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CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE
FRANCISCANA
39
Editorial Franciscana
BRAGA - 2010
Ficha Técnica
Coordenador:
Fr. José António Correia Pereira, ofm
Editorial Franciscana
Apt. 1217
4711-856 BRAGA
Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735
E-mail: edfranciscana@editorialfranciscana.org
Edição on-line no site:
www.editorialfranciscana.org
Capa:
Desenho de Fr. José Morais, ofm
Edição:
Editorial Franciscana
Propriedade:
Província Portuguesa da Ordem Franciscana
Depósito Legal: 14549/94
I. S. B. N.: 972-9190-46-1
Caderno 39 - 2010
Cada número dos Cadernos é vendido avulso
3
Índice
I — Estudos
1. José Arregui, ofm
— A Oração diante do Crucifixo de S. Damião
‒ Releitura para uma “nova” espiritualidade ‒ ................................ 5
2. Jacques Dalarum, ofm
— Francisco e Clara, masculino/feminino em Assis
no século XIII ......................................................................... 27
3. Maria Clara Stuchi, osc
— A vocação e missão das Irmãs Pobres ..................................... 43
4. Papa Bento XVI
— Três Catequeses sobre:
Santa Clara, Beata Ângela de Folinho e Santa Isabel da Hungria ...... 61
5
I — Estudos
AORAÇÃO DIANTE DO CRUCIFIXO DE S. DAMIÃO
‒ Releitura para uma “nova” espiritualidade ‒
José Arregui, ofm*
—————
*
Artigo das Selecciones de Franciscanismo XXXIX (2010) 65-85.
6
AORAÇÃO DIANTE DO CRUCIFIXO DE S. DAMIÃO
‒ Releitura para uma “nova” espiritualidade ‒
Ó glorioso Deus altíssimo,
ilumina as trevas do meu coração,
concede-me uma fé verdadeira,
uma esperança firme e um amor perfeita;
Mostra-me, Senhor, o sentido (reto) e conhecimento,
a fim de que possa cumprir
o sagrado encargo que na verdade
acabas de dar-me. Ámen1
.
Proponho um comentário simples e livre desta “Oração diante do
Crucifixo de S. Damião” de S. Francisco de Assis, que não deseja ser
mais que simples indicações de uma releitura a partir das categorias
culturais e espirituais da actualidade.
A oração chegou-nos na língua materna de Francisco, o italiano
incipiente da época. É sugestivo o facto de que as únicas orações do
Poverello que se conservam em italiano sejam esta e o cântico do Irmão
Sol. A primeira evoca-nos o princípio vacilante da sua busca espiritual. A
segunda transporta-nos aos últimos tempos da vida terrena, unindo-se a
todas as criaturas num louvor ao Deus da vida, qual andorinha que não
cessa de cantar enquanto voa e sobe cada vez mais alto. Ambas têm uma
profunda relação com aquela bendita capela de S. Damião, nos arredores
—————
1
Citaremos os Escritos de S. Francisco e Santa Clara a partir da edição da Editorial
Franciscana: FONTES FRANCISCANAS I (FFI), Escritos, biografias, Documentos, 3ª
ed. Ed. Franciscana, Braga 2005; FONTES FRANCISCANAS II (FFII), Escritos,
biografias, documentos, Ed. Franciscana, Braga 1996.
7
de Assis. Fala do que ele busca e vive, do sofrimento e da alegria e fá-lo
na sua língua materna.
A oração diante do Crucifixo de S. Damião remete-nos directa-
mente para 1205-1206, anos em que Francisco, com 25/26 anos, busca
um rumo para a sua vida. É um tempo de indecisão e procura, num pro-
cesso de discernimento. Não sabe o que quer, mas vai percebendo cada
vez melhor o que não quer ser: nem cavaleiro, nem comerciante. O
encontro com os leprosos tocou-o profundamente. Representam os últi-
mos, mesmo que não sejam os únicos. E sente fortemente que o seu
destino não pode separar-se destes abandonados. Quando contempla
Jesus crucificado, vê-os a eles. E quando dá com os olhos neles, vê Jesus
crucificado.
Na realidade, a busca de Francisco não durou só dois anos, mas
toda a sua vida, que não foi muito longa (morreu com 45 anos). Viveu
sempre em discernimento, na busca permanente da vontade de Deus,
vontade esta que não está predeterminada e que nunca nos vem ditada de
fora, mas que brota da raiz mesma do próprio querer e dos quereres
alheios. Formalmente é um texto sumamente polido e estilizado, de uma
precisão de vocabulário e de um tal ritmo, que supõe uma elaboração
muito cuidada. Certamente que não a compôs aos 24 anos. Sabemos que
a recitou ao longo da vida e a aconselhava os seus irmãos, para que a
recitassem.
Francisco viveu em cheio ‒ fins do século XII, princípios de século
XIII ‒ numa época de encruzilhada histórica, cultural, social e eclesial.
Que se tornou também numa encruzilhada espiritual. Intuiu que um novo
tempo estava a nascer e busca uma forma de vida e uma espiritualidade
para novos tempos. Busca algo diferente. Quer outra Igreja. Vislumbra
outro mundo. E também “outro” Deus. Sente-se atraído por outra forma
de vida, uma outra maneira de seguir Jesus, um estilo de vida diferente da
dos monges e dos “leicos”, algo entre mosteiro e “mundo”, entre a “vida
religiosa” de então e a “vida secular”. E reza, pelo descampado, a cami-
nho dos leprosos, na solidão habitada da ermida semidestruída de São
Damião, perante o belo ícone de Jesus crucificado, de estilo bizantino-
-úmbrio. Reza com as palavras que lhe saem do coração e da mente. A
experiência espiritual transforma-se em palavras e as palavras soam a
8
suspiros que irradiam vida, animam-nos a olhar e a sentir em profundi-
dade e a buscar com a liberdade de espírito as nossas próprias palavras.
É uma oração profundamente actual, muito própria para este tempo
de busca. É frequente dizer-se que a nossa época é de mudança cultural,
um câmbio de paradigma, a emergência de uma nova era. Alguns estudio-
sos falam num tempo axial. Panikkar diria que nos encontramos no
epicentro de uma mutação cultural como poucas se deram na história
humana. Alguns, inclusivamente, atrevem-se a dizer que esta mudança é
similar à que se produziu na passagem do paleolítico ao neolítico. Outros
vão mais longe e afirmam ‒ reportando-se a Darwin ‒ que é um passo
semelhante ao que se produziu há dois milhões de anos, na passagem dos
primatas ao ser humano2
.
Nesta época, a espiritualidade não só não vai desaparecer, mas vai
recobrar novo vigor e crescente actualidade. Os homens e as mulheres da
nova geração necessitam e buscam espiritualidade, como necessitam e
buscam alento, paz, interioridade, beleza, profundidade e harmonia inte-
gral. Mas as profundas transformações culturais implicam e requerem
transformações profundas na espiritualidade tradicional, nas categorias
teológicas, na maneira de ler a Bíblia, de entender a Deus e na forma de
olhar as outras religiões.
A religião tem futuro, mas não necessariamente as religiões que
hoje conhecemos. Muitos dados fazem pensar que a cristandade, com a
visão tradicional dos dogmas, da instituição clerical e hierárquica, se está
a esgotar e carece de futuro, porque se tornou incompreensível à cultura
actual. «Muitos grupos, muitas instituições aparecem e desaparecem. No
entanto, há um sentimento busca. Jesus não fundou nenhuma religião,
deixando assim a porta aberta para que os seus discípulos criassem a reli-
gião mais adaptada à sua cultura, o que se fez inconscientemente, ou seja,
sem que ninguém soubesse que se estava a construir uma religião nova.
Por isso, essa religião que conhecemos e praticamos formou-se dentro do
Império romano, e é uma realidade histórica. Outras podem aparecer.
Estamos no começo da história do mundo e da evangelização. Até agora
o cristianismo só penetrou numa cultura (com duas variantes), a partir do
—————
2
Cf. MARTINEZ LOZANO, E., “La crisis del sujeto en un câmbio de época”, no XVII
Fórum Religioso popular de Vitoria (2009).
9
que havia no Império romano. Podemos considerar que seja só um
começo, uma primeira etapa»3
.
«Precisamos de uma religião. Mas nada exige que seja a mesma no
Ocidente, na África, na Índia, na China ou no Japão. Nesses países há
muita simpatia pelo cristianismo, mas pouca simpatia pelas Igrejas. É um
sinal para o futuro»4
.
Situo-me nesta perspectiva, e é a partir daqui que apresento algu-
mas reflexões livres à volta desta bela oração. É uma oração que nos con-
vida a redescobrir a paz na pergunta, a paz na busca de novas linguagens
e paradigmas de espiritualidade. É uma oração própria do nosso tempo,
de mudança epocal e de “nova espiritualidade”. Não me proponho ler e
compreender Francisco a partir da sua época, mas a partir da nossa. Não
me interessa tanto descobrir a imagem de Deus e as categorias espirituais
que Francisco usou no seu tempo, mas imagens e categorias que se
enquadrem na actualidade. Toda a leitura é uma reinterpretação a partir
de uma perspectiva nova. A questão que me interessa é: que significa
espiritualidade hoje? A qual espiritualidade nos chama hoje o Espírito. A
que transformações espirituais nos chama a profunda transformação
cultural que vivemos?
1. Ó glorioso Deus altíssimo
Assim começa Francisco a oração e assim começará muitas outras:
dirigindo-se a Deus com admiração e encanto. Invocando e encantando-
-se. A invocação e o encanto, a fonte e a profundidade da espiritualidade,
constituem o mais genuíno da experiência religiosa. É a dimensão mística
que, ao lado da compaixão “política”, é o essencial de toda a religião. A
invocação e o encanto são o mais importante e o mais autêntico da
oração. O que pensamos, o que dizemos e o que pedimos não é tão
importante.
Francisco tem uma imagem de Deus e utiliza uns termos concretos
para O designar. Serve-se de imagens e termos próprios da sua cultura.
Mas isso não é o essencial. Quando fala de Deus, Francisco faz falar por
dentro todas as imagens e categorias. Designa a Deus “alto e glorioso”.
—————
3
COMBLIN, J., http: //servicioskoinonia.org.relat
4
Ibid
10
“Altus” em latim significa alto e profundo ao mesmo tempo. Francisco
fala da altura de Deus, mas é impressionante que insista sobretudo na
descida de Deus, na sua proximidade humana, na solidariedade crucifi-
cada. Deus é para Francisco “Jesus pobre e crucificado”. Imagina Deus
nas alturas e nem podia imaginá-lo de outra maneira, tendo em conta a
cosmovisão de então (com o céu em cima e a terra em baixo), mas, na
realidade, situa Deus sobretudo na descida, na proximidade. Numa época
em que, tanto na sociedade feudal e imperial como na Igreja clerical
(também ela feudal e imperial) tudo remete para o poder, é muito
significativo que Francisco nos fale tão insistentemente da “humildade”
de Deus. Deus está sobretudo na descida, no mais pequeno e no mais
profundo de todas as criaturas.
Deus também é qualificado de “glorioso”. Que significa “glorioso”?
Sugere-nos o sentido de “celeste”, “excelso”, “espectacular”, “gran-
dioso”, “importante”… No entanto, para Francisco a “glória” de Deus
revela-se sobretudo no pequeno e insignificante. A glória de Deus é a
irradiação da sua divindade, da sua beleza e bondade no mundo. Mas
onde se reflecte no mundo a beleza e a bondade de Deus? Reflecte-se em
todas as criaturas, também nas mais humildes e insignificantes, sobretudo
nas mais humildes e insignificantes. Irradia sobretudo no rosto de Jesus
pobre e amigo dos pequenos, no corpo crucificado de Jesus, irmão de
todos os crucificados. Deus fez-se pobre e humilde, e aí revela a sua
maior glória.
Quem é Deus para nós? Que imagem fazemos de Deus? Atrevo-me
a dizer que continuamos a imaginar Deus com os rasgos milenários da
velha cultura agrária e piramidal, como “Deus do céu”, como Senhor
altíssimo, como rei soberano. Continuamos a aplicar a Deus os atributos
clássicos que a filosofia ou teologia natural aplicava ao Senhor supremo,
ao ente cósmico superior. Continuamos a chamar a Deus de omnipotente,
imutável, impassível. Imaginamos Deus como Pai, Legislador, e Juiz
supremo, que intervém no mundo quando quer, para fazer aquilo que
quer, que tem um projecto predeterminado para cada um, que se revela
quando melhor lhe aprouver, que se cala muitas vezes, que permite a dor
por alguma razão que não se entende, que escolhe uns e exclui outros,
que castiga quando quer e que perdoa quando quer.
11
Para muita gente ‒ e para muitos crentes ‒, com razão, esse Deus
não existe. Já morreu. Se alguma vez existiu, morreu em Jesus, morreu
na Cruz de Jesus e, muito antes, em todas as cruzes. Na realidade, nunca
existiu, nós é que o imaginamos assim. Mas já não é possível continuar a
imaginá-lo dessa maneira. Nietzsche selou a sua morte na cultura actual.
O Deus da filosofia e da teologia tradicional que continuamos a imaginar
já morreu há muito tempo: morreu na linguagem, morreu no pensamento
e morreu no imaginário. De facto, a gente já não crê nele. Até a maioria
das crianças que anda na catequese deixaram de crer nele desde os cinco
anos. E é normal, pois esse deus nunca existiu. O deus que os ateus
negam simplesmente não existe. Negam, porque o imaginam como
alguém “incredível”. E Deus nunca é como o imaginamos, nem os que
dizem crer ‒ “se compreendes, não é Deus”, diz santo Agostinho ‒, pelo
menos como o imaginam aqueles que não acreditam em Deus. Deus é
maior e mais pequeno, é presença terna, é coração que ama, é palavra
reveladora, é manifestação bela, é bondade transformadora, é o tu de
todo o eu, é o eu mais íntimo de todo o ser.
Muitos falam de “espiritualidade sem Deus” (Compte-Sponville” ou
de uma “espiritualidade laica” (M.Corbi), e entende-se o que querem
dizer. Mas parece-me preferível restaurar a imagem de “Deus”. Como
podemos afirmar a espiritualidade e negar a Deus, que é “Espírito” que
tudo anima, e renova a face da terra? Onde há espiritualidade, onde há
encanto frente à realidade, onde há olhar para o mistério, sentidos para a
beleza, onde há coração para o reconhecimento e compaixão, aí está
Deus. Onde está Deus, ali há espírito e espiritualidade. E está em todas as
religiões, e para lá de todas as religiões. Todas as religiões não são mais
que linguagens do Espírito universal. Quando deixam de o ser, só têm
uma alternativa: ou se transformam ou desaparecem.
«Como milhões de plantas e de espécies animais, muitas religiões se
extinguiram ao longo do tempo. Estudando este fenómeno de
obsolescência, o teólogo alemão Wolfhart Pannenberg fez esta pungente
observação: “As religiões morrem, quando as suas luzes falham”, isto é,
quando a sua doutrina já não ilumina a vida, tal como os seus membros,
de facto, a vivem5
.»
—————
5
JOHNSON, E., La búsqueda del Dios vivo. Sal Terrae, Santander 2008, 42.
12
Não queremos, nem podemos deixar de crer em Deus no nosso
tempo. Mas não devemos ter medo de nos desprender nas velhas ima-
gens, na medida em que não nos parecem belas, credíveis, sugestivas e
libertadoras. Não temos de nos aferrar a categorias e imagens, que não
nos enchem o coração e a mente. Temos de “inventar” imagens e metáfo-
ras de Deus, que nos permitam respirar e que nos libertem da angústia e
nos deixem viver em paz. Há muita gente ‒ cada vez mais ‒ que não sabe
se acredita ou não em Deus, porque quer acreditar em “algo” ou
“alguém” ‒ como parece evidente ‒, mas não acredita num ser supremo
que rege os destinos do mundo a partir do alto, segundo o seu desígnio e
a sua vontade inescrutável.
O nosso tempo convida-nos a rever a maior parte das nossas repre-
sentações de Deus, tanto nas imagens como nos conceitos. Grande parte
da teologia busca há muitos anos outra linguagem para Deus. «Os
conceitos de Deus ultrapassados, simples e obsoletos já não satisfazem.
No entanto, novas ideias oriundas de diversos contextos culturais,
recolhidas pela teologia, parecem muito mais estimulantes», escreve E.
Johnson6
. Ao longo dos capítulos do seu livro, o autor recolhe de entre as
teologias de hoje aquelas imagens de Deus que respondem melhor aos
anseios espirituais do nosso tempo: o Deus crucificado da compaixão, o
Deus libertador da vida, Deus em feminino, Deus que rompe as cadeias, o
Deus que faz festa com o ser humano, o Deus generoso das religiões, o
Espírito criador num mundo em evolução, a Trindade: o Deus vivo do
amor. E afirma: «A fé cristã atual não crê num novo Deus, mas, ao
encontrar-se perante situações insólitas, busca a presença activa do Espí-
rito divino, precisamente implicado nelas…». «Ó beleza sempre antiga e
sempre nova, tarde Te amei», exclamava santo Agostinho7
.»
Volvamos à invocação encantada e agradecida de Francisco. Nisso
consiste o mais verdadeiro da espiritualidade. É a expressão de uma
espiritualidade mística. Não é uma fé preponderantemente institucional,
uma ideologia ou uma moral, mas uma fé profundamente mística, que
está para além de todas as crenças, dos ritos e das normas. O cristianismo
‒ apesar de muitas resistências institucionais ‒ está a despedir-se da
—————
6
Ibid, 18.
7
Ibid, 17.
13
figura moral e dogmática tradicional, e a deixar-se impulsionar a ser,
sobretudo, um caminho de espiritualidade mística. Necessitamos de uma
espiritualidade mística, que não é nutrida por fenómenos paranormais,
mas pela «experiência de Deus em todas as experiências» (R. Panikar, E.
Schillebeeckx), pela experiência do ser e do estar cada vez mais
profundamente enraizados no mistério de Deus, como mistério que nos
envolve e nos origina, nos fundamenta e nos regenera, nos ama terna-
mente e cura as feridas e conflitos ligados a todo o que conhecemos e
chamamos “amor”.
Não é o Deus da metafísica. Não é um Deus exterior e distante.
Não é “outro” em relação a nós, como um qualquer de nós, é “outro” em
relação aos outros. É “totalmente outro”, e, portanto, é “não-outro”
(Nicolau de Cusa). É o crucificado numa pequena ermida semidestruída
dos arredores de Assis. É o Deus no âmago da nossa temporalidade, da
nossa caducidade e finitude, da morte (E. Jüngel). Aí está Deus. O Deus
que é compaixão no âmago de toda a dor.
Sublinharia, todavia, outro rasgo ao qual a cultura actual é especial-
mente sensível e que considero muito verdadeiro, no sentido de revela-
dor, sugestivo, fecundo e transformador: o Deus da comunhão ecológica
de todos os seres. Deus está no coração do mundo, é o coração do
mundo e de todas as criaturas sem distinção hierárquica. Francisco intuiu-
-o, adiantando-se aos tempos. Ele viveu, como é natural, numa cosmo-
visão antropocêntrica, partilhou duma cultura e de uma teologia
profundamente geocêntrica e antropocêntrica, na qual o ser humano era
apresentado como cume da criação e o motivo último de toda a acção
divina e de toda a “história de salvação”. No entanto, para lá dessa
cosmovisão teológica, Francisco não se sentia superior às outras criatu-
ras, não se sentia coroa e centro da criação. Sentia-se simplesmente
irmão, profundamente irmão de todos os seres. Irmão do sol, do fogo, do
ar, da madre terra, do lobo, da morte que é irmã inseparável da vida. Diz-
-nos Celano que “abraçava os seres criados com um amor e um entu-
siasmo jamais vistos ” (2C 165,7) e que “a força do amor fizera-o irmão
de todas as criaturas” (2C 175,1).
Deus é a relação, a inter-relação, o respeito e o cuidado de tudo
quanto existe, desde as partículas sub-atómicas às galáxias em expansão.
É bom crer em Deus que está em toda a parte, o “Deus em quem vive-
14
mos, nos movemos e existimos” (Act 17, 28). Um Deus que não é parte
do mundo nem a totalidade, mas que também não é algo ou alguém exte-
rior e separado dele. Um Deus que é a “Totalidade” na relação entre as
partes do todo (K. Scmitz-Morman), a “forma” que tudo informa, a
“alma” que tudo anima, a “memória” que tudo mantém vivo no coração
da vida.
Por conseguinte, uma espiritualidade do nosso tempo há-de ser
profundamente ecológica, uma espiritualidade ecológica da comunhão
universal, do respeito e do cuidado por todos os seres. Como escreve L.
Boff: «Quando falo de espiritualidade penso num novo sentido de ser,
num novo sonho colectivo, entrelaçado de vários infinitos, como a
cooperação, a solidariedade, o respeito por cada ser, o cuidado por toda
a vida, a harmonia da natureza, o amor à mãe terra, a pluralidade de
expressões do sagrado»8
.
2. Ilumina as trevas do meu coração
Contrariando uma imagem bastante divulgada, Francisco padeceu
da amargura e do medo das trevas. Ele, jovem alegre e rico, de uma
cidade luminosa, situada numa colina voltada ao sol, frente a um vale
esplêndido… experimentou a angústia da escuridão. Viveu no corpo e na
alma o negrume da noite. “As trevas do meu coração”. E isso não
aconteceu só nos anos de busca vocacional, mas ao longo da sua vida,
sobretudo no final da vida, quando o seu corpo era uma chaga, e quando
a sua fraternidade se afastava daquilo que tinha sonhado, e muitos irmãos
o abandonavam.
Por isso, ora. Não deixa de reconhecer as suas trevas, olha as som-
bras de frente e aceita sentir o fundo da noite que o rodeia. E canta como
uma andorinha, até ao último suspiro.
Volvamos ao nosso tempo. A nossa época não se caracteriza pela
tranquilidade. Daniel Innerarity fala de uma “obscuridade irredutível” ou
do “fim das evidências e da visibilidade”, ou da “falta de perspectivas” da
realidade no seu conjunto e da sociedade em particular9
. Efectivamente,
nada é seguro. E Innerarity tem razão, quando afirma: «Quem apresenta
—————
8
Crisis y exemplos-semilla, em Atrio, a 3/4/2009.
9
INNERARITY, D., La sociedad invisible, Espasa, Madrid 2004, introdução.
15
o que diz como algo irrefutável e verdadeiro, ou não é sincero, ou não
diz nada de interessante10
».
O que pode oferecer a espiritualidade numa época de desorientação
como a nossa? Deverá pôr luz onde há escuridão. Mas não poderá fazê-
-lo à base de certezas doutrinais e morais. A espiritualidade autêntica não
oferece respostas seguras a todas as perguntas, a nenhuma pergunta. A
espiritualidade oferece, sim, a liberdade e a ousadia para voltar a questio-
nar todas as respostas, para continuar na busca, para prosseguir cami-
nhando na noite. A espiritualidade consiste em entrar confiadamente no
mistério que envolve toda a realidade e acolhe cada um como um ser
único. A espiritualidade consiste em nos sentirmos a salvo no meio da
noite, acompanhados na intempérie pela presença de Deus, como nuvem
obscura e luminosa. A espiritualidade consiste em caminhar em paz sem
ver nem saber, sem se deixar paralisar pelo medo e insegurança, sem que-
rer aferrar-se a certezas, sabendo-nos sustentados por Deus, apesar do
vazio.
A espiritualidade é saber guiar-se de noite «sem outra luz nem guia/
a não ser a que no coração ardia. De noite iremos, de noite, / pois para
encontrar a fonte/, só a sede nos ilumina» (Luis Rosales).
A espiritualidade partilha as obscuridades, as perplexidades e
inumeráveis fragilidades de todos os homens e mulheres. A espiritualidade
recebe alento, precisamente, das pessoas desalentadas que connosco
caminham, e deixa-se alumiar pela lâmpada preciosa que levam oculta no
seu interior as pessoas desorientadas, que partilham connosco a terra da
partida e a terra da chegada da nossa peregrinação. Desta maneira a
espiritualidade infunde alento aos homens e às mulheres de hoje num
mundo cada vez mais complexo, cada vez mais sensível às ameaças, cada
vez mais inseguro, cada vez com mais medo das trevas de tantas sombras
que o cercam.
Uma espiritualidade assim abre muralhas e fronteiras. Não permite
que nos convertamos em seitas. Cura-nos da amargura e impede que nos
consideremos superiores aos outros. Faz-nos humildes receptores da luz
que oferecemos. Abre-nos ao outro e ao consolo de Deus presente em
—————
10
Ibidem, 22
16
todos e faz de nós paracletos e consoladores. Acende uma chamazinha de
luz e de calor nas trevas mais espessas do coração e é uma bênção.
3. Concede-me uma fé verdadeira, uma esperança firme
e um amor perfeita
Da invocação e do encanto, Francisco passa á suplica. Nós que nos
sentimos tão necessitados, compreendemos Francisco que pede que o
“ilumine” que lhe “dê”. Porque pede Francisco? Porque se sente radical-
mente pobre e indigente. Quis ser mendicante e viver de esmolas, depois
de dar de esmola tudo o que possuía e tudo o que poderia possuir no
futuro. Deus não é somente o que dá em todo aquele que dá, mas é tam-
bém o que pede em todo aquele que pede.
Francisco suplica a Deus. Toda a petição a Deus é o reconheci-
mento da nossa limitação, da consciência radical da nossa indigência.
