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ROBIN COOK

  CHOQUE

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A célula do óvulo humano, ou oócito, que tinha sido atraída pela ligeira sucção da ponta aguçada
da pipeta, não se distinguia das suas cerca de sessenta irmãs. Era simplesmente a mais próxima da
extremidade da pequena vareta de vidro quando esta entrou no campo de visão do analista. O grupo de
oócitos estava suspenso numa gota de fluido de cultura, sob uma fina camada de óleo mineral, e debaixo
da objetiva de um potente microscópio de dissecação. O óleo impedia a evaporação. Era sumamente
importante que o ambiente destas células vivas permanecesse adequadamente estável.
        Tal como os outros, o oócito fixado parecia saudável, com uma granulosidade apropriada do
respectivo citoplasma. Também como os outros, a sua cromatina, ou ADN brilhava à luz ultravioleta
como moscas diminutas numa bruma de sopa de ervilhas. A única prova da prévia rude aspiração da
célula do seu folículo em desenvolvimento residia nos restos esfarrapados da corona radiata de células
granulosas aderentes ao invólucro, comparativamente denso, denominado zona peflucida. Os oócitos
haviam sido todos puxados prematuramente do seu ninho ovariano e encorajados a amadurecer in vitro.
Nesse momento, estavam prontos para a penetração espermática, mas não seria o caso. Estes gametas
femininos não seriam fertilizados.
        Surgiu outra pipeta no campo de visão. Parecia um instrumento mais letal, especialmente debaixo
da forte ampliação do microscópio. Apesar de ter somente vinte e cinco milionésimos de um metro de
diâmetro, parecia uma espada com a ponta afiada como uma agulha. Inexoravelmente, acercou—se do
gameta imóvel e indefeso e entrou na zona peflucida da célula. Em seguida, com um toque experiente do
analista no micrometro que controlava a pipeta, a ponta desta mergulhou no interior da célula. Avançando
para o ADN brilhante, aplicou-se uma ligeira sucção no interior da pipeta e o ADN desapareceu dentro da
vareta de vidro.
        Mais tarde, depois de verificar se o gameta e os seus irmãos tinham agüentado o suplício da
enucleação tão bem como se esperava, a célula voltou a ser imobilizada. Introduziu-se outra pipeta afiada,
desta vez com a penetração limitada à zona peflucida, poupando a membrana celular do oócito, e em vez
de aplicar sucção, inseriu-se uma leve quantidade de fluido no que se chama espaço perivitelino. Junto
com o fluido veio uma única célula adulta, menor, em forma de fuso, obtida do esfregaço de uma boca
humana adulta.
        O passo seguinte implicou suspender os gametas, com o seu par de células epiteliais adultas, em
quatro mililitros de um meio de fusão, e colocá-las entre os elétrodos de uma câmara de fusão. Quando os
gametas já estavam devidamente alinhados, enviou-se uma corrente elétrica de noventa volts para o meio,
durante quinze milionésimos de segundo. O resultado foi idêntico em todos os gametas: o choque fez com
que as membranas entre os gametas enucleados e respectivas células parceiras adultas se dissociassem
momentaneamente, fundindo as duas células.
        Na seqüência do processo de fusão, as células foram colocadas num meio de ativação. Sob
estimulação química, cada gameta que estivera pronto para a fertilização antes da remoção do ADN fazia
maravilhas agora, como seu complemento integral de cromossomas. Seguindo um misterioso mecanismo
molecular, os núcleos adultos abandonaram os seus anteriores deveres epiteliais e regressaram ao seu
papel embrionário. Após breve período, cada um dos gametas começou a dividir-se para formar embriões
individuais, os quais brevemente ficariam prontos para implantação. O doador das células adultas havia
sido clonado. Na realidade, havia sido clonado cerca de sessenta vezes...
PRÓLOGO
                                       6 de ABRIL de 1999
        — Sente-se confortável? — perguntou o Dr. Paul Saunders à sua doente, Kristin. Overineyer,
deitada na velha mesa de operações, vestida somente com a bata sem costas do hospital.
