O documento discute o diagnóstico e tratamento da leptospirose no Brasil. Um novo teste rápido para diagnóstico da doença foi desenvolvido e está em fase de testes clínicos. Se validado, o teste poderá estar disponível no Ministério da Saúde em 2010 e ajudar a reduzir subdiagnósticos e óbitos relacionados à leptospirose.
1. Prática clínica
Leptospirose
Subdiagnóstico
aumenta o risco
Teste rápido para o
diagnóstico da leptospirose
passa do laboratório para
a fase de ensaios clínicos.
Pesquisadores preveem que
o kit esteja à disposição
do Ministério da Saúde
no ano de 2010 e possa
reduzir significativamente
os óbitos relacionados
à doença no País
Por Cristiana Bravo
Mastrangelo Reino/CAIXAPRETA
22 PESQUISA MÉDICA | No 12 | Out/Dez 2009
2. Prática clínica
O
prefeito de Blumenau, João Paulo Kleinü- A exposição
bing, foi uma das 847 pessoas que con- ambiental de
traíram leptospirose após o período de risco deve ser
chuvas que atingiu o estado de Santa Catarina no verificada:
fim de 2008. Ele foi acometido pela doença pro- inclui contato
desprotegido
vavelmente quando visitava áreas afetadas pela
com água de
chuva. Consciente do risco de infecção pela lep- alagamento,
tospira nas áreas inundadas, o prefeito procurou esgoto e lixo,
auxílio médico ao apresentar febre e dores no cor- uma a duas
po. Com o tratamento, recuperou-se rapidamen- semanas antes
te e não foi necessário que se afastasse do cargo. do início dos
Infelizmente, a maioria das pessoas que são sintomas
infectadas pela leptospirose no Brasil não está
ciente dos sintomas e dos fatores de risco, como
o prefeito de Blumenau, e muitas acabam mor-
rendo após contraí-la.
“A real incidência das formas leves da lep-
tospirose no País é desconhecida por causa do
subdiagnóstico”, afirma o Dr. Guilherme de
Sousa Ribeiro, pesquisador do Centro de Pes-
quisa Gonçalo Moniz (CPqGM), da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), da Bahia. “A letalidade
das formas graves é de cerca de 15%, mas os pa-
cientes que desenvolvem hemorragia pulmonar
maciça apresentam uma letalidade maior que
50%”, afirma ele.
Segundo o Dr. Guilherme, o subdiagnóstico
da doença se deve às características inespecífi-
cas em sua fase inicial, com sintomas como fe-
bre, dor de cabeça e dores musculares. Em cerca
de 90% dos casos, esse quadro tem resolução
espontânea e dificilmente é diagnosticado. Os
10% restantes evoluem para formas graves e
podem apresentar icterícia, insuficiência renal e
sangramentos. Na fase tardia do quadro grave
da leptospirose, o diagnóstico diferencial deve
ser feito com a presença de hepatite, colangite,
sepse, pneumonia, tuberculose e malária, mas,
em geral, o diagnóstico clínico da doença grave
é frequentemente mais fácil e o subdiagnóstico
é menor. Ou seja, o desafio para o diagnóstico
correto da leptospirose está na fase precoce da
doença, fundamental para que o tratamento pre-
vina sua evolução.
Chuvas em Santa
Como os exames laboratoriais são demorados, o
Catarina foram histórico do paciente é importante no diagnóstico
responsáveis inicial. A exposição ambiental de risco deve ser
pelo aumento verificada, o que inclui contato desprotegido com
de leptospirose
no estado
água de alagamento, esgoto e lixo, uma a duas
semanas antes do início dos sintomas. O conheci-
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3. Prática clínica
O novo teste mento da época do ano e dos bairros da cidade e da o Dr. Marco Medeiros, da gerência do Labo-
foi desenvolvido região em que a incidência da doença é maior tam- ratório de Tecnologia Recombinante de Bio-
com a união do bém pode auxiliar no esclarecimento do diagnóstico. Manguinhos, da Fiocruz. “Este teste foi desen-
sequenciamento O quadro clínico apresenta algumas características, volvido com a união do sequenciamento genômico
genômico já citadas, como febre alta e de instalação súbita, do gênero Leptospira realizado pela Fiocruz e a
do gênero
dores musculares intensas, sobretudo em panturri- Tecnologia DPP [Dual Path Platform]”, afirma
Leptospira
realizado pela lhas, e pode ocorrer sufusão conjuntival. Contudo, Dr. Marco, “gerando um teste rápido com a sen-
Fiocruz e a “em qualquer quadro inespecífico de febre em um sibilidade maior do que os outros existentes no
Tecnologia DPP período de chuvas, a suspeição para a doença tem mercado, sem prejudicar a especificidade”. Trata-
de ser alta”, alerta Dr. Guilherme. se de um acordo de transferência de tecnologia,
Quanto mais cedo o tratamento com antibióticos feita no início de 2008, com a empresa americana
for iniciado, maior a chance de sucesso terapêutico. Chembio Diagnostics, detentora da patente.
