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II – O REENCONTRO
Foi o espelho que lhe mostrou. A velha estava de volta. Depois de um
longo exílio forçado, coabitando de perto com o ranho, as lágrimas, os
excrementos e o lodo da humanidade, regressava ao covil. O Gato deu-
lhe algum tempo para que recuperasse forças. A velha precisava de
sacudir o nojo que lhe embrulhava as entranhas mumificadas. Afastou
os olhos da superfície espelhada que lhe trazia as imagens do mundo
louco dos homens, esticou o corpo elástico e macio, enterrando as
garras no tapete puído, e, de um salto saiu de casa e subiu, lesto, pelas
colunas do alpendre inclinado que ensombrava a porta da cozinha. O
ar parado da tarde exalava um perfume doce às amoras bravias que
cresciam a esmo pelo jardim. Silencioso, trepou telhado acima,
evitando as telhas soltas, como se estivesse num jogo de xadrez. Foi-
se encarrapitar na chaminé da lareira, negra, atarracada, que lhe dava
da rua uma perspectiva soberba. Os retalhos de verde entretelavam
com brancos e beijes, enfeitados de tijolo. Dali, o bairro parecia uma
plantação de cogumelos, daqueles enormes, das histórias infantis. O
céu, quase tão azul como os olhos do Gato, envolvia tudo como uma
cúpula, sem mácula de nuvem. Só uma brisazinha ténue fazia
estremecer os bigodes compridos. Satisfeito, O Gato semicerrou os
olhos brilhantes e ficou à espera.
Um escaqueirar de louças espantou os pardais que descansavam nos
fios. Pela janela da cozinha voaram caixas escanzeladas de cartão,
revistas, panos, tudo coberto de pó e teias de aranha.
‘Gato estúpido’, gritava a velha, arfando, atrapalhada, no meio de
tantos trastes. A cozinha era um pandemónio de tralhas e velharias
espalhadas por todo o lado. A louça suja acumulava-se em cima dos
móveis. Restos bolorentos de um qualquer repasto eram palco de
verdadeiras colónias de vida microscópica. Resmungando, a velha,
figura desgrenhada e disforme, arrastava-se pelo meio do caos, mal-
humorada, empurrando tudo aos pontapés.
‘Tralha, só tralha’, rosnava, enquanto aconchegava as mãos no quente
da caneca de chá perfumado.
‘Tanto tempo perdido a juntar tralha que não serve para nada’.
Em pequenos goles, o líquido reconfortante inundou o corpo
alquebrado pelos anos e pelo mau-humor, acalmando a fúria. Deixou-
se ficar, meio encostada ao balcão da cozinha, olhando o monte de
cacarecos que se espalhavam pelo chão. A velha não cultivava a
memória, nem acarinhava as lembranças do passado como quem
acaricia os cabelos macios de um filho querido. O peito seco não
emitia suspiros. Construíra um muro tão alto e tão denso como o que
rodeava a casa. Os objectos não lhe diziam nada, eram tralha; só os
mantinha porque livrar-se deles implicaria expor-se ao mundo mais do
que o estritamente necessário. As suas incursões para fora da
muralha protectora destinavam-se exclusivamente a manter alguns
caprichos que o velho corpo ainda exigia. Comer, comia pouco; nem
sequer para sobreviver. Aprendera que a sua vida dependia de outra
vontade que não a sua. Gostava era de alguma extravagância; sabores
que disfarçassem o gosto nauseante da humanidade. Mas sair para
comprar era um suplício. Expor-se ao olhar dos outros doía-lhe na
carne, incomodava-a. A passagem dos anos, porém, facilitou-lhe a
tarefa. A mercearia do bairro deu lugar a espaços cada vez mais frios
e impessoais. Tornou-se mais fácil passar despercebida. No início as
mulheres com as gigas à cabeça, apregoando de porta em porta,
frangos vivos, couves, feijão verde, coelho; a sardinha que chegava do
mar trazida por peixeiras peludas e de língua destravada. Essas eram
perigosas, atentas, atrevidas. Olhavam-na com os seus olhinhos
cheios de estupidez curiosa, e foçavam para ver o que se escondia
atrás do portão de ferro. A mercearia fétida, com o homenzinho
corcunda e zarolho que pesava o açúcar amarelo em saquinhos
plásticos, fechando-os com a chama corrida de uma vela ao longo de
uma faca enegrecida, levou-as para longe. Chegou depois a mercearia
fina que vendia iogurtes, frutas tropicais e queijo da serra que
escorregava montra abaixo, untuoso, e o velho ‘troca-o-olho’ morreu
de apoplexia, caído entre sacos de arroz e rateiras. Seguiu-se o mini-
mercado, portas meias como o pão quente e o cabeleireiro unissexo e
a loja de pechisbeque importado. Até que, finalmente, alguém teve a
brilhante ideia de enfiar todos os negócios e lojinhas em grandes
armazéns de vidro acrílico, concepções de arquitectura berrante e luz
baça, como micróbios encerrados numa preparação virulenta e
pegajosa de um laboratório dantesco. Mas aquele espaço vazio, frio,
apesar do ar condicionado, das plantas sempre verdes, sempre
saudáveis, porque as velhas, as doentes eram rapidamente
substituídas de deitadas no lixo, agradava à velha, servia os seus
intentos. É que ela temia ser reconhecida por alguém, alguém que se
lembrasse, que reflectisse perante a estranheza da sua permanência
no mundo. Se os velhos não fossem, também eles lançados para o lixo,
ou para depósitos, arrecadações onde ficam a acumular lembranças,
coisas que já não servem, a sua vida estaria mais dificultada. Tempos
houvera onde cruzar as ruas do bairro fora um risco. Os velhos
cultivam com especial prazer a memória e podiam recordar-se da sua
figura, ou das histórias que os pais e avós lhes contavam. Mas essa
qualidade de velhos desaparecera; os novos velhos não tinham
memória, era-lhes amputada pela voragem dos dias. Por necessidade
de sobrevivência muitos acompanhavam, a passos saltitantes, as
novidades. Os que não tinham capacidade para fingir de jovens viviam
em gavetas à espera da morte. Por isso era mais simples passear pelas
ruas cheias de corpos e vazias de gente. Transformadas em
corredores asfaltados, assépticos, solitários, limpos de resíduos de
memória, repletas de formigas tontas e infelizes. Dava-lhe até algum
prazer olhar as figuras cada vez mais esquálidas e tristonhas daqueles
seres apertadas em farrapos desconfortáveis. Agradava-lhe os
olhares de repulsa que lhe lançavam. Ela era a velha, mesmo velha.