        — Acho que sim — respondeu Kristin, embora não estivesse nada confortável. Os ambientes
hospitalares causavam-lhe sempre uma ansiedade tolerável, mas nunca agradável, e a sala em questão era
particularmente pouco simpática. Tratava-se de um antigo bloco operatório cuja decoração era
diametralmente oposta ao utilitarismo estéril de uma unidade médica moderna. Tinha as paredes cobertas
por azulejos de um verde-bilioso, rachados e com borrões escuros, provavelmente de sangue que
manchara a argamassa. Parecia mais um cenário de filme de terror gótico passado no século xix do que
um espaço usado nos dias de hoje. Havia ainda níveis de assentos para observação que desapareciam na
obscuridade, para além do alcance dos holofotes suspensos. Ainda bem que os assentos estavam todos
vazios.
        —“Acho que sim” não me convenceu — disse a Dra. Sheila Donaldson do outro lado da mesa de
operação, em frente ao Dr. Saunders. Sorriu para a doente, ainda que o único efeito perceptível tenha sido
as ruguinhas nos cantos dos olhos. Tinha o rosto oculto por uma máscara cirúrgica e um capuz.
        — Quem me dera que isto acabasse — conseguiu Kristin dizer.
        Nesse momento, desejou não ter se oferecido para doação de óvulos. O dinheiro dar-lhe-ia uma
liberdade financeira a que poucos dos seus colegas de Harvard poderiam aspirar, mas isso agora não
parecia importante. O único consolo é que depressa estaria a dormir; a pequena intervenção seria indolor.
Quando lhe tinham dito que escolhesse entre anestesia geral ou local, ela preferira a primeira sem hesitar
um segundo. A última coisa que queria era estar acordada enquanto lhe metiam uma agulha de aspiração
de 30 cm na barriga.
        — Espero que possamos tratar disto ainda hoje — disse Paul, sarcástico, ao Dr. Cari Smith, o
anestesista. Paul tinha muito que fazer naquele dia e só tinha reservado quarenta minutos para aquela
intervenção. Entre a experiência que tinha da operação e a sua destreza com os instrumentos, considerava
que estava a ser generoso ao atribuir quarenta minutos. O único obstáculo era Carl; Paul não podia
começar enquanto a doente não estivesse adormecida e os minutos passavam inexoravelmente.
        Carl não respondeu. Paul estava sempre com pressa, Carl concentrou-se em pôr a cabeça do
estetoscópio precordial no peito de Kristin. Já tinha o soro a funcionar, a manga da tensão arterial a jeito,
as sondas de EM colocadas e o oxímetro do pulso no lugar. Satisfeito com os sons que ouvira através do
auricular, esticou o braço e puxou a máquina da anestesia para junto da cabeça de Kristin. Estava tudo a
postos.
        — Pronto, Kristin — disse Carl, apaziguador. — Tal como lhe expliquei antes, vou dar-lhe um
pouco de “leite de amnésia”. Está preparada?
        — Estou — respondeu Kristin. No que lhe dizia respeito, quanto mais depressa melhor.
        — Boa soneca — desejou Carl. — Da próxima vez que falarmos será na sala de recuperação.
        Era o comentário habitual de Carl para o doente antes de começar a anestesia e era, com efeito, o
curso natural das coisas. Porém, nesta ocasião, não seria assim. Jovialmente inconsciente da catástrofe
iminente, Carl pegou no tubo de soro onde tinha inserido o agente anestésico. Com facilidade
experimentada, deu à doente a dose predeterminada com base no seu peso, mas nivelada por baixo da
dosagem recomendada. Era política da Clínica de Infertilidade Wingate, para anestesia de doentes
externas, dar às doentes a quantidade mais baixa de qualquer medicamento apropriado. O objetivo era dar
alta no mesmo dia, dado que as instalações da clínica para doentes internadas eram limitadas. Carl
observou atentamente enquanto a dose de indução de propofol entrava no organismo de Kristin, olhando e
escutando os seus dispositivos de monitorização. Parecia estar tudo em ordem.
