Pública ingressou com reclamação perante o Supremo Tribunal Federal. O Voto A questão cinge-se a determinar se é ou não necessário que o Senado suspenda a execução da Lei declarada inconstitucional incidenter tantum para que tal decisão produza efeitos gerais e abstratos. Para adentrar-se no tema, o Ministro relator tece comentários a respeito das origens do papel do Senado federal no controle difuso de constitucionalidade. Segundo o Ministro, essa competência foi dada ao Senado Federal, incialmente, como uma maneira de emprestar efeito erga omnes às decisões proferidas pelo Supremo em decisões em sede de controle difuso. A originalidade do instituto, no entanto, despertou uma série de problemas dogmáticos.
  • 2. Para Lúcio Bittencourt1, o papel do Senado sempre se resumiu a apenas tornar pública a decisão do Senado, porque a declaração de nulidade, para surtir efeitos, não pode depender de um juízo político. Alinhando-se a esse posicionamento, o Ministro Gilmar Mendes argumenta que essa posição é única que se coaduna com a teoria da nulidade da lei inconstitucional. Atribuir um sentido substantivo ao papel do Senado seria o mesmo que negar a nulidade da lei declarada inconstitucional pelo órgão de cúpula do judiciário. Ainda mais porque não pode o ato nulo ter seu efeito suspenso, porque o que é nulo não gera, por definição, efeito algum2. Entretanto, tal posicionamento sempre foi minoritário, a maioria dos constitucionalistas entendia que a resolução do Senado tinha a capacidade de expandir os efeitos do julgamento do Supremo, que, per si, produzia apenas efeitos inter partes, de modo a tornar seus efeitos erga omnes. E esse, de fato, era o propósito dos Deputados Constituintes de 1934 e 1946, conforme se comprova da leitura dos excertos do trabalho de Ana Alencar citados pelo Ministro Gilmar Mendes.3 Nos discursos dos deputados nota-se inclusive que o sentido teleológico de tal instrumento seria servir como meio apto a criar economia processual, já que, desse modo, se afastaria a necessidade de todos os prejudicados pela mesma lei inconstitucional buscarem o judiciário. A jurisprudência do STF, nesse primeiro momento, aderiu ao posicionamento doutrinariamente majoritário4. Segundo o entendimento do ministro Gilmar Mendes, tal posicionamento se ajustava ao sistema de controle de constitucionalidade de leis vigente no período anterior a Constituição de 1988, uma vez que nesse período a ação direta só poderia ser manejada pelo Procurador-Geral da República, o que impedia um completo desenvolvimento do controle abstrato de constitucionalidade. O que se dava, de rigor, era que a ação direta era a exceção, sendo a maioria dos pronunciamentos acerca da constitucionalidade das leis proferido em sede de controle concreto. Não havia, nesse período, muita distância entre o modelo misto brasileiro, no qual conviviam o modelo norte-americano e o europeu, e outros modelos de controle difuso, dado o papel menor exercido pela Ação Direta nesse contexto, nas palavras do Ministro Gilmar Mendes: “o controle direto continuava a ser algo acidental e episódico dentro do sistema difuso”5. Dessa forma, resguardava-se, no raciocínio do Ministro, um conceito historicamente condicionado de separação de poderes, segundo o qual somente em casos excepcionais 1 BITTENCOURT, Lucio. O Controle Jurisdicional de Constitucionalidade da Leis. Série Arquivos do Ministério de Justiça. Brasília: Ministério da Justiça, 1997, p.145. 2 BITTENCOURT, op. cit., p. 145 3 ALENCAR, Ana Valderez Ayres Neves. A competência do Senado Federal para suspender a execução dos atos declarados inconstitucionais. Revista de informação legislativa, v. 15, n. 57, p. 223-328, jan./mar. 1978. 4 Mandado de Segurança 16.512, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro. 5 BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Reclamação 4335/AC, Rel. Ministro GILMAR MENDES, PLENO, julgado em 20/03/2014, DJe-208 DIVULG 21-10-2014 PUBLIC 22-10-2014, p. 35.