Não a velhinha simpática, fresca e rosada da publicidade. Era feia,
decrépita, nauseabunda. E na rua ela era o Espelho, o Espelho que
ninguém gostava de enfrentar. Os homens perdidos, de olhar cansado
e impaciente, as crianças vazias de tanto querer o que não queriam, as
mulheres de olhar devorador, procurando o que não podiam ter;
Espaços de plástico repletos de famílias de cartolina, figurinhas
recortadas em trapos coloridos, voavam pelos corredores e avenidas,
como abelhas entontecidas pelo cheiro do fumo. Mas ninguém via o
fogo, ninguém notava a velha, grotesca, curvada, que resmungava
impropérios, agastada com tanta porcaria. Arrastando os pés e o nojo
atrás de si, voltava à sua toca, lançando olhares de desdém aos jardins
milimetricamente organizados, às piscinas; cuspindo aos cães com
pedigree que assomavam aos portões de controlo remoto, excitados
pelo seu fedor.
O caminho até a casa tornava-se longo para os pés duros e achatados
de tanto caminhar. Para diminuir o fardo, e não porque a movesse
algum sentimento nostálgico, a velha distraía-se, fazendo passar no
filme da mente, imagens de outro bairro. O bairro de um dos muitos
passados. Pisava então um chão irregular, coberto de lajes prateadas,
entremeadas de ervas bravias; sentia o odor das vinhas que davam
sombra ao mosaico de quintais que compunham um padrão irregular
de formas e cores, misturado com o fedor dos montes de estrume. Ao
empurrar o portão ferrugento ainda pode avistar os burros
carregados que desciam a ladeira até ao rio. O som impaciente de uma
buzina apagou a imagem de tons sépia e a velha encostou-se à chapa
quente pelo sol, para poder ver sem ser vista. Do outro lado da rua, do
fundo do jardim, imaculado, corria a jovem empregada fardada,
agitando as sapatilhas cor-de-rosa. Mãos impacientes lançaram-nas
para dentro do carro que arrancou num guinchar histérico. Muitos
anos atrás, mesmo há muito tempo, aquele jardim elegante era um
buraco pestilento, onde chafurdavam ratazanas e as varejeiras faziam
banquetes de porcaria. Ali desaguava a imundice das ilhas que
nasciam em volta como cogumelos venenosos, infectos de vida,
misturada com o sangue dos frangos e cabritos que eram mortos no
talho. Os miúdos, sujos, ranhosos, com pés descalços e joelhos
cobertos de crostas de ferida, brincavam com as patas e cabeças dos
bichos mortos. Às vezes uma galinha degolada escapava-se pela
cancela do barracão, matadouro improvisado, e corria às cegas pelo
meio da canalha, excitada e em grande berraria, com a cabeça
pendendo de lado e o sangue a borbulhar do buraco negro do
pescoço. Mais tarde substituíram a cancela por um portão que não
deixava os bichos vivos, ou quase, escaparem para a rua. Mas o
sangue e as penas continuaram a correr rua abaixo durante muito
tempo. A velha ainda o conseguia ver debaixo do carro que se
apressava a virar a esquina.
´ Vai, minha menina, vai depressa, não te sujes, não te atrases, vai
dançar em pontas que isto é um grande palco! – chisparam os olhos
da velha em centelhas de rancoroso brilho.
‘Que grande fantochada!’
Apressava-se a fechar o portão rabugento e vagaroso como ela, para
deixar para trás o mundo que lhe metia nojo. Estava cansada de ver a
mesma peça de actores canastrões e patéticos, que a enfastiavam
infinitamente, apesar da mudança de cenário. Antes mulheres magras
de fome e pancada, homens queimados pelo vinho, pelo frio e pelo
estio, crianças piolhosas que roíam as cascas de fruta e as côdeas de
pão bolorento da lixeira; agora tudo gente de plástico, dores de
plástico, risos de plástico. Mas era tudo o mesmo, bocados de merda
à espera de ser estrume. E o pior de tudo era sentir o cheiro. O cheiro
que se lhe agarrava à pele e não a deixava em paz. Estava enterrada
na lama do mundo e não podia escapar-lhe. Nos momentos mais
dolorosos ansiara pela liberdade da loucura e não aquela cortante
consciência que lhe verrumava o cérebro. Que bom seria se fosse
idiota, incapaz de ver com aquela lucidez insuportável o que era a vida.
Estava no mundo, não por vontade, mas por imposição. Tentara vezes
sem conta por fim a uma existência para que não encontrava sentido.