        Sheila riu debaixo da máscara. “Leite de amnésia” era a alcunha que Carl dava na brincadeira ao
agente anestésico propofol, administrado sob forma de líquido branco; e o termo nunca deixava de apelar
ao sentido de humor dela,
        — Podemos começar? — inquiriu Paul.
        Alternou o próprio peso de uma perna para a outra. Sabia que ainda não podia começar, mas
queria comunicar a sua impaciência e insatisfação. Não o deviam ter chamado enquanto não estivesse
tudo pronto. O seu tempo era valioso demais para ele ficar ali expectante enquanto Carl mexia nos
brinquedos dele.
        Continuando a ignorar a impertinência de Paul, Carl concentrou-se na tarefa de testar o nível de
consciência de Kristin. Satisfeito por ela ter atingido um estado apropriado, injetou o relaxante muscular
mivacurium, que ele preferia a muitos outros devido ao seu rápido tempo de recuperação espontânea.
Depois de o mivacurium fazer efeito, introduziu destramente um tubo endotraqueal para poder controlar
as vias respiratórias de Kristin. Depois sentou-se, ligou a máquina da anestesia e fez sinal a Paul de que
tudo estava preparado.
        — Já não era sem tempo — resmungou Paul. Ele e Sheila envolveram rapidamente a doente para
a laparoscopia. O alvo era o ovário direito.
        Carl sossegou, depois de ter introduzido os dados no registro de anestesia. Naquela altura, o seu
papel era observar os monitores e manter a anestesia, controlando cuidadosamente o estado de
consciência da doente com uma infusão de propofol contínua.
        Paul movia-se rapidamente e Sheila antecipava cada movimento seu. Com Constance Bartolo, a
enfermeira instrumentista, e Maorie Hickarn, a enfermeira volante, a equipe trabalhava com eficiência
milimétrica. Nesta altura não havia conversa nenhuma.
        A primeira finalidade de Paul era introduzir o trocarte da unidade de insuflação para encher a
cavidade abdominal da doente com gás. Era a criação de um espaço cheio de gás que viabilizava a
cirurgia laparoscópica, Sheila ajudava, prendendo duas pregas de pele em torno do umbigo de Krístin
com pinças de compressas e puxando para cima a parede abdominal descontraída. Entretanto, Paul fizera
uma pequena incisão no umbigo e começara a empurrar a agulha de insuflação Veress, com quase 30 cm.
        Em suas mãos experientes, podia ouvir-se distintamente dois estalidos, enquanto a agulha passava
para a cavidade abdominal. Segurando firmemente na agulha pelo rolo serrilhado, Paul ativou a unidade
de insuflação. Instantaneamente, o dióxido de carbono começou a fluir para a cavidade abdominal de
Kristin, ao ritmo de um litro de gás por minuto.
        Enquanto esperavam que entrasse a quantidade de gás adequada, deu-se a catástrofe. Carl estava
preocupado a procurar nos monitores cardiovascular e respiratório sinais da crescente pressão intra-
abdominal e não reparou em dois movimentos aparentemente inócuos: Kristin pestanejou e moveu
ligeiramente a perna esquerda. Se Carl ou um deles os tivesse notado, teriam percebido que o nível de
anestesia de Kristin era baixo. Ainda estava inconsciente, mas quase a acordar, e o desconforto da pressão
crescente na barriga contribuiu para despertá-la.
        Subitamente, Kristin gemeu e soergueu-se. Carl agiu por reflexo, agarrando-lhe os ombros e
empurrando-a para baixo. Mas era tarde de mais. Ao levantar-se na mesa, forçara a agulha Veress na mão
de Paul a penetrar mais fundo na sua barriga, furando uma grande veia intra-abdominal. Antes de Paul
poder parar a unidade de insuflação, uma grande bolha de gás entrara no sistema vascular de Kristin.
        — Oh, meu Deus! — gritou Carl ao ouvir no auricular o começo do revelador murmúrio de
rotação, enquanto o gás chegava ao coração dela; um ruído que parecia o ciclo de centrifugação de uma
máquina de lavar. — Temos uma embolia de gás — gritou. — Virem-na para o lado esquerdo!