Francisco reconhece que necessita de Deus. Ao pedir que Deus o ilumine,
reconhece as suas trevas interiores; ao pedir uma fé recta, esperança certa
e caridade perfeita, reconhece que se sente inseguro na sua fé, vacilante
na sua esperança, imperfeito no seu amor. Por isso pede.
Ora a Deus em forma de súplica humilde, de petição confiada. Tam-
bém aqui há que distinguir a forma e o sentido autêntico. O sentido
verdadeiro não se encerra no enunciado. O sentido profundo da petição
de Francisco ‒ nem é sequer a fé, a esperança e a caridade perfeita,
enquanto objecto de petição ‒ nem o facto de pedir como tal. Ao sentir-
-se radicalmente necessitado, exprime perante Deus uma confiança ainda
mais radical. E, ao exprimir perante Deus uma confiança radical, a sua
vida abre-se, para que Deus surja, como a terra se abre para que brotem
as plantas e os frutos. O essencial da petição é que a vida se abra para
Deus, e manifeste e opere a sua acção transformadora.
Que sentido tem a petição de um crente? Não pede para que Deus
conheça as nossas necessidades. Também não pede para que Deus faça o
que de outra forma não faria, ou para evitar algo que de outra forma
aconteceria. A oração não transforma Deus, mas o crente que reza. Reza-
mos para exprimir a nossa necessidade e a nossa confiança. Oramos para
acolher e agradecer. Oramos para nos transformarmos. Oramos para dei-
xar que Deus seja em nós e em todas as coisas. É como se Deus estivesse
pedindo em nós e nós sentirmos que não podemos deixar de atender a
17
chamada do Grande Esmoler. Recordemos as comovedoras orações de
Etty Hillesum, nas quais ela nada pede, antes promete humildemente aju-
dar Deus, prisioneiro em todos os corações e em todos os cárceres, como
aqueles infelizes prisioneiros condenados a Auschwitz: “Tu, meu Deus,
não podes ajudar-nos. Eu te ajudarei, Senhor, e assim me ajudarei».
Quando ajudamos a Deus, deixamos que Deus nos ajuda a partir de nós
mesmos, pois nos tornamos providência de Deus para nós e para todas as
criaturas.
Concede-me uma fé verdadeira (reta). Francisco viveu sempre
preocupado com a fé recta, com ortodoxia. Isso percebe-se a partir da
situação social e eclesial do seu tempo. Foram tempos de grandes muta-
ções culturais e sociais, tempo de inquietação e insegurança, de necessi-
dade de reformas a todos os níveis. Eram frequentes os pregadores
ambulantes que apelavam a reformas. Os cátaros tinham-se instalado no
Vale de Espoleto, perto de Assis. E havia muitos outros movimentos,
alguns na fronteira da ortodoxia e do sistema vigente, e outros clara-
mente condenados como hereges, como os cátaros.
A quem seguir? Francisco, por um lado, não se identificava em
absoluto com a instituição eclesial no seu conjunto: uma Igreja clerical,
hierárquica, poderosa, ora aliada, ora em guerra com o imperador. Apesar
disso, Francisco não quer, nem pode distanciar-se no mínimo que seja
daquela estrutura eclesial e teológica: não questione a “doutrina oficial”,
nem o clero, nem a hierarquia, apesar de muitos e flagrantes abusos.
Pensa e está intimamente convencido de que a fé no seguimento de Jesus
se joga na fidelidade aos sacerdotes, por mais indignos que sejam. Decidi-
damente, ele busca outra coisa, mas a sua mentalidade não lhe permite
libertar-se daquelas formas. E parece identificar fidelidade à Igreja com
fidelidade ao sistema clerical, a fé com a doutrina dogmática, o segui-
mento de Jesus com a doutrina sacramental tradicional.
Hoje, o ambiente cultural e espiritual é diferente do de Francisco.
Muita gente, dentro e fora da Igreja cristã, começa a tomar consciência ‒
uma consciência colectiva ‒ de que a fé não se refere a crenças dogmáti-
cas, à prática ritual dos sacramentos, à adesão institucional a um sistema
clerical. Ao contrário de Francisco podemos e devemos pensar que a
“rectidão da fé” não depende da sintonia mental com umas fórmulas dog-
máticas. A fé não é reta, porque se acredita firmemente em todos os
18
dogmas, porque mantém umas crenças inabaláveis ou porque se resume a
umas fórmulas seguras. Não é aqui que se joga a fé, a rectidão da fé. Não
é a este nível que se joga a glória de Deus. A fé é recta quando o coração
confia, desnudo e livre, quando se abandona como criança nos braços da
mãe, quando não se tem necessidade de saber nem de explicar nada,
quando não se teme pensar com liberdade, quando a confiança profunda
permite duvidar de tudo.
Não se trata de incorrer num relativismo superficial e irresponsável,
mas de apostarmos verdadeiramente na confiança vital profunda, para
além de todo o sistema de crenças e certezas. “A fé não tem objecto”,
como insiste o sábio e místico R. Pannikar. Isto é: o objecto da fé não são
as ideias ou o significado das fórmulas da fé. O objecto da fé é Deus
como mistério para além das palavras, das imagens e das fórmulas. A fé
recta consiste em aprender a confiar em Deus, mesmo caminhando no
vale das trevas. Por isso, como bem escreveu E. Biser, já há muitos anos,
«a verdadeira antítese da fé não é a incredulidade, mas o medo»11
. A
heresia autêntica e perigosa não tem a ver com a doutrina, mas com a
confiança. A pior heresia é a “heresia emocional”, isto é, a falta de
alegria, apesar de todas as trevas.
É para aqui que aponta a base mística de todas as religiões. É isso
que nos une, para além dos credos e dos códigos. Nisto consiste a
“espiritualidade integral” de que fala Jäger: «O termo espiritualidade inte-
gral refere-se à busca do fundo comum, que está subjacente em todos os
caminhos espirituais autênticos, num esforço de encontrar e defender
tudo o que nos une, eliminando as barreiras e indo ao âmago da prática,
com a diversidade que esta apresenta. Este centro, que é base comum, é a
experiência mística que se deve desenvolver como perspectiva em todos
os aspectos e níveis da existência humana. Por isso é espiritualidade inte-
gral, que não substitui nem acrescenta nada aos diferentes caminhos,
antes realiza um esforço de união e de encontro.
Propomos uma nova forma de ver as buscas essenciais do ser
humano. Partimos de uma perspectiva não dogmática, de aceitação e
tolerância do que é autêntico dos diferentes caminhos e tradições espiri-
tuais, e que se pode incorporar na prática de todos os níveis da vida
—————
11
BISER, E. Pronóstico de la fe, Herder, Barcelona 1994
19
humana: corpo, energia, emoções, espírito e mente, como um todo único
que somos, numa convergência transconfessional que chamamos
espiritualidade integral. Para isso temos de reavaliar os pressupostos de
base. Vivemos um momento excepcional no Ocidente. É um momento de
crise geracional, que muitos classificaram como mudança epocal. Assisti-
mos a novos fundamentalismos que se misturam nas culturas, em busca
de confrontação, dando lugar a dogmas e a bloqueios culturais»12
.
“Esperança certa”. Pode a esperança ser segura? Parece um con-
trassenso. E é um contrassenso. A certeza da esperança não é da mesma
ordem das nossas certezas ordinárias. Não é a certeza de que algo vai
acontecer num futuro mais ou menos longínquo. É antes a certeza ou a
decisão ou a determinação da atitude vital, o compromisso com o futuro.
Que futuro? O futuro que Deus é para a nossa vida, e que nós devemos
encarnar, actualizar e antecipar essa presença. É uma forma de viver que
abre sempre uma brecha de novidade no que é antigo, é uma antecipação
do futuro que torna presente aquilo que esperamos.
Não se trata de ser optimista ou pessimista a respeito do hipotético
futuro mais ou menos incerto. Trata-se sim de «recuperar o futuro» na
nossa forma de ver e de viver o presente13
. Não podemos decidir hoje
sem pensar no futuro, que queremos deixar à próxima geração humana e
às gerações de todas as espécies. Não vivemos numa época de optimismo
com respeito ao futuro. Às vezes parece até que o futuro desaparece do
horizonte do presente, ele também ameaçado.
Francisco de Assis tinha um temperamento optimista, mas na sua
vida não faltaram circunstâncias que purificaram o seu optimismo. Em
qualquer caso, a sua esperança não consistiu no seu optimismo, mas na
forma inovadora de vida, criadora de futuro.
A espiritualidade é inseparável desta atitude de esperança antecipa-
dora. Esta espiritualidade e esta esperança não nos fazem optimistas, mas
mais fiéis e confiantes. A fé não nos dá um suplemento de segurança em
relação ao futuro, antes nos impele a criá-lo. Esperar é isto. Esperar é
—————
12
Cf. SAN JOSÉ, P., «Espiritualidad integral. Antecedentes y consecuencias», em
Atrio.com (Maio de 1009).
13
Cf. INNERARTTY, D., recuperar el porvenir, em El País (17-05-2009)
20
fazer que chegue o futuro que desejamos. A esperança certa é encarregar-
-se do futuro com determinação.
Esta determinação requer uma grande confiança e uma grande
generosidade. A generosidade que se apoia na confiança e a aumenta, a
confiança que nasce da generosidade e a suscita. Aí está a sabedoria. A
sabedoria da vida que Diego Garcia exprime, citando a frase lapidar gra-
vada no palácio Rajoy de Santiago de Compostela: «Trabalha como se
vivesses sempre, vive como se morresses amanhã». É assim a sabedoria
da esperança.
Nesta esperança, que é confiança e determinação, não conta o
êxito. Não importa que fracassemos na nossa aposta. Também Jesus
fracassou e sabia que ia fracassar, mas seguiu em frente, «esperando con-
tra toda a esperança». E o essencial é que não esperava nenhuma
intervenção milagrosa de Deus à última hora, que mudasse a situação. O
essencial é que Jesus se manteve fiel ao seu compromisso pelo reino dos
Céus até ao fim. Mesmo que fracassasse a causa era grande e merecia a
pena; talvez a causa exigisse o fracasso como aconteceu com todos os
mártires. Os mártires fracassaram? Jesus fracassou? A fé pascal afirma
que Deus está com todos os mártires e que todos os mártires estão em
Deus, que Deus esteve com Jesus até ao fim e “para além” do fim, que
Jesus vive em Deus e que, apesar do aparente fracasso, a bondade e a
vida são mais fortes que o sinédrio e o império, porque Deus é vida e
bondade.
«amor perfeita». O que conta é a caridade, o amor. (Caritas) é a
tradução latina do ágape grego, enquanto amor traduz mais a filia grega;
assim, caridade foi entendido como “amor superior” e tem uma conota-
ção mais religiosa que amor, mas podemos entendê-los perfeitamente
como sinónimos. Apesar de serem termos desgastados pelo uso e cheios
de equívocos, não podemos renunciar a eles. Somos o que amamos.
Somos enquanto amamos. Todas as grandes mulheres e homens espiri-
tuais de todos os tempos, independentemente dos seus compromissos
religiosos, souberam isso. Jesus sabia-o e ensinou-o. Francisco também o
soube e ensinou.
O mais importante é a caridade ou o amor, é sentir as feridas do
outro como a sua própria ferida, é sentir-se responsável pelo destino do
outro a partir da compaixão, é cuidar do outro ‒ de toda a criatura ‒ por-
21
que tem necessidade de mim. E porque eu não posso ser sem o outro;
não posso ser feliz sem o amar. E o outro não existe sem mim, sem que
eu o ame e sem que o outro me ame também.
A caridade, como no fundo também a ética, só pode ser concreta: é
deixar-me atrair pelo outro, por toda a criatura, pela sua maravilha e
pelas feridas que tem; é unir o meu destino ao seu, porque quero, porque
gosto, porque quero e gosto ( e muitas vezes mesmo que não goste, pois
o nosso gosto ainda não é totalmente divino); é fazer-me próximo, sentir-
-me companheiro e samaritano de quem necessita de mim, alegrar-me
com aquele que está alegre e compadecer-me de toda a criatura que
sofre.
A caridade ou o amor não é um comportamento que simplesmente
responde a um imperativo ético ou a razões filosóficas ou a sublimes
razões teológicas (o valor da pessoa, a semelhança de Deus…). Não. A
caridade ou o amor é uma praxis que se inspira na presença carnal do
outro com a sua graça e as suas feridas. A razão é simplesmente o outro
com a sua realidade concreta, a sua indigência.
Foi assim o comportamento de Jesus. Foi bom, simplesmente. Foi
bom de forma criativa. A “bondade criativa” foi a característica de Jesus
(J.A.Marina). Livre e criativa foi também a bondade de Francisco.
Assim ora Francisco. Assim pede. Eu não sei se a oração de petição
tem sentido. O sentido, em qualquer caso, não está tanto na petição como
tal, mas na atitude do que pede. Não pedimos a um Deus passivo e
arbitrário que intervenha. A forma de petição sugere que Deus pode dar
ou não dar: pode dar fé ou não dar, dar esperança ou negá-la, dar-nos
caridade ou negá-la. Mas Deus é pura e plena doação e graça, e não pode
não dar-se, como nós não podemos deixar de respirar. Assim, Deus
revela-se em tudo, Deus actua em tudo, dá-se totalmente em tudo. Ele é
dynamis que late em toda a realidade. É a presença operativa, criadora,
transformadora, que habita tudo quanto é, desde as partículas mais ínfi-
mas até às galáxias. E a realidade, sempre aberta, inacabada e inter-
-relacionada, necessita que a presença de Deus emirja e se realize desde
as suas entranhas.
Que é orar? Orar não é pedir, mas expressar perante Deus, em
Deus, o nosso ser mais profundo com palavras ou silêncio. Orar é
aprofundar a consciência de que existimos em Deus e de que Deus é o
22
alento mais profundo do nosso ser. Orar é deixar que o coração se encha
de confiança, de esperança, se comova de caridade e de ternura.
Francisco orava assim, apesar da forma de petição que usava na sua
oração. A oração transformou-o, foi a forma de deixar que Deus o trans-
formasse por dentro, foi a forma de se fazer cada vez mais livre e divino,
mais confiante e bom.
4. Sentido e conhecimento
Ao lado das três virtudes teologais, é sugestivo que Francisco peça
sentido e conhecimento. Pede luz interior para discernir. Luz para distin-
guir o que Deus quer. Mas a vontade de Deus não é um projecto que
Deus tenha escrito, mas um caminho que vamos fazendo entre sombras e
escolhos. Deus não dita nada desde fora. Deus vai-se abrindo desde o
coração da criatura, desde o coração do átomo e de todo o organismo, de
todo o ser humano. Deus abre-se como uma semente se abre desde as
entranhas da terra, atraído pela luz e empurrada por um impulso miste-
rioso. Quando a vida cresce, é Deus que cresce na vida.
Para isso, é preciso que se desperte o sentido e o conhecimento.
Hoje diríamos “discernimento”. Francisco não se cansa de insistir nisto.
É muito actual esta insistência de Francisco no discernimento inte-
rior. Diz-se que vivemos em tempo de gnose. É verdade que muitos
movimentos da “nova espiritualidade” apresentam elementos “gnósticos”:
o anseio de interioridade, o acento no despertar da consciência profunda,
a busca de libertação através de uma maneira nova de se olhar e de olhar
toda a realidade… A gnose foi um poderoso movimento nos primeiros
anos do cristianismo, que a Igreja não soube integrar e que reprimiu com
afinco como a maior ameaça da fé. Mais ou menos reprimida, a gnose
sempre esteve presente no cristianismo, particularmente nas correntes
místicas. Manifestou-se poderosamente na Idade Média, no movimento
cátaro ‒ violentamente perseguido e afogado em sangue ‒ e em outros
movimentos da reforma espiritual do tempo de S. Francisco. O gnosti-
cismo volta hoje com força e contém muitas intuições válidas para a
espiritualidade do século XXI. Seria mau reprimi-las como gnósticas.
Podemos compreender nessa linha a insistência de Francisco no
sentido e conhecimento interior. O sentido e o conhecimento como luz
23
interior que nos permite sentir o alento divino em nós e em todas as
criaturas. O sentido e o conhecimento que nos permite confiar profunda-
mente em nós, no próximo e em todos os seres.
O sentido e o conhecimento não têm a ver com uma interioridade
espiritualista, mas com uma sensibilidade integral. De maneira especial,
tem a ver com a espiritualidade de todos os sentidos. É importante que
curemos do maniqueísmo que maltratou em nós a sensibilidade, a
sensualidade, e todos os sentidos. A espiritualidade tem como meta
«libertar o corpo das repressões da alma, das repressões da moral, e das
humilhações devidas ao ódio a nós mesmos, para conseguir a verdadeira
saúde»14
. O conhecer e o sentir são inseparáveis. E não somente a nível
psicológico e gnoseológico, mas também a nível teológico. Deus sente
em todos os sentidos e todos os sentidos sentem a Deus em todas as coi-
sas: a vista vê Deus em todas as formas, o ouvido ouve Deus em todos os
sons e todos os silêncios, o olfacto percebe Deus em todos os aromas, o
tacto toca Deus em todas as carícias, o gosto saboreia Deus em todos os
sabores da vida. A espiritualidade há-de ser, pois, necessariamente uma
espiritualidade do corpo»15
. Amamos como corpo, confiamos como
corpo, oramos como corpo. Para sermos espirituais necessitamos de rela-
xamento, para nos libertar das tensões físicas e mentais, e respirar bem,
sentirmos bem o nosso corpo, o que não quer dizer que tenhamos de ter
um corpo perfeito ou de gozar de uma saúde perfeita.
Ana Mendiola, uma mulher basca, professora de dança, longe da
Igreja, mas profundamente espiritual, escreve: «Neste caminhar, busquei
os conceitos para lhes despertar a consciência da natureza dos elementos,
percebendo que cada elemento ia ligado a uma força que o nutre, for-
mando parte do nosso organismo vital, e ligado ao universo como parte
de um Todo. Procurei, assim, despertar uma nova consciência e
compreensão de nós mesmos, e desse espaço supostamente vazio que é o
nosso sentir, (o visível e o invisível). Tendo em conta o tempo que nos é
dado viver, onde a produtividade parece ser o único objectivo, onde o
ócio e o lazer nos amolecem, tive necessidade de buscar essa mudança,
essa actividade dos nossos sentidos como renovação destes em redes
—————
14
MOLTMANN, J., El Espíritu de la vida. Sígueme, Salamanca 1998, p. 110.
15
MOLTMANN, J., El Espírito Santo y la teologia de la vida. Sígueme, Salamanca
2000, p. 102
24
activas e despertas para uma nova consciência colectiva; cada sentido
leva-nos à harmonia: a minha visão, o meu tacto, o meu ouvido, o meu
gosto, o meu olfacto, na medida em que estão sensibilizados, levam-me a
olhar o mundo com outros olhos, descobrindo e elevando a beleza inte-
rior de cada ser humano»16
.
Estas palavras têm pleno sentido para a nossa espiritualidade.
4. Para cumprir o sagrado e encargo (mandamento)
Também é significativo que Francisco termine a oração falando em
cumprir e em mandamento (encargo). Quem compreende mal estes ter-
mos cai muitas vezes no moralismo. Naturalmente, Francisco está
condicionado pelo vocabulário e pensamento da teologia moral do seu
tempo, pela visão pessimista do mundo e do corpo, pela espiritualidade
moralista. Mas a visão de Francisco não é pessimista. A sua espirituali-
dade não é, nada moralista.
Cumprir é muito mais que mera praxis. Na verdade é uma praxis,
mas uma praxis que nasce de dentro pelo sentido e conhecimento, pela
sensibilidade, pela gratuidade, pela ternura e vontade de cuidar. Podemos
traduzir por viver. Trata-se de viver. Cumprir não é acatar os mandamen-
tos, observar as leis eclesiásticas, submeter-se a uma ordem. Francisco foi
uma pessoa extremamente livre, liberta por dentro. Ele que tanto insistia
na obediência, não se deixou atar nem sequer pela fraternidade criada por
ele. Passou grande parte da sua vida na solidão, guiado pela luz interior,
muitas vezes vacilante. Cumprir é ser fiel a essa luz interior. É viver no
querer de Deus a partir do sentido e do conhecimento.
O mandamento de Deus ‒ Francisco usa o singular e não o plural
“mandamentos” ‒ é o mandamento da vida, é o mandamento do Evange-
lho, enquanto boa notícia. O cristianismo não é ‒ nenhuma religião o é no
fundo ‒ um conjunto de crenças, nem sequer um código de conduta. A
verdade do Evangelho é a vida em todas as suas expressões. A vida
necessita de suportes, mas aspira a ser livre, para se dar totalmente.
Não se trata de um mandamento que vem de fora. Certamente que
a alteridade é indubitável. Ninguém inventa a sua própria luz. A luz vem-
-nos de fora. E vem sempre através da interpelação do outro, do outro
—————
16
Cf. revista Hemen 22 (2009).
25
quando está alegre e do outro quando sofre. Mas esse chamamento deve-
-nos prender por dentro. De outra forma domina-nos e fecha-nos e vai-
-nos levando à morte lenta, vai-se extinguindo em nós o espírito, o alento
vital. O mandamento é a chamada que nos vem do vivente, do ferido, do
outro, do que necessita o meu cuidado. Esse chamamento deve-se enrai-
zar por dentro em formas de compaixão, convertendo-se em impulso que
brota do interior. Deus não manda nada. Deus não é um senhor que
impõe leis ou pede contas. O chamamento de Deus não é mais que a lei
vital, a lei da vida que quer desenvolver-se e ser feliz.
No fundo, para além dos seus esquemas teológicos mais ou menos
moralistas, é isso a que Francisco chama “santo e veraz mandamento”.
Dois adjectivos. Que significa santo. Não significa moralmente intocável,
mas verdadeiramente são, livre, generoso, aberto, confiante. Santo é são.
Santo é feliz. Só a bondade pode ser feliz. Só a bondade pode ser santa,
boa. Só assim o mandamento é verdadeiro, verídico. A verdade não con-
siste na adequação de uma ideia ou de uma conduta com uma norma
imutável. A verdade é criativa, é um caminho de libertação e de graça.
Assim a oração termina com a palavra mandamento. Mas a última
palavra só adquire sentido à luz da primeira expressão: “Ó”. De outra
forma o mandamento converte-se em jugo. O mandamento de Deus,
vem-nos através do rosto do necessitado, mas surge dentro de nós mes-
mos, como um impulso de vida que acompanha a admiração, a gratui-
dade, a compaixão, a confiança livre. Assim a vida comprometida
converte-se na outra face do encanto, da admiração mística. A mística
torna-se prática, e toda a praxis se torna mística (dizei com obras o amor
que vos vai no coração, escreveu santa Clara no seu Testamento).
É esta a espiritualidade que viveu Jesus e que não cessa de renovar
a história. Essa a espiritualidade que viveu Francisco nos alvores de uma
nova cultura. É esta a espiritualidade que estamos chamados a viver hoje
num mundo em profunda transformação, à procura de respiração.
Tradução da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana
27
FRANCISCO E CLARA,
MASCULINO/FEMININO EM ASSIS
DURANTE O SÉCULO XIII
Jacques Dalarun, ofm*
—————
*
Artigo publicado em Èvangile Aujourd’hui, n. 215 (2007) 27-38, com o título
“François et Claire, Masculin/Féminin à Assise au XII siècle”.
28
FRANCISCO E CLARA, MASCULINO/FEMININO EM ASSIS
DURANTE O SÉCULO XIII
Entre 1210 e 1212, Assis foi palco de uma série de encontros pri-
vados, secretos, que, no entanto, teriam grandes repercussões na história
da santidade cristã17
. O jovem teria cerca de trinta anos e a jovem entre
dezasseis e dezoito anos. Ela pertencia à classe das famílias nobres que
viviam perto da catedral de São Rufino. Ele, filho de um comerciante de
panos, procedia do povo.
O testemunho mais completo sobre este encontro é-nos dado por
Beatriz, irmã de santa Clara, quando depôs para o Processo de Canoniza-
ção, em 1255.
“A Irmã Beatriz, filha de Favarone, religiosa do Mosteiro de São
Damião, declarou sob juramento que foi irmã carnal de madona Clara,
de santa memória, cuja vida foi quase angelical, porque foi virgem
durante toda a vida. E as suas obras de santidade eram tão evidentes
que a fama das suas virtudes se divulgou entre todos os que a
conheciam.
Disse depois que, conhecendo São Francisco a fama da sua santi-
dade, se encontrou com ela várias vezes para lhe falar do Evangelho. E
de tal forma foi tocada pela mensagem, que renunciou ao mundo e a
todas as coisas terrenas, entregando-se ao serviço do Senhor logo que
foi possível.
Vendeu toda a sua herança e parte da herança da testemunha, e
deu tudo aos pobres.
—————
17
Cf. LCL 5-6
29
Em seguida, São Francisco cortou-lhe os cabelos diante do altar
da igreja da Virgem Maria, chamada da Porciúncula, e levou-a à igreja
de São Paulo das Abadessas. Foi aí que os parentes a procuraram para
a levar. Mas Clara agarrou-se às toalhas do altar e, mostrando-lhes os
cabelos cortados, não cedeu aos seus intentos. Continuou ali, não
regressando com eles a casa. Mais tarde foi levada por São Francisco,
Frei Filipe e Frei Bernardo à igreja de Santo Ângelo de Panzo. Foi dali
que saiu para a igreja de São Damião, lugar onde o Senhor lhe deu
mais irmãs, que se colocaram sob a sua tutela”18
.