Tinha, algures, entre as linhas sujas e fundas da pele dos pulsos secos,
as marcas de uma vontade que nunca se cumprira. A morte negava-
se-lhe de todas as vezes. Desesperou, uivou, quis fugir para longe de
si mesma; daquele ser que era e não queria ser mais; que não quisera
ser nunca. Mas a morte não a queria. Só a vida a recebia; e gastava-
lhe a carne e os ossos ao limite; sugava-lhe as emoções, os sonhos, os
afectos. O que vivia era uma carcaça, seca, dura, sem seiva, sem alma.
Agora, se a morte viesse, os vermes da terra não teriam muito para se
alimentarem. Deu uma risada seca que ecoou grotesca no silêncio da
tarde.
‘Pobres bichos! Já há muito que tinham morrido de fome, à espera.’
Pousou o saco no balcão sebento e tratou de preparar o chá doce e
perfumado, um dos poucos prazeres a que o corpo gasto se
abandonava. Enquanto esperava que a água fervesse sentou-se na
mesa desarrumada com a caneca entre as mãos. As veias grossas
desenhavam troncos roxos de árvores sem folhas, sem seiva. Desviou
os olhos doridos de tanto olhar a fealdade e podridão do mundo. A
estranha maldição que a prendia à vida, agudizava-lhe os sentidos, a
um extremo insuportável. Via para lá do tempo e do espaço; para lá da
cor, da luz e da forma. Era uma visão crua, terrífica. Via o caos, as
trevas, o nada que se escondia na aparência das coisas belas. Para
ela não havia véus. Como odiava os discursos que clamavam pela
verdade escondida por detrás das aparências! A verdade era atroz e
era uma banalidade. A verdade era Deus! Riu-se, numa gargalhada
cavernosa, a boca escancarou-se em absoluto escárnio. A verdade era
ela, nua, podre, crua. Era a versão terrena do divino; eterna e
desumana. Num único ponto condensava nascimento e morte; criação
e esquecimento. O tudo, o todo, era coisa nenhuma. Ou como gostava
de filosofar o Gato, a eternidade reduzia a realidade à sua
insignificância. Não era, pois estranho que Deus se revelasse um
monstro de indiferença. Não era, pois, de admirar que ela, a Velha, se
estivesse borrifando para as desgraças e misérias das pulgas
humanas que infectavam o mundo. Há tanto tempo, mas há tanto que
já nem sabia dizer quanto tempo fora, presenciava o ciclo demente de
gente que ia e que vinha; que empurrava, clamava, rugia; que se
multiplicava como pragas, insistentemente, apesar dos tormentos, dos
lamentos.
‘Que fantochada!’
Filomena Pereira
Ao Gato, pelo contrário, agradava-lhe a paisagem e o ofício de
observador independente. Como a velha já não tinha tempo; estava
presente naquele lugar desde sempre; mas igual ao que fora e ao que
seria. Gato sem tempo, sem passado, sem futuro, Gato sempre Gato,
sempre igual. Apreciava com exigência de esteta, o cheiro das
estações em trânsito constante; deleitava-se com os cambiantes subtis
da Natureza, das tonalidades; regozijava com a capacidade de
regeneração infinita do mundo sobre os homens. As casas
abandonadas, os baldios ermos entre prédios em construção; as
fendas de cimento, dominadas pelo verde luxuriante, as lixeiras; tudo
tinha particular encanto. Apaixonava-se pelas sombras criadas no
muro pelos ramos do salgueiro, pela frescura do musgo que crescia
sob o fontanário, pela fresta de céu ora azul, ora prata, ora branco-
neve, que se descobria ao espreitar entre as tábuas carcomidas do
barracão velho. Mas o seu lugar de sonho no bairro fora e seria
sempre a Casa do Melro. Chamava-lhe assim porque todos os anos,
um melro
jovem saía
do túnel e
fazia do
quintal da
casa o seu
palácio.
Rodeada por
um muro
coberto de
trepadeiras
floridas,
arbustos de
hortênsias,
era o paraíso
da passarada. E do Gato também. Na Primavera enchia-se de cor e do
perfume das árvores de fruto, das roseiras sempre em flor. Por entre
a erva verde do coradouro cresciam sininhos brancos, campainhas,
dálias farfalhudas, lírios e gladíolos, numa caótica sinfonia de
tonalidades que atraíam as abelhas peludas, com riscas amarelas, e
diáfanas borboletas. Encarrapitado na ameixoeira, repleta de
florinhas brancas, o melro inclinava a cabecinha preta, e, como seu pai
e seu avô, olhava o Gato com desconfiança. Existia entre eles um
acordo tácito. O Gato não incomodava o melro porque o achava um
símbolo, um adorno esteticamente interessante. Representava a
segurança, a certeza que sustentava o caos, a mudança. Enquanto o
melro visitasse o quintal, o Gato poderia viver a sua existência plácida
de observador diletante do rodopiar do mundo. As outras
personagens que vinham por breves instantes ocupar aquele lugar
idílico não prendiam a atenção do Gato. Chegavam crianças, de fitas e
aventais coloridos, chilreavam entre as flores, cortando com os dedos
finos pétalas que eram o alimento predilecto das bonecas de pano.
Voltavam adultas, de olhos pesados, mãos baças que cortavam as
flores com pé alto para enfeitar jarras de vidro. Por fim apareciam,
uma última vez, arrastando os pés entorpecidos, à procura do sol que
lhe prolongasse o calor que lhes fugia do corpo frio. O cabelo branco
confundia-se com as aleluias, mas os rostos estavam secos e murchos
como as folhas castanhas, engelhadas. O vento do Inverno derrubava-
as como às folhas e levava-as para bem longe da casa do Melro. E o
Gato sempre atento às nuances da via, aos cambiantes do ser.