        Paul puxou a agulha ensangüentada e atirou-a para o chão. Ajudou Carl a virar Kristin, numa vã
tentativa de manter o gás isolado no lado direito do coração. Depois, Paul inclinou-se para cima dela para
mantê-la na posição. Mesmo estando ainda inconsciente, ela se debatia. Entretanto, Carl apressava-se a
introduzir, o mais assepticamente possível, um cateter na veia jugular de Kristin. Esta resistiu e debateu-
se contra o peso que tinha em cima. A inserção do cateter era como tentar atingir um alvo em movimento.
Carl pensou em aumentar o propofol ou em dar-lhe mais mivacurium, mas relutava em dispor desse
tempo. Por fim, conseguiu pôr o cateter, mas quando puxou o êmbolo da seringa só trouxe uma espuma
sanguinolenta. Repetiu a operação com o mesmo resultado. Abanou a cabeça, desalentado, mas antes de
poder dizer alguma coisa, Kristin retesou-se e depois entrou em convulsões. O seu corpo foi sacudido por
um ataque de grandes proporções.
        Freneticamente Carl tratou deste novo problema enquanto se debatia com a sensação de fracasso
que o assaltava. Sabia muito bem que a anestesiologia era uma profissão marcada por uma rotina
repetitiva e entorpecedora, ocasionalmente devastada por episódios de puro terror, e este era o pior que
podia acontecer: uma grande complicação com uma pessoa jovem e saudável que sofria uma intervenção
meramente eletiva.
        Tanto Paul como Sheila se tinham afastado com as mãos enluvadas torcidas em frente ao peito.
Junto com as duas enfermeiras, assistiam enquanto Carl lutava para acabar com o ataque de Kristin. Uma
vez terminado e com Kristin já deitada de costas e imóvel, ninguém disse palavra. O único som que se
ouvia, além do ruído abafado do rádio que passava pela porta fechada da sala de esterilização, era a
máquina da anestesia a respirar pela doente.
        — Qual é o veredicto? — perguntou Paul, finalmente. A voz não tinha emoção e ressoava nos
azulejos.
        Carl expirou como um balão a esvaziar-se. Hesitante, estendeu as mãos com os dedos indicadores
esticados e abriu as pálpebras de Kristin. Ambas as pupilas estavam muito dilatadas e não reagiram à
luminosidade do holofote suspenso. Ele tirou a sua caneta luminosa do bolso e apontou o feixe para os
olhos de Kristin. Não houve reação alguma.
        — Não está com bom aspecto — resmungou Carl. Tinha a garganta seca. Nunca lhe tinha
acontecido tal complicação.
        — Ou seja? — inquiriu Paul.
        Carl engolia com dificuldade.
        — Ou seja, eu acho que ela teve um enfarte. Quer dizer, há coisa de um minuto estava bem e
agora se passou, só Deus sabe como. Nem sequer respira sozinha.
        Paul acenou com a cabeça enquanto ponderava a questão. Depois tirou as luvas e atirou-as para o
chão, desatou a máscara e deixou-a cair no peito. Olhou para Sheila.
        —Porque não continua com a intervenção? Pelo menos ganha prática. E faça dos dois lados.
        — Sério? — indagou Sheila.
        — Não é de desperdiçar — retrucou Paul.
        — Que vai fazer? — perguntou Sheila.
        — Vou procurar Kurt Hermann e ter uma conversinha com ele — disse Paul enquanto desatava e
tirava a bata. — Mesmo que seja um incidente infeliz, não é que não tenhamos previsto tal catástrofe, e
pelo menos tomamos medidas.
        — Tenciona informar Spencer Wingate? —perguntou Sheila. O Dr. Wingate era o fundador e
diretor titular da clínica.
        — Não sei — redargüiu Paul. — Depende. Prefiro agüentar e ver no que dá. O que sabe da
chegada de Kristin Overineyer à clínica hoje?
        — Veio no carro dela — respondeu Sheila. — Está no estacionamento.
        — Veio sozinha?
        — Não. Tal como lhe dissemos, trouxe uma amiga — disse Sheila. — Chama-se Rebecca Corey e
está na sala de espera.
        Paul encaminhava-se para a porta e trocou um olhar com Carl.