ALGUMAS QUESTÕES
Esta relação entre Francisco e Clara excitou alguns espíritos. Nos
fins do século XIX, o grande historiador do franciscanismo Paulo Saba-
tier não passou sem celebrar, numa exaltação romântica, os “amores de
Francisco e Clara”. Facilmente reduzimos o que é singular ao comum, o
que é raro ao conhecido, o que é desconcertante ao tranquilizador. Qual
foi, exactamente, a natureza da relação que, sem dúvida, tiveram os dois
santos de Assis? Duma maneira geral, que visão tinha Francisco das
mulheres e que visão tinha Clara dos homens? De que maneira a sua
identidade sexuada ‒ entendida essencialmente como uma construção
cultural da época ‒ influenciou a sua maneira de viver a exigência evan-
gélica que ambos se propuseram seguir?
Fundado nas fontes dignas de confiança, sem preconceitos, tentarei
dar resposta a estas questões. Em primeiro lugar terei em conta os
Escritos de Francisco e as Legendas mais antigas que lhe foram dedica-
das, tomando nota das citações que aí se fazem sobre Clara, as mulheres,
o feminino e os movimentos feministas da época. Depois farei o mesmo
nas fontes relativas a Clara. Assim podemos delimitar com mais exactidão
o que une e o que distingue os dois santos de Assis.
—————
18
30
OS ESCRITOS DE FRANCISCO
Ao ler os escritos de Francisco, apesar de tudo, relativamente abun-
dantes e onde até encontramos cartas dirigidas a dois dos seus irmãos,
Leão e António de Lisboa, surpreende-nos que não encontremos
nenhuma carta dirigida a Clara. Ficar por esta observação, verificar só
este silêncio, não seria bom método. É possível que algumas cartas se
tenham extraviado. Acresce que não é dado nenhum tratamento especial
às irmãs de Clara, às senhoras pobres de S. Damião. Tudo se resume a
poucas linhas escritas pelo pai espiritual e incluídas na Regra de Clara, e
um poema no dialecto da Úmbria, o Audite poverella, de autenticidade
discutível, que parece ter sido composto para elas.
As legendas mais antigas e mais fiáveis que narram a vida de Fran-
cisco não são muito mais prolixas. As Legendas de Celano ‒ Primeira
Legenda, Segunda Legenda e Tratado de Milagres ‒ o Anónimo Peru-
sino, a Legenda dos Três Companheiros e a Legenda Perusina, só por
três vezes evocam a virgem de Assis.
AS DATAS
Como interpretar tanta discrição em relação a santa Clara?
Em primeiro lugar pelas datas. Francisco nasce em 1182, em 1206
distribui os bens pelos pobres e converte-se, morre em 1226 e é canoni-
zado em 1228. Clara nasce em 1194, entra na religião em 1212 e retira-se
para S. Damião, morre em 1253 e é canonizada em 1255.
Já é notável que Tomás de Celano, na Legenda Primeira de 1228 se
tenha referido às virtudes de uma jovem de trinta e quatro anos, ainda na
força da vida. Na realidade, Clara compartilhou alguns dias da vida de
Francisco, mantém uma relação de quinze anos com ele e recorda durante
vinte e seis anos os ensinamentos de um defunto que é santo. Além disso,
temos de constatar que Francisco em 1226, segundo as fontes conserva-
das, não tinha escrito uma palavra a Clara nem sobre Clara, e ela não
tinha escrito nem uma palavra dirigida a ele, ou sobre ele…
Em relação às mulheres em geral, os estratos sociais em que o
Poverello se movia, colocavam-no em situações contraditórias. Precisa-
mos de paciência para as compreender e desatar os nós e ordená-las
31
cronologicamente, tanto através dos Escritos como através das Legendas
que lhe foram dedicadas. Não se podem deslindar todas as incoerências
detectadas ‒ quando se trata de mulheres os homens entram sempre em
contradições. Além disso, devemos ter em conta que muitas destas con-
tradições, não reflectem sempre o pensamento de Francisco. Muitas
vezes revelam a opinião dos autores das várias Legendas, que, ao privile-
giar um certo ponto de vista, embora pretendam evidenciar a experiência
do fundador, às vezes também se servem da imagem do fundador para
tomar partido na disputa entre as várias tendências, que se combatiam
numa determinada época.
A CULTURA CORTESÃ
As quatro Legendas quando recordam os seus sonhos de cavaleiro,
os de um snob em busca de promoção social, colocavam em primeiro
lugar as solidariedades e os afectos do filho do comerciante de Assis. No
Anónimo Perusino e na Legenda dos Três Companheiros, conservaram a
recordação mais viva: eram um grupo de soldados que assustavam mães
e filhas.
Os vestígios da cultura cortesã do jogral de Deus, dos quais a
Legenda Perusina é a mais fiel depositário, incitavam-no a honrar a
mulher à distância, a fazer dela a sua dama para celebrar melhor, segundo
as normas do modelo cortesão, o amor do Senhor. Assim, a Virgem
pobre encontra-se no coração da sua devoção, seguindo-se dos modelos
terrestres, as senhoras pobres de S. Damião. O feminino era valorado por
Francisco em alegorias morais, tais como a da dama Pobreza, homena-
gem rendida à experiência de pobreza extrema.
AS GRANDES FIGURAS EVANGÉLICAS
Com efeito, o Evangelho tinha-se enxertado no modelo cortesão,
cujo descobrimento foi para Francisco uma revelação fulgurante, tal
como recorda no seu Testamento, nos últimos anos de sua vida. As gran-
des figuras evangélicas não são ignoradas: Maria certamente, mas mais
ainda Madalena, a pecadora arrependida, amada com ternura por Cristo e
32
na qual Francisco encontra o reflexo na nobre viúva romana Jacoba de
Settesoli. A Legenda Perusina19
relata uma cena de uma grande densi-
dade dramática, o “privilégio de amor”, de que gozou a viúva de Roma,
até ao momento de sua morte, muito mais do que a virgem de Assis.
Mas, porque será que chama a esta mulher “Frei Jacoba”. Será porque os
seus afectos mais íntimos só poderiam ser dirigidas a um irmão? Ou será
que os companheiros, ao compilaram as memórias, vinte anos depois de
sua morte, reprovassem de tal forma aquela amizade tão afectuosa que o
fundador tinha por uma mulher, que sentiram a obrigação de lhe negar a
feminilidade?
A literatura cortesã e os ensinamentos do Evangelho abriam ao
penitente perspectivas originais. O Evangelho mostrava-lhes o caminho
dos primeiros transformados em últimos, dos ricos escolhendo a pobreza
para aceder a riquezas mais sublimes. Dos maiores feitos menores para
crescer por causa da sua humilhação, dos chefes que aceitam governar
numa atitude de serviço saudável. Os escritos de Francisco espelham este
mundo de valores totalmente invertidos. Tentava-se naturalmente seguir
de perto os passos do Altíssimo, que se fez Baixíssimo, para usar o título
do livro admirável de Christian Bobin. Francisco, contemporâneo dos
romances de Béroul e de Chrétien de Troyes, canta em francês para cele-
brar os louvores de Deus ou simplesmente para dar curso à sua alegria.
Na Legenda Perusina compara seus irmãos com os valentes cavaleiros de
Carlos Magno20
. Além disso, Francisco ouviu narrar a história de Tristão
que, disfarçado de leproso, de mendigo, duas das figuras que lhe eram
particularmente queridas, não vacilou em fazer-se cavaleiro da sua dama.
Isso causou escândalo, porque, por detrás da figura literária, Béroul faz
um discurso sub-reptício sobre a transgressão das posturas eróticas.
UM MOVIMENTO FEMINISTA
Na obra do “novo louco” de Assis, nota-se o início de um movi-
mento feminista; não é a Legenda Perusina que foca esse aspecto, mas o
Anónimo Perusino e a Legenda dos Três Companheiros, fiéis testemu-
—————
19
Cf. LP 101.
20
Cf. LP 72.
33
nhas deste sistema em que grupos de mulheres, guerreiras ou religiosas,
afugentam as mulheres e só se queriam entre varões.
A imagem da alma pecadora, simbolizada por Madalena nos escri-
tos dos Padres, mas para falar da parte feminina presente em todo o
homem, que é praticamente a sua alma, aliás pecadora, Francisco faz-se
de mulher para aceder à redenção. Também para imitar, evidentemente
em menor escala, a este Deus que não vacilou em fazer-se homem, faz-se
mulher. Mulier haec erat Franciscus21
, vê-se obrigado a explicar o pobre
Tomás de Celano para interpretar uma parábola onde uma mulher pobre
tomada pelo rei no deserto e que depois envia os seus filhos à corte.
Francisco é uma mulher, porque é uma mãe: a pobreza grávida do
rei, a mãe galinha que junta todos os pintainhos debaixo de suas asas para
transmitir melhor a protecção da nossa mãe Igreja22
. Ao contrário da
figura paterna personificada em Pedro Bernardone, que favorece uma
interpretação esmagadora, é o doce governo da mãe o que proporciona a
Francisco a resposta à pergunta que o atormenta, desde que compreen-
deu que não podia rejeitar o cuidado da comunidade que Deus fez crescer
à sua volta: como passar da intuição á instituição, segundo o expressivo
título de Théophile Desbonnests, como dirigir sem esmagar, governar
sem dominar, aceitar os cargos rejeitando o poder, o que é extremamente
aborrecido. No italiano de Francisco, “governar” também é servir, socor-
rer as necessidades dos outros, como a mãe governa os seus filhos, como
“nossa irmã a madre terra que nos sustenta e governa”. E quando o
Poverello fala do feminino, ou quando escreve aos seus irmãos mais que-
ridos, como a Leão, “como uma mãe”, não fala de mulheres reais, antes
usa uma alegoria que diz respeito a ele mesmo.
A CULTURA MONÁSTICA
O estrato mais próximo da cultura de Francisco, aquele com o qual
mais de perto teve de se confrontar para elaborar os aspectos da sua fra-
ternidade, que pouco a pouco se foi transformando em ordem, é a cultura
monástica, a regra beneditina, e sobretudo as Vidas dos Padres do
deserto. O Anónimo Perusino e a Legenda dos Três Companheiros
—————
21
Cf. 2C 16-17; TC 50-51; AP 35.
22
Cf. 2C 24; TC 63.
34
dizem-nos que os irmãos faziam a sua leitura no capítulo. Aqui a lição é
simples e brutal: desconfiança das mulheres, para quem se pr opõe
governar uma comunidade de homens. Mesmo uma paciência de
arqueólogo não descobre nas versões sucessivas da regra de Francisco,
tanto na primeira como na segunda, os vestígios de um tempo ditoso e
reprimido em que os irmãos e as irmãs menores vivessem a mesma itine-
rância, levassem a cabo a mesma busca. As mulheres foram colocadas
muito rapidamente em S. Damião, inofensivas, quais damas distantes,
excluídas da fraternidade.
E quando uma vez, muito contra sua von tade, como nos diz a
Segunda Legenda de Celano23
, Francisco decide pregar às irmãs de S.
Damião que ansiavam pela sua palavra vivificante, entra sem pronunciar
palavra perante a assembleia e, sem sequer olhar para elas, desenha um
círculo de cinza entre elas e ele, deita o resto da cinza sobre a cabeça,
entoa o Miserere e sai, deixando-as estupefactas. Depois da morte de
Francisco, só alguns dos primeiros companheiros, Ângelo, Leão, Juní-
pero, Filipe Longo, Elias, guardavam, como num jardim secreto, a nos-
talgia do tempo em que irmãos e irmãs, homens e mulheres, tinham um
único espírito, pulsavam com o mesmo coração.
OS ESCRITOS DE CLARA
Clara também guardava no seu interior a recordação deste amanhe-
cer. Nos seus escritos, muito menos abundantes que os de Francisco, cita
numerosas vezes o seu pai espiritual: cita-o por treze vezes, se tomarmos
em conta as obras consideradas autênticas, descontando o Testamento
onde o nome de Francisco aparece em cada parágrafo, quase como uma
jaculatória. Poderíamos pensar na imagem do par místico, ou até na
imagem da virgem abandonada sonhando com o galã insensível. Mas
observando bem, vemos que Clara utiliza o nome de Francisco com
discernimento, melhor dito, com habilidade.
Na terceira carta, do ano 1228, dirigida a Inês de Praga, filha do rei
da Boémia, convertida ao mesmo estilo de vida religiosa de São Damião,
Clara cita Francisco por duas vezes, uma atrás da outra. Nas duas primei-
—————
23
Cf. 2C 207.
35
ras cartas, Clara não teve necessidade de se socorrer da autoridade de
Francisco para guiar esta filha de rei nos progressos da sua vida espiri-
tual. Clara refere-se a Francisco unicamente para esclarecer uma questão
relacionada com os dias de festa, nos quais era permitido suavizar o jejum
seguido pelas irmãs, tanto em Assis como em Praga. Não se sabe bem se
esta carta foi escrita pouco tempo depois de Gregório IX tentar estender
à Ordem de São Damião o rigor drástico dos jejuns cistercienses. Evocar
a Francisco nesta situação concreta, é usá-lo como contrapeso à autori-
dade pontifícia para melhor afirmar a originalidade de Clara.
Na sua regra, redigida nos últimos anos de sua vida e aprovada in
extremis por Inocêncio IV, em 1253, a virgem de Assis invoca o seu pai
espiritual, mas só em dois lugares precisos. No primeiro capítulo para lhe
atribuir modestamente esta “forma de vida”, mas na realidade escrita por
ela; e no sexto capítulo para realçar a opção pela pobreza que, em relação
à outra forma de vida monástica, constituía então a originalidade absoluta
do convento de S. Damião, mesmo tendo em conta a Ordem do mesmo
nome24
. Até ali, a abadessa não sentiu a necessidade de recorrer a Fran-
cisco para definir os detalhes da vida monástica de suas irmãs. Só quando
o perigo vem de Roma, ela recorre à autoridade de Francisco.
O papado não tinha facilitado o seu apoio à experiência de Clara.
Tentou criar um modelo para o centro de Itália e depois para outras lati-
tudes, constituindo a “Ordem de São Damião”, mas da se demarcou o
mosteiro de São Damião, afirmando a sua especificidade. Esta confusão
de títulos teve certamente origem no cardeal Hugolino, futuro papa Gre-
gório IX, e serviu para confundir os historiadores durante muito tempo.
—————
24
Houve muitas tentativas de reunir as várias comunidades de consagradas, de
beguinas, numa mesma Regra, onde se incluía também a comunidade de S. Damião.
A Regra de Hugolino, de 1218, era para todas as “Monjas Pobres Reclusas” (FFII, p.
309). A Regra de Inocêncio IV, de 1247, era dirigida às abadessas e monjas da
Ordem de S. Damião (FFII, p.325). A intenção era colocar todas essas comunidades
sob a dependência espiritual de S. Damião. Clara sempre se demarcou dessa
tentativa, afirmando a originalidade da Ordem das Irmãs Pobres.
36
A DIPLOMACIA DE CLARA
Efectivamente, tanto Gregório IX como Inocêncio IV, se
preocuparam por levar a regra de S. Bento a estas comunidades de
jovens e mulheres procedentes na sua maioria dos meios aristocráticos e
de as separar o mais possível dos Frades Menores. Destes, alguns ainda
recordavam os primeiros tempos do são convívio com as irmãs. Mas
outros começam a protestar contra o cuidado e a solicitude para com as
mulheres reclusas que os distraiam, pensavam eles, de tarefas mais meri-
tórias. Livrar-se das damas pobres, esquecer o Testamento do fundador e
a pobreza radical, foram temas tratados na bula Quo elongati que Gregó-
rio IX deve ter redactado em 1230, como resposta a um grupo influente
da Ordem masculina.
Perante estes esforços de normalização, para salvaguardar a
originalidade de São Damião, Clara utiliza na sua Regra a memória de
Francisco, entretanto elevado às honras dos altares. Isto não significa que
Clara deturpe a sua mensagem, antes pelo contrário. Usa as palavras do
defunto para melhor defender o que para ela era o núcleo irredutível do
seu modelo e que tinha sido confirmado a 17 de Setembro de 1228 por
Gregório IX no Privilégio da Pobreza: a “altíssima pobreza”, esta forma
de pobreza meritória, que é realmente um privilégio. Ao inserir no texto
as palavras que o santo escreveu a ela e a suas irmãs, Clara atribuía a sua
“forma de vida” a Francisco, aceitando considerá-lo fundador de uma
Ordem feminina, com a qual na realidade ele não se tinha preocupado
muito. Assim conseguia algo até então inaudito: que uma mulher, pela
primeira vez, escrevesse a Regra, sob a qual deveriam viver as suas
irmãs.
O cardeal Reinaldo, a 16 de Setembro de 1252, e depois Inocêncio
IV, pensavam ou fingiram que aprovavam a “forma de vida” de S. Fran-
cisco para as mulheres. Na realidade confirmaram a audácia da “plantazi-
nha”. Dez anos mais tarde, Urbano IV utilizava o mesmo subterfúgio,
mas ao contrário: dava a todos os mosteiros que se inspiravam em São
Damião o nome de “Ordem de Santa Clara”, e aproveitava para escrever
37
mais uma Regra feminina à sua maneira25
. Na realidade foi necessário
esperar pelo Concílio Vaticano II, para que a maioria das clarissas redes-
cobrisse a Regra desta mulher, que lhe deu o nome.
A VISÃO ATÍPICA DE CLARA
No processo de canonização de Clara, levado a cabo no Outono de
1253, do qual felizmente temos uma versão italiana, a irmã Filipa relata
um estranho sonho de Clara: parece-lhe que leva a Francisco uma bacia e
uma toalha para lhe secar as mãos. Sobe até ele por uma escada muito
alta, mas sem esforço. Chegando à altura de Francisco, este puxa por um
mamilo do seu peito e convida-a: “vem, toma e sorve”. Clara obedece.
Francisco diz-lhe que o faça outra vez, e o que ela saboreava era de uma
doçura deleitável. O mamilo de Francisco, ficando na boca de Clara,
parecia-lhe de ouro tão claro que se via reflectida nele como num
espelho26
.
Um episódio destes, que o autor da Legenda se abstém de reprodu-
zir, presta-se a múltiplas leituras. Naturalmente que se deve ver aqui a
expressão simbólica da paternidade espiritual de Francisco, contado no
estilo da maternidade espiritual que lhe era tão próprio. Mas em 1238,
numa carta dirigida a Inês de Praga27
, Gregório IX tinha oposto ao ali-
—————
25
A Regra de Urbano IV é de 1263. CF. FFII, p. 343.
26
Cf. PCL 3,
27
Trata.se da Crata “Angelis gaudium” de 1238 (cf. BF I, 262), dirigida A Inês de
Praga, onde se lê: “Na verdade, filha da bênção e da graça, quando nós tínhamos
menor responsabilidade, a dilecta filha em Cristo, Clara, abadessa do Mosteiro de
São Damião, em Assis, e outras senhoras devotas, abandonando as vaidades do
mundo, optaram por servir o Senhor na observância de vida numa comunidade
religiosa. O beato Francisco compôs-lhes a “Forma Vitae” que não é um prato
forte, mas leite, como convinha a quem inicia uma vida nova. Há pouco tempo, o
prior do Hospital de São Francisco de Praga, homem discreto e zeloso, apresentou-
-me uma carta a pedir humildemente que nós confirmássemos com autoridade
apostólica a Forma de Vida que tem por base a dita “Forma Vitae” e alguns
capítulos da Regra da Ordem de São Damião. Nós, depois de séria reflexão, não
achamos oportuno aceitar este teu pedido”. Desta forma Gregório IX recusava a
aprovação da regra escrita por santa Inês de Praga, que seria a primeira regra escrita
por uma mulher. Essa honra veio a caber a santa Clara.
38
mento sólido, que o papado dava às irmãs no seu esforço de legislação,
ao leite dos ensinamentos mais fluidos de Francisco. Com este sonho,
Clara afirma, sem reticências, a sua preferência.
CLARA, A ESPOSA DE CRISTO
Assinalamos como aquela que está viva sonha com um defunto, que
lhe abre o caminho para a felicidade no mais Além. Ao anunciar, em
1253, o falecimento de Clara por meio de uma carta encíclica, as irmãs de
São Damião qualificam a morte de paraninfo,28
que permite à alma reu-
nir-se ao esposo celeste. “Paraninfo fidelíssimo” é como a Legenda define
a Francisco, que introduz a jovem virgem perante o seu esposo real.
A alma gémea, com a qual a virgem de Assis deseja unir-se, não é
evidentemente a de Francisco. Ele não é mais que o heraldo, o embaixa-
dor de um Rei, que é Rei da pobreza. O rigor e a criatividade, que per-
mitem dirigir tudo a Cristo numa prodigiosa reductio ad unum, são de
admirar. Os testemunhos do processo ‒ a maioria são irmãs com mais de
quarenta anos de vida, sob a orientação de Clara ‒ nunca afirmam que
Clara simplesmente comungava: comungava o sacramento do Corpo do
Senhor Jesus Cristo29
. Quando num mesmo dia tem a alegria de receber a
eucaristia e a visita de Inocêncio IV, alegra-se de receber Cristo e seu
Vigário. Cura os enfermos com o sinal da cruz, rezando a oração do
Senhor, isto é, o Pai-Nosso. Fiel ao espírito de Francisco, que ensinava a
viver das próprias mãos, tece panos para fabricar corporais, que tocavam
o corpo de Senhor.
Em relação aos místicos, que se multiplicaram nas gerações seguin-
tes, Clara não é a amante exaltada do Senhor, é sua esposa, real e quoti-
diana, a que assiste desde o Natal até à Cruz, a esta paixão que recorda
sem cessar.
—————
28
Cf. Circ. 2.
29
PC 2, 11; 9, 10;
39
OS HOMENS NA VIDA DE CLARA
Limitar o discurso de Clara sobre os homens a Francisco e a Cristo
pode parecer singularmente redutor. Mas esta redução voluntária é sua.
A Legenda de Clara não esconde que a abadessa do mosteiro material-
mente ínfimo de São Damião teve relações com quatro papas: Inocêncio
III, Gregório IX, Inocêncio IV e Alexandre IV, que a canonizou. Clara
cita Fr. Elias numa carta. Além disso tem o cuidado de se rodear de uma
hierarquia de irmãos menores: cardeal protector, visitador, capelão e um
irmão leigo.
O processo de canonização evoca a proximidade quotidiana dos
irmãos esmoleres, encarregados de pedir esmola para as monjas de clau-
sura. Relata também este facto tristemente significativo: Quando uma vez
se dá conta da falta de azeite no mosteiro, pede a um irmão que vá pedir
azeite. Este responde, zangado, que bastava que lhe entregasse as bilhas
lavadas, o que Clara mesmo fez30
. Estes modos grosseiros, que não eram
maliciosos, devem-lhe ter lembrado o comportamento dos homens da
casa paterna, cavaleiros, cuja arrogância se podia desencadear brutal-
mente contra as filhas, que reagiam ao seu poder absoluto.
Mas, o mais profundamente revelador é o facto de Clara em
nenhuma situação ter classificado ou julgado estes homens, inclusiva-
mente quando um conflito os põe contra ela, como aconteceu repetidas
vezes com Gregório IX31
. Mesmo quando ameaçaram fisicamente o mos-
teiro e as irmãs, como sucedeu em 1240 com as tropas sarracenas de
Frederico II, e no ano seguinte com as de Vital de Aversa.
No fundo, Clara não parece ter alguma concepção particular do
masculino, nem mesmo do feminino, apesar do plural que usa em seus
escritos, que a liga indissoluvelmente a suas irmãs, quando Francisco lhe
dá campo livre para afirmação do seu ego. Clara não sente, pois, nem a
necessidade nem o desejo de aplicar a si mesma ou aos outros a imagem
de um género ou do género inverso. Clara ignora toda a categoria rece-
bida e todo o esforço de categorização ideológica, social, sexual. Trata-
—————
30
Cf. PC 1, 15.
31
Cf. LCL 14.
40
-se simplesmente de pessoas, referidas a uma Pessoa, a segunda, que as
pode incluir a todas.
UMA DIFERENÇA EXEMPLAR
Francisco de Assis é certamente um dos que mais influenciou as
revoluções mentais que fizeram que a cultura europeia seja o que é. A
audácia daquele que a Legenda Perusina designa como “um novo louco
no mundo”32
é extreme muito original na forma como lida com as catego-
rias, tanto de classes como de sexos. Tal como quando se despiu perante
o bispo de Assis, Francisco atrai sempre os olhares e ocupa todo o
cenário.
Clara, encerrada desde os dezoito anos atrás dos muros do mos-
teiro de São Damião donde não volta a sair, é infinitamente mais discreta,
e o peso do tempo concedia-lhe muito menos espaço para ir até ao fim
com o seu propósito. As fontes que conservam a sua memória não reve-
lam muitos dos aspectos mais profundos do seu mistério. É possível, no
entanto, vislumbrar o suficiente, de forma a reconhecer-lhe uma singula-
ridade menos relevante, mas tão radical como a de Francisco. Nestas
formas tão diversas de viver as mesmas exigências, vacilamos, todavia,
em afirmar qual foi a participação de cada uma destas personalidades de
excepção, qual o peso das obrigações específicas que este tempo medie-
val fez recair sobre cada um ‒ de maneira especial as obrigações excessi-
vas que pesavam sobre cada sexo ‒ qual foi o encargo das identidades
femininas e masculinas, imagens que se enfrentaram segundo o género
que estas obrigações ajudaram a forjar, a não ser que a obrigação princi-
pal não tivesse estas mesmas imagens.