  • 3. o Supremo poderia retirar do ordenamento lei tida por inconstitucional sem que o Senado Federal editasse resolução suspendendo a eficácia da norma em questão6. Depois da promulgação da Constituição de 1988, o número dos legitimados para propor a ação direta cresceu significativamente, mas também foram ampliadas as hipóteses de cabimento do controle abstrato, com a posterior criação da Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) e com a regulamentação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Essa amplitude, combinada com a possibilidade do Supremo suspender liminarmente a validade de lei considerada inconstitucional fortaleceram, na visão do ministro Gilmar Mendes, o controle abstrato de constitucionalidade, de modo a romper com uma antiga concepção de divisão de poderes, concepção no seio da qual o instituto atualmente albergado no art. 52, X da Constituição Federal teve origem. Com efeito, atualmente, a competência do Supremo para atuar como legislador negativo é exercida amplamente, não possuindo mais o caráter de exceção que possuía durante a vigência das outras constituições brasileiras. De maneira que quase a totalidade das questões constitucionais passou a ser resolvida por meio do controle abstrato. Por outro lado, como outra manifestação da obsolescência do instituto, o Ministro relator indica a incompatibilidade da resolução suspensiva do Senado com as novas técnicas de decisão utilizadas no controle de constitucionalidade concreto. Criado para uma época em que as decisões da jurisdição constitucional se resumiam a declarar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma em apreço, não pode causar espécie a inutilidade da declaração suspensiva do Senado naquilo que toca a declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto ou nos casos de modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Como esse tipo de decisão não implica na supressão da norma inconstitucional, não pode, portanto, ser alvo da resolução a que se refere o Art. 52, X da Constituição Federal de 1988, que é, portanto, incapaz de dotar essas novas espécies de decisão de efeitos transcendentes. Aqui caberia indagação a respeito da possibilidade da resolução do Senado Federal ter sofrido mutação em outro sentido. A ampliação das técnicas decisionais, tendo ocorrido depois da concepção do instituto, bem poderia ser absorvida pela resolução do art. 52, X, de maneira que, por meio dela, o Senado Federal também pudesse tornar gerais os efeitos de decisão concreta que tenha, por exemplo, promovido interpretação de ato normativo segundo a Constituição, modulado os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou, até mesmo, declarado a constitucionalidade de ato impugnado. Outro ponto levantado pelo Relator diz respeito às diversas alterações introduzidas na legislação processual que possuem o condão de aproximar os efeitos do controle difuso daqueles típicos dos efeitos do controle concentrado. Sem dúvida, há no 6 Até a possibilidade da Representação, por si só, retirar a validade da lei declarada inconstitucional teve lenta aceitação, somente restou estabelecido a desenecessidade da participação do Senado no controle concentrado de constitucionalidade em 1977. Cf. BRASIL, Supremo Tribunal Federal, cit., p. 26.
  • 4. dispositivo da Lei 8.038/90 que permite ao relator, no curso de Recurso Especial ou Recurso Extraordinário, negar seguimento ao recurso que contrarie súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça uma inegável tendência a aproximar os efeitos das decisões proferidas em sede de controle abstrato e aquelas exaradas incidenter tantum. A mesma tendência se sente na alteração do Código de Processo Civil7 que autoriza o Relator de recurso a dar provimento ao pedido, sempre que a decisão recorrida estiver em manifesto desacordo com súmula ou jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal ou de Tribunal Superior. Em ambas as alterações teve por bem o legislador extender os efeitos do julgado pelo Supremo Tribunal para além das partes envolvidas na causa originária. O Ministro relator consigna que essa possibilidade abrange também a jurisprudência constitucional consolidada que dê, por exemplo, interpretação conforme a constituição a determinado dispositivo, e todas as demais hipóteses já referidas nas quais a resolução suspensiva do Senado é inaplicável. Aqui é possível argumentar que o relator incorre no erro de interpretar a Constituição de acordo com a legislação ordinária. Tal crítica não se mostraria hígida, posto que o propósito do Ministro Gilmar Mendes não é interpretar a Constituição à luz das leis ordinárias, mas apenas consignar a interpretação que o legislador ordinário dá aos efeitos da decisão em sede de controle difuso8. Tal indicação assume relevo na exposição do relator, porque está ele interessado