Rebeliao de classe media_precariedade de movimentos sociais
Opinião 4 sociologia da greve, 2010
1. Sociologia da greve: a propósito da Greve Geral
In jornal Público Online, 24/11/2010
Elísio Estanque
Centro de Estudos Sociais/
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
A palavra “greve”, de origem francesa, significava originalmente “terreno
plano nas margens de um rio repleto de areia ou cascalho”, mas, segundo
outras fontes, foi também o nome de um arbusto que abundava junto ao rio
Sena em Paris. Embora sob essas origens etimológicas (porventura ambas), a
noção foi popularizada a partir do século XIX, por se ter tornado o nome de
uma praça localizada nesse local (Place de la Grève, que depois mudou de
nome para Place Hotel de Ville), na qual se reuniam os operários em busca de
actividade, e onde os empregadores os recrutavam enquanto braços para a
jornada de trabalho. Era, portanto, um local de “paragem”, de “espera”, quando
não se tinha trabalho. Daí que a noção se tenha tornado sinónimo de “estar
parado, sem trabalhar”.
Reflectir sobre a greve e as suas origens é procurar compreender a
natureza complexa e conflitual da sociedade moderna. Mesmo antes da
institucionalização da democracia, o conflito, as contradições e as
desigualdades já desde o século XVIII se vinham revelando como traços
característicos do capitalismo emergente na Europa. A revolução das ideias foi
sempre indissociável das revoluções sociais.
A França e a Inglaterra dos séculos XVIII e XIX foram o berço da
modernidade e ao mesmo tempo das duas classes antagónicas. O mercado de
trabalho livre, a livre circulação do capital e as condições de acumulação
(propriedade privada) estabeleceram entre si a relação antagónica – capital/
trabalho – sem a qual a riqueza e o crescimento económico seriam
impossíveis.
A greve, tal como as revoltas populares em geral, não nasceu com a
sociedade industrial, havendo quem situe a primeira no Antigo Egipto (cerca de
1200 anos a. C.). Mas, na era moderna, o movimento “Ludista”, de início do
século XIX, em Inglaterra, os movimentos pelo direito de voto (1832) e pelas 8
horas de jornada de trabalho foram, sem dúvida, etapas decisivas no processo
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de construção da democracia contemporânea. Na nação mais industrializada
do Ocidente, a trilogia greve-luta-sindicalismo exprime os três vértices
indissociáveis do movimento operário, gerado pelas duras condições de
trabalho impostas pelo capitalismo selvagem a milhões de trabalhadores que,
no desespero, decidiam resistir a tão flagrante exploração, parando o trabalho
até obterem alguma concessão favorável à sua dignidade humana ou (não
poucas vezes) até que a violência policial e o despedimento pusessem fim ao
conflito.
Por toda a Europa da segunda metade do século XIX, houve
paralisações de carácter grevista, cujo ponto culminante terá sido a experiência
da Comuna de Paris de 1871. A luta pelas 8 horas de trabalho – em França,
como em Inglaterra e nos EUA – foi um dos motivos mais fortes de
mobilização. O próprio 1º de Maio tem a sua origem em acções grevistas em
torno das 8 horas de jornada, ocorridas no ano de 1886, envolvendo violência,
prisão e até enforcamentos, o que motivou, três anos depois, a consagração
desse dia como Dia Mundial do Trabalhador. A greve de 12 de Fevereiro de
1934, em França, contra o avanço do fascismo e a greve geral que conseguiu
o direito a férias pagas (1936) constituem marcos importantes.
Em Portugal, a greve dos operários de fundição e serralharia (1849), é
considerada a primeira greve industrial, mas nas décadas seguintes, até à I
República, houve paralisações dos trabalhadores tabaqueiros, das marinhas e
arrozais, mineiros, caminhos de ferro, chapeleiros ou operários da construção
civil, entre outras. Também em Portugal, as últimas décadas do século XIX
foram muito férteis no surgimento de ideologias políticas ligadas ao mundo
operário, tais como o mutualismo e o republicanismo, mas também as novas
correntes socialista, anarquista e comunista, que injectaram grande fulgor e
significado político ao movimento operário.
Entre 1871 e 1900, José M. Tengarrinha identificou 725 greves (das
quais 37 gerais), dispersas sobretudo pelos núcleos industriais de Lisboa,
Porto e Setúbal. As principais motivações desse surto grevista foram aumentos
salariais (42%), horário de trabalho (16,2%), condições de trabalho (15,4%),
greves de solidariedade (9,6%), e contra os impostos (8,3%). Entre 1907 e
1920, no clima agitado da República, registaram-se 3068 greves, facto que não
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podemos desligar da legalização da greve pelo novo regime, logo em 1910
(Tengarrinha, Análise Social, vol XVII, 67-68, 1981).
O moderno sindicalismo português nasceu nesse período,
nomeadamente com a criação da Federação Socialista Livre (em 1902), com
estruturas em diversas cidades (Lisboa, Almada, Setúbal, Algarve, Covilhã,
Funchal, entre outras), e diversas estruturas da Federação Anarquista (na
Região do Norte, em Coimbra e no Algarve), que existiu apenas no período
1911-1914), e notoriamente sob influência dessas ideologias, com destaque
para o “anarco-sindicalismo”, cuja hegemonia culminou com a fundação da
Confederação Geral do Trabalho (CGT), em 1919.
Mas, se a queda da monarquia, suscitou o despertar da “sociedade civil”
e do sindicalismo autónomo em Portugal, este foi, como sabemos,
violentamente interrompido pela ditadura salazarista e o Estado Novo. Entre
1926 e 1974 as greves foram proibidas e o movimento sindical fortemente
reprimido e substituído por sindicatos corporativos, dominados pelo regime.
Ainda assim, importa assinalar a luta operária da Marinha Grande, em 1934,
que fez tremer a ditadura de Salazar, além de diversas greves no início dos
anos quarenta (sob influência do PCP), no contexto de crise e de fome
agravadas pelo contexto da II Guerra Mundial. Só em 1970 seria fundada a
Intersindical (actual CGTP), que se manteve na clandestinidade até ao 25 de
Abril.
As grandes viragens da história, os períodos de mudança paradigmática
como o Maio de 68 em França ou o período do pós-25 de Abril em Portugal,
foram sempre dinamizados por movimentos sociais de grande impacto. Mas,
isso só sucedeu porque as instituições e o sistema político souberam
incorporar as principais mensagens inscritas na plasticidade desses
movimentos e adaptar-se em função disso.
Nas actuais sociedades democráticas, onde o conflito é a contraparte do
diálogo, pode dizer-se que as greves cumprem algumas funções manifestas
(por exemplo, a melhoria das condições de trabalho) e outras que se podem
designar funções latentes (por exemplo, estimular reformas sociais). Se a
greve é a continuação da negociação por outros meios, ela ganha significados
distintos consoante reflicta um momento pontual de ruptura num processo
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negocial mais vasto, ou um bloqueio definitivo nos canais de comunicação
entre as partes.
A controvérsia em torno da “eficácia” ou do carácter “inócuo” da greve –
desta Greve Geral – não ficará resolvida no dia seguinte. E o seu impacto
mede-se não apenas pelos números da adesão (sempre polémicos) mas pela
capacidade de compreendermos as suas causas sociológicas mais profundas
e os seus efeitos sociais e políticos no médio prazo.