Não há nenhuma simetria entre a “masculinidade” de Francisco e a
“feminilidade” de Clara. Ele supera as divergências das categorias sociais,
culturais, sexuais, desviando-as, desorganizando-as. Ela ignora-as. É
claro que, como filha de cavaleiro da média nobreza urbana, em relação
constante com cardeais e papas, não conheça a sua rigidez e os seus
códigos. Mas em cada indivíduo, sobretudo no seu inspirador, Clara vê
—————
32
LP 114, 6.
41
imediatamente a transparência de Cristo. Assim a pobreza de Francisco e
Clara, ainda que uma seja filha da outra, não têm o mesmo sabor. Para
ele, a pobreza é um caminho para Deus que passa pela identificação com
as categorias dos mais miseráveis das criaturas. Para Clara, a sua opção
pela pobreza é uma participação directa da natureza profunda de Cristo,
que é a pobreza. Quando o marido é pobre, a mulher não possui nada.
Aqui radica tudo. Para quê perder tempo com inversões metafóricas de
géneros, quando se tem a dupla sorte de pertencer de nascimento ao sexo
mais desprezado, mas que permite uma união imediata com o Esposo do
Cântico dos Cânticos, e com o Filho da Virgem.
“Em feminino, não há nada”, dizia Jean-Pierre Lécaud numa célebre
réplica ao Masculino/Feminino de Jean-Luc Godard. Clara de Assis
anuncia o aforismo com sete séculos de antecedência. É um nada que é o
contrário de vazio. Nada que estorve, nada que esconda, nada que oculte
o outro. O feminino de Clara é um nada que não é o contrário de nada.
Desdenhando as categorias, nas quais se comprazem os varões, e que nas
melhores condições discutem e se guerreiam, é transparência e imediatez
entre o individual e o universal, entre o indivíduo e o universo. Clara,
escrevia Damian Vorreux, é um “coração desembaraçado”.
Tradução da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana
43
A VOCAÇÃO E A MISSÃO DAS IRMÃS POBRES
DE SANTA CLARA NO MOMENTO ACTUAL DA
IGREJA E DO MUNDO
Ir. Maria Chiara Stuchi, osc*
—————
*
Conferência proferida pela autora no I Congresso de Presidentes das Federações de
Irmãs Clarissas, Assis 26-I-2008.
44
A VOCAÇÃO E A MISSÃO DAS IRMÃS POBRES DE SANTA CLARA
NO MOMENTO ACTUAL DA IGREJA E DO MUNDO
No Espelho de Perfeição há um relato que me parece esclarecedor
para percebermos o sentido desta exposição. Francisco descreve o verda-
deiro frade menor como aquele que reúne em si as qualidades próprias de
alguns irmãos: a fé e o amor de Bernardo, a simplicidade e pureza de
Leão, a cortesia de Ângelo, etc1
.
Francisco apresenta um paradigma concreto do frade menor, com o
qual os demais irmãos se deveriam conformar. Descreve pessoas concre-
tas, com talentos únicos e particulares, expressando assim que a riqueza
da fraternidade está na convergência de cada um para o bem comum, o
—————
1
“E dizia que seria verdadeiro Frade Menor aquele que reunisse nele as virtudes dos
santos frades, a saber: a fé de Fr. Bernardo, tão perfeita como o amor à pobreza; a
simplicidade e a pureza de Fr. Leão, que foi realmente um homem de coração puro;
a afabilidade de Fr. Ângelo, o primeiro cavaleiro a entrar na Ordem, e que era
adornado de grande mansidão e benignidade; a presença distinta e o bom senso de
Fr. Masseu, com a sua agradável e devota conversação; a perfeitíssima contemplação
de Fr. Gil, sempre com o espírito arrebatado em Deus; a actividade constante e
virtuosa de Fr. Rufino, que rezava incessantemente; até a dormir e a trabalhar, o seu
espírito estava com o Senhor; a paciência de Fr. Junípero, que atingiu um alto grau
de perfeição, porque ele tinha plena consciência da evidente realidade da sua própria
baixeza e um ardente desejo de imitar a Cristo Crucificado; o vigor corporal e
espiritual de Fr. João dos Louvores, que foi o maior atleta entre os homens do seu
tempo; a caridade de Fr. Rogério, cuja vida inteira e conversação eram inspiradas
por uma fervorosa caridade; enfim, a inquietação de Fr. Lucílio, que foi sempre uma
pessoa de total desapego e não queria estar no mesmo lugar por mais de um mês.
Quando começava a afeiçoar-se a algum lugar, logo se afastava e dizia: «Morada
permanente só a temos no céu» (EP 85).
45
bem que é a vida segundo o santo Evangelho. Cada um tem dentro de si uma
chama, e todos juntos contribuem para alimentar a chama da fraternidade.
Tenho a sensação que Clara hoje nos diz o mesmo a nós. Quem é
hoje a irmã pobre de santa Clara? Qual é a sua vocação, a sua missão no
nosso tempo, na nossa Igreja, no nosso mundo?
O papa Alexandre IV, na Bula de Canonização, procura explicar
quem é Clara de Assis através da imagem da árvore com ramos que se
alargam, e sob cuja sombra acudiram e continuam a acudir muitas segui-
doras de muitas partes do mundo2
. Podemos dizer hoje que estes ramos
se alargaram aos cinco continentes, que deitaram folhas em todo o
mundo, onde brotaram flores e amadureceram frutos. Por isso, de qual-
quer parte do mundo pode responder-se, sempre de novo, à pergunta
sobre a vocação e a missão da irmã pobre de Santa Clara.
Surge a necessidade vital de nos escutarmos reciprocamente. Deve-
mos escutar a história das origens; devemos escutar a compreensão que
temos hoje do nosso carisma e partilhar as experiências vividas e os
sonhos que guardamos em nós. Na realidade, a irmã pobre, hoje, tem o
rosto de inumeráveis povos, fala muitas línguas, exprime os calores e os
sabores de numerosas culturas.
A minha comunicação articula-se em três partes. Na primeira, trata-
rei de expor algumas coordenadas em que nos movemos como habitantes
deste mundo, marcado por luzes e sombras, com algumas tendências que
nos impõem, às quais devemos responder evangelicamente. A questão
poderia ser: Como é o mundo em que vivemos? Precisamos de conhecer
o mundo em que nos movemos, para viver a nossa vocação: a Forma de
vida de Clara.
Na segunda parte, comentarei em síntese os pontos cardeais da
Forma de vida de Clara, que para nós são as lentes com que olhamos o
mundo, e neste a Igreja, a família Franciscana, as nossas comunidades e a
nós mesmas. Daqui tiraremos os critérios de referência e de valoração
para rever a nossa vida e tomar novas opções. A questão pode ser: Qual
foi a opção fundamental de Clara? A Forma de vida que nos deixou é o
espelho em que nos olhamos.
Na terceira parte, quero pôr em destaque os aspectos e os âmbitos,
onde actualmente encarna o carisma clareano. Obviamente, só alguns
—————
2
BLC 9.
46
aspectos. A questão poderia ser: Por que vida optamos? E consequente-
mente, como actuar? Trata-se da realização, de concretizar a maneira de
viver a que cada uma de nós foi chamada.
1-O mundo em que vivemos
Vivemos numa época da história do mundo e da Igreja caracteri-
zada por desafios e exigências novas. São desafios “de última hora”, com
uma aceleração tão descontrolada que produzem confusão e desordem
generalizadas e se propagam de modo visivelmente crescente no âmbito
social, político e económico de uma cultura secularizada e distante das
raízes de tradição cristã.
Uma das ameaças eminentes é “o paganismo cinzento da vida
quotidiana da Igreja, dos cristãos, onde aparentemente tudo continua
normal, mas que na realidade a fé se esgota e cai na mesquinhez3
.
1.1. A primeira atitude que devemos assumir com fidelidade e
audácia perante a realidade que nos rodeia com toda a sua complexidade
é a de “voltar a começar em Cristo”4
, na pessoa do Senhor Jesus, pobre e
humilde, com adesão de fé, que nos leva à esperança, confiança e alegria.
Seguindo a exortação de S. Paulo de não nos afligirmos como os
que não têm esperança (1Ts 4, 13), podemos olhar as grandes mudanças
que acontecem na Igreja e no mundo com a visão de Jesus: sem angústia,
nem medo, nem perturbação.
Esta visão da realidade, neste espaço vital da nossa vocação no
tempo que nos é dado viver, ao contrário do sentido/sem sentido da
opressão que esmaga, estimula-nos a recomeçar a partir de Cristo, da
contemplação do seu rosto, do acolhimento do seu Evangelho que anun-
ciamos e proclamamos, com simplicidade e humildade, ancoradas na
profecia da esperança e do gozo: a Ressurreição.
O Senhor pede-nos para sermos humildes e para termos um olhar
não fragmentado, não disperso. Devemos ser capazes de fazer a síntese,
de construir e de amar a verdade; o Senhor pede-nos um coração indi-
—————
3
RATZINGER, J., Situación actual de la fe y de la teologia, Conferência pronunciada
em Guadalajara, Mexico, 1996 (www. Aciprensa.com/Docum/rat96.htm).
4
JOÃO PAULO II , Novo millenio ineunte, 28-29.
47
viso, unificado, capaz de harmonizar a partir de dentro, com a arte da
comunhão, as antinomias, as contradições e os elementos que a realidade
apresenta na sua multiculturalidade de luzes e sombras.
1.2. Nesta perspectiva, o “ver” implica ao mesmo tempo a solici-
tude para discernir livre e responsavelmente os sinais dos tempos à luz do
Espírito Santo; o redescobrir confiadamente o sentido unitário e total da
realidade, superando os critérios parciais e unilaterais, ligados exclusiva-
mente a interesses económicos e/ou políticos; voltar a ter como ponto de
partida a Cristo, Palavra e Sabedoria de Deus (1Co 1, 30), optando com
audácia pelo caminho da profecia da salvação no Ressuscitado. “Só
aquele que reconhece a Deus, conhece a realidade e pode responder-lhe
de forma adequada e verdadeiramente humana”5
, e só através desta com-
preensão dos vários significados e processos da realidade se fará a síntese
e se terá uma compreensão unitária.
1.3. Com efeito, luzes e sombras caracterizam o nosso mundo
cheio de mutações surpreendentes, que chegam de forma rápida e verti-
ginosa a todos os lugares. Geralmente identificam-se com os fenómenos
da globalização, que se estende a todos os âmbitos da vida social, do
político ao económico, do científico ao tecnológico, e até do artístico ao
desportivo.
Limitamo-nos a analisar alguns deles, que, a meu ver, têm maior
relevância para a nossa reflexão.
1.3.1. A nível mais profundo da sociedade, emerge uma subjectivi-
dade a roçar o hedonismo e o narcisismo. Quando o eu se torna o ponto
de referência das relações humanas, incluso as afectivas, estas chegam a
ser instrumentalizadas. Efectivamente, a afirmação do próprio eu, da
própria felicidade, ilusória e efémera, nasce de uma indiferença cada vez
maior pelo outro, reduzindo-se a relação a momentos fugidios, sem um
compromisso verdadeiro e duradoiro. O direito individual prefere a reali-
zação dos próprios desejos à preocupação pelo bem comum, com pre-
juízo da solidariedade para com os pobres e os mais vulneráveis. A
—————
5
BENTO XVI, Discurso inaugural da V Conferência geral do episcopado Latino-
-americano e das Caraíbas, 3 (13 de Maio de 2007).
48
indiferença causada pelo egoísmo é uma das feridas mais profundas infli-
gidas à própria dignidade humana.
Paradoxalmente, sem ser surpreendente, a perca da dignidade (ou a
ameaça de a perder) é o ponto de partida para um processo positivo de
reafirmação do valor fundamental e insubstituível da pessoa, do sentido
da vida e da transcendência.
A necessidade de construir o seu próprio destino e de encontrar
uma razão para a própria existência, abre novos horizontes, que valori-
zam o indivíduo como pessoa, o seu desejo de se encontrar com os
outros para partilhar e confrontar as próprias vivências, para ler juntos os
acontecimentos e juntos construir a história. A diversidade deixa de ser
ameaça e torna-se em dom para superar os conflitos e as oposições, que
convergem na síntese de um destino histórico comum, respeitoso da dig-
nidade e da liberdade de todos e de cada um.
1.3.2. As indicações de Bento XVI sobre os aspectos positivos e
negativos da globalização, ajudam-nos a compreender de maneira acer-
tada o processo evolutivo e regressivo provocado. Se por um lado é um
fenómeno de “um entremeado de relações a nível planetário e uma con-
quista da família humana”, por outro lado, sublinha o Santo Padre,
“como em todos os campos da actividade humana, a globalização deve
reger-se também pela ética, colocando tudo ao serviço da pessoa
humana, criada à imagem e semelhança de Deus”6
.
Considere-se, por exemplo, a economia, que quando privilegia os
valores da eficiência e da produtividade, do lucro e da competição, não
favorece o desenvolvimento dos bens mais importantes da vida, como a
verdade, a justiça, a dignidade e os direitos humanos. Enquanto concen-
tra o poder e as riquezas nas mãos de poucos, contribui para aumentar a
pobreza. Por outro lado, as novas tecnologias, contribuem de forma ine-
vitável para a exclusão e a precariedade no trabalho. Assim surge um
novo analfabetismo que tem origem na ignorância induzida.
1.3.3. A globalização, pois, sem uma aspiração profunda à unidade
e à solidariedade, converte-se numa arma letal, destruidora. É um mundo
—————
6
BENTO XVI, Discurso inaugural da V Conferência geral do episcopado Latino-
-americano e das Caraíbas, 2.
49
onde se criam em cadeia condições nocivas à vida humana, reguladas pela
exploração, pela escravatura e pela exclusão social.
O mal produz o mal: milhões de pessoas e famílias sem trabalho,
sem terra, na miséria e fome; milhões de refugiados, perseguidos pela
guerra, pelo terrorismo e por toda a forma de violência…
1.3.4. Também a natureza geme e sofre; o ecossistema é contami-
nado pelos interesses económicos e políticos das grandes multinacionais.
Não obstante, nesta realidade onde o mal parece dominar, divisa-se,
às vezes muito tenuemente, a chama dos que, em diversos âmbitos,
ouvem e acolhem a chamada a proteger e a conservar a natureza criada
por Deus, não permitindo que o nosso mundo seja uma terra cada vez
mais degradada e degradante7
. É a voz, às vezes muito débil, e ainda
pouco escutada e considerada, de tantas associações e grupos de voluntá-
rios, e tantos movimentos e organizações, que se afanam para que real-
mente tudo volte a estar ao serviço do homem e sua dignidade.
2. Clara, o nosso espelho
Deixemo-nos iluminar pela experiência e pela palavra de Clara. Per-
guntemo-nos: De que maneira viveu Clara neste mundo, como se inseriu
nele como um fermento de vida, qual manancial para os desertos huma-
nos, e luz que ilumina as trevas8
, também as trevas do nosso tempo?
2.1. Vida segundo o santo Evangelho: a opção fundamental
Clara quer viver o santo Evangelho. Este é o seu propósito, esta é a
sua forma de vida: “A forma de vida da Ordem das Irmãs Pobres, que S.
Francisco instituiu, é esta: Observar o santo Evangelho de Nosso Senhor
Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem próprio e em castidade”9
.
O Evangelho é Jesus. Clara entendeu muito bem, olhando Fran-
cisco, tal como recorda no princípio do teu Testamento, no contexto de
acção de graças ao Pai das misericórdias pelo dom da vocação específica:
“O Filho de Deus fez-se nosso caminho, como nos mostrou e ensinou
—————
7
João Paulo II, Homilia em Punta Arenas, Chile, 1987.
8
BLC 11-12.
9
RCL 1, 1-2.
50
pela palavra e pelo exemplo o nosso bem-aventurado Pai São Francisco,
seu apaixonado imitador”10
. O Evangelho vivido e pregado por Francisco
está presente no início da conversão de Clara e define a sua identidade.
Clara é uma cristã. Sem glosa.
Jesus, caminho, verdade e vida, é a Boa Notícia anunciada aos
pobres, aos oprimidos, aos excluídos. Francisco mostra-o e ensina-o a Clara
com palavras e obras, que nascem umas vezes do contacto com os
marginalizados da vida, como os leprosos, outras do silêncio dos eremitérios.
Clara esquadrinhou constantemente o essencial do rosto de Jesus
que Francisco desvelou, até assumir os seus rasgos11
. Com a emoção de
sempre, recordamos a resposta de Clara, pouco antes de morrer, falando
a Fr. Reinaldo: “Querido irmão, desde que me foi dado conhecer a graça
do meu Senhor Jesus Cristo por meio do seu servo Francisco, nenhuma
pena me foi molesta, nenhuma penitência me pareceu severa, nem
nenhuma doença me foi difícil de suportar”12
.
A graça de que fala Clara é toda a vida terrena de Jesus: Jesus que
nasce na pobreza, que experimenta uma vida exigente, onde o sofrimento
e o gozo marcam o quotidiano, terminando os seus dias sobre a terra
pregado numa cruz, como um malfeitor entre malfeitores… este Jesus
manifesta ‒ sobretudo no momento supremo do Calvário ‒ o amor agá-
pico e erótico de Deus, na linguagem de Bento XVI13
, que nos interpela:
“Vós que passais, contemplai e vede se há dor semelhante à minha dor”14
.
Este Jesus é o santo Evangelho, é a Boa Notícia: Deus ama os
homens e quer que se salvem, quer entrar em comunhão com o ser
humano, para que tenha vida em abundância. Clara responde a este Jesus
e exorta: “Respondamos com uma só voz e um só espírito a este grito:
„A pensar nisto sem cessar, minha alma desfalece dentro de mim‟”15
.
Qual a resposta que damos no momento actual?
2.2. Vida evangélica na altíssima pobreza: o espaço de comunhão
—————
10
TCL 5.
11
4CCL 15.
12
LCL 44.
13
Nota 13.
14
4CCL 25.
15
4CCL 26.
51
Se Clara encontra no Evangelho a sua identidade, é na pobreza de
Jesus que descobre o específico da sua Forma de vida: “… se dignem
conduzir o pequenino rebanho, que na sua Igreja santa, o Senhor e Pai
gerou com a palavra e o exemplo do bem-aventurado Pai Francisco, no
seguimento da pobreza e humildade do seu dilecto Filho e da gloriosa
Virgem sua mãe, e o levem a observar sempre a santa pobreza…”16
.
A Igreja reconhece-nos como aquelas que seguem a pobreza e a
humildade de Jesus. Se faltamos neste serviço de memória e testemunho
de Jesus pobre e humilde, a nossa presença não tem sentido.
2.2.1. Recordemos, através de dois factos, o quanto era importante para
Clara o ser e o viver pobre.
a) Pede ao Papa o Privilégio de Pobreza, o privilégio de não ter
privilégios. Pede ajuda ao Papa, mesmo ajuda formal. Pede uma
aprovação escrita, autorizada, para garantir a ela e suas irmãs
(presentes e futuras, não esqueçamos), a melhor condição para
viver o santo Evangelho. Quer estar segura de não ser obrigada a
ter seguranças.
b) No testamento declara ter-se comprometido livremente, e repete-
-o várias vezes com “nossa senhora a santíssima pobreza”17
, ela e
suas irmãs. Clara, mulher medieval, que respirou a cultura cor-
tesã, sabe que deve fazer tudo por essa Senhora tão especial. A
sua opção é consciente, desejada e madura. Não se trata de um
impulso emotivo de momento: “… frequentemente renovemos a
nossa adesão voluntária à nossa senhora, a santíssima pobreza, a
fim de que depois de minha morte, as irmãs, tnto as presentes
como as futuras, de nenhuma maneira dela se apartem»18
.
2.2.2. A pobreza tem um duplo efeito prático:
‒ garante a permanência na marginalidade, atitude que não assusta,
que não deixa margem para equívocos tanto nas palavras como nas atitudes,
—————
16
TCL 46-47.
17
TCL 39.
18
Ibid.
52
‒ dá sempre a prioridade ao outro e ao Outro, numa atitude perma-
nente de acolhimento e gratuidade.
E tudo acontece como e com Jesus, que foi pobre no seu nasci-
mento, pobre viveu e nu permaneceu na cruz19
. Por isso respondia ao
papa, que insistia para que recebesse rendas: “Santíssimo Padre, por
nenhum preço quero ser dispensada de viver o seguimento de Cristo para
todo o sempre”20
.
Pobre como e com Jesus. E por isso pobre como e com os irmãos.
Parece-me eloquente um detalhe do episódio sobejamente conhecido da
multiplicação do pão. Do único pão que havia na comunidade formada
por cinquenta irmãs, Clara ordena à irmã encarregada do serviço da des-
pensa, de enviar metade aos irmãos e de cortar a outra metade em cin-
quenta pedaços, um para cada irmã. E houve pão em abundância para
todos21
.
2.2.3. A pobreza só é fecunda, quando aqueles que a abraçam se
tornam solidários. É assim a pobreza de Jesus, que se fez pobre por nós,
para nos enriquecer através da sua pobreza (2Co 8, 9). Não partilhou
connosco o supérfluo, mas o dom excelso de sua vida divina. Clara não
partilhou com os irmãos o supérfluo, mas o indispensável.
Na sua pobreza, Jesus tornou credível a imensa bondade de Deus.
Na sua pobreza, Clara é credível quando nos recorda, animando-nos: «Na
verdade, é uma troca maravilhosa e digna de todo o louvor renunciar aos
bens temporais e preferir os eternos, perder o que é terreno, para merecer
o que é celeste, renunciar a um para ganhar cem e possuir para sempre a
vida bem-aventurada”22
.
—————
19
Cf. TCL 45.
20
LCL 14.
21
Cf. LCL 15.
22
1CCL 30.
53
2.3. Vida evangélica em santa unidade: uma sinfonia executada
pelo Espírito Santo.
O episódio do milagre do pão abundante permite-nos compreender
como o ser pobre abre espaço interior para o acolhimento dos irmãos e
irmãs, e ajuda a forma de nutrir a comunhão.
Clara e as irmãs crescem na santa unidade, tendo ante seus olhos o
ponto de partida e o objectivo final do viver em comunidade, “de diversas
regiões e províncias congregadas”23
.
2.3.1. O ponto de partida é reconhecer que cada uma é filha do Pai,
por ele doada às outras24
e guiada pelo Espírito Santo25
. Por respeito à
divina inspiração que a todos move, consegue-se a escuta recíproca, gra-
ças à qual a fraternidade entende como deve avançar na observância do
Santo Evangelho. Nisto não há hierarquia de valores. Deus é livre de dar
a luz da sua sabedoria26
. Desta maneira, a santa unidade constrói-se e
mantém-se no exercício da corresponsabilidade, da qual ninguém está
dispensado, pois na fraternidade clareana não tem sentido a renúncia à
própria responsabilidade. Efectivamente, a fraternidade vive da atenção e
da confiança recíprocas e da partilha dos dons.
2.3.2. A meta é o bem comum. Clara exorta a procurar a confluên-
cia dos corações, das mentes e das vontades, como forma de passar ‒
como diríamos hoje ‒ do eu ao nós27
. Cada irmã, acolhida na sua unici-
dade, é convidada a mostrar-se em toda a sua verdade, certa de encontrar
na outra irmã aquela que lhe dá o necessário para viver, isto é, para ser
autêntica segundo os projectos de Deus. “Confiadamente manifeste uma
à outra as suas necessidades, pois, se a mãe ama e cria com tanto amor a
—————
23
ExAu 1.
24
“…juntamente com as poucas irmãs que o Senhor me tinha dado” (TCL 25).
25
“Se alguém, por inspiração divina, vier ter connosco, com intenção de abraçar esta
vida” (RCL 2,1); “Pois que, por divina inspiração divina vos fizestes filhas e servas
do altíssimo e soberano Rei e Pai celestial, e vos tornastes esposas do Espírito Santo,
abraçando uma vida conforme a perfeição do Santo Evangelho” (RCL 6,3).
26
“Com efeito, muitas vezes é ao mais pequenino que o Senhor revela aquilo que mais
convém” (RCL 4, 18).
27
CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E SOCIEDADES DE VIDA
APOSTÓLICA, A VIDA FRATERNA EM COMUNIDADE, 39-42.
54
sua filha carnal, com quanto mais carinho não deve cada qual amar e aju-
dar a sua irmã espiritual”28
.
Desta forma consegue-se a dedicação personalizada, que Clara
manifesta para com as irmãs, como testemunham os milagres realizados a
favor das irmãs. A mesma dedicação se verifica nas disposições relacio-
nadas com o hábito e com o dinheiro recebido29
. Mas o respeito e a promo-
ção da unicidade da pessoa não são um fim em si mesmo. Cada uma das
irmãs está chamada a ser para a fraternidade, a buscar e a desejar o que é a
utilidade comum e a contribuir para que a comunidade caminhe unida.
Se há uma opção preferencial, deve ser pela irmã doente, porque
ela é por excelência o sacramento de Jesus pobre. Clara acolhe as doentes
e quer que sejam acolhidas pelas demais com grande ternura. Todas estão
chamadas a ser próximas umas das outras, evitando que algo de mal lhes
aconteça30
. As curas contadas pelas irmãs no Processo de Canonização,
realizadas com o sinal da cruz traçado por Clara, indicam-nos a via da
libertação: a Cruz de Jesus, ou melhor, o amor que dá a própria vida, é a
forma de vida concreta a que as irmãs estão chamadas na sua relação com
as doentes. Uma realidade e um símbolo para reflectir.