        — Lamento — disse este.
        Paul hesitou um momento. Apetecia-lhe dizer ao anestesista o que pensava dele, mas mudou de
idéia. Paul queria manter a cabeça fria e, se entrasse numa discussão com Carl naquele momento, ficaria
alterado. Já bastava que Carl o tivesse feito esperar tanto tempo.
        Sem sequer tirar a farda cirúrgica, Paul agarrou numa bata branca comprida na sala adjacente.
Enfiou-a enquanto descia escada abaixo. Passando o primeiro andar, saiu para o relvado, que já dava
sinais da chegada da primavera. Com o casaco apertado à sua volta por causa do vento fustigante do
início de abril na Nova Inglaterra, apressou-se para a portaria de pedra da clínica. Encontrou o chefe da
segurança atrás de uma secretária velha e usada, debruçado sobre o calendário departamental para o mês
de maio.
        Se Kurt Hermann ficou surpreendido pela chegada súbita do homem que geria a Clínica Wingate,
não o demonstrou. Além de erguer o olhar, o único sinal de percepção da presença de Paul foi levantar a
sobrancelha direita.
        Paul puxou uma das cadeiras de costas direitas que enchiam o esparso gabinete e sentou-se em
frente ao chefe da segurança.
— Temos um problema — disse Paul.
       — Estou a ouvir — respondeu Kurt. A cadeira rangeu quando ele se recostou.
       — Tivemos uma grande complicação com a anestesia. Uma catástrofe, mesmo.
       — Onde está a doente?
       — Ainda está no BO, mas sai daqui a pouco.
       — Nome?
       — Kristin Overineyer.
       — Veio sozinha? — perguntou Kurt enquanto tomava nota do nome de Kristin.
       — Não. Veio com uma amiga chamada Rebecca Corey. A Dra. Donaldson diz que ela está na sala
de espera.
       — Como é o carro?
       — Não faço idéia — admitiu Paul.
       — Vamos descobrir— disse Kurt. Ergueu os olhos azuis-metálicos para encarar Paul.
       — Foi para isto que vos contratamos — afirmou Paul, num tom cortante. — Quero que trate disto
e não quero saber mais nada.
       — Fique descansado — disse Kurt.
       Ele pousou a caneta com cuidado, como se fosse algo frágil. Por momentos, os dois homens
olharam um para o outro. Depois, Paul levantou-se, virou-se e desapareceu na manhã desabrida de abril.

                                   8 de outubro de 1999
                                         23:15 h.
        —Deixa-me ver se percebi — disse Joanna Meissner a Carlton Wiliams. Os dois estavam sentados
às escuras dentro do jipe Cherokee de Carlton numa zona de estacionamento proibido em Cambridge,
Massachusetts. — Tu decidiste que era melhor só casarmos depois de tu acabares o estágio de Cirurgia,
daqui a três ou quatro anos.
        — Ainda não decidi nada — disse Carlton, na defensiva, — Estamos a debater isto agora.
        Joanna e Carlton tinham ido jantar na Praça de Harvard, nessa noite de sexta-feira e estavam a
divertir-se até Joanna mencionar a questão problemática dos seus planos a longo prazo. Como sempre, a
partir desse momento, o tom da conversa tinha se deteriorado. Já tinham abordado o assunto várias vezes
no passado, a propósito do seu noivado. Tinham uma relação já longa; conheciam-se desde o jardim de
infância e só tinham namorado um com o outro desde o nono ano,
        — Escuta — disse Carlton, apaziguador. — Só estou a tentar pensar no que é melhor para nós
dois.
        — Oh, tretas! — saltou Joanna. Apesar de ter prometido a si própria manter a calma, podia sentir
a raiva a fervilhar, como se fosse um reator nuclear prestes a explodir.
        — Estou a falar sério! — disse Carlton. — Joanna, estou a trabalhar que nem um cão. Tu sabes
quantas vezes estou de banco. Sabes as horas... Ser estagiário no Massachusetts General Hospital é muito
mais exigente do que eu imaginava,
        — Mas que diferença faz? — estalou Joanna, incapaz de dissimular a irritação, que era
dolorosamente óbvia. Não podia evitar sentir-se traída e rejeitada.