em demonstrar que a percepção do que seja a separação dos poderes mudou ao longo do tempo, inclusive para o legislador ordinário. Que isso reste assentado é fundamental para que se possa sustentar a tese de mutação constitucional que ele apresenta. Para corroborar seu argumento o Ministro relator traz ainda a jurisprudência9, já pacificada no Supremo, que permite seja flexibilizada a regra da reserva de plenário, contida no art. 97 da Constituição Federal, sempre que o Supremo já houver, em sede de controle difuso, apreciado a constitucionalidade do ato normativo em questão. Assentou-se, portanto, que a razão de ser da reserva de plenário é a presunção de constitucionalidade de que goza o ato normativo, elidida tal presunção por decisão do pleno do Supremo, faculta-se aos órgãos fracionários dos demais tribunais e do próprio STF declararem a inconstitucionalidade do ato normativo sem ser necessário o envio da questão ao pleno ou ao órgão especial. 7 Art. 557-A, §1º acrescentado pela Lei 9756/98. 8 “Ainda que a questão pudesse comportar outras leituras, é certo que o legislador ordinário, com base na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, considerou legítima a atribuição de efeitos ampliados à decisão proferida pelo Tribunal, até mesmo em sede de controle de constitucionalidade incidental” BRASIL, Reclamação 4335/AC, cit., p. 33. 9 Ver RE 190.728, Rel. Ilmar Galvão, 1ª Turma, DJ Publicado em 30.05.1997; AI 168149 AgR, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 26/06/1995, DJ 04-08-1995 PP- 22520 EMENT VOL-01794-19 PP-03994
  • 5. Trata-se, nesse caso, para Streck et alii10, de hipóteses bastante distintas. Com efeito, a flexibilização da reserva de plenário não envolve a restrição das competências atribuídas a outro poder, não fragiliza, portanto, o princípio da separação entre os poderes. Além disso, no caso da reserva do plenário, é possível encontrar no texto constitucional respaldo para a inovação introduzida pela jurisprudência do Supremo. Ao passo que atribuir ao Senado o papel de mero publicador das decisões do STF é inconciliável com o texto do art. 52, X da Constituição Federal, o que não é permitido pela nossa tradição jurídica romano-germânica, baseada nos estatutos escritos. Esse é um dos pontos centrais da discussão: talvez haja certas incongruências no sistema de controle de constitucionalidade estabelecido pela Constituição, mas isso não autoriza que se passe a ignorar o texto constitucional. Tendo o poder constituinte originário e difuso delineado o processo dessa forma, é mandatário que sua autoridade seja preservada, até para que se não permita que a força normativa da Constituição reste enfraquecida11. Continuando a enumerar as hipóteses em que reconheceu-se, de algum modo, efeitos gerais às decisões em sede de controle difuso, o Ministro Gilmar Mendes passa a tratar da declaração de inconstitucionalidade de leis municipais. Nessas hipóteses, a jurisprudência do Supremo, indo mais longe, considera vinculante não apenas a parte dispositiva da sentença, mas também aos próprios fundamentos vinculantes12. O fato de até os fundamentos das decisões tornarem-se vinculantes para futuras decisões judiciais, demonstra que a jurisprudência do STF reconhece efeitos gerais às decisões em sede de controle difuso. Outra situação na qual tornou-se prescindível que o Senado suspenda a execução do ato normativo para que a decisão em sede de controle difuso tenha efeitos gerais são as ações coletivas. O Ministro relator não vê como uma declaração de constitucionalidade proferida incidenter tantum em mandado de segurança coletivo pode não gozar de efeitos gerais e abstratos. Nessas hipóteses, a resolução do Senado não possuiria nenhum efeito, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade já teria produzido amplos efeitos. O ministro consigna ainda que o STF já declarou prejudicada ADI que tinha por objeto ato normativo já declarado inválido em mandado de segurança coletivo julgado pelo STJ13. No mesmo sentido, a decisão em ação civil pública (ACP) que declara alguma lei inconstitucional não precisa ser comunicada ao Senado, uma vez que a Lei 7347/85, art. 16 dota a decisão da ACP de efeitos erga omnes. 10 STRECK, Lenio Luiz; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. A Nova Perspectiva do Supremo Tribunal Federal Sobre o Controle Difuso: Mutação Constitucional e Limites da Jurisdição Constitucional. Revista Argumenta: Revista do Curso de Mestrado em Ciência Jurídica, da FUNDINOPI, n. 7. Jacarezinho, 2007, p. 57. 11 STRECK et alli,cit., p. 11. 12 RE 228.844/SP, Rel. Min. Maurício Correa, DJ de 16.6.1999; RE 221.795, Rel. Min Nelson Jobim, DJ de 16.11.2000 e RE 364.160, Rel. Min Ellen Gracie, DJ de 7.2.2003 13 ADI 1.919, Rel. Min. Ellen Gracie prejudicado pelo RMS 11.824, Rel. Francisco Peçanha Martins, DJ 27.5.2002.