2.3.3. Enquanto todas escutam a Palavra de Deus e a pregação que
se seguiu, uma irmã goza da visão do Menino Jesus. Compreende que
Jesus está no meio de todos os que “escutam como devem”, isto é, estão
unidos em nome de Jesus31
. A escuta obediente da Palavra de Deus ali-
menta e faz crescer a fraternidade, ensinando a superar os subjectivismos
e reforçando cada uma no serviço devotado ao bem comum.
2.3.4. A unidade do amor recíproco32
é a pérola preciosa que se
deve guardar a todo o custo, e que só se alcança quando se “vendem” as
ideias, projectos e expectativas próprios. O serviço da Abadessa, a
estrutura da vida comunitária (capítulos), o trabalho, a atenção às irmãs
doentes, os conflitos nas relações fraternas… são os vários aspectos da
—————
28
RCL 8, 15-16.
29
«A abadessa providencie com discrição quanto às roupas, segundo a natureza da
pessoa, o local, o tempo e as regiões frias, como vir que é necessário» (RCL 2, 17).
30
Cf. RCL 8, 12-14.
31
Cf. PC 10, 8; Mt 18, 20.
32
Cf. RCL 10, 7.
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Caderno 39_4ec2a6868e8a7

  • 2. Ficha Técnica Coordenador: Fr. José António Correia Pereira, ofm Editorial Franciscana Apt. 1217 4711-856 BRAGA Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735 E-mail: edfranciscana@editorialfranciscana.org Edição on-line no site: www.editorialfranciscana.org Capa: Desenho de Fr. José Morais, ofm Edição: Editorial Franciscana Propriedade: Província Portuguesa da Ordem Franciscana Depósito Legal: 14549/94 I. S. B. N.: 972-9190-46-1 Caderno 39 - 2010 Cada número dos Cadernos é vendido avulso
  • 3. 3 Índice I — Estudos 1. José Arregui, ofm — A Oração diante do Crucifixo de S. Damião ‒ Releitura para uma “nova” espiritualidade ‒ ................................ 5 2. Jacques Dalarum, ofm — Francisco e Clara, masculino/feminino em Assis no século XIII ......................................................................... 27 3. Maria Clara Stuchi, osc — A vocação e missão das Irmãs Pobres ..................................... 43 4. Papa Bento XVI — Três Catequeses sobre: Santa Clara, Beata Ângela de Folinho e Santa Isabel da Hungria ...... 61
  • 4.
  • 5. 5 I — Estudos AORAÇÃO DIANTE DO CRUCIFIXO DE S. DAMIÃO ‒ Releitura para uma “nova” espiritualidade ‒ José Arregui, ofm* ————— * Artigo das Selecciones de Franciscanismo XXXIX (2010) 65-85.
  • 6. 6 AORAÇÃO DIANTE DO CRUCIFIXO DE S. DAMIÃO ‒ Releitura para uma “nova” espiritualidade ‒ Ó glorioso Deus altíssimo, ilumina as trevas do meu coração, concede-me uma fé verdadeira, uma esperança firme e um amor perfeita; Mostra-me, Senhor, o sentido (reto) e conhecimento, a fim de que possa cumprir o sagrado encargo que na verdade acabas de dar-me. Ámen1 . Proponho um comentário simples e livre desta “Oração diante do Crucifixo de S. Damião” de S. Francisco de Assis, que não deseja ser mais que simples indicações de uma releitura a partir das categorias culturais e espirituais da actualidade. A oração chegou-nos na língua materna de Francisco, o italiano incipiente da época. É sugestivo o facto de que as únicas orações do Poverello que se conservam em italiano sejam esta e o cântico do Irmão Sol. A primeira evoca-nos o princípio vacilante da sua busca espiritual. A segunda transporta-nos aos últimos tempos da vida terrena, unindo-se a todas as criaturas num louvor ao Deus da vida, qual andorinha que não cessa de cantar enquanto voa e sobe cada vez mais alto. Ambas têm uma profunda relação com aquela bendita capela de S. Damião, nos arredores ————— 1 Citaremos os Escritos de S. Francisco e Santa Clara a partir da edição da Editorial Franciscana: FONTES FRANCISCANAS I (FFI), Escritos, biografias, Documentos, 3ª ed. Ed. Franciscana, Braga 2005; FONTES FRANCISCANAS II (FFII), Escritos, biografias, documentos, Ed. Franciscana, Braga 1996.
  • 7. 7 de Assis. Fala do que ele busca e vive, do sofrimento e da alegria e fá-lo na sua língua materna. A oração diante do Crucifixo de S. Damião remete-nos directa- mente para 1205-1206, anos em que Francisco, com 25/26 anos, busca um rumo para a sua vida. É um tempo de indecisão e procura, num pro- cesso de discernimento. Não sabe o que quer, mas vai percebendo cada vez melhor o que não quer ser: nem cavaleiro, nem comerciante. O encontro com os leprosos tocou-o profundamente. Representam os últi- mos, mesmo que não sejam os únicos. E sente fortemente que o seu destino não pode separar-se destes abandonados. Quando contempla Jesus crucificado, vê-os a eles. E quando dá com os olhos neles, vê Jesus crucificado. Na realidade, a busca de Francisco não durou só dois anos, mas toda a sua vida, que não foi muito longa (morreu com 45 anos). Viveu sempre em discernimento, na busca permanente da vontade de Deus, vontade esta que não está predeterminada e que nunca nos vem ditada de fora, mas que brota da raiz mesma do próprio querer e dos quereres alheios. Formalmente é um texto sumamente polido e estilizado, de uma precisão de vocabulário e de um tal ritmo, que supõe uma elaboração muito cuidada. Certamente que não a compôs aos 24 anos. Sabemos que a recitou ao longo da vida e a aconselhava os seus irmãos, para que a recitassem. Francisco viveu em cheio ‒ fins do século XII, princípios de século XIII ‒ numa época de encruzilhada histórica, cultural, social e eclesial. Que se tornou também numa encruzilhada espiritual. Intuiu que um novo tempo estava a nascer e busca uma forma de vida e uma espiritualidade para novos tempos. Busca algo diferente. Quer outra Igreja. Vislumbra outro mundo. E também “outro” Deus. Sente-se atraído por outra forma de vida, uma outra maneira de seguir Jesus, um estilo de vida diferente da dos monges e dos “leicos”, algo entre mosteiro e “mundo”, entre a “vida religiosa” de então e a “vida secular”. E reza, pelo descampado, a cami- nho dos leprosos, na solidão habitada da ermida semidestruída de São Damião, perante o belo ícone de Jesus crucificado, de estilo bizantino- -úmbrio. Reza com as palavras que lhe saem do coração e da mente. A experiência espiritual transforma-se em palavras e as palavras soam a
  • 8. 8 suspiros que irradiam vida, animam-nos a olhar e a sentir em profundi- dade e a buscar com a liberdade de espírito as nossas próprias palavras. É uma oração profundamente actual, muito própria para este tempo de busca. É frequente dizer-se que a nossa época é de mudança cultural, um câmbio de paradigma, a emergência de uma nova era. Alguns estudio- sos falam num tempo axial. Panikkar diria que nos encontramos no epicentro de uma mutação cultural como poucas se deram na história humana. Alguns, inclusivamente, atrevem-se a dizer que esta mudança é similar à que se produziu na passagem do paleolítico ao neolítico. Outros vão mais longe e afirmam ‒ reportando-se a Darwin ‒ que é um passo semelhante ao que se produziu há dois milhões de anos, na passagem dos primatas ao ser humano2 . Nesta época, a espiritualidade não só não vai desaparecer, mas vai recobrar novo vigor e crescente actualidade. Os homens e as mulheres da nova geração necessitam e buscam espiritualidade, como necessitam e buscam alento, paz, interioridade, beleza, profundidade e harmonia inte- gral. Mas as profundas transformações culturais implicam e requerem transformações profundas na espiritualidade tradicional, nas categorias teológicas, na maneira de ler a Bíblia, de entender a Deus e na forma de olhar as outras religiões. A religião tem futuro, mas não necessariamente as religiões que hoje conhecemos. Muitos dados fazem pensar que a cristandade, com a visão tradicional dos dogmas, da instituição clerical e hierárquica, se está a esgotar e carece de futuro, porque se tornou incompreensível à cultura actual. «Muitos grupos, muitas instituições aparecem e desaparecem. No entanto, há um sentimento busca. Jesus não fundou nenhuma religião, deixando assim a porta aberta para que os seus discípulos criassem a reli- gião mais adaptada à sua cultura, o que se fez inconscientemente, ou seja, sem que ninguém soubesse que se estava a construir uma religião nova. Por isso, essa religião que conhecemos e praticamos formou-se dentro do Império romano, e é uma realidade histórica. Outras podem aparecer. Estamos no começo da história do mundo e da evangelização. Até agora o cristianismo só penetrou numa cultura (com duas variantes), a partir do ————— 2 Cf. MARTINEZ LOZANO, E., “La crisis del sujeto en un câmbio de época”, no XVII Fórum Religioso popular de Vitoria (2009).
  • 9. 9 que havia no Império romano. Podemos considerar que seja só um começo, uma primeira etapa»3 . «Precisamos de uma religião. Mas nada exige que seja a mesma no Ocidente, na África, na Índia, na China ou no Japão. Nesses países há muita simpatia pelo cristianismo, mas pouca simpatia pelas Igrejas. É um sinal para o futuro»4 . Situo-me nesta perspectiva, e é a partir daqui que apresento algu- mas reflexões livres à volta desta bela oração. É uma oração que nos con- vida a redescobrir a paz na pergunta, a paz na busca de novas linguagens e paradigmas de espiritualidade. É uma oração própria do nosso tempo, de mudança epocal e de “nova espiritualidade”. Não me proponho ler e compreender Francisco a partir da sua época, mas a partir da nossa. Não me interessa tanto descobrir a imagem de Deus e as categorias espirituais que Francisco usou no seu tempo, mas imagens e categorias que se enquadrem na actualidade. Toda a leitura é uma reinterpretação a partir de uma perspectiva nova. A questão que me interessa é: que significa espiritualidade hoje? A qual espiritualidade nos chama hoje o Espírito. A que transformações espirituais nos chama a profunda transformação cultural que vivemos? 1. Ó glorioso Deus altíssimo Assim começa Francisco a oração e assim começará muitas outras: dirigindo-se a Deus com admiração e encanto. Invocando e encantando- -se. A invocação e o encanto, a fonte e a profundidade da espiritualidade, constituem o mais genuíno da experiência religiosa. É a dimensão mística que, ao lado da compaixão “política”, é o essencial de toda a religião. A invocação e o encanto são o mais importante e o mais autêntico da oração. O que pensamos, o que dizemos e o que pedimos não é tão importante. Francisco tem uma imagem de Deus e utiliza uns termos concretos para O designar. Serve-se de imagens e termos próprios da sua cultura. Mas isso não é o essencial. Quando fala de Deus, Francisco faz falar por dentro todas as imagens e categorias. Designa a Deus “alto e glorioso”. ————— 3 COMBLIN, J., http: //servicioskoinonia.org.relat 4 Ibid
  • 10. 10 “Altus” em latim significa alto e profundo ao mesmo tempo. Francisco fala da altura de Deus, mas é impressionante que insista sobretudo na descida de Deus, na sua proximidade humana, na solidariedade crucifi- cada. Deus é para Francisco “Jesus pobre e crucificado”. Imagina Deus nas alturas e nem podia imaginá-lo de outra maneira, tendo em conta a cosmovisão de então (com o céu em cima e a terra em baixo), mas, na realidade, situa Deus sobretudo na descida, na proximidade. Numa época em que, tanto na sociedade feudal e imperial como na Igreja clerical (também ela feudal e imperial) tudo remete para o poder, é muito significativo que Francisco nos fale tão insistentemente da “humildade” de Deus. Deus está sobretudo na descida, no mais pequeno e no mais profundo de todas as criaturas. Deus também é qualificado de “glorioso”. Que significa “glorioso”? Sugere-nos o sentido de “celeste”, “excelso”, “espectacular”, “gran- dioso”, “importante”… No entanto, para Francisco a “glória” de Deus revela-se sobretudo no pequeno e insignificante. A glória de Deus é a irradiação da sua divindade, da sua beleza e bondade no mundo. Mas onde se reflecte no mundo a beleza e a bondade de Deus? Reflecte-se em todas as criaturas, também nas mais humildes e insignificantes, sobretudo nas mais humildes e insignificantes. Irradia sobretudo no rosto de Jesus pobre e amigo dos pequenos, no corpo crucificado de Jesus, irmão de todos os crucificados. Deus fez-se pobre e humilde, e aí revela a sua maior glória. Quem é Deus para nós? Que imagem fazemos de Deus? Atrevo-me a dizer que continuamos a imaginar Deus com os rasgos milenários da velha cultura agrária e piramidal, como “Deus do céu”, como Senhor altíssimo, como rei soberano. Continuamos a aplicar a Deus os atributos clássicos que a filosofia ou teologia natural aplicava ao Senhor supremo, ao ente cósmico superior. Continuamos a chamar a Deus de omnipotente, imutável, impassível. Imaginamos Deus como Pai, Legislador, e Juiz supremo, que intervém no mundo quando quer, para fazer aquilo que quer, que tem um projecto predeterminado para cada um, que se revela quando melhor lhe aprouver, que se cala muitas vezes, que permite a dor por alguma razão que não se entende, que escolhe uns e exclui outros, que castiga quando quer e que perdoa quando quer.
  • 11. 11 Para muita gente ‒ e para muitos crentes ‒, com razão, esse Deus não existe. Já morreu. Se alguma vez existiu, morreu em Jesus, morreu na Cruz de Jesus e, muito antes, em todas as cruzes. Na realidade, nunca existiu, nós é que o imaginamos assim. Mas já não é possível continuar a imaginá-lo dessa maneira. Nietzsche selou a sua morte na cultura actual. O Deus da filosofia e da teologia tradicional que continuamos a imaginar já morreu há muito tempo: morreu na linguagem, morreu no pensamento e morreu no imaginário. De facto, a gente já não crê nele. Até a maioria das crianças que anda na catequese deixaram de crer nele desde os cinco anos. E é normal, pois esse deus nunca existiu. O deus que os ateus negam simplesmente não existe. Negam, porque o imaginam como alguém “incredível”. E Deus nunca é como o imaginamos, nem os que dizem crer ‒ “se compreendes, não é Deus”, diz santo Agostinho ‒, pelo menos como o imaginam aqueles que não acreditam em Deus. Deus é maior e mais pequeno, é presença terna, é coração que ama, é palavra reveladora, é manifestação bela, é bondade transformadora, é o tu de todo o eu, é o eu mais íntimo de todo o ser. Muitos falam de “espiritualidade sem Deus” (Compte-Sponville” ou de uma “espiritualidade laica” (M.Corbi), e entende-se o que querem dizer. Mas parece-me preferível restaurar a imagem de “Deus”. Como podemos afirmar a espiritualidade e negar a Deus, que é “Espírito” que tudo anima, e renova a face da terra? Onde há espiritualidade, onde há encanto frente à realidade, onde há olhar para o mistério, sentidos para a beleza, onde há coração para o reconhecimento e compaixão, aí está Deus. Onde está Deus, ali há espírito e espiritualidade. E está em todas as religiões, e para lá de todas as religiões. Todas as religiões não são mais que linguagens do Espírito universal. Quando deixam de o ser, só têm uma alternativa: ou se transformam ou desaparecem. «Como milhões de plantas e de espécies animais, muitas religiões se extinguiram ao longo do tempo. Estudando este fenómeno de obsolescência, o teólogo alemão Wolfhart Pannenberg fez esta pungente observação: “As religiões morrem, quando as suas luzes falham”, isto é, quando a sua doutrina já não ilumina a vida, tal como os seus membros, de facto, a vivem5 .» ————— 5 JOHNSON, E., La búsqueda del Dios vivo. Sal Terrae, Santander 2008, 42.
  • 12. 12 Não queremos, nem podemos deixar de crer em Deus no nosso tempo. Mas não devemos ter medo de nos desprender nas velhas ima- gens, na medida em que não nos parecem belas, credíveis, sugestivas e libertadoras. Não temos de nos aferrar a categorias e imagens, que não nos enchem o coração e a mente. Temos de “inventar” imagens e metáfo- ras de Deus, que nos permitam respirar e que nos libertem da angústia e nos deixem viver em paz. Há muita gente ‒ cada vez mais ‒ que não sabe se acredita ou não em Deus, porque quer acreditar em “algo” ou “alguém” ‒ como parece evidente ‒, mas não acredita num ser supremo que rege os destinos do mundo a partir do alto, segundo o seu desígnio e a sua vontade inescrutável. O nosso tempo convida-nos a rever a maior parte das nossas repre- sentações de Deus, tanto nas imagens como nos conceitos. Grande parte da teologia busca há muitos anos outra linguagem para Deus. «Os conceitos de Deus ultrapassados, simples e obsoletos já não satisfazem. No entanto, novas ideias oriundas de diversos contextos culturais, recolhidas pela teologia, parecem muito mais estimulantes», escreve E. Johnson6 . Ao longo dos capítulos do seu livro, o autor recolhe de entre as teologias de hoje aquelas imagens de Deus que respondem melhor aos anseios espirituais do nosso tempo: o Deus crucificado da compaixão, o Deus libertador da vida, Deus em feminino, Deus que rompe as cadeias, o Deus que faz festa com o ser humano, o Deus generoso das religiões, o Espírito criador num mundo em evolução, a Trindade: o Deus vivo do amor. E afirma: «A fé cristã atual não crê num novo Deus, mas, ao encontrar-se perante situações insólitas, busca a presença activa do Espí- rito divino, precisamente implicado nelas…». «Ó beleza sempre antiga e sempre nova, tarde Te amei», exclamava santo Agostinho7 .» Volvamos à invocação encantada e agradecida de Francisco. Nisso consiste o mais verdadeiro da espiritualidade. É a expressão de uma espiritualidade mística. Não é uma fé preponderantemente institucional, uma ideologia ou uma moral, mas uma fé profundamente mística, que está para além de todas as crenças, dos ritos e das normas. O cristianismo ‒ apesar de muitas resistências institucionais ‒ está a despedir-se da ————— 6 Ibid, 18. 7 Ibid, 17.
  • 13. 13 figura moral e dogmática tradicional, e a deixar-se impulsionar a ser, sobretudo, um caminho de espiritualidade mística. Necessitamos de uma espiritualidade mística, que não é nutrida por fenómenos paranormais, mas pela «experiência de Deus em todas as experiências» (R. Panikar, E. Schillebeeckx), pela experiência do ser e do estar cada vez mais profundamente enraizados no mistério de Deus, como mistério que nos envolve e nos origina, nos fundamenta e nos regenera, nos ama terna- mente e cura as feridas e conflitos ligados a todo o que conhecemos e chamamos “amor”. Não é o Deus da metafísica. Não é um Deus exterior e distante. Não é “outro” em relação a nós, como um qualquer de nós, é “outro” em relação aos outros. É “totalmente outro”, e, portanto, é “não-outro” (Nicolau de Cusa). É o crucificado numa pequena ermida semidestruída dos arredores de Assis. É o Deus no âmago da nossa temporalidade, da nossa caducidade e finitude, da morte (E. Jüngel). Aí está Deus. O Deus que é compaixão no âmago de toda a dor. Sublinharia, todavia, outro rasgo ao qual a cultura actual é especial- mente sensível e que considero muito verdadeiro, no sentido de revela- dor, sugestivo, fecundo e transformador: o Deus da comunhão ecológica de todos os seres. Deus está no coração do mundo, é o coração do mundo e de todas as criaturas sem distinção hierárquica. Francisco intuiu- -o, adiantando-se aos tempos. Ele viveu, como é natural, numa cosmo- visão antropocêntrica, partilhou duma cultura e de uma teologia profundamente geocêntrica e antropocêntrica, na qual o ser humano era apresentado como cume da criação e o motivo último de toda a acção divina e de toda a “história de salvação”. No entanto, para lá dessa cosmovisão teológica, Francisco não se sentia superior às outras criatu- ras, não se sentia coroa e centro da criação. Sentia-se simplesmente irmão, profundamente irmão de todos os seres. Irmão do sol, do fogo, do ar, da madre terra, do lobo, da morte que é irmã inseparável da vida. Diz- -nos Celano que “abraçava os seres criados com um amor e um entu- siasmo jamais vistos ” (2C 165,7) e que “a força do amor fizera-o irmão de todas as criaturas” (2C 175,1). Deus é a relação, a inter-relação, o respeito e o cuidado de tudo quanto existe, desde as partículas sub-atómicas às galáxias em expansão. É bom crer em Deus que está em toda a parte, o “Deus em quem vive-
  • 14. 14 mos, nos movemos e existimos” (Act 17, 28). Um Deus que não é parte do mundo nem a totalidade, mas que também não é algo ou alguém exte- rior e separado dele. Um Deus que é a “Totalidade” na relação entre as partes do todo (K. Scmitz-Morman), a “forma” que tudo informa, a “alma” que tudo anima, a “memória” que tudo mantém vivo no coração da vida. Por conseguinte, uma espiritualidade do nosso tempo há-de ser profundamente ecológica, uma espiritualidade ecológica da comunhão universal, do respeito e do cuidado por todos os seres. Como escreve L. Boff: «Quando falo de espiritualidade penso num novo sentido de ser, num novo sonho colectivo, entrelaçado de vários infinitos, como a cooperação, a solidariedade, o respeito por cada ser, o cuidado por toda a vida, a harmonia da natureza, o amor à mãe terra, a pluralidade de expressões do sagrado»8 . 2. Ilumina as trevas do meu coração Contrariando uma imagem bastante divulgada, Francisco padeceu da amargura e do medo das trevas. Ele, jovem alegre e rico, de uma cidade luminosa, situada numa colina voltada ao sol, frente a um vale esplêndido… experimentou a angústia da escuridão. Viveu no corpo e na alma o negrume da noite. “As trevas do meu coração”. E isso não aconteceu só nos anos de busca vocacional, mas ao longo da sua vida, sobretudo no final da vida, quando o seu corpo era uma chaga, e quando a sua fraternidade se afastava daquilo que tinha sonhado, e muitos irmãos o abandonavam. Por isso, ora. Não deixa de reconhecer as suas trevas, olha as som- bras de frente e aceita sentir o fundo da noite que o rodeia. E canta como uma andorinha, até ao último suspiro. Volvamos ao nosso tempo. A nossa época não se caracteriza pela tranquilidade. Daniel Innerarity fala de uma “obscuridade irredutível” ou do “fim das evidências e da visibilidade”, ou da “falta de perspectivas” da realidade no seu conjunto e da sociedade em particular9 . Efectivamente, nada é seguro. E Innerarity tem razão, quando afirma: «Quem apresenta ————— 8 Crisis y exemplos-semilla, em Atrio, a 3/4/2009. 9 INNERARITY, D., La sociedad invisible, Espasa, Madrid 2004, introdução.