        — Faz muita diferença — persistiu Carlton. — Estou esgotado. Não sou boa companhia. Não
consigo ter uma conversa normal fora do âmbito do hospital. É patético. Nem sei o que se passa em
Boston, quanto mais no mundo.
        — Esse tipo de comentário podia ter alguma validade se nós saíssemos casualmente. Mas o fato é
que nós namoramos há onze anos. E até eu abordar este assunto delicado de marcar a data esta noite, tu
estavas a divertir-te e eras boa companhia.
        — Porque gosto muito de te ver... — disse Carlton.
        — Que reconfortante! — interpôs Joanna, sarcástica. — o que eu acho ainda mais irônico nisto
tudo é que foste tu quem me pediu em casamento e não o contrário. Só que já foi há sete anos. Eu diria
que isto demonstra que o teu ardor arrefeceu significativamente.
— Não arrefeceu nada — protestou Carlton. — Eu quero casar contigo.
        — Lamento, mas não és convincente; não ao fim deste tempo todo. Primeiro querias acabar o
curso. Tudo bem. Não havia problema. Até achei apropriado. Depois achaste que podias fazer os
primeiros dois anos de Medicina. Nem isso me incomodou, já que assim consegui fazer a maior parte do
trabalho para o meu doutoramento. Mas depois pensaste que era melhor adiar as coisas até acabares
medicina. Estabelece-se aqui um padrão ou só eu é que o vejo? Depois veio a questão de passar o
primeiro ano de estágio. E estúpida como sou até concordei nisso, mas agora é o estágio todo. E a bolsa
de que falaste no mês passado? Depois disso até és capaz de querer esperar até abrir consultório.
        — Estou a tentar ser racional acerca disto — disse Carlton. — É uma decisão difícil, e compete-
nos aos dois pesar os prós e contras...
        Joanna já não o ouvia. O seu olhar verde-esmeralda afastou-se do rosto do noivo que, reconhecia
ela, nem a olhava enquanto falava, Aliás, evitara olhar para ela durante a conversa toda; tanto quanto se
apercebera, ele só a olhara de soslaio durante o seu monólogo. Com ar ausente, olhou para longe. De
repente, era como se uma mão invisível a tivesse esbofeteado. A sugestão de Carlton de adiar novamente
a data do casamento causara uma epifania e ela deu por si a rir, não com humor, mas de descrença.
        Carlton parou a meio da sua enumeração dos prós e contras de casar mais cedo e não mais tarde.
        — De que é que estás a rir? — perguntou.
        Ele ergueu os olhos com que fixava as chaves na ignição e olhou para Joanna na obscuridade do
carro. O rosto dela era uma silhueta contra a janela, iluminado por um candeeiro cuja luz brotava pelo
vidro adentro. O seu perfil elegante e delicado estava recortado pelo cabelo lustroso e loiro como espiga
de milho, que parecia brilhar à média luz. Lampejos como diamantes brilhavam nos seus dentes brancos,
pouco visíveis através dos lábios entreabertos e cheios. Para Carlton, era a mulher mais bela do mundo,
mesmo quando o atormentava.
        Ignorando a pergunta de Carlton, Joanna continuou a rir suave e tristemente, à medida que a
clareza da sua revelação se aprofundava. Subitamente conseguira reconhecer a pertinência daquilo que a
sua companheira de quarto Deborah Cochrane e as suas outras amigas lhe andavam a apregoar desde
sempre, nomeadamente, que o casamento de per si não devia ser a finalidade da vida dela. Afinal,
estavam certas: ela tinha sido programada durante toda a sua educação suburbana típica de Houston.
Joanna não podia crer que tinha sido tão estúpida durante tanto tempo e tão renitente em questionar um
sistema que aceitara de olhos vendados. Ainda bem que, enquanto flutuava à espera de Carlton, tivera a
esperteza de lançar as bases de uma carreira compensadora. Só lhe faltava a tese de doutoramento em
Economia em Harvard, além de possuir extensas competências informáticas.
        — De que é que estás a rir? — insistiu Carlton. — Vá lá! Fala comigo.
        — Estou a rir de mim própria — disse finalmente Joanna. Virou-se para encarar o noivo. Ele
parecia perplexo, de sobrolho franzido.
        — Não percebo — disse Carlton.
        — É curioso — redargüiu Joanna. — Eu vejo tudo com grande clareza.
        Olhou para o anel de noivado na mão esquerda. O solitário de diamante sugava a fraca luz
circundante e devolvia-a a Joanna com surpreendente intensidade. A pedra pertencera à avó de Carlton e
Joanna ficara radiante ao recebê-la, devido ao seu valor sentimental. Mas agora só lhe recordava a sua
própria ingenuidade. Uma súbita sensação de claustrofobia assaltou Joanna. Sem aviso, destrancou a
porta, escorregou para fora do carro e ficou em pé, no passeio.
        — Joanna! — chamou Carlton.
        Debruçou-se no carro e espreitou. O rosto de Joanna tinha uma expressão decidida. Os seus lábios
habitualmente suaves estavam apertados com determinação sombria.
        Carlton começou a perguntar a Joanna o que se passava, ainda que já calculasse. Ainda antes de
acabar a frase, a porta do carro bateu-lhe na cara. Endireitou-se e procurou o comando do vidro da janela
do passageiro. Quando a janela abriu, Joanna virou-se para ele. O seu semblante não tinha mudado.
        — Não me insultes a perguntar o que se passa — disse ela.
        — Estás a ser pouco adulta nisto — afirmou Carlton, firmemente.
        — Obrigada pela tua apreciação imparcial — retrucou Joanna. — Também te quero agradecer por
tornares as coisas tão claras para mim. Fica muito mais fácil tomar decisões.
— Tomar decisões acerca de quê? — perguntou Carlton.
         A firmeza na voz que encontrara antes desaparecera. Agora balbuciava. Tinha um pressentimento
acerca do que se seguia, junto com uma sensação de desânimo na boca do estômago.
         — Acerca do meu futuro — disse Joanna. — Toma! — estendeu o punho fechado com evidente
intenção de dar algo a Carlton.
         Carlton esticou a mão em concha. Sentia que lhe ia cair alguma coisa na mão. Olhou para baixo e
viu o diamante da avó.
         — Isto é para quê? — titubeou Carlton.
         — Parece-me muito claro — disse Joanna. — Considera-te livre para acabares o estágio e o que
mais a tua cabecinha desejar. Não quero que pense em mim como um fardo.
         — Não estás a falar a sério? — indagou Carlton. Fora apanhado desprevenido pela viragem nos
acontecimentos, e estava aturdido.
         — Oh, mas estou mesmo — disse Joanna. — Considera o nosso noivado oficialmente acabado.
Boa noite, Carlton.
         Joanna virou-se e caminhou pela Rua Craigie em direção à Avenida Concord e à entrada do
Craigie Arins. O apartamento dela ficava no terceiro piso,
         Após breve luta com o comando da porta, Carlton saltou do jipe e correu atrás de Joanna, que já
chegara à esquina. Algumas folhas vermelhas de ácer, caídas nesse mesmo dia, restolhavam debaixo dos
seus pés. Apanhou a sua antiga noiva quando ela estava prestes a entrar no prédio. Estava ofegante.
Segurava o anel de noivado na mão fechada.
         — Está bem — conseguiu Carlton dizer. — Já te afirmaste. Toma lá o anel. — Estendeu o braço.
         Joanna abanou a cabeça. A sua determinação sombria desaparecera para dar lugar a um tênue
sorriso.
         — Eu não te devolvi o anel para fazer joguinhos. Nem estou realmente zangada. É evidente que
não te queres casar agora e, de repente, eu também não. Deixemos o assunto. Ainda somos amigos.
         — Mas eu amo-te — balbuciou Carlton.
         — Sinto-me lisonjeada — disse Joanna. — E acho que ainda te amo, mas as coisas arrastam-se há
demasiado tempo. Vamos seguir caminhos separados, pelo menos por agora.
         — Mas...
         — Boa noite, Carlton — disse Joanna.