  • 6. Para o ministro relator, todas essas alterações demonstram que, atualmente, a jurisprudência e a própria legislação compartilham uma concepção bem diferente acerca da separação entre os poderes, daquela em voga na época da criação do instituto. Verifica-se igualmente uma tendência a aproximar ou mesmo igualar os efeitos dos dois modelos de controle de constitucionalidade, o STF, como já apontado, atribui às decisões em controle difuso efeitos gerais. Do mesmo modo, os procedimentos e as finalidades do controle abstrato e difuso são, praticamente, as mesmas. Em seu entender, essas diversas modificações, introduzidas após o advento da Constituição de 1988, fizeram com que a suspensão da execução da lei pelo Senado perdesse muito da sua razão de ser, tornando-se, verdadeiramente, obsoleta. Aqui o Ministro Gilmar Mendes cogita de mutação constitucional, como aponta o Ministro Eros Grau, não se trata de extrair uma norma do texto constitucional, mas de substituir, informalmente, o próprio texto constitucional. Nada obstante o texto continue o mesmo, o sentido a ser atribuído a ele muda radicalmente, sendo até incompatível com a redação literal. Em razão de todas essas modificações é difícil, no entender do Ministro Gilmar Mendes, não atribuir ao controle difuso – que é mais demorado que o abstrato e no qual a discussão tem a possibilidade de melhor amadurecer – os mesmos efeitos do controle abstrato. Diante dessas transformação, propõe o Ministro Gilmar Mendes que se atribua à decisão em controle difuso os mesmos efeitos gerais e abstratos, tal qual os possui a decisão em controle abstrato. De forma que a competência do Senado Federal fique restrita a dar publicidade à decisão do STF. A própria decisão do STF possuíria, nessa sistemática, força normativa, sendo desnecessário, para tanto, que haja a intervenção do Senado, reduzida a mero dever de publicar, semelhante ao atribuído ao Chanceler Federal na Constituição Austríaca (art. 140, 5) e ao Ministro da Justiça pela Lei Orgânica da Corte Constitucional Alemã, art. 31, (2) 14 . Dessa forma, considera o Ministro, ficariam superadas as incongruências entre a jurisprudência do STF e orientação dominante na legislação processual e a doutrina constitucional majoritária. A comparação entre o sistema alemão e o austríaco é de todo indevida, como aponta Nelson Nery15. Lá há apenas o controle abstrato, de maneira que não existe, como existe aqui, um sistema híbrido de controle. Além disso, naqueles dois países a corte constitucional não faz parte do judiciário, tem seus membros indicados pelos três poderes com mandato certo, vedada a contínua ou posterior recondução. Conforme já expusemos, a alteração proposta pelo Ministro Gilmar Mendes não é admitida pelo Direito brasileiro. O judiciário não pode livremente atribuir sentido ao 14 BRASIL, Reclamação 4335/AC, cit., p. 55. 15 NERY JUNIOR, Nelson. O Senado Federal e o Controle Concreto de Constitucionalidade de Leis e de Atos Normativos: Separação de Poderes, Poder Legislativo e Interpretação da CF 52, X. Disponível em < http://www12.senado.gov.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/outras- publicacoes/volume-iii-constituicao-de-1988-o-brasil-20-anos-depois.-a-consolidacao-das- instituicoes/jurisdicao-constitucional-o-senado-federal-e-o-controle-concreto-de-constitucionalidade-de- leis-e-de-atos-normativos-separacao-de-poderes-poder-legislativo-e-interpretacao-da-cf-52-x> Acesso em <16 mar 2015>, pp. 4-5
  • 7. texto constitucional, porque isso seria elevar o Poder Judiciário a Poder Constituinte16e, cabe ao STF, segundo o caput do art. 102 da CF, a guarda da Constituição, não a propriedade dela17. Conforme demonstrado pelo Ministro relator, as incongruências, causadas principalmente pela coexistência no Brasil do modelo americano e europeu, no sistema de Controle de Constitucionalidade das leis pululam, e é função do STF reduzí-las, tanto quanto possível. Só não é admissível que, com esse propósito, se esqueça das regras estabelecidas pelo poder consituinte. Mais vale o respeito à vontade dos representantes democráticos que a busca pela coerência interna do sistema. O texto é limite intransponível para a capacidade criativa da interpretação. E em nenhuma hipótese é possível aceitar que a redação do art. 52, X admita o sentido atribuído a ele pelo Relator. Não pode ser competência privativa do Senado Federal publicar as decisões do Supremo, porque aí nem se trataria de competência, mas sim de dever. Vem a propósito Canotilho, para quem uma coisa são as transformações abrangidas pelo que se chama programa normativo, outras são as interpretações incompatíveis com o texto, que dariam origem a realidades constitucionais