  • 15. 15 o que diz como algo irrefutável e verdadeiro, ou não é sincero, ou não diz nada de interessante10 ». O que pode oferecer a espiritualidade numa época de desorientação como a nossa? Deverá pôr luz onde há escuridão. Mas não poderá fazê- -lo à base de certezas doutrinais e morais. A espiritualidade autêntica não oferece respostas seguras a todas as perguntas, a nenhuma pergunta. A espiritualidade oferece, sim, a liberdade e a ousadia para voltar a questio- nar todas as respostas, para continuar na busca, para prosseguir cami- nhando na noite. A espiritualidade consiste em entrar confiadamente no mistério que envolve toda a realidade e acolhe cada um como um ser único. A espiritualidade consiste em nos sentirmos a salvo no meio da noite, acompanhados na intempérie pela presença de Deus, como nuvem obscura e luminosa. A espiritualidade consiste em caminhar em paz sem ver nem saber, sem se deixar paralisar pelo medo e insegurança, sem que- rer aferrar-se a certezas, sabendo-nos sustentados por Deus, apesar do vazio. A espiritualidade é saber guiar-se de noite «sem outra luz nem guia/ a não ser a que no coração ardia. De noite iremos, de noite, / pois para encontrar a fonte/, só a sede nos ilumina» (Luis Rosales). A espiritualidade partilha as obscuridades, as perplexidades e inumeráveis fragilidades de todos os homens e mulheres. A espiritualidade recebe alento, precisamente, das pessoas desalentadas que connosco caminham, e deixa-se alumiar pela lâmpada preciosa que levam oculta no seu interior as pessoas desorientadas, que partilham connosco a terra da partida e a terra da chegada da nossa peregrinação. Desta maneira a espiritualidade infunde alento aos homens e às mulheres de hoje num mundo cada vez mais complexo, cada vez mais sensível às ameaças, cada vez mais inseguro, cada vez com mais medo das trevas de tantas sombras que o cercam. Uma espiritualidade assim abre muralhas e fronteiras. Não permite que nos convertamos em seitas. Cura-nos da amargura e impede que nos consideremos superiores aos outros. Faz-nos humildes receptores da luz que oferecemos. Abre-nos ao outro e ao consolo de Deus presente em ————— 10 Ibidem, 22
  • 16. 16 todos e faz de nós paracletos e consoladores. Acende uma chamazinha de luz e de calor nas trevas mais espessas do coração e é uma bênção. 3. Concede-me uma fé verdadeira, uma esperança firme e um amor perfeita Da invocação e do encanto, Francisco passa á suplica. Nós que nos sentimos tão necessitados, compreendemos Francisco que pede que o “ilumine” que lhe “dê”. Porque pede Francisco? Porque se sente radical- mente pobre e indigente. Quis ser mendicante e viver de esmolas, depois de dar de esmola tudo o que possuía e tudo o que poderia possuir no futuro. Deus não é somente o que dá em todo aquele que dá, mas é tam- bém o que pede em todo aquele que pede. Francisco suplica a Deus. Toda a petição a Deus é o reconheci- mento da nossa limitação, da consciência radical da nossa indigência. Francisco reconhece que necessita de Deus. Ao pedir que Deus o ilumine, reconhece as suas trevas interiores; ao pedir uma fé recta, esperança certa e caridade perfeita, reconhece que se sente inseguro na sua fé, vacilante na sua esperança, imperfeito no seu amor. Por isso pede. Ora a Deus em forma de súplica humilde, de petição confiada. Tam- bém aqui há que distinguir a forma e o sentido autêntico. O sentido verdadeiro não se encerra no enunciado. O sentido profundo da petição de Francisco ‒ nem é sequer a fé, a esperança e a caridade perfeita, enquanto objecto de petição ‒ nem o facto de pedir como tal. Ao sentir- -se radicalmente necessitado, exprime perante Deus uma confiança ainda mais radical. E, ao exprimir perante Deus uma confiança radical, a sua vida abre-se, para que Deus surja, como a terra se abre para que brotem as plantas e os frutos. O essencial da petição é que a vida se abra para Deus, e manifeste e opere a sua acção transformadora. Que sentido tem a petição de um crente? Não pede para que Deus conheça as nossas necessidades. Também não pede para que Deus faça o que de outra forma não faria, ou para evitar algo que de outra forma aconteceria. A oração não transforma Deus, mas o crente que reza. Reza- mos para exprimir a nossa necessidade e a nossa confiança. Oramos para acolher e agradecer. Oramos para nos transformarmos. Oramos para dei- xar que Deus seja em nós e em todas as coisas. É como se Deus estivesse pedindo em nós e nós sentirmos que não podemos deixar de atender a
  • 17. 17 chamada do Grande Esmoler. Recordemos as comovedoras orações de Etty Hillesum, nas quais ela nada pede, antes promete humildemente aju- dar Deus, prisioneiro em todos os corações e em todos os cárceres, como aqueles infelizes prisioneiros condenados a Auschwitz: “Tu, meu Deus, não podes ajudar-nos. Eu te ajudarei, Senhor, e assim me ajudarei». Quando ajudamos a Deus, deixamos que Deus nos ajuda a partir de nós mesmos, pois nos tornamos providência de Deus para nós e para todas as criaturas. Concede-me uma fé verdadeira (reta). Francisco viveu sempre preocupado com a fé recta, com ortodoxia. Isso percebe-se a partir da situação social e eclesial do seu tempo. Foram tempos de grandes muta- ções culturais e sociais, tempo de inquietação e insegurança, de necessi- dade de reformas a todos os níveis. Eram frequentes os pregadores ambulantes que apelavam a reformas. Os cátaros tinham-se instalado no Vale de Espoleto, perto de Assis. E havia muitos outros movimentos, alguns na fronteira da ortodoxia e do sistema vigente, e outros clara- mente condenados como hereges, como os cátaros. A quem seguir? Francisco, por um lado, não se identificava em absoluto com a instituição eclesial no seu conjunto: uma Igreja clerical, hierárquica, poderosa, ora aliada, ora em guerra com o imperador. Apesar disso, Francisco não quer, nem pode distanciar-se no mínimo que seja daquela estrutura eclesial e teológica: não questione a “doutrina oficial”, nem o clero, nem a hierarquia, apesar de muitos e flagrantes abusos. Pensa e está intimamente convencido de que a fé no seguimento de Jesus se joga na fidelidade aos sacerdotes, por mais indignos que sejam. Decidi- damente, ele busca outra coisa, mas a sua mentalidade não lhe permite libertar-se daquelas formas. E parece identificar fidelidade à Igreja com fidelidade ao sistema clerical, a fé com a doutrina dogmática, o segui- mento de Jesus com a doutrina sacramental tradicional. Hoje, o ambiente cultural e espiritual é diferente do de Francisco. Muita gente, dentro e fora da Igreja cristã, começa a tomar consciência ‒ uma consciência colectiva ‒ de que a fé não se refere a crenças dogmáti- cas, à prática ritual dos sacramentos, à adesão institucional a um sistema clerical. Ao contrário de Francisco podemos e devemos pensar que a “rectidão da fé” não depende da sintonia mental com umas fórmulas dog- máticas. A fé não é reta, porque se acredita firmemente em todos os
  • 18. 18 dogmas, porque mantém umas crenças inabaláveis ou porque se resume a umas fórmulas seguras. Não é aqui que se joga a fé, a rectidão da fé. Não é a este nível que se joga a glória de Deus. A fé é recta quando o coração confia, desnudo e livre, quando se abandona como criança nos braços da mãe, quando não se tem necessidade de saber nem de explicar nada, quando não se teme pensar com liberdade, quando a confiança profunda permite duvidar de tudo. Não se trata de incorrer num relativismo superficial e irresponsável, mas de apostarmos verdadeiramente na confiança vital profunda, para além de todo o sistema de crenças e certezas. “A fé não tem objecto”, como insiste o sábio e místico R. Pannikar. Isto é: o objecto da fé não são as ideias ou o significado das fórmulas da fé. O objecto da fé é Deus como mistério para além das palavras, das imagens e das fórmulas. A fé recta consiste em aprender a confiar em Deus, mesmo caminhando no vale das trevas. Por isso, como bem escreveu E. Biser, já há muitos anos, «a verdadeira antítese da fé não é a incredulidade, mas o medo»11 . A heresia autêntica e perigosa não tem a ver com a doutrina, mas com a confiança. A pior heresia é a “heresia emocional”, isto é, a falta de alegria, apesar de todas as trevas. É para aqui que aponta a base mística de todas as religiões. É isso que nos une, para além dos credos e dos códigos. Nisto consiste a “espiritualidade integral” de que fala Jäger: «O termo espiritualidade inte- gral refere-se à busca do fundo comum, que está subjacente em todos os caminhos espirituais autênticos, num esforço de encontrar e defender tudo o que nos une, eliminando as barreiras e indo ao âmago da prática, com a diversidade que esta apresenta. Este centro, que é base comum, é a experiência mística que se deve desenvolver como perspectiva em todos os aspectos e níveis da existência humana. Por isso é espiritualidade inte- gral, que não substitui nem acrescenta nada aos diferentes caminhos, antes realiza um esforço de união e de encontro. Propomos uma nova forma de ver as buscas essenciais do ser humano. Partimos de uma perspectiva não dogmática, de aceitação e tolerância do que é autêntico dos diferentes caminhos e tradições espiri- tuais, e que se pode incorporar na prática de todos os níveis da vida ————— 11 BISER, E. Pronóstico de la fe, Herder, Barcelona 1994
  • 19. 19 humana: corpo, energia, emoções, espírito e mente, como um todo único que somos, numa convergência transconfessional que chamamos espiritualidade integral. Para isso temos de reavaliar os pressupostos de base. Vivemos um momento excepcional no Ocidente. É um momento de crise geracional, que muitos classificaram como mudança epocal. Assisti- mos a novos fundamentalismos que se misturam nas culturas, em busca de confrontação, dando lugar a dogmas e a bloqueios culturais»12 . “Esperança certa”. Pode a esperança ser segura? Parece um con- trassenso. E é um contrassenso. A certeza da esperança não é da mesma ordem das nossas certezas ordinárias. Não é a certeza de que algo vai acontecer num futuro mais ou menos longínquo. É antes a certeza ou a decisão ou a determinação da atitude vital, o compromisso com o futuro. Que futuro? O futuro que Deus é para a nossa vida, e que nós devemos encarnar, actualizar e antecipar essa presença. É uma forma de viver que abre sempre uma brecha de novidade no que é antigo, é uma antecipação do futuro que torna presente aquilo que esperamos. Não se trata de ser optimista ou pessimista a respeito do hipotético futuro mais ou menos incerto. Trata-se sim de «recuperar o futuro» na nossa forma de ver e de viver o presente13 . Não podemos decidir hoje sem pensar no futuro, que queremos deixar à próxima geração humana e às gerações de todas as espécies. Não vivemos numa época de optimismo com respeito ao futuro. Às vezes parece até que o futuro desaparece do horizonte do presente, ele também ameaçado. Francisco de Assis tinha um temperamento optimista, mas na sua vida não faltaram circunstâncias que purificaram o seu optimismo. Em qualquer caso, a sua esperança não consistiu no seu optimismo, mas na forma inovadora de vida, criadora de futuro. A espiritualidade é inseparável desta atitude de esperança antecipa- dora. Esta espiritualidade e esta esperança não nos fazem optimistas, mas mais fiéis e confiantes. A fé não nos dá um suplemento de segurança em relação ao futuro, antes nos impele a criá-lo. Esperar é isto. Esperar é ————— 12 Cf. SAN JOSÉ, P., «Espiritualidad integral. Antecedentes y consecuencias», em Atrio.com (Maio de 1009). 13 Cf. INNERARTTY, D., recuperar el porvenir, em El País (17-05-2009)
  • 20. 20 fazer que chegue o futuro que desejamos. A esperança certa é encarregar- -se do futuro com determinação. Esta determinação requer uma grande confiança e uma grande generosidade. A generosidade que se apoia na confiança e a aumenta, a confiança que nasce da generosidade e a suscita. Aí está a sabedoria. A sabedoria da vida que Diego Garcia exprime, citando a frase lapidar gra- vada no palácio Rajoy de Santiago de Compostela: «Trabalha como se vivesses sempre, vive como se morresses amanhã». É assim a sabedoria da esperança. Nesta esperança, que é confiança e determinação, não conta o êxito. Não importa que fracassemos na nossa aposta. Também Jesus fracassou e sabia que ia fracassar, mas seguiu em frente, «esperando con- tra toda a esperança». E o essencial é que não esperava nenhuma intervenção milagrosa de Deus à última hora, que mudasse a situação. O essencial é que Jesus se manteve fiel ao seu compromisso pelo reino dos Céus até ao fim. Mesmo que fracassasse a causa era grande e merecia a pena; talvez a causa exigisse o fracasso como aconteceu com todos os mártires. Os mártires fracassaram? Jesus fracassou? A fé pascal afirma que Deus está com todos os mártires e que todos os mártires estão em Deus, que Deus esteve com Jesus até ao fim e “para além” do fim, que Jesus vive em Deus e que, apesar do aparente fracasso, a bondade e a vida são mais fortes que o sinédrio e o império, porque Deus é vida e bondade. «amor perfeita». O que conta é a caridade, o amor. (Caritas) é a tradução latina do ágape grego, enquanto amor traduz mais a filia grega; assim, caridade foi entendido como “amor superior” e tem uma conota- ção mais religiosa que amor, mas podemos entendê-los perfeitamente como sinónimos. Apesar de serem termos desgastados pelo uso e cheios de equívocos, não podemos renunciar a eles. Somos o que amamos. Somos enquanto amamos. Todas as grandes mulheres e homens espiri- tuais de todos os tempos, independentemente dos seus compromissos religiosos, souberam isso. Jesus sabia-o e ensinou-o. Francisco também o soube e ensinou. O mais importante é a caridade ou o amor, é sentir as feridas do outro como a sua própria ferida, é sentir-se responsável pelo destino do outro a partir da compaixão, é cuidar do outro ‒ de toda a criatura ‒ por-
  • 21. 21 que tem necessidade de mim. E porque eu não posso ser sem o outro; não posso ser feliz sem o amar. E o outro não existe sem mim, sem que eu o ame e sem que o outro me ame também. A caridade, como no fundo também a ética, só pode ser concreta: é deixar-me atrair pelo outro, por toda a criatura, pela sua maravilha e pelas feridas que tem; é unir o meu destino ao seu, porque quero, porque gosto, porque quero e gosto ( e muitas vezes mesmo que não goste, pois o nosso gosto ainda não é totalmente divino); é fazer-me próximo, sentir- -me companheiro e samaritano de quem necessita de mim, alegrar-me com aquele que está alegre e compadecer-me de toda a criatura que sofre. A caridade ou o amor não é um comportamento que simplesmente responde a um imperativo ético ou a razões filosóficas ou a sublimes razões teológicas (o valor da pessoa, a semelhança de Deus…). Não. A caridade ou o amor é uma praxis que se inspira na presença carnal do outro com a sua graça e as suas feridas. A razão é simplesmente o outro com a sua realidade concreta, a sua indigência. Foi assim o comportamento de Jesus. Foi bom, simplesmente. Foi bom de forma criativa. A “bondade criativa” foi a característica de Jesus (J.A.Marina). Livre e criativa foi também a bondade de Francisco. Assim ora Francisco. Assim pede. Eu não sei se a oração de petição tem sentido. O sentido, em qualquer caso, não está tanto na petição como tal, mas na atitude do que pede. Não pedimos a um Deus passivo e arbitrário que intervenha. A forma de petição sugere que Deus pode dar ou não dar: pode dar fé ou não dar, dar esperança ou negá-la, dar-nos caridade ou negá-la. Mas Deus é pura e plena doação e graça, e não pode não dar-se, como nós não podemos deixar de respirar. Assim, Deus revela-se em tudo, Deus actua em tudo, dá-se totalmente em tudo. Ele é dynamis que late em toda a realidade. É a presença operativa, criadora, transformadora, que habita tudo quanto é, desde as partículas mais ínfi- mas até às galáxias. E a realidade, sempre aberta, inacabada e inter- -relacionada, necessita que a presença de Deus emirja e se realize desde as suas entranhas. Que é orar? Orar não é pedir, mas expressar perante Deus, em Deus, o nosso ser mais profundo com palavras ou silêncio. Orar é aprofundar a consciência de que existimos em Deus e de que Deus é o
  • 22. 22 alento mais profundo do nosso ser. Orar é deixar que o coração se encha de confiança, de esperança, se comova de caridade e de ternura. Francisco orava assim, apesar da forma de petição que usava na sua oração. A oração transformou-o, foi a forma de deixar que Deus o trans- formasse por dentro, foi a forma de se fazer cada vez mais livre e divino, mais confiante e bom. 4. Sentido e conhecimento Ao lado das três virtudes teologais, é sugestivo que Francisco peça sentido e conhecimento. Pede luz interior para discernir. Luz para distin- guir o que Deus quer. Mas a vontade de Deus não é um projecto que Deus tenha escrito, mas um caminho que vamos fazendo entre sombras e escolhos. Deus não dita nada desde fora. Deus vai-se abrindo desde o coração da criatura, desde o coração do átomo e de todo o organismo, de todo o ser humano. Deus abre-se como uma semente se abre desde as entranhas da terra, atraído pela luz e empurrada por um impulso miste- rioso. Quando a vida cresce, é Deus que cresce na vida. Para isso, é preciso que se desperte o sentido e o conhecimento. Hoje diríamos “discernimento”. Francisco não se cansa de insistir nisto. É muito actual esta insistência de Francisco no discernimento inte- rior. Diz-se que vivemos em tempo de gnose. É verdade que muitos movimentos da “nova espiritualidade” apresentam elementos “gnósticos”: o anseio de interioridade, o acento no despertar da consciência profunda, a busca de libertação através de uma maneira nova de se olhar e de olhar toda a realidade… A gnose foi um poderoso movimento nos primeiros anos do cristianismo, que a Igreja não soube integrar e que reprimiu com afinco como a maior ameaça da fé. Mais ou menos reprimida, a gnose sempre esteve presente no cristianismo, particularmente nas correntes místicas. Manifestou-se poderosamente na Idade Média, no movimento cátaro ‒ violentamente perseguido e afogado em sangue ‒ e em outros movimentos da reforma espiritual do tempo de S. Francisco. O gnosti- cismo volta hoje com força e contém muitas intuições válidas para a espiritualidade do século XXI. Seria mau reprimi-las como gnósticas. Podemos compreender nessa linha a insistência de Francisco no sentido e conhecimento interior. O sentido e o conhecimento como luz
  • 23. 23 interior que nos permite sentir o alento divino em nós e em todas as criaturas. O sentido e o conhecimento que nos permite confiar profunda- mente em nós, no próximo e em todos os seres. O sentido e o conhecimento não têm a ver com uma interioridade espiritualista, mas com uma sensibilidade integral. De maneira especial, tem a ver com a espiritualidade de todos os sentidos. É importante que curemos do maniqueísmo que maltratou em nós a sensibilidade, a sensualidade, e todos os sentidos. A espiritualidade tem como meta «libertar o corpo das repressões da alma, das repressões da moral, e das humilhações devidas ao ódio a nós mesmos, para conseguir a verdadeira saúde»14 . O conhecer e o sentir são inseparáveis. E não somente a nível psicológico e gnoseológico, mas também a nível teológico. Deus sente em todos os sentidos e todos os sentidos sentem a Deus em todas as coi- sas: a vista vê Deus em todas as formas, o ouvido ouve Deus em todos os sons e todos os silêncios, o olfacto percebe Deus em todos os aromas, o tacto toca Deus em todas as carícias, o gosto saboreia Deus em todos os sabores da vida. A espiritualidade há-de ser, pois, necessariamente uma espiritualidade do corpo»15 . Amamos como corpo, confiamos como corpo, oramos como corpo. Para sermos espirituais necessitamos de rela- xamento, para nos libertar das tensões físicas e mentais, e respirar bem, sentirmos bem o nosso corpo, o que não quer dizer que tenhamos de ter um corpo perfeito ou de gozar de uma saúde perfeita. Ana Mendiola, uma mulher basca, professora de dança, longe da Igreja, mas profundamente espiritual, escreve: «Neste caminhar, busquei os conceitos para lhes despertar a consciência da natureza dos elementos, percebendo que cada elemento ia ligado a uma força que o nutre, for- mando parte do nosso organismo vital, e ligado ao universo como parte de um Todo. Procurei, assim, despertar uma nova consciência e compreensão de nós mesmos, e desse espaço supostamente vazio que é o nosso sentir, (o visível e o invisível). Tendo em conta o tempo que nos é dado viver, onde a produtividade parece ser o único objectivo, onde o ócio e o lazer nos amolecem, tive necessidade de buscar essa mudança, essa actividade dos nossos sentidos como renovação destes em redes ————— 14 MOLTMANN, J., El Espíritu de la vida. Sígueme, Salamanca 1998, p. 110. 15 MOLTMANN, J., El Espírito Santo y la teologia de la vida. Sígueme, Salamanca 2000, p. 102
  • 24. 24 activas e despertas para uma nova consciência colectiva; cada sentido leva-nos à harmonia: a minha visão, o meu tacto, o meu ouvido, o meu gosto, o meu olfacto, na medida em que estão sensibilizados, levam-me a olhar o mundo com outros olhos, descobrindo e elevando a beleza inte- rior de cada ser humano»16 . Estas palavras têm pleno sentido para a nossa espiritualidade. 4. Para cumprir o sagrado e encargo (mandamento) Também é significativo que Francisco termine a oração falando em cumprir e em mandamento (encargo). Quem compreende mal estes ter- mos cai muitas vezes no moralismo. Naturalmente, Francisco está condicionado pelo vocabulário e pensamento da teologia moral do seu tempo, pela visão pessimista do mundo e do corpo, pela espiritualidade moralista. Mas a visão de Francisco não é pessimista. A sua espirituali- dade não é, nada moralista. Cumprir é muito mais que mera praxis. Na verdade é uma praxis, mas uma praxis que nasce de dentro pelo sentido e conhecimento, pela sensibilidade, pela gratuidade, pela ternura e vontade de cuidar. Podemos traduzir por viver. Trata-se de viver. Cumprir não é acatar os mandamen- tos, observar as leis eclesiásticas, submeter-se a uma ordem. Francisco foi uma pessoa extremamente livre, liberta por dentro. Ele que tanto insistia na obediência, não se deixou atar nem sequer pela fraternidade criada por ele. Passou grande parte da sua vida na solidão, guiado pela luz interior, muitas vezes vacilante. Cumprir é ser fiel a essa luz interior. É viver no querer de Deus a partir do sentido e do conhecimento. O mandamento de Deus ‒ Francisco usa o singular e não o plural “mandamentos” ‒ é o mandamento da vida, é o mandamento do Evange- lho, enquanto boa notícia. O cristianismo não é ‒ nenhuma religião o é no fundo ‒ um conjunto de crenças, nem sequer um código de conduta. A verdade do Evangelho é a vida em todas as suas expressões. A vida necessita de suportes, mas aspira a ser livre, para se dar totalmente. Não se trata de um mandamento que vem de fora. Certamente que a alteridade é indubitável. Ninguém inventa a sua própria luz. A luz vem- -nos de fora. E vem sempre através da interpelação do outro, do outro ————— 16 Cf. revista Hemen 22 (2009).
  • 25. 25 quando está alegre e do outro quando sofre. Mas esse chamamento deve- -nos prender por dentro. De outra forma domina-nos e fecha-nos e vai- -nos levando à morte lenta, vai-se extinguindo em nós o espírito, o alento vital. O mandamento é a chamada que nos vem do vivente, do ferido, do outro, do que necessita o meu cuidado. Esse chamamento deve-se enrai- zar por dentro em formas de compaixão, convertendo-se em impulso que brota do interior. Deus não manda nada. Deus não é um senhor que impõe leis ou pede contas. O chamamento de Deus não é mais que a lei vital, a lei da vida que quer desenvolver-se e ser feliz. No fundo, para além dos seus esquemas teológicos mais ou menos moralistas, é isso a que Francisco chama “santo e veraz mandamento”. Dois adjectivos. Que significa santo. Não significa moralmente intocável, mas verdadeiramente são, livre, generoso, aberto, confiante. Santo é são. Santo é feliz. Só a bondade pode ser feliz. Só a bondade pode ser santa, boa. Só assim o mandamento é verdadeiro, verídico. A verdade não con- siste na adequação de uma ideia ou de uma conduta com uma norma imutável. A verdade é criativa, é um caminho de libertação e de graça. Assim a oração termina com a palavra mandamento. Mas a última palavra só adquire sentido à luz da primeira expressão: “Ó”. De outra forma o mandamento converte-se em jugo. O mandamento de Deus, vem-nos através do rosto do necessitado, mas surge dentro de nós mes- mos, como um impulso de vida que acompanha a admiração, a gratui- dade, a compaixão, a confiança livre. Assim a vida comprometida converte-se na outra face do encanto, da admiração mística. A mística torna-se prática, e toda a praxis se torna mística (dizei com obras o amor que vos vai no coração, escreveu santa Clara no seu Testamento). É esta a espiritualidade que viveu Jesus e que não cessa de renovar a história. Essa a espiritualidade que viveu Francisco nos alvores de uma nova cultura. É esta a espiritualidade que estamos chamados a viver hoje num mundo em profunda transformação, à procura de respiração. Tradução da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana
  • 26.
  • 27. 27 FRANCISCO E CLARA, MASCULINO/FEMININO EM ASSIS DURANTE O SÉCULO XIII Jacques Dalarun, ofm* ————— * Artigo publicado em Èvangile Aujourd’hui, n. 215 (2007) 27-38, com o título “François et Claire, Masculin/Féminin à Assise au XII siècle”.