“Entretanto, o consenso atual é de que o tratamen- O teste rápido para leptospirose encontra-se em
to antibiótico deve ser instituído sempre que for fase final de padronização e início dos ensaios clíni-
feito o diagnóstico, independentemente do número cos para avaliação de sua acurácia. “Somente depois
de dias transcorridos com a presença de sintomas”, dessa validação, ele poderá ser registrado na Anvi-
diz o médico. Outras medidas de suporte, como re- sa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] para
posição volêmica, assistência ventilatória e hemo- uso em larga escala na rede de saúde”, explicou o
dinâmica, e diálise devem ser realizadas de acordo especialista. Esse teste proporcionará informações
com a necessidade do paciente. sobre a real magnitude da doença e orientação clí-
nica para o tratamento, diminuindo o número de
Diagnóstico rápido óbitos. A previsão é que o kit diagnóstico esteja à
O padrão-ouro para o diagnóstico de leptospirose disposição do Ministério da Saúde no ano de 2010.
é o teste da microaglutinação e para sua realiza-
ção é mandatório a coleta de soro convalescente. Sobre a doença
Já o resultado da sorologia para leptospirose pelo A leptospirose, doença de notificação compulsória
método ELISA (Enzyme-linked immunosorbent as- nacional, é transmissível naturalmente entre ani-
say) geralmente está disponível dentro de uma mais vertebrados e o homem. O gênero Leptospi-
semana após o envio da amostra de soro. Entre- ra está presente em todo o mundo e tem grande
tanto, se esse soro for coletado antes de o paciente capacidade de sobrevivência, aumentando o risco
manifestar os sintomas por sete dias, o teste pode de infecção de animais e humanos. Das espécies pa-
apresentar-se como falso-negativo, sendo neces- togênicas do gênero Leptospira, a mais importante
sária a repetição do exame sorológico com uma é a L. interrogans, com mais de 200 sorovares (sub-
amostra convalescente. Ou seja, o diagnóstico la- divisões da espécie) identificados. Essas bactérias
boratorial sempre é feito de forma restrospectiva, podem permanecer viáveis em solo úmido ou na
só que, como o tratamento deve ser instituído o água por semanas a meses, mas necessitam de um
mais rápido possível, o diagnóstico clínico acura- hospedeiro animal para manter seu ciclo vital.
do é necessário para instaurar o tratamento pre- Os ratos de esgoto são os principais reservatórios
coce. Fora das áreas endêmicas ou que ocorreram para a leptospirose em meio urbano e seu controle
inundações, no entanto, os médicos frequente- faz parte das estratégias de prevenção da doença.
mente não pensam nessa hipótese diagnóstica. A desratização tem de ser acompanhada de ações
Em busca do teste rápido, a Fiocruz, especial- de urbanização e saneamento para reduzir a oferta
mente o CPqGM, em Salvador, e o Instituto de de água, alimentos e refúgio aos roedores.
Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Mangui- Os animais domésticos, como os cães e gatos, têm
nhos), no Rio de Janeiro, em colaboração com as o potencial de transmitir a leptospirose para huma-
universidades norte-americanas Cornell e da Ca- nos, já que eles podem disseminar leptospiras pela
lifórnia (UCLA), desenvolveram um novo exame. urina quando agudamente doentes ou como porta-
“O teste pode ser feito em ambiente hospitalar e dores sãos, ou seja, durante meses após uma infec-
os resultados são obtidos em 15 minutos”, afirma ção subclínica. Entretanto, as evidências sugerem
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4. Prática clínica
Ciclo de transmissão da doença
A leptospirose é transmissível naturalmente entre os animais vertebrados e o homem
O gênero Leptospira
está presente em
todo o mundo e tem Das espécies
grande capacidade de patogênicas do
sobrevivência, aumentando gênero Leptospira, a
o risco de infecção de mais importante é a
animais e humanos. Os L. interrogans, com
roedores contaminam o mais de 200 sorovares
abrigo de outros animais (subdivisões da
e espalham a doença. A espécie) identificados.