Epicurista por natureza e niilista por opção, o Gato tinha ainda um
espírito de apimentado humor que o deixava sempre bem. Foi por isso
que o fenómeno da Velha não o deixou particularmente abalado. A
Velha nascera, há muito tempo na casa do Muro. Crescera como muitas
outras antes dela e definhara, até ser a mais velha de todos os velhos
do mundo. Mas não desaparecia, não havia vento que a arrastasse.
Para além da casa e dos objectos que resistiam ao tempo tudo se
transformara em pó: a família, os amigos, os vizinhos, o bairro, o lugar
que depois foi Vila que se tornou cidade; o ciclo perfeito do tempo que
fazia as estações encadearem-se e o melro surgir todas as Primaveras
do túnel quebrara-se naquele pedaço de vida esquecido. Esquecida
pela morte, esquecida pelo tempo, esquecida da memória dela mesmo
que não sabia quem era. Um dia a velha estranhou a sua existência;
espantou-se com o facto de estar viva, pois nada à sua volta era
familiar e, ao mesmo tempo, tudo era o mesmo. Enfrentava então o seu
terrível destino. Recordava uma história antiga, que lera num livro, ou
talvez que alguém lhe contara num dia esquecido. Matusalém era o
nome de um homem abençoado pela vida eterna. História estúpida,
resmungava a velha, entediada e farta dos dias que se seguiam, sempre
iguais, cada vez mais vazios, cada vez mais sós. A eternidade era o
maior pesadelo. Deus era eterno. Um eterno castigo. Por isso criara o
mundo?! Quisera ocupar o ócio e o enfado com a Criação. E fizera a
luz, as estrelas, os bichos todos, todo o ranho e toda a peçonha. E que
tinha ela com isso, ela que suportava uma mente disforme num corpo
usado, arrastando-se por um mundo feio e podre?! Deus reclamara
descanso ao fim de sete dias e refugiara-se algures num limbo de
completa indiferença perante a obra produzida; mas ela continuava ali,
enfiada até aos cabelos ralos, na náusea de estar viva. Chegara ao
extremo do fastio, ao limite da repugnância por si mesma quando
descobriu o Gato. Conseguiram um acordo. O Gato, verdadeiro senhor
da casa do Muro adoptou a Velha como companhia. A Velha agradava
ao Gato, pois era mais um enigma a resolver; e o Gato atenuava a
penitência da Velha, com o seu discurso acutilante e desafiador. E era
também o único que conhecia o seu segredo e partilhava o seu destino.
Tal como ela o Gato existia. Não tinha passado, não tinha futuro. Só
um infinito presente. Mas o Gato era sempre assim; um Gato. Nem velho
nem novo; sem memória; sem sentimentos de enfado; sem consciência
de vazio. Era, simplesmente. Gostava das sombras, gostava da noite,
porque gostava da aventura, do mistério, do risco. Gostava do dia, do
calor do sol, dos sonos preguiçosos, porque gostava de sentir, de
estar vivo. À Velha, ao contrário, restava-lhe o sombrio aconchego das
sombras e da noite. À noite, na escuridão, a miséria escondia-se e o
cheiro nauseabundo diminuía. A noite trazia o sono, o esquecimento
e a esperança traída do nada. O dia era penoso; trazia-lhe a raivosa
certeza de continuar, de ver tudo repetir-se. Um Gato era um Gato. São
todos iguais, e ninguém repara se ele continua anos e anos a fio no
mesmo lugar. Mas uma Velha é um prenúncio de morte. Espera-se que
desapareça breve. Por isso o seu fardo levava-a a uma condenação
malvada. Ela que odiava o mundo, tinha de mergulhar nele, perder-se,
ciclicamente, desaparecer, até que os que a conheciam se tivessem
tornado pó. A cada geração, a velha abandonava a casa do Muro.
Como uma cobra precisava de voltar com nova pele. Partia estrada
fora dormindo nos becos, nos vãos de escada, acompanhando a
escória do mundo, o refugo de uma Criação egoísta, feita à pressa, no
último dia de uma semana aziaga. No início, as vidas perdidas, os
males tenebrosos, o sofrimento imenso e constante das criaturas,
incomodavam-na, enfureciam-na. Sentia-se visitante forçada num
museu de horrores; cada sala mais violenta, mais sádica, mais
inumana. Mas o sofrimento tornou-se tão comum, tão banal, que a
velha deixou simplesmente de sentir e passou a olhar como quem
folheia uma revista desactualizada. Estar na rua à distância de um
sopro de um corpo moribundo, de uma criança com fome, ou estar em
casa, enroscada no sofá, olhando o espelho, revendo pedaços do
passado, visitando o presente dos Homens, era o mesmo que assistir
a um filme que já se conhece o final. Quando, nas noites abafadas de
Verão se deitava nas bermas das auto-estradas, ouvindo os carros
assobiar como serpentes raivosas, ficava a olhar o céu, cada vez
menos ponteado de estrelas e pensava em Deus. Estaria como ela
deitado a olhar coisa nenhuma? Estaria tão vazio de ser, Ele que
olhava a terra desde que a criara? Que tédio profundo, denso,
divinamente absurdo era ser Eterno. Não admira que a humanidade se
odiasse desde Abel e Caim; que a loucura fosse a essência do ser e as
atrocidades se repetissem com regularidade matemática. Que mais
poderiam fazer os Homens para animar o espírito de Deus? Ao fim de
uma eternidade não existia pecado que fizesse estremecer o sobrolho
de Divino.