  • 28. 28 FRANCISCO E CLARA, MASCULINO/FEMININO EM ASSIS DURANTE O SÉCULO XIII Entre 1210 e 1212, Assis foi palco de uma série de encontros pri- vados, secretos, que, no entanto, teriam grandes repercussões na história da santidade cristã17 . O jovem teria cerca de trinta anos e a jovem entre dezasseis e dezoito anos. Ela pertencia à classe das famílias nobres que viviam perto da catedral de São Rufino. Ele, filho de um comerciante de panos, procedia do povo. O testemunho mais completo sobre este encontro é-nos dado por Beatriz, irmã de santa Clara, quando depôs para o Processo de Canoniza- ção, em 1255. “A Irmã Beatriz, filha de Favarone, religiosa do Mosteiro de São Damião, declarou sob juramento que foi irmã carnal de madona Clara, de santa memória, cuja vida foi quase angelical, porque foi virgem durante toda a vida. E as suas obras de santidade eram tão evidentes que a fama das suas virtudes se divulgou entre todos os que a conheciam. Disse depois que, conhecendo São Francisco a fama da sua santi- dade, se encontrou com ela várias vezes para lhe falar do Evangelho. E de tal forma foi tocada pela mensagem, que renunciou ao mundo e a todas as coisas terrenas, entregando-se ao serviço do Senhor logo que foi possível. Vendeu toda a sua herança e parte da herança da testemunha, e deu tudo aos pobres. ————— 17 Cf. LCL 5-6
  • 29. 29 Em seguida, São Francisco cortou-lhe os cabelos diante do altar da igreja da Virgem Maria, chamada da Porciúncula, e levou-a à igreja de São Paulo das Abadessas. Foi aí que os parentes a procuraram para a levar. Mas Clara agarrou-se às toalhas do altar e, mostrando-lhes os cabelos cortados, não cedeu aos seus intentos. Continuou ali, não regressando com eles a casa. Mais tarde foi levada por São Francisco, Frei Filipe e Frei Bernardo à igreja de Santo Ângelo de Panzo. Foi dali que saiu para a igreja de São Damião, lugar onde o Senhor lhe deu mais irmãs, que se colocaram sob a sua tutela”18 . ALGUMAS QUESTÕES Esta relação entre Francisco e Clara excitou alguns espíritos. Nos fins do século XIX, o grande historiador do franciscanismo Paulo Saba- tier não passou sem celebrar, numa exaltação romântica, os “amores de Francisco e Clara”. Facilmente reduzimos o que é singular ao comum, o que é raro ao conhecido, o que é desconcertante ao tranquilizador. Qual foi, exactamente, a natureza da relação que, sem dúvida, tiveram os dois santos de Assis? Duma maneira geral, que visão tinha Francisco das mulheres e que visão tinha Clara dos homens? De que maneira a sua identidade sexuada ‒ entendida essencialmente como uma construção cultural da época ‒ influenciou a sua maneira de viver a exigência evan- gélica que ambos se propuseram seguir? Fundado nas fontes dignas de confiança, sem preconceitos, tentarei dar resposta a estas questões. Em primeiro lugar terei em conta os Escritos de Francisco e as Legendas mais antigas que lhe foram dedica- das, tomando nota das citações que aí se fazem sobre Clara, as mulheres, o feminino e os movimentos feministas da época. Depois farei o mesmo nas fontes relativas a Clara. Assim podemos delimitar com mais exactidão o que une e o que distingue os dois santos de Assis. ————— 18
  • 30. 30 OS ESCRITOS DE FRANCISCO Ao ler os escritos de Francisco, apesar de tudo, relativamente abun- dantes e onde até encontramos cartas dirigidas a dois dos seus irmãos, Leão e António de Lisboa, surpreende-nos que não encontremos nenhuma carta dirigida a Clara. Ficar por esta observação, verificar só este silêncio, não seria bom método. É possível que algumas cartas se tenham extraviado. Acresce que não é dado nenhum tratamento especial às irmãs de Clara, às senhoras pobres de S. Damião. Tudo se resume a poucas linhas escritas pelo pai espiritual e incluídas na Regra de Clara, e um poema no dialecto da Úmbria, o Audite poverella, de autenticidade discutível, que parece ter sido composto para elas. As legendas mais antigas e mais fiáveis que narram a vida de Fran- cisco não são muito mais prolixas. As Legendas de Celano ‒ Primeira Legenda, Segunda Legenda e Tratado de Milagres ‒ o Anónimo Peru- sino, a Legenda dos Três Companheiros e a Legenda Perusina, só por três vezes evocam a virgem de Assis. AS DATAS Como interpretar tanta discrição em relação a santa Clara? Em primeiro lugar pelas datas. Francisco nasce em 1182, em 1206 distribui os bens pelos pobres e converte-se, morre em 1226 e é canoni- zado em 1228. Clara nasce em 1194, entra na religião em 1212 e retira-se para S. Damião, morre em 1253 e é canonizada em 1255. Já é notável que Tomás de Celano, na Legenda Primeira de 1228 se tenha referido às virtudes de uma jovem de trinta e quatro anos, ainda na força da vida. Na realidade, Clara compartilhou alguns dias da vida de Francisco, mantém uma relação de quinze anos com ele e recorda durante vinte e seis anos os ensinamentos de um defunto que é santo. Além disso, temos de constatar que Francisco em 1226, segundo as fontes conserva- das, não tinha escrito uma palavra a Clara nem sobre Clara, e ela não tinha escrito nem uma palavra dirigida a ele, ou sobre ele… Em relação às mulheres em geral, os estratos sociais em que o Poverello se movia, colocavam-no em situações contraditórias. Precisa- mos de paciência para as compreender e desatar os nós e ordená-las
  • 31. 31 cronologicamente, tanto através dos Escritos como através das Legendas que lhe foram dedicadas. Não se podem deslindar todas as incoerências detectadas ‒ quando se trata de mulheres os homens entram sempre em contradições. Além disso, devemos ter em conta que muitas destas con- tradições, não reflectem sempre o pensamento de Francisco. Muitas vezes revelam a opinião dos autores das várias Legendas, que, ao privile- giar um certo ponto de vista, embora pretendam evidenciar a experiência do fundador, às vezes também se servem da imagem do fundador para tomar partido na disputa entre as várias tendências, que se combatiam numa determinada época. A CULTURA CORTESÃ As quatro Legendas quando recordam os seus sonhos de cavaleiro, os de um snob em busca de promoção social, colocavam em primeiro lugar as solidariedades e os afectos do filho do comerciante de Assis. No Anónimo Perusino e na Legenda dos Três Companheiros, conservaram a recordação mais viva: eram um grupo de soldados que assustavam mães e filhas. Os vestígios da cultura cortesã do jogral de Deus, dos quais a Legenda Perusina é a mais fiel depositário, incitavam-no a honrar a mulher à distância, a fazer dela a sua dama para celebrar melhor, segundo as normas do modelo cortesão, o amor do Senhor. Assim, a Virgem pobre encontra-se no coração da sua devoção, seguindo-se dos modelos terrestres, as senhoras pobres de S. Damião. O feminino era valorado por Francisco em alegorias morais, tais como a da dama Pobreza, homena- gem rendida à experiência de pobreza extrema. AS GRANDES FIGURAS EVANGÉLICAS Com efeito, o Evangelho tinha-se enxertado no modelo cortesão, cujo descobrimento foi para Francisco uma revelação fulgurante, tal como recorda no seu Testamento, nos últimos anos de sua vida. As gran- des figuras evangélicas não são ignoradas: Maria certamente, mas mais ainda Madalena, a pecadora arrependida, amada com ternura por Cristo e
  • 32. 32 na qual Francisco encontra o reflexo na nobre viúva romana Jacoba de Settesoli. A Legenda Perusina19 relata uma cena de uma grande densi- dade dramática, o “privilégio de amor”, de que gozou a viúva de Roma, até ao momento de sua morte, muito mais do que a virgem de Assis. Mas, porque será que chama a esta mulher “Frei Jacoba”. Será porque os seus afectos mais íntimos só poderiam ser dirigidas a um irmão? Ou será que os companheiros, ao compilaram as memórias, vinte anos depois de sua morte, reprovassem de tal forma aquela amizade tão afectuosa que o fundador tinha por uma mulher, que sentiram a obrigação de lhe negar a feminilidade? A literatura cortesã e os ensinamentos do Evangelho abriam ao penitente perspectivas originais. O Evangelho mostrava-lhes o caminho dos primeiros transformados em últimos, dos ricos escolhendo a pobreza para aceder a riquezas mais sublimes. Dos maiores feitos menores para crescer por causa da sua humilhação, dos chefes que aceitam governar numa atitude de serviço saudável. Os escritos de Francisco espelham este mundo de valores totalmente invertidos. Tentava-se naturalmente seguir de perto os passos do Altíssimo, que se fez Baixíssimo, para usar o título do livro admirável de Christian Bobin. Francisco, contemporâneo dos romances de Béroul e de Chrétien de Troyes, canta em francês para cele- brar os louvores de Deus ou simplesmente para dar curso à sua alegria. Na Legenda Perusina compara seus irmãos com os valentes cavaleiros de Carlos Magno20 . Além disso, Francisco ouviu narrar a história de Tristão que, disfarçado de leproso, de mendigo, duas das figuras que lhe eram particularmente queridas, não vacilou em fazer-se cavaleiro da sua dama. Isso causou escândalo, porque, por detrás da figura literária, Béroul faz um discurso sub-reptício sobre a transgressão das posturas eróticas. UM MOVIMENTO FEMINISTA Na obra do “novo louco” de Assis, nota-se o início de um movi- mento feminista; não é a Legenda Perusina que foca esse aspecto, mas o Anónimo Perusino e a Legenda dos Três Companheiros, fiéis testemu- ————— 19 Cf. LP 101. 20 Cf. LP 72.
  • 33. 33 nhas deste sistema em que grupos de mulheres, guerreiras ou religiosas, afugentam as mulheres e só se queriam entre varões. A imagem da alma pecadora, simbolizada por Madalena nos escri- tos dos Padres, mas para falar da parte feminina presente em todo o homem, que é praticamente a sua alma, aliás pecadora, Francisco faz-se de mulher para aceder à redenção. Também para imitar, evidentemente em menor escala, a este Deus que não vacilou em fazer-se homem, faz-se mulher. Mulier haec erat Franciscus21 , vê-se obrigado a explicar o pobre Tomás de Celano para interpretar uma parábola onde uma mulher pobre tomada pelo rei no deserto e que depois envia os seus filhos à corte. Francisco é uma mulher, porque é uma mãe: a pobreza grávida do rei, a mãe galinha que junta todos os pintainhos debaixo de suas asas para transmitir melhor a protecção da nossa mãe Igreja22 . Ao contrário da figura paterna personificada em Pedro Bernardone, que favorece uma interpretação esmagadora, é o doce governo da mãe o que proporciona a Francisco a resposta à pergunta que o atormenta, desde que compreen- deu que não podia rejeitar o cuidado da comunidade que Deus fez crescer à sua volta: como passar da intuição á instituição, segundo o expressivo título de Théophile Desbonnests, como dirigir sem esmagar, governar sem dominar, aceitar os cargos rejeitando o poder, o que é extremamente aborrecido. No italiano de Francisco, “governar” também é servir, socor- rer as necessidades dos outros, como a mãe governa os seus filhos, como “nossa irmã a madre terra que nos sustenta e governa”. E quando o Poverello fala do feminino, ou quando escreve aos seus irmãos mais que- ridos, como a Leão, “como uma mãe”, não fala de mulheres reais, antes usa uma alegoria que diz respeito a ele mesmo. A CULTURA MONÁSTICA O estrato mais próximo da cultura de Francisco, aquele com o qual mais de perto teve de se confrontar para elaborar os aspectos da sua fra- ternidade, que pouco a pouco se foi transformando em ordem, é a cultura monástica, a regra beneditina, e sobretudo as Vidas dos Padres do deserto. O Anónimo Perusino e a Legenda dos Três Companheiros ————— 21 Cf. 2C 16-17; TC 50-51; AP 35. 22 Cf. 2C 24; TC 63.
  • 34. 34 dizem-nos que os irmãos faziam a sua leitura no capítulo. Aqui a lição é simples e brutal: desconfiança das mulheres, para quem se pr opõe governar uma comunidade de homens. Mesmo uma paciência de arqueólogo não descobre nas versões sucessivas da regra de Francisco, tanto na primeira como na segunda, os vestígios de um tempo ditoso e reprimido em que os irmãos e as irmãs menores vivessem a mesma itine- rância, levassem a cabo a mesma busca. As mulheres foram colocadas muito rapidamente em S. Damião, inofensivas, quais damas distantes, excluídas da fraternidade. E quando uma vez, muito contra sua von tade, como nos diz a Segunda Legenda de Celano23 , Francisco decide pregar às irmãs de S. Damião que ansiavam pela sua palavra vivificante, entra sem pronunciar palavra perante a assembleia e, sem sequer olhar para elas, desenha um círculo de cinza entre elas e ele, deita o resto da cinza sobre a cabeça, entoa o Miserere e sai, deixando-as estupefactas. Depois da morte de Francisco, só alguns dos primeiros companheiros, Ângelo, Leão, Juní- pero, Filipe Longo, Elias, guardavam, como num jardim secreto, a nos- talgia do tempo em que irmãos e irmãs, homens e mulheres, tinham um único espírito, pulsavam com o mesmo coração. OS ESCRITOS DE CLARA Clara também guardava no seu interior a recordação deste amanhe- cer. Nos seus escritos, muito menos abundantes que os de Francisco, cita numerosas vezes o seu pai espiritual: cita-o por treze vezes, se tomarmos em conta as obras consideradas autênticas, descontando o Testamento onde o nome de Francisco aparece em cada parágrafo, quase como uma jaculatória. Poderíamos pensar na imagem do par místico, ou até na imagem da virgem abandonada sonhando com o galã insensível. Mas observando bem, vemos que Clara utiliza o nome de Francisco com discernimento, melhor dito, com habilidade. Na terceira carta, do ano 1228, dirigida a Inês de Praga, filha do rei da Boémia, convertida ao mesmo estilo de vida religiosa de São Damião, Clara cita Francisco por duas vezes, uma atrás da outra. Nas duas primei- ————— 23 Cf. 2C 207.
  • 35. 35 ras cartas, Clara não teve necessidade de se socorrer da autoridade de Francisco para guiar esta filha de rei nos progressos da sua vida espiri- tual. Clara refere-se a Francisco unicamente para esclarecer uma questão relacionada com os dias de festa, nos quais era permitido suavizar o jejum seguido pelas irmãs, tanto em Assis como em Praga. Não se sabe bem se esta carta foi escrita pouco tempo depois de Gregório IX tentar estender à Ordem de São Damião o rigor drástico dos jejuns cistercienses. Evocar a Francisco nesta situação concreta, é usá-lo como contrapeso à autori- dade pontifícia para melhor afirmar a originalidade de Clara. Na sua regra, redigida nos últimos anos de sua vida e aprovada in extremis por Inocêncio IV, em 1253, a virgem de Assis invoca o seu pai espiritual, mas só em dois lugares precisos. No primeiro capítulo para lhe atribuir modestamente esta “forma de vida”, mas na realidade escrita por ela; e no sexto capítulo para realçar a opção pela pobreza que, em relação à outra forma de vida monástica, constituía então a originalidade absoluta do convento de S. Damião, mesmo tendo em conta a Ordem do mesmo nome24 . Até ali, a abadessa não sentiu a necessidade de recorrer a Fran- cisco para definir os detalhes da vida monástica de suas irmãs. Só quando o perigo vem de Roma, ela recorre à autoridade de Francisco. O papado não tinha facilitado o seu apoio à experiência de Clara. Tentou criar um modelo para o centro de Itália e depois para outras lati- tudes, constituindo a “Ordem de São Damião”, mas da se demarcou o mosteiro de São Damião, afirmando a sua especificidade. Esta confusão de títulos teve certamente origem no cardeal Hugolino, futuro papa Gre- gório IX, e serviu para confundir os historiadores durante muito tempo. ————— 24 Houve muitas tentativas de reunir as várias comunidades de consagradas, de beguinas, numa mesma Regra, onde se incluía também a comunidade de S. Damião. A Regra de Hugolino, de 1218, era para todas as “Monjas Pobres Reclusas” (FFII, p. 309). A Regra de Inocêncio IV, de 1247, era dirigida às abadessas e monjas da Ordem de S. Damião (FFII, p.325). A intenção era colocar todas essas comunidades sob a dependência espiritual de S. Damião. Clara sempre se demarcou dessa tentativa, afirmando a originalidade da Ordem das Irmãs Pobres.
  • 36. 36 A DIPLOMACIA DE CLARA Efectivamente, tanto Gregório IX como Inocêncio IV, se preocuparam por levar a regra de S. Bento a estas comunidades de jovens e mulheres procedentes na sua maioria dos meios aristocráticos e de as separar o mais possível dos Frades Menores. Destes, alguns ainda recordavam os primeiros tempos do são convívio com as irmãs. Mas outros começam a protestar contra o cuidado e a solicitude para com as mulheres reclusas que os distraiam, pensavam eles, de tarefas mais meri- tórias. Livrar-se das damas pobres, esquecer o Testamento do fundador e a pobreza radical, foram temas tratados na bula Quo elongati que Gregó- rio IX deve ter redactado em 1230, como resposta a um grupo influente da Ordem masculina. Perante estes esforços de normalização, para salvaguardar a originalidade de São Damião, Clara utiliza na sua Regra a memória de Francisco, entretanto elevado às honras dos altares. Isto não significa que Clara deturpe a sua mensagem, antes pelo contrário. Usa as palavras do defunto para melhor defender o que para ela era o núcleo irredutível do seu modelo e que tinha sido confirmado a 17 de Setembro de 1228 por Gregório IX no Privilégio da Pobreza: a “altíssima pobreza”, esta forma de pobreza meritória, que é realmente um privilégio. Ao inserir no texto as palavras que o santo escreveu a ela e a suas irmãs, Clara atribuía a sua “forma de vida” a Francisco, aceitando considerá-lo fundador de uma Ordem feminina, com a qual na realidade ele não se tinha preocupado muito. Assim conseguia algo até então inaudito: que uma mulher, pela primeira vez, escrevesse a Regra, sob a qual deveriam viver as suas irmãs. O cardeal Reinaldo, a 16 de Setembro de 1252, e depois Inocêncio IV, pensavam ou fingiram que aprovavam a “forma de vida” de S. Fran- cisco para as mulheres. Na realidade confirmaram a audácia da “plantazi- nha”. Dez anos mais tarde, Urbano IV utilizava o mesmo subterfúgio, mas ao contrário: dava a todos os mosteiros que se inspiravam em São Damião o nome de “Ordem de Santa Clara”, e aproveitava para escrever
  • 37. 37 mais uma Regra feminina à sua maneira25 . Na realidade foi necessário esperar pelo Concílio Vaticano II, para que a maioria das clarissas redes- cobrisse a Regra desta mulher, que lhe deu o nome. A VISÃO ATÍPICA DE CLARA No processo de canonização de Clara, levado a cabo no Outono de 1253, do qual felizmente temos uma versão italiana, a irmã Filipa relata um estranho sonho de Clara: parece-lhe que leva a Francisco uma bacia e uma toalha para lhe secar as mãos. Sobe até ele por uma escada muito alta, mas sem esforço. Chegando à altura de Francisco, este puxa por um mamilo do seu peito e convida-a: “vem, toma e sorve”. Clara obedece. Francisco diz-lhe que o faça outra vez, e o que ela saboreava era de uma doçura deleitável. O mamilo de Francisco, ficando na boca de Clara, parecia-lhe de ouro tão claro que se via reflectida nele como num espelho26 . Um episódio destes, que o autor da Legenda se abstém de reprodu- zir, presta-se a múltiplas leituras. Naturalmente que se deve ver aqui a expressão simbólica da paternidade espiritual de Francisco, contado no estilo da maternidade espiritual que lhe era tão próprio. Mas em 1238, numa carta dirigida a Inês de Praga27 , Gregório IX tinha oposto ao ali- ————— 25 A Regra de Urbano IV é de 1263. CF. FFII, p. 343. 26 Cf. PCL 3, 27 Trata.se da Crata “Angelis gaudium” de 1238 (cf. BF I, 262), dirigida A Inês de Praga, onde se lê: “Na verdade, filha da bênção e da graça, quando nós tínhamos menor responsabilidade, a dilecta filha em Cristo, Clara, abadessa do Mosteiro de São Damião, em Assis, e outras senhoras devotas, abandonando as vaidades do mundo, optaram por servir o Senhor na observância de vida numa comunidade religiosa. O beato Francisco compôs-lhes a “Forma Vitae” que não é um prato forte, mas leite, como convinha a quem inicia uma vida nova. Há pouco tempo, o prior do Hospital de São Francisco de Praga, homem discreto e zeloso, apresentou- -me uma carta a pedir humildemente que nós confirmássemos com autoridade apostólica a Forma de Vida que tem por base a dita “Forma Vitae” e alguns capítulos da Regra da Ordem de São Damião. Nós, depois de séria reflexão, não achamos oportuno aceitar este teu pedido”. Desta forma Gregório IX recusava a aprovação da regra escrita por santa Inês de Praga, que seria a primeira regra escrita por uma mulher. Essa honra veio a caber a santa Clara.
  • 38. 38 mento sólido, que o papado dava às irmãs no seu esforço de legislação, ao leite dos ensinamentos mais fluidos de Francisco. Com este sonho, Clara afirma, sem reticências, a sua preferência. CLARA, A ESPOSA DE CRISTO Assinalamos como aquela que está viva sonha com um defunto, que lhe abre o caminho para a felicidade no mais Além. Ao anunciar, em 1253, o falecimento de Clara por meio de uma carta encíclica, as irmãs de São Damião qualificam a morte de paraninfo,28 que permite à alma reu- nir-se ao esposo celeste. “Paraninfo fidelíssimo” é como a Legenda define a Francisco, que introduz a jovem virgem perante o seu esposo real. A alma gémea, com a qual a virgem de Assis deseja unir-se, não é evidentemente a de Francisco. Ele não é mais que o heraldo, o embaixa- dor de um Rei, que é Rei da pobreza. O rigor e a criatividade, que per- mitem dirigir tudo a Cristo numa prodigiosa reductio ad unum, são de admirar. Os testemunhos do processo ‒ a maioria são irmãs com mais de quarenta anos de vida, sob a orientação de Clara ‒ nunca afirmam que Clara simplesmente comungava: comungava o sacramento do Corpo do Senhor Jesus Cristo29 . Quando num mesmo dia tem a alegria de receber a eucaristia e a visita de Inocêncio IV, alegra-se de receber Cristo e seu Vigário. Cura os enfermos com o sinal da cruz, rezando a oração do Senhor, isto é, o Pai-Nosso. Fiel ao espírito de Francisco, que ensinava a viver das próprias mãos, tece panos para fabricar corporais, que tocavam o corpo de Senhor. Em relação aos místicos, que se multiplicaram nas gerações seguin- tes, Clara não é a amante exaltada do Senhor, é sua esposa, real e quoti- diana, a que assiste desde o Natal até à Cruz, a esta paixão que recorda sem cessar. ————— 28 Cf. Circ. 2. 29 PC 2, 11; 9, 10;
  • 39. 39 OS HOMENS NA VIDA DE CLARA Limitar o discurso de Clara sobre os homens a Francisco e a Cristo pode parecer singularmente redutor. Mas esta redução voluntária é sua. A Legenda de Clara não esconde que a abadessa do mosteiro material- mente ínfimo de São Damião teve relações com quatro papas: Inocêncio III, Gregório IX, Inocêncio IV e Alexandre IV, que a canonizou. Clara cita Fr. Elias numa carta. Além disso tem o cuidado de se rodear de uma hierarquia de irmãos menores: cardeal protector, visitador, capelão e um irmão leigo. O processo de canonização evoca a proximidade quotidiana dos irmãos esmoleres, encarregados de pedir esmola para as monjas de clau- sura. Relata também este facto tristemente significativo: Quando uma vez se dá conta da falta de azeite no mosteiro, pede a um irmão que vá pedir azeite. Este responde, zangado, que bastava que lhe entregasse as bilhas lavadas, o que Clara mesmo fez30 . Estes modos grosseiros, que não eram maliciosos, devem-lhe ter lembrado o comportamento dos homens da casa paterna, cavaleiros, cuja arrogância se podia desencadear brutal- mente contra as filhas, que reagiam ao seu poder absoluto. Mas, o mais profundamente revelador é o facto de Clara em nenhuma situação ter classificado ou julgado estes homens, inclusiva- mente quando um conflito os põe contra ela, como aconteceu repetidas vezes com Gregório IX31 . Mesmo quando ameaçaram fisicamente o mos- teiro e as irmãs, como sucedeu em 1240 com as tropas sarracenas de Frederico II, e no ano seguinte com as de Vital de Aversa. No fundo, Clara não parece ter alguma concepção particular do masculino, nem mesmo do feminino, apesar do plural que usa em seus escritos, que a liga indissoluvelmente a suas irmãs, quando Francisco lhe dá campo livre para afirmação do seu ego. Clara não sente, pois, nem a necessidade nem o desejo de aplicar a si mesma ou aos outros a imagem de um género ou do género inverso. Clara ignora toda a categoria rece- bida e todo o esforço de categorização ideológica, social, sexual. Trata- ————— 30 Cf. PC 1, 15. 31 Cf. LCL 14.
  • 40. 40 -se simplesmente de pessoas, referidas a uma Pessoa, a segunda, que as pode incluir a todas. UMA DIFERENÇA EXEMPLAR Francisco de Assis é certamente um dos que mais influenciou as revoluções mentais que fizeram que a cultura europeia seja o que é. A audácia daquele que a Legenda Perusina designa como “um novo louco no mundo”32 é extreme muito original na forma como lida com as catego- rias, tanto de classes como de sexos. Tal como quando se despiu perante o bispo de Assis, Francisco atrai sempre os olhares e ocupa todo o cenário. Clara, encerrada desde os dezoito anos atrás dos muros do mos- teiro de São Damião donde não volta a sair, é infinitamente mais discreta, e o peso do tempo concedia-lhe muito menos espaço para ir até ao fim com o seu propósito. As fontes que conservam a sua memória não reve- lam muitos dos aspectos mais profundos do seu mistério. É possível, no entanto, vislumbrar o suficiente, de forma a reconhecer-lhe uma singula- ridade menos relevante, mas tão radical como a de Francisco. Nestas formas tão diversas de viver as mesmas exigências, vacilamos, todavia, em afirmar qual foi a participação de cada uma destas personalidades de excepção, qual o peso das obrigações específicas que este tempo medie- val fez recair sobre cada um ‒ de maneira especial as obrigações excessi- vas que pesavam sobre cada sexo ‒ qual foi o encargo das identidades femininas e masculinas, imagens que se enfrentaram segundo o género que estas obrigações ajudaram a forjar, a não ser que a obrigação princi- pal não tivesse estas mesmas imagens. Não há nenhuma simetria entre a “masculinidade” de Francisco e a “feminilidade” de Clara. Ele supera as divergências das categorias sociais, culturais, sexuais, desviando-as, desorganizando-as. Ela ignora-as. É claro que, como filha de cavaleiro da média nobreza urbana, em relação constante com cardeais e papas, não conheça a sua rigidez e os seus códigos. Mas em cada indivíduo, sobretudo no seu inspirador, Clara vê ————— 32 LP 114, 6.