transmissão para humanos Essas bactérias podem
ocorre quando estes permanecer viáveis em
entram em contato com solo úmido ou na água
água, comida ou solo por semanas a meses,
contaminados com urina mas necessitam de um
de animais infectados hospedeiro animal para
manter o seu ciclo vital
Os ratos de esgoto são os principais
reservatórios para a leptospirose em
meio urbano e o seu controle faz
parte das estratégias de prevenção
da doença. A desratização tem
de ser acompanhada de ações
de urbanização e saneamento Os animais domésticos, como os cães e gatos, têm o
para reduzir a oferta de água, potencial de transmitir a leptospirose para humanos,
alimentos e refúgio aos roedores já que eles podem disseminar leptospiras pela urina
quando agudamente doentes ou como portadores sãos,
ou seja, durante meses após uma infecção subclínica
GIZÉ
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6. Prática clínica
que o papel dos animais domésticos na transmissão to para não se expor à leptospirose ou limpar um As evidências
da doença no meio urbano é inexpressivo em com- esgoto para que, nas próximas chuvas, a água não sugerem
paração com os ratos de esgoto. transborde e invada sua casa, a segunda opção é que o papel
que prevalece na maioria dos casos. Isso não di- dos animais
Educação para prevenção minui a importância das intervenções educativas, domésticos na
transmissão
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mas as estratégias mais efetivas para a prevenção da doença no
a leptospirose é uma doença facilmente evitável da doença são as de saneamento básico, como co- meio urbano
e tratável, mas talvez não seja tão fácil assim. “A leta e descarte adequado do lixo, construção de é inexpressivo
educação é uma ação importante para prevenir a sistemas de esgotamento sanitário e de redes de em comparação
leptospirose urbana, mas não é a principal”, afirma drenagem. “A universalização do acesso ao sane- com os ratos
Dr. Guilherme. A educação da população nem sem- amento permitiria prevenir as principais exposi- de esgoto
pre é o suficiente para fazer com que uma pessoa ções de risco para leptospirose e consequentemen-
evite uma exposição de risco. Por exemplo, entre te reduziria significativamente o número de casos
as ações educativas para a prevenção da leptospi- urbanos da doença”, conclui o médico.
rose, está a orientação para evitar o contato com
lixo, com água de alagamento e com água de esgo- Fontes
to ou que se usem luvas e botas quando o contato Dr. Guilherme de Sousa Ribeiro, pesquisador colabo-
não puder ser evitado. Embora essa seja uma reco- rador do Centro de Pesquisa Gonçalo Moniz, da
mendação importante, uma parcela da população Fundação Oswaldo Cruz.
não conseguirá segui-la por mais bem informada Dr. Marco Medeiros, da gerência do Laboratório de
que esteja. Quando as pessoas se veem diante de Tecnologia Recombinante de Bio-Manguinhos, da
escolhas, como evitar o contato com água de esgo- Fundação Oswaldo Cruz.
Vacina contra leptospirose “made in Brazil”
As vacinas humanas contra a leptospirose hoje são animal, a vacina formulada com essa proteína in-
produzidas a partir de células inteiras inativadas e duziu proteção na faixa de 80% a 100% no desafio
aplicadas na China e em Cuba. A proteção é direcio- homólogo (contra essa mesma cepa que doou esse
nada para a parte glicídica do lipopolissacarídeo de gene)”, explica o pesquisador. A primeira formula-
membrana, que é a região que distingue os diferen- ção eficaz obtida é para a cepa que mais causa a
tes sorovares (subdivisões da espécie) da Leptospira. doença no Brasil, a Leptospira interrogans para o
Como essa região apresenta alta toxicidade, essa va- sorovar Copenhageni.
cina está associada a reações adversas, proteção de A hipótese que está sendo testada é a possibili-
curta duração e imunidade sorovar-específica. Para a dade de essa vacina proteger contra outras espécies
redução dessas limitações, o ideal seria o desenvol- e sorovares, baseada no sequenciamento desse gene
vimento de uma vacina proteica, pois esta apresenta em leptospiras. A análise de bioinformática desses
efeitos colaterais minimizados, proteção de maior sequenciamentos demonstrou que o gene que codi-
duração e, provavelmente, não sorovar-específica. fica essa proteína apresenta alto grau de homologia
Com a pesquisa em andamento, a Fundação entre as espécies e os sorovares de leptospiras pato-
Oswaldo Cruz (Fiocruz) está com a vacina proteica gênicas. Isso sugere que a vacina possa proteger o
contra leptospirose em estudo pré-clínico. Essa va- ser humano também contra outras espécies e outros
cina é produzida a partir de uma proteína que está sorovares.
presente apenas na superfície de espécies patogê- Nesse estudo, não houve transferência de tecno-
nicas. “Como as cepas virulentas perdem a capaci- logia. Todo o projeto foi feito com apoio da Fiocruz,
dade de produzir essa proteína in vitro, este gene mais especificamente do Bio-Manguinhos (RJ) e do
foi amplificado, clonado em vetores de expressão Centro de Pesquisa Gonçalo Moniz (BA).
(plasmídeos), e algumas regiões dessa proteína fo- A expectativa é de que a vacina comece a ser
ram expressas em Escherichia coli, produzindo uma utilizada em cinco anos, de acordo com o Dr. Mar-
proteína recombinante”, explica Dr. Marco Medeiros, co. Não será uma vacina de campanha, porém des-
da gerência do Laboratório de Tecnologia Recombi- tinada a grupos de risco, como coletores de lixo, e
nante de Bio-Manguinhos, da Fiocruz. “Em modelo áreas endêmicas.
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