inconstitucionais 18 . Valendo-se dessa distinção, estariamos diante, caso a decisão do Ministro relator prevalecesse, de uma realidade constitucional inconstitucional. Com efeito, no caso do voto do Ministro Gilmar Mendes não se trata de interpretação, mas de reforma, uma vez que o texto constitucional é susbstituído por outro, a ser promulgado pelos próprios juízes do Supremo. E esse não pode ser o papel dos juízes em uma democracia, posto que não cabe ao judiciário, que não possui legitimação democrática, inventar o Direito19. No caso sob comento, caso a posição do Ministro Gilmar Mendes houvesse prevalecido, o sistema de controle de constitucionalidade teria sido profundamente modificado. Haveria uma virtual equiparação entre o controle abstrato e o concreto, posto que a principal diferença entre os dois é a necessidade do Senado Federal se manifestar para que a decisão em controle difuso adquira efeitos erga omnes, efeitos esses que a decisão em controle abstrato possui ab initio. E qual é a necessidade de que se mantenha os dois sistemas separados? Conforme demonstrado pelo Ministro Gilmar Mendes, a jurisprudência do STF tem, cada vez mais, buscado equiparar as duas formas de controle, e, com efeito, os mesmos juízes que julgam o Recurso Extraordinário também julgam a Ação Direta e, em ambos os casos, se exige o mesmo quórum de votação. A distinção entre as duas modalidades de controle foi, no entanto, estabelecida pelo próprio poder constituinte e a existência dessa distinção, no direito brasileiro, depende, fundamentalmente, de que se preserve a referida competência do Senado: “se se entendesse que uma decisão em sede de 16 STRECK et alii, cit., p. 59. 17 NERY JUNIOR, op. cit., p. 9. 18 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.7ª ed. Coimbra: Almedina, 2004, p. 1229. 19 STRECK et alii,cit., p. 59.
  • 8. controle difuso tem a mesma eficácia que uma proferida em controle concentrado, cairia por terra a própria diferença”20. Daí porque não se pode reformar informalmente o art. 52, X da CF, de modo a igualar os dois sistemas que, criados distintos pelo poder constituinte, devem receber conformação distinta, porque “o que é diferente não pode ter o mesmo tratamento jurídico.”21 Há, por outro lado, uma diferença essencial entre as duas formas de controle que, como apontado por Nelson Nery22, impede que se atribua à decisão em controle difuso os mesmos efeitos que a decisão em controle concentrado possui. O controle incidental não constitui a causa de pedir, mas tão somente uma preliminar, em consonância com o art. 472 do Código de Processo Civil, portanto nem mesmo entre as partes essa decisão teria efeito de coisa julgada material. Por outro lado, no controle concentrado a própria causa de pedir é a própria declaração de (in)constitucionalidade, criando tal decisão coisa julgada com efeito erga omnes (art. 102, §2º, CF). Considerações Finais Cumprir o disposto no art. 52, X da Constituição Federal é, antes de tudo, uma questão de respeito à Democracia e aos poderes instituídos23, como já explicitado, mas envolve também a proteção aos direitos fundamentais, especialmente ao direito do devido processo legal e da ampla defesa24, uma vez que, caso a tese do Ministro Gilmar Mendes houvesse vencido, estar-se-ia diante de uma restrição indevida, porque contrária ao disposto na Constituição, ao direito ao contraditório e à ampla defesa 25. Para o ministro relator mesmo os cidadãos que não houvessem participado do processo judicial originário devem ser afetados pela decisão sobre a constitucionalidade do ato normativo tomada pela Suprema Corte em sede de controle difuso. Não é inadmissível que a decisão sobre a constitucionalidade tomada pelo STF vincule as instâncias inferiores e afaste a posterior discussão judicial acerca do tema, em outras ações. Essa não é, no entanto, a regra. Somente nos casos expressamente previstos poderá a decisão do STF ser dotada de efeito vinculante, sob pena de se restringir o direito a ampla defesa e ao contraditório indevidamente. Com efeito, o que se dá no caso em exame é exatamente o reverso: há uma garantia constitucional de que apenas com a chancela dos representantes eleitos a decisão sobre a constitucionalidade do ato normativo tomada em controle difuso terá eficácia geral. Portanto, essa garantia, instituída pelo poder constituinte originário, não pode ser extinta, nem mesmo pelo legislativo 26, sem que se agrida frontalmente a Constituição brasileira, negando-lhe vigência. 20 STRECK et alii,cit., p. 51. 21 NERY JUNIOR, cit., p.5. 22 NERY JUNIOR, cit., passim. 23 STRECK et alii,cit., p. 53. 24 STRECK et alii,cit., p. 53. 25 STRECK et alii,cit., pp. 52-53 26 NERY JUNIOR, cit., p. 6.