Cada vez se tornavam mais penosas as excursões da Velha pelo
mundo e quando voltava à casa do Muro o Gato via-a chegar ainda
mais seca e mais amarga. Espreguiçou-se e desceu do telhado. O
barulho dos cacos e o praguejar roufenho disseram-lhe que eram
horas de dar, uma vez mais, as boas-vindas à Velha.

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Alínea ii o reencontro

  • 1. II – O REENCONTRO Foi o espelho que lhe mostrou. A velha estava de volta. Depois de um longo exílio forçado, coabitando de perto com o ranho, as lágrimas, os excrementos e o lodo da humanidade, regressava ao covil. O Gato deu- lhe algum tempo para que recuperasse forças. A velha precisava de sacudir o nojo que lhe embrulhava as entranhas mumificadas. Afastou os olhos da superfície espelhada que lhe trazia as imagens do mundo louco dos homens, esticou o corpo elástico e macio, enterrando as garras no tapete puído, e, de um salto saiu de casa e subiu, lesto, pelas colunas do alpendre inclinado que ensombrava a porta da cozinha. O ar parado da tarde exalava um perfume doce às amoras bravias que cresciam a esmo pelo jardim. Silencioso, trepou telhado acima, evitando as telhas soltas, como se estivesse num jogo de xadrez. Foi- se encarrapitar na chaminé da lareira, negra, atarracada, que lhe dava da rua uma perspectiva soberba. Os retalhos de verde entretelavam com brancos e beijes, enfeitados de tijolo. Dali, o bairro parecia uma plantação de cogumelos, daqueles enormes, das histórias infantis. O céu, quase tão azul como os olhos do Gato, envolvia tudo como uma cúpula, sem mácula de nuvem. Só uma brisazinha ténue fazia estremecer os bigodes compridos. Satisfeito, O Gato semicerrou os olhos brilhantes e ficou à espera. Um escaqueirar de louças espantou os pardais que descansavam nos fios. Pela janela da cozinha voaram caixas escanzeladas de cartão, revistas, panos, tudo coberto de pó e teias de aranha. ‘Gato estúpido’, gritava a velha, arfando, atrapalhada, no meio de tantos trastes. A cozinha era um pandemónio de tralhas e velharias espalhadas por todo o lado. A louça suja acumulava-se em cima dos móveis. Restos bolorentos de um qualquer repasto eram palco de verdadeiras colónias de vida microscópica. Resmungando, a velha, figura desgrenhada e disforme, arrastava-se pelo meio do caos, mal- humorada, empurrando tudo aos pontapés. ‘Tralha, só tralha’, rosnava, enquanto aconchegava as mãos no quente da caneca de chá perfumado.
  • 2. ‘Tanto tempo perdido a juntar tralha que não serve para nada’. Em pequenos goles, o líquido reconfortante inundou o corpo alquebrado pelos anos e pelo mau-humor, acalmando a fúria. Deixou- se ficar, meio encostada ao balcão da cozinha, olhando o monte de cacarecos que se espalhavam pelo chão. A velha não cultivava a memória, nem acarinhava as lembranças do passado como quem acaricia os cabelos macios de um filho querido. O peito seco não emitia suspiros. Construíra um muro tão alto e tão denso como o que rodeava a casa. Os objectos não lhe diziam nada, eram tralha; só os mantinha porque livrar-se deles implicaria expor-se ao mundo mais do que o estritamente necessário. As suas incursões para fora da muralha protectora destinavam-se exclusivamente a manter alguns caprichos que o velho corpo ainda exigia. Comer, comia pouco; nem sequer para sobreviver. Aprendera que a sua vida dependia de outra vontade que não a sua. Gostava era de alguma extravagância; sabores que disfarçassem o gosto nauseante da humanidade. Mas sair para comprar era um suplício. Expor-se ao olhar dos outros doía-lhe na carne, incomodava-a. A passagem dos anos, porém, facilitou-lhe a tarefa. A mercearia do bairro deu lugar a espaços cada vez mais frios e impessoais. Tornou-se mais fácil passar despercebida. No início as mulheres com as gigas à cabeça, apregoando de porta em porta, frangos vivos, couves, feijão verde, coelho; a sardinha que chegava do mar trazida por peixeiras peludas e de língua destravada. Essas eram perigosas, atentas, atrevidas. Olhavam-na com os seus olhinhos cheios de estupidez curiosa, e foçavam para ver o que se escondia atrás do portão de ferro. A mercearia fétida, com o homenzinho corcunda e zarolho que pesava o açúcar amarelo em saquinhos plásticos, fechando-os com a chama corrida de uma vela ao longo de uma faca enegrecida, levou-as para longe. Chegou depois a mercearia fina que vendia iogurtes, frutas tropicais e queijo da serra que escorregava montra abaixo, untuoso, e o velho ‘troca-o-olho’ morreu de apoplexia, caído entre sacos de arroz e rateiras. Seguiu-se o mini- mercado, portas meias como o pão quente e o cabeleireiro unissexo e a loja de pechisbeque importado. Até que, finalmente, alguém teve a brilhante ideia de enfiar todos os negócios e lojinhas em grandes armazéns de vidro acrílico, concepções de arquitectura berrante e luz