  • 41. 41 imediatamente a transparência de Cristo. Assim a pobreza de Francisco e Clara, ainda que uma seja filha da outra, não têm o mesmo sabor. Para ele, a pobreza é um caminho para Deus que passa pela identificação com as categorias dos mais miseráveis das criaturas. Para Clara, a sua opção pela pobreza é uma participação directa da natureza profunda de Cristo, que é a pobreza. Quando o marido é pobre, a mulher não possui nada. Aqui radica tudo. Para quê perder tempo com inversões metafóricas de géneros, quando se tem a dupla sorte de pertencer de nascimento ao sexo mais desprezado, mas que permite uma união imediata com o Esposo do Cântico dos Cânticos, e com o Filho da Virgem. “Em feminino, não há nada”, dizia Jean-Pierre Lécaud numa célebre réplica ao Masculino/Feminino de Jean-Luc Godard. Clara de Assis anuncia o aforismo com sete séculos de antecedência. É um nada que é o contrário de vazio. Nada que estorve, nada que esconda, nada que oculte o outro. O feminino de Clara é um nada que não é o contrário de nada. Desdenhando as categorias, nas quais se comprazem os varões, e que nas melhores condições discutem e se guerreiam, é transparência e imediatez entre o individual e o universal, entre o indivíduo e o universo. Clara, escrevia Damian Vorreux, é um “coração desembaraçado”. Tradução da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana
  • 42.
  • 43. 43 A VOCAÇÃO E A MISSÃO DAS IRMÃS POBRES DE SANTA CLARA NO MOMENTO ACTUAL DA IGREJA E DO MUNDO Ir. Maria Chiara Stuchi, osc* ————— * Conferência proferida pela autora no I Congresso de Presidentes das Federações de Irmãs Clarissas, Assis 26-I-2008.
  • 44. 44 A VOCAÇÃO E A MISSÃO DAS IRMÃS POBRES DE SANTA CLARA NO MOMENTO ACTUAL DA IGREJA E DO MUNDO No Espelho de Perfeição há um relato que me parece esclarecedor para percebermos o sentido desta exposição. Francisco descreve o verda- deiro frade menor como aquele que reúne em si as qualidades próprias de alguns irmãos: a fé e o amor de Bernardo, a simplicidade e pureza de Leão, a cortesia de Ângelo, etc1 . Francisco apresenta um paradigma concreto do frade menor, com o qual os demais irmãos se deveriam conformar. Descreve pessoas concre- tas, com talentos únicos e particulares, expressando assim que a riqueza da fraternidade está na convergência de cada um para o bem comum, o ————— 1 “E dizia que seria verdadeiro Frade Menor aquele que reunisse nele as virtudes dos santos frades, a saber: a fé de Fr. Bernardo, tão perfeita como o amor à pobreza; a simplicidade e a pureza de Fr. Leão, que foi realmente um homem de coração puro; a afabilidade de Fr. Ângelo, o primeiro cavaleiro a entrar na Ordem, e que era adornado de grande mansidão e benignidade; a presença distinta e o bom senso de Fr. Masseu, com a sua agradável e devota conversação; a perfeitíssima contemplação de Fr. Gil, sempre com o espírito arrebatado em Deus; a actividade constante e virtuosa de Fr. Rufino, que rezava incessantemente; até a dormir e a trabalhar, o seu espírito estava com o Senhor; a paciência de Fr. Junípero, que atingiu um alto grau de perfeição, porque ele tinha plena consciência da evidente realidade da sua própria baixeza e um ardente desejo de imitar a Cristo Crucificado; o vigor corporal e espiritual de Fr. João dos Louvores, que foi o maior atleta entre os homens do seu tempo; a caridade de Fr. Rogério, cuja vida inteira e conversação eram inspiradas por uma fervorosa caridade; enfim, a inquietação de Fr. Lucílio, que foi sempre uma pessoa de total desapego e não queria estar no mesmo lugar por mais de um mês. Quando começava a afeiçoar-se a algum lugar, logo se afastava e dizia: «Morada permanente só a temos no céu» (EP 85).
  • 45. 45 bem que é a vida segundo o santo Evangelho. Cada um tem dentro de si uma chama, e todos juntos contribuem para alimentar a chama da fraternidade. Tenho a sensação que Clara hoje nos diz o mesmo a nós. Quem é hoje a irmã pobre de santa Clara? Qual é a sua vocação, a sua missão no nosso tempo, na nossa Igreja, no nosso mundo? O papa Alexandre IV, na Bula de Canonização, procura explicar quem é Clara de Assis através da imagem da árvore com ramos que se alargam, e sob cuja sombra acudiram e continuam a acudir muitas segui- doras de muitas partes do mundo2 . Podemos dizer hoje que estes ramos se alargaram aos cinco continentes, que deitaram folhas em todo o mundo, onde brotaram flores e amadureceram frutos. Por isso, de qual- quer parte do mundo pode responder-se, sempre de novo, à pergunta sobre a vocação e a missão da irmã pobre de Santa Clara. Surge a necessidade vital de nos escutarmos reciprocamente. Deve- mos escutar a história das origens; devemos escutar a compreensão que temos hoje do nosso carisma e partilhar as experiências vividas e os sonhos que guardamos em nós. Na realidade, a irmã pobre, hoje, tem o rosto de inumeráveis povos, fala muitas línguas, exprime os calores e os sabores de numerosas culturas. A minha comunicação articula-se em três partes. Na primeira, trata- rei de expor algumas coordenadas em que nos movemos como habitantes deste mundo, marcado por luzes e sombras, com algumas tendências que nos impõem, às quais devemos responder evangelicamente. A questão poderia ser: Como é o mundo em que vivemos? Precisamos de conhecer o mundo em que nos movemos, para viver a nossa vocação: a Forma de vida de Clara. Na segunda parte, comentarei em síntese os pontos cardeais da Forma de vida de Clara, que para nós são as lentes com que olhamos o mundo, e neste a Igreja, a família Franciscana, as nossas comunidades e a nós mesmas. Daqui tiraremos os critérios de referência e de valoração para rever a nossa vida e tomar novas opções. A questão pode ser: Qual foi a opção fundamental de Clara? A Forma de vida que nos deixou é o espelho em que nos olhamos. Na terceira parte, quero pôr em destaque os aspectos e os âmbitos, onde actualmente encarna o carisma clareano. Obviamente, só alguns ————— 2 BLC 9.
  • 46. 46 aspectos. A questão poderia ser: Por que vida optamos? E consequente- mente, como actuar? Trata-se da realização, de concretizar a maneira de viver a que cada uma de nós foi chamada. 1-O mundo em que vivemos Vivemos numa época da história do mundo e da Igreja caracteri- zada por desafios e exigências novas. São desafios “de última hora”, com uma aceleração tão descontrolada que produzem confusão e desordem generalizadas e se propagam de modo visivelmente crescente no âmbito social, político e económico de uma cultura secularizada e distante das raízes de tradição cristã. Uma das ameaças eminentes é “o paganismo cinzento da vida quotidiana da Igreja, dos cristãos, onde aparentemente tudo continua normal, mas que na realidade a fé se esgota e cai na mesquinhez3 . 1.1. A primeira atitude que devemos assumir com fidelidade e audácia perante a realidade que nos rodeia com toda a sua complexidade é a de “voltar a começar em Cristo”4 , na pessoa do Senhor Jesus, pobre e humilde, com adesão de fé, que nos leva à esperança, confiança e alegria. Seguindo a exortação de S. Paulo de não nos afligirmos como os que não têm esperança (1Ts 4, 13), podemos olhar as grandes mudanças que acontecem na Igreja e no mundo com a visão de Jesus: sem angústia, nem medo, nem perturbação. Esta visão da realidade, neste espaço vital da nossa vocação no tempo que nos é dado viver, ao contrário do sentido/sem sentido da opressão que esmaga, estimula-nos a recomeçar a partir de Cristo, da contemplação do seu rosto, do acolhimento do seu Evangelho que anun- ciamos e proclamamos, com simplicidade e humildade, ancoradas na profecia da esperança e do gozo: a Ressurreição. O Senhor pede-nos para sermos humildes e para termos um olhar não fragmentado, não disperso. Devemos ser capazes de fazer a síntese, de construir e de amar a verdade; o Senhor pede-nos um coração indi- ————— 3 RATZINGER, J., Situación actual de la fe y de la teologia, Conferência pronunciada em Guadalajara, Mexico, 1996 (www. Aciprensa.com/Docum/rat96.htm). 4 JOÃO PAULO II , Novo millenio ineunte, 28-29.
  • 47. 47 viso, unificado, capaz de harmonizar a partir de dentro, com a arte da comunhão, as antinomias, as contradições e os elementos que a realidade apresenta na sua multiculturalidade de luzes e sombras. 1.2. Nesta perspectiva, o “ver” implica ao mesmo tempo a solici- tude para discernir livre e responsavelmente os sinais dos tempos à luz do Espírito Santo; o redescobrir confiadamente o sentido unitário e total da realidade, superando os critérios parciais e unilaterais, ligados exclusiva- mente a interesses económicos e/ou políticos; voltar a ter como ponto de partida a Cristo, Palavra e Sabedoria de Deus (1Co 1, 30), optando com audácia pelo caminho da profecia da salvação no Ressuscitado. “Só aquele que reconhece a Deus, conhece a realidade e pode responder-lhe de forma adequada e verdadeiramente humana”5 , e só através desta com- preensão dos vários significados e processos da realidade se fará a síntese e se terá uma compreensão unitária. 1.3. Com efeito, luzes e sombras caracterizam o nosso mundo cheio de mutações surpreendentes, que chegam de forma rápida e verti- ginosa a todos os lugares. Geralmente identificam-se com os fenómenos da globalização, que se estende a todos os âmbitos da vida social, do político ao económico, do científico ao tecnológico, e até do artístico ao desportivo. Limitamo-nos a analisar alguns deles, que, a meu ver, têm maior relevância para a nossa reflexão. 1.3.1. A nível mais profundo da sociedade, emerge uma subjectivi- dade a roçar o hedonismo e o narcisismo. Quando o eu se torna o ponto de referência das relações humanas, incluso as afectivas, estas chegam a ser instrumentalizadas. Efectivamente, a afirmação do próprio eu, da própria felicidade, ilusória e efémera, nasce de uma indiferença cada vez maior pelo outro, reduzindo-se a relação a momentos fugidios, sem um compromisso verdadeiro e duradoiro. O direito individual prefere a reali- zação dos próprios desejos à preocupação pelo bem comum, com pre- juízo da solidariedade para com os pobres e os mais vulneráveis. A ————— 5 BENTO XVI, Discurso inaugural da V Conferência geral do episcopado Latino- -americano e das Caraíbas, 3 (13 de Maio de 2007).
  • 48. 48 indiferença causada pelo egoísmo é uma das feridas mais profundas infli- gidas à própria dignidade humana. Paradoxalmente, sem ser surpreendente, a perca da dignidade (ou a ameaça de a perder) é o ponto de partida para um processo positivo de reafirmação do valor fundamental e insubstituível da pessoa, do sentido da vida e da transcendência. A necessidade de construir o seu próprio destino e de encontrar uma razão para a própria existência, abre novos horizontes, que valori- zam o indivíduo como pessoa, o seu desejo de se encontrar com os outros para partilhar e confrontar as próprias vivências, para ler juntos os acontecimentos e juntos construir a história. A diversidade deixa de ser ameaça e torna-se em dom para superar os conflitos e as oposições, que convergem na síntese de um destino histórico comum, respeitoso da dig- nidade e da liberdade de todos e de cada um. 1.3.2. As indicações de Bento XVI sobre os aspectos positivos e negativos da globalização, ajudam-nos a compreender de maneira acer- tada o processo evolutivo e regressivo provocado. Se por um lado é um fenómeno de “um entremeado de relações a nível planetário e uma con- quista da família humana”, por outro lado, sublinha o Santo Padre, “como em todos os campos da actividade humana, a globalização deve reger-se também pela ética, colocando tudo ao serviço da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus”6 . Considere-se, por exemplo, a economia, que quando privilegia os valores da eficiência e da produtividade, do lucro e da competição, não favorece o desenvolvimento dos bens mais importantes da vida, como a verdade, a justiça, a dignidade e os direitos humanos. Enquanto concen- tra o poder e as riquezas nas mãos de poucos, contribui para aumentar a pobreza. Por outro lado, as novas tecnologias, contribuem de forma ine- vitável para a exclusão e a precariedade no trabalho. Assim surge um novo analfabetismo que tem origem na ignorância induzida. 1.3.3. A globalização, pois, sem uma aspiração profunda à unidade e à solidariedade, converte-se numa arma letal, destruidora. É um mundo ————— 6 BENTO XVI, Discurso inaugural da V Conferência geral do episcopado Latino- -americano e das Caraíbas, 2.
  • 49. 49 onde se criam em cadeia condições nocivas à vida humana, reguladas pela exploração, pela escravatura e pela exclusão social. O mal produz o mal: milhões de pessoas e famílias sem trabalho, sem terra, na miséria e fome; milhões de refugiados, perseguidos pela guerra, pelo terrorismo e por toda a forma de violência… 1.3.4. Também a natureza geme e sofre; o ecossistema é contami- nado pelos interesses económicos e políticos das grandes multinacionais. Não obstante, nesta realidade onde o mal parece dominar, divisa-se, às vezes muito tenuemente, a chama dos que, em diversos âmbitos, ouvem e acolhem a chamada a proteger e a conservar a natureza criada por Deus, não permitindo que o nosso mundo seja uma terra cada vez mais degradada e degradante7 . É a voz, às vezes muito débil, e ainda pouco escutada e considerada, de tantas associações e grupos de voluntá- rios, e tantos movimentos e organizações, que se afanam para que real- mente tudo volte a estar ao serviço do homem e sua dignidade. 2. Clara, o nosso espelho Deixemo-nos iluminar pela experiência e pela palavra de Clara. Per- guntemo-nos: De que maneira viveu Clara neste mundo, como se inseriu nele como um fermento de vida, qual manancial para os desertos huma- nos, e luz que ilumina as trevas8 , também as trevas do nosso tempo? 2.1. Vida segundo o santo Evangelho: a opção fundamental Clara quer viver o santo Evangelho. Este é o seu propósito, esta é a sua forma de vida: “A forma de vida da Ordem das Irmãs Pobres, que S. Francisco instituiu, é esta: Observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem próprio e em castidade”9 . O Evangelho é Jesus. Clara entendeu muito bem, olhando Fran- cisco, tal como recorda no princípio do teu Testamento, no contexto de acção de graças ao Pai das misericórdias pelo dom da vocação específica: “O Filho de Deus fez-se nosso caminho, como nos mostrou e ensinou ————— 7 João Paulo II, Homilia em Punta Arenas, Chile, 1987. 8 BLC 11-12. 9 RCL 1, 1-2.
  • 50. 50 pela palavra e pelo exemplo o nosso bem-aventurado Pai São Francisco, seu apaixonado imitador”10 . O Evangelho vivido e pregado por Francisco está presente no início da conversão de Clara e define a sua identidade. Clara é uma cristã. Sem glosa. Jesus, caminho, verdade e vida, é a Boa Notícia anunciada aos pobres, aos oprimidos, aos excluídos. Francisco mostra-o e ensina-o a Clara com palavras e obras, que nascem umas vezes do contacto com os marginalizados da vida, como os leprosos, outras do silêncio dos eremitérios. Clara esquadrinhou constantemente o essencial do rosto de Jesus que Francisco desvelou, até assumir os seus rasgos11 . Com a emoção de sempre, recordamos a resposta de Clara, pouco antes de morrer, falando a Fr. Reinaldo: “Querido irmão, desde que me foi dado conhecer a graça do meu Senhor Jesus Cristo por meio do seu servo Francisco, nenhuma pena me foi molesta, nenhuma penitência me pareceu severa, nem nenhuma doença me foi difícil de suportar”12 . A graça de que fala Clara é toda a vida terrena de Jesus: Jesus que nasce na pobreza, que experimenta uma vida exigente, onde o sofrimento e o gozo marcam o quotidiano, terminando os seus dias sobre a terra pregado numa cruz, como um malfeitor entre malfeitores… este Jesus manifesta ‒ sobretudo no momento supremo do Calvário ‒ o amor agá- pico e erótico de Deus, na linguagem de Bento XVI13 , que nos interpela: “Vós que passais, contemplai e vede se há dor semelhante à minha dor”14 . Este Jesus é o santo Evangelho, é a Boa Notícia: Deus ama os homens e quer que se salvem, quer entrar em comunhão com o ser humano, para que tenha vida em abundância. Clara responde a este Jesus e exorta: “Respondamos com uma só voz e um só espírito a este grito: „A pensar nisto sem cessar, minha alma desfalece dentro de mim‟”15 . Qual a resposta que damos no momento actual? 2.2. Vida evangélica na altíssima pobreza: o espaço de comunhão ————— 10 TCL 5. 11 4CCL 15. 12 LCL 44. 13 Nota 13. 14 4CCL 25. 15 4CCL 26.
  • 51. 51 Se Clara encontra no Evangelho a sua identidade, é na pobreza de Jesus que descobre o específico da sua Forma de vida: “… se dignem conduzir o pequenino rebanho, que na sua Igreja santa, o Senhor e Pai gerou com a palavra e o exemplo do bem-aventurado Pai Francisco, no seguimento da pobreza e humildade do seu dilecto Filho e da gloriosa Virgem sua mãe, e o levem a observar sempre a santa pobreza…”16 . A Igreja reconhece-nos como aquelas que seguem a pobreza e a humildade de Jesus. Se faltamos neste serviço de memória e testemunho de Jesus pobre e humilde, a nossa presença não tem sentido. 2.2.1. Recordemos, através de dois factos, o quanto era importante para Clara o ser e o viver pobre. a) Pede ao Papa o Privilégio de Pobreza, o privilégio de não ter privilégios. Pede ajuda ao Papa, mesmo ajuda formal. Pede uma aprovação escrita, autorizada, para garantir a ela e suas irmãs (presentes e futuras, não esqueçamos), a melhor condição para viver o santo Evangelho. Quer estar segura de não ser obrigada a ter seguranças. b) No testamento declara ter-se comprometido livremente, e repete- -o várias vezes com “nossa senhora a santíssima pobreza”17 , ela e suas irmãs. Clara, mulher medieval, que respirou a cultura cor- tesã, sabe que deve fazer tudo por essa Senhora tão especial. A sua opção é consciente, desejada e madura. Não se trata de um impulso emotivo de momento: “… frequentemente renovemos a nossa adesão voluntária à nossa senhora, a santíssima pobreza, a fim de que depois de minha morte, as irmãs, tnto as presentes como as futuras, de nenhuma maneira dela se apartem»18 . 2.2.2. A pobreza tem um duplo efeito prático: ‒ garante a permanência na marginalidade, atitude que não assusta, que não deixa margem para equívocos tanto nas palavras como nas atitudes, ————— 16 TCL 46-47. 17 TCL 39. 18 Ibid.
  • 52. 52 ‒ dá sempre a prioridade ao outro e ao Outro, numa atitude perma- nente de acolhimento e gratuidade. E tudo acontece como e com Jesus, que foi pobre no seu nasci- mento, pobre viveu e nu permaneceu na cruz19 . Por isso respondia ao papa, que insistia para que recebesse rendas: “Santíssimo Padre, por nenhum preço quero ser dispensada de viver o seguimento de Cristo para todo o sempre”20 . Pobre como e com Jesus. E por isso pobre como e com os irmãos. Parece-me eloquente um detalhe do episódio sobejamente conhecido da multiplicação do pão. Do único pão que havia na comunidade formada por cinquenta irmãs, Clara ordena à irmã encarregada do serviço da des- pensa, de enviar metade aos irmãos e de cortar a outra metade em cin- quenta pedaços, um para cada irmã. E houve pão em abundância para todos21 . 2.2.3. A pobreza só é fecunda, quando aqueles que a abraçam se tornam solidários. É assim a pobreza de Jesus, que se fez pobre por nós, para nos enriquecer através da sua pobreza (2Co 8, 9). Não partilhou connosco o supérfluo, mas o dom excelso de sua vida divina. Clara não partilhou com os irmãos o supérfluo, mas o indispensável. Na sua pobreza, Jesus tornou credível a imensa bondade de Deus. Na sua pobreza, Clara é credível quando nos recorda, animando-nos: «Na verdade, é uma troca maravilhosa e digna de todo o louvor renunciar aos bens temporais e preferir os eternos, perder o que é terreno, para merecer o que é celeste, renunciar a um para ganhar cem e possuir para sempre a vida bem-aventurada”22 . ————— 19 Cf. TCL 45. 20 LCL 14. 21 Cf. LCL 15. 22 1CCL 30.
  • 53. 53 2.3. Vida evangélica em santa unidade: uma sinfonia executada pelo Espírito Santo. O episódio do milagre do pão abundante permite-nos compreender como o ser pobre abre espaço interior para o acolhimento dos irmãos e irmãs, e ajuda a forma de nutrir a comunhão. Clara e as irmãs crescem na santa unidade, tendo ante seus olhos o ponto de partida e o objectivo final do viver em comunidade, “de diversas regiões e províncias congregadas”23 . 2.3.1. O ponto de partida é reconhecer que cada uma é filha do Pai, por ele doada às outras24 e guiada pelo Espírito Santo25 . Por respeito à divina inspiração que a todos move, consegue-se a escuta recíproca, gra- ças à qual a fraternidade entende como deve avançar na observância do Santo Evangelho. Nisto não há hierarquia de valores. Deus é livre de dar a luz da sua sabedoria26 . Desta maneira, a santa unidade constrói-se e mantém-se no exercício da corresponsabilidade, da qual ninguém está dispensado, pois na fraternidade clareana não tem sentido a renúncia à própria responsabilidade. Efectivamente, a fraternidade vive da atenção e da confiança recíprocas e da partilha dos dons. 2.3.2. A meta é o bem comum. Clara exorta a procurar a confluên- cia dos corações, das mentes e das vontades, como forma de passar ‒ como diríamos hoje ‒ do eu ao nós27 . Cada irmã, acolhida na sua unici- dade, é convidada a mostrar-se em toda a sua verdade, certa de encontrar na outra irmã aquela que lhe dá o necessário para viver, isto é, para ser autêntica segundo os projectos de Deus. “Confiadamente manifeste uma à outra as suas necessidades, pois, se a mãe ama e cria com tanto amor a ————— 23 ExAu 1. 24 “…juntamente com as poucas irmãs que o Senhor me tinha dado” (TCL 25). 25 “Se alguém, por inspiração divina, vier ter connosco, com intenção de abraçar esta vida” (RCL 2,1); “Pois que, por divina inspiração divina vos fizestes filhas e servas do altíssimo e soberano Rei e Pai celestial, e vos tornastes esposas do Espírito Santo, abraçando uma vida conforme a perfeição do Santo Evangelho” (RCL 6,3). 26 “Com efeito, muitas vezes é ao mais pequenino que o Senhor revela aquilo que mais convém” (RCL 4, 18). 27 CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA, A VIDA FRATERNA EM COMUNIDADE, 39-42.
  • 54. 54 sua filha carnal, com quanto mais carinho não deve cada qual amar e aju- dar a sua irmã espiritual”28 . Desta forma consegue-se a dedicação personalizada, que Clara manifesta para com as irmãs, como testemunham os milagres realizados a favor das irmãs. A mesma dedicação se verifica nas disposições relacio- nadas com o hábito e com o dinheiro recebido29 . Mas o respeito e a promo- ção da unicidade da pessoa não são um fim em si mesmo. Cada uma das irmãs está chamada a ser para a fraternidade, a buscar e a desejar o que é a utilidade comum e a contribuir para que a comunidade caminhe unida. Se há uma opção preferencial, deve ser pela irmã doente, porque ela é por excelência o sacramento de Jesus pobre. Clara acolhe as doentes e quer que sejam acolhidas pelas demais com grande ternura. Todas estão chamadas a ser próximas umas das outras, evitando que algo de mal lhes aconteça30 . As curas contadas pelas irmãs no Processo de Canonização, realizadas com o sinal da cruz traçado por Clara, indicam-nos a via da libertação: a Cruz de Jesus, ou melhor, o amor que dá a própria vida, é a forma de vida concreta a que as irmãs estão chamadas na sua relação com as doentes. Uma realidade e um símbolo para reflectir. 2.3.3. Enquanto todas escutam a Palavra de Deus e a pregação que se seguiu, uma irmã goza da visão do Menino Jesus. Compreende que Jesus está no meio de todos os que “escutam como devem”, isto é, estão unidos em nome de Jesus31 . A escuta obediente da Palavra de Deus ali- menta e faz crescer a fraternidade, ensinando a superar os subjectivismos e reforçando cada uma no serviço devotado ao bem comum. 2.3.4. A unidade do amor recíproco32 é a pérola preciosa que se deve guardar a todo o custo, e que só se alcança quando se “vendem” as ideias, projectos e expectativas próprios. O serviço da Abadessa, a estrutura da vida comunitária (capítulos), o trabalho, a atenção às irmãs doentes, os conflitos nas relações fraternas… são os vários aspectos da ————— 28 RCL 8, 15-16. 29 «A abadessa providencie com discrição quanto às roupas, segundo a natureza da pessoa, o local, o tempo e as regiões frias, como vir que é necessário» (RCL 2, 17). 30 Cf. RCL 8, 12-14. 31 Cf. PC 10, 8; Mt 18, 20. 32 Cf. RCL 10, 7.