  • 3. baça, como micróbios encerrados numa preparação virulenta e pegajosa de um laboratório dantesco. Mas aquele espaço vazio, frio, apesar do ar condicionado, das plantas sempre verdes, sempre saudáveis, porque as velhas, as doentes eram rapidamente substituídas de deitadas no lixo, agradava à velha, servia os seus intentos. É que ela temia ser reconhecida por alguém, alguém que se lembrasse, que reflectisse perante a estranheza da sua permanência no mundo. Se os velhos não fossem, também eles lançados para o lixo, ou para depósitos, arrecadações onde ficam a acumular lembranças, coisas que já não servem, a sua vida estaria mais dificultada. Tempos houvera onde cruzar as ruas do bairro fora um risco. Os velhos cultivam com especial prazer a memória e podiam recordar-se da sua figura, ou das histórias que os pais e avós lhes contavam. Mas essa qualidade de velhos desaparecera; os novos velhos não tinham memória, era-lhes amputada pela voragem dos dias. Por necessidade de sobrevivência muitos acompanhavam, a passos saltitantes, as novidades. Os que não tinham capacidade para fingir de jovens viviam em gavetas à espera da morte. Por isso era mais simples passear pelas ruas cheias de corpos e vazias de gente. Transformadas em corredores asfaltados, assépticos, solitários, limpos de resíduos de memória, repletas de formigas tontas e infelizes. Dava-lhe até algum prazer olhar as figuras cada vez mais esquálidas e tristonhas daqueles seres apertadas em farrapos desconfortáveis. Agradava-lhe os olhares de repulsa que lhe lançavam. Ela era a velha, mesmo velha. Não a velhinha simpática, fresca e rosada da publicidade. Era feia, decrépita, nauseabunda. E na rua ela era o Espelho, o Espelho que ninguém gostava de enfrentar. Os homens perdidos, de olhar cansado e impaciente, as crianças vazias de tanto querer o que não queriam, as mulheres de olhar devorador, procurando o que não podiam ter; Espaços de plástico repletos de famílias de cartolina, figurinhas recortadas em trapos coloridos, voavam pelos corredores e avenidas, como abelhas entontecidas pelo cheiro do fumo. Mas ninguém via o fogo, ninguém notava a velha, grotesca, curvada, que resmungava impropérios, agastada com tanta porcaria. Arrastando os pés e o nojo atrás de si, voltava à sua toca, lançando olhares de desdém aos jardins milimetricamente organizados, às piscinas; cuspindo aos cães com
  • 4. pedigree que assomavam aos portões de controlo remoto, excitados pelo seu fedor. O caminho até a casa tornava-se longo para os pés duros e achatados de tanto caminhar. Para diminuir o fardo, e não porque a movesse algum sentimento nostálgico, a velha distraía-se, fazendo passar no filme da mente, imagens de outro bairro. O bairro de um dos muitos passados. Pisava então um chão irregular, coberto de lajes prateadas, entremeadas de ervas bravias; sentia o odor das vinhas que davam sombra ao mosaico de quintais que compunham um padrão irregular de formas e cores, misturado com o fedor dos montes de estrume. Ao empurrar o portão ferrugento ainda pode avistar os burros carregados que desciam a ladeira até ao rio. O som impaciente de uma buzina apagou a imagem de tons sépia e a velha encostou-se à chapa quente pelo sol, para poder ver sem ser vista. Do outro lado da rua, do fundo do jardim, imaculado, corria a jovem empregada fardada, agitando as sapatilhas cor-de-rosa. Mãos impacientes lançaram-nas para dentro do carro que arrancou num guinchar histérico. Muitos anos atrás, mesmo há muito tempo, aquele jardim elegante era um buraco pestilento, onde chafurdavam ratazanas e as varejeiras faziam banquetes de porcaria. Ali desaguava a imundice das ilhas que nasciam em volta como cogumelos venenosos, infectos de vida, misturada com o sangue dos frangos e cabritos que eram mortos no talho. Os miúdos, sujos, ranhosos, com pés descalços e joelhos cobertos de crostas de ferida, brincavam com as patas e cabeças dos bichos mortos. Às vezes uma galinha degolada escapava-se pela cancela do barracão, matadouro improvisado, e corria às cegas pelo meio da canalha, excitada e em grande berraria, com a cabeça pendendo de lado e o sangue a borbulhar do buraco negro do pescoço. Mais tarde substituíram a cancela por um portão que não deixava os bichos vivos, ou quase, escaparem para a rua. Mas o sangue e as penas continuaram a correr rua abaixo durante muito tempo. A velha ainda o conseguia ver debaixo do carro que se apressava a virar a esquina. ´ Vai, minha menina, vai depressa, não te sujes, não te atrases, vai dançar em pontas que isto é um grande palco! – chisparam os olhos da velha em centelhas de rancoroso brilho.
  • 5. ‘Que grande fantochada!’ Apressava-se a fechar o portão rabugento e vagaroso como ela, para deixar para trás o mundo que lhe metia nojo. Estava cansada de ver a mesma peça de actores canastrões e patéticos, que a enfastiavam infinitamente, apesar da mudança de cenário. Antes mulheres magras de fome e pancada, homens queimados pelo vinho, pelo frio e pelo estio, crianças piolhosas que roíam as cascas de fruta e as côdeas de pão bolorento da lixeira; agora tudo gente de plástico, dores de plástico, risos de plástico. Mas era tudo o mesmo, bocados de merda à espera de ser estrume. E o pior de tudo era sentir o cheiro. O cheiro que se lhe agarrava à pele e não a deixava em paz. Estava enterrada na lama do mundo e não podia escapar-lhe. Nos momentos mais dolorosos ansiara pela liberdade da loucura e não aquela cortante consciência que lhe verrumava o cérebro. Que bom seria se fosse idiota, incapaz de ver com aquela lucidez insuportável o que era a vida. Estava no mundo, não por vontade, mas por imposição. Tentara vezes sem conta por fim a uma existência para que não encontrava sentido. Tinha, algures, entre as linhas sujas e fundas da pele dos pulsos secos, as marcas de uma vontade que nunca se cumprira. A morte negava- se-lhe de todas as vezes. Desesperou, uivou, quis fugir para longe de si mesma; daquele ser que era e não queria ser mais; que não quisera ser nunca. Mas a morte não a queria. Só a vida a recebia; e gastava- lhe a carne e os ossos ao limite; sugava-lhe as emoções, os sonhos, os afectos. O que vivia era uma carcaça, seca, dura, sem seiva, sem alma. Agora, se a morte viesse, os vermes da terra não teriam muito para se alimentarem. Deu uma risada seca que ecoou grotesca no silêncio da tarde. ‘Pobres bichos! Já há muito que tinham morrido de fome, à espera.’ Pousou o saco no balcão sebento e tratou de preparar o chá doce e perfumado, um dos poucos prazeres a que o corpo gasto se abandonava. Enquanto esperava que a água fervesse sentou-se na mesa desarrumada com a caneca entre as mãos. As veias grossas desenhavam troncos roxos de árvores sem folhas, sem seiva. Desviou os olhos doridos de tanto olhar a fealdade e podridão do mundo. A estranha maldição que a prendia à vida, agudizava-lhe os sentidos, a
  • 6. um extremo insuportável. Via para lá do tempo e do espaço; para lá da cor, da luz e da forma. Era uma visão crua, terrífica. Via o caos, as trevas, o nada que se escondia na aparência das coisas belas. Para ela não havia véus. Como odiava os discursos que clamavam pela verdade escondida por detrás das aparências! A verdade era atroz e era uma banalidade. A verdade era Deus! Riu-se, numa gargalhada cavernosa, a boca escancarou-se em absoluto escárnio. A verdade era ela, nua, podre, crua. Era a versão terrena do divino; eterna e desumana. Num único ponto condensava nascimento e morte; criação e esquecimento. O tudo, o todo, era coisa nenhuma. Ou como gostava de filosofar o Gato, a eternidade reduzia a realidade à sua insignificância. Não era, pois estranho que Deus se revelasse um monstro de indiferença. Não era, pois, de admirar que ela, a Velha, se estivesse borrifando para as desgraças e misérias das pulgas humanas que infectavam o mundo. Há tanto tempo, mas há tanto que já nem sabia dizer quanto tempo fora, presenciava o ciclo demente de gente que ia e que vinha; que empurrava, clamava, rugia; que se multiplicava como pragas, insistentemente, apesar dos tormentos, dos lamentos. ‘Que fantochada!’ Filomena Pereira
  • 7. Ao Gato, pelo contrário, agradava-lhe a paisagem e o ofício de observador independente. Como a velha já não tinha tempo; estava presente naquele lugar desde sempre; mas igual ao que fora e ao que seria. Gato sem tempo, sem passado, sem futuro, Gato sempre Gato, sempre igual. Apreciava com exigência de esteta, o cheiro das estações em trânsito constante; deleitava-se com os cambiantes subtis da Natureza, das tonalidades; regozijava com a capacidade de regeneração infinita do mundo sobre os homens. As casas abandonadas, os baldios ermos entre prédios em construção; as fendas de cimento, dominadas pelo verde luxuriante, as lixeiras; tudo tinha particular encanto. Apaixonava-se pelas sombras criadas no muro pelos ramos do salgueiro, pela frescura do musgo que crescia sob o fontanário, pela fresta de céu ora azul, ora prata, ora branco- neve, que se descobria ao espreitar entre as tábuas carcomidas do barracão velho. Mas o seu lugar de sonho no bairro fora e seria sempre a Casa do Melro. Chamava-lhe assim porque todos os anos, um melro jovem saía do túnel e fazia do quintal da casa o seu palácio. Rodeada por um muro coberto de trepadeiras floridas, arbustos de hortênsias, era o paraíso da passarada. E do Gato também. Na Primavera enchia-se de cor e do perfume das árvores de fruto, das roseiras sempre em flor. Por entre a erva verde do coradouro cresciam sininhos brancos, campainhas, dálias farfalhudas, lírios e gladíolos, numa caótica sinfonia de tonalidades que atraíam as abelhas peludas, com riscas amarelas, e diáfanas borboletas. Encarrapitado na ameixoeira, repleta de
  • 8. florinhas brancas, o melro inclinava a cabecinha preta, e, como seu pai e seu avô, olhava o Gato com desconfiança. Existia entre eles um acordo tácito. O Gato não incomodava o melro porque o achava um símbolo, um adorno esteticamente interessante. Representava a segurança, a certeza que sustentava o caos, a mudança. Enquanto o melro visitasse o quintal, o Gato poderia viver a sua existência plácida de observador diletante do rodopiar do mundo. As outras personagens que vinham por breves instantes ocupar aquele lugar idílico não prendiam a atenção do Gato. Chegavam crianças, de fitas e aventais coloridos, chilreavam entre as flores, cortando com os dedos finos pétalas que eram o alimento predilecto das bonecas de pano. Voltavam adultas, de olhos pesados, mãos baças que cortavam as flores com pé alto para enfeitar jarras de vidro. Por fim apareciam, uma última vez, arrastando os pés entorpecidos, à procura do sol que lhe prolongasse o calor que lhes fugia do corpo frio. O cabelo branco confundia-se com as aleluias, mas os rostos estavam secos e murchos como as folhas castanhas, engelhadas. O vento do Inverno derrubava- as como às folhas e levava-as para bem longe da casa do Melro. E o Gato sempre atento às nuances da via, aos cambiantes do ser. Epicurista por natureza e niilista por opção, o Gato tinha ainda um espírito de apimentado humor que o deixava sempre bem. Foi por isso que o fenómeno da Velha não o deixou particularmente abalado. A Velha nascera, há muito tempo na casa do Muro. Crescera como muitas outras antes dela e definhara, até ser a mais velha de todos os velhos do mundo. Mas não desaparecia, não havia vento que a arrastasse. Para além da casa e dos objectos que resistiam ao tempo tudo se transformara em pó: a família, os amigos, os vizinhos, o bairro, o lugar que depois foi Vila que se tornou cidade; o ciclo perfeito do tempo que fazia as estações encadearem-se e o melro surgir todas as Primaveras do túnel quebrara-se naquele pedaço de vida esquecido. Esquecida pela morte, esquecida pelo tempo, esquecida da memória dela mesmo que não sabia quem era. Um dia a velha estranhou a sua existência; espantou-se com o facto de estar viva, pois nada à sua volta era familiar e, ao mesmo tempo, tudo era o mesmo. Enfrentava então o seu terrível destino. Recordava uma história antiga, que lera num livro, ou talvez que alguém lhe contara num dia esquecido. Matusalém era o nome de um homem abençoado pela vida eterna. História estúpida,
  • 9. resmungava a velha, entediada e farta dos dias que se seguiam, sempre iguais, cada vez mais vazios, cada vez mais sós. A eternidade era o maior pesadelo. Deus era eterno. Um eterno castigo. Por isso criara o mundo?! Quisera ocupar o ócio e o enfado com a Criação. E fizera a luz, as estrelas, os bichos todos, todo o ranho e toda a peçonha. E que tinha ela com isso, ela que suportava uma mente disforme num corpo usado, arrastando-se por um mundo feio e podre?! Deus reclamara descanso ao fim de sete dias e refugiara-se algures num limbo de completa indiferença perante a obra produzida; mas ela continuava ali, enfiada até aos cabelos ralos, na náusea de estar viva. Chegara ao extremo do fastio, ao limite da repugnância por si mesma quando descobriu o Gato. Conseguiram um acordo. O Gato, verdadeiro senhor da casa do Muro adoptou a Velha como companhia. A Velha agradava ao Gato, pois era mais um enigma a resolver; e o Gato atenuava a penitência da Velha, com o seu discurso acutilante e desafiador. E era também o único que conhecia o seu segredo e partilhava o seu destino. Tal como ela o Gato existia. Não tinha passado, não tinha futuro. Só um infinito presente. Mas o Gato era sempre assim; um Gato. Nem velho nem novo; sem memória; sem sentimentos de enfado; sem consciência de vazio. Era, simplesmente. Gostava das sombras, gostava da noite, porque gostava da aventura, do mistério, do risco. Gostava do dia, do calor do sol, dos sonos preguiçosos, porque gostava de sentir, de estar vivo. À Velha, ao contrário, restava-lhe o sombrio aconchego das sombras e da noite. À noite, na escuridão, a miséria escondia-se e o cheiro nauseabundo diminuía. A noite trazia o sono, o esquecimento e a esperança traída do nada. O dia era penoso; trazia-lhe a raivosa certeza de continuar, de ver tudo repetir-se. Um Gato era um Gato. São todos iguais, e ninguém repara se ele continua anos e anos a fio no mesmo lugar. Mas uma Velha é um prenúncio de morte. Espera-se que desapareça breve. Por isso o seu fardo levava-a a uma condenação malvada. Ela que odiava o mundo, tinha de mergulhar nele, perder-se, ciclicamente, desaparecer, até que os que a conheciam se tivessem tornado pó. A cada geração, a velha abandonava a casa do Muro. Como uma cobra precisava de voltar com nova pele. Partia estrada fora dormindo nos becos, nos vãos de escada, acompanhando a escória do mundo, o refugo de uma Criação egoísta, feita à pressa, no último dia de uma semana aziaga. No início, as vidas perdidas, os
  • 10. males tenebrosos, o sofrimento imenso e constante das criaturas, incomodavam-na, enfureciam-na. Sentia-se visitante forçada num museu de horrores; cada sala mais violenta, mais sádica, mais inumana. Mas o sofrimento tornou-se tão comum, tão banal, que a velha deixou simplesmente de sentir e passou a olhar como quem folheia uma revista desactualizada. Estar na rua à distância de um sopro de um corpo moribundo, de uma criança com fome, ou estar em casa, enroscada no sofá, olhando o espelho, revendo pedaços do passado, visitando o presente dos Homens, era o mesmo que assistir a um filme que já se conhece o final. Quando, nas noites abafadas de Verão se deitava nas bermas das auto-estradas, ouvindo os carros assobiar como serpentes raivosas, ficava a olhar o céu, cada vez menos ponteado de estrelas e pensava em Deus. Estaria como ela deitado a olhar coisa nenhuma? Estaria tão vazio de ser, Ele que olhava a terra desde que a criara? Que tédio profundo, denso, divinamente absurdo era ser Eterno. Não admira que a humanidade se odiasse desde Abel e Caim; que a loucura fosse a essência do ser e as atrocidades se repetissem com regularidade matemática. Que mais poderiam fazer os Homens para animar o espírito de Deus? Ao fim de uma eternidade não existia pecado que fizesse estremecer o sobrolho de Divino. Cada vez se tornavam mais penosas as excursões da Velha pelo mundo e quando voltava à casa do Muro o Gato via-a chegar ainda mais seca e mais amarga. Espreguiçou-se e desceu do telhado. O barulho dos cacos e o praguejar roufenho disseram-lhe que eram horas de dar, uma vez mais, as boas-vindas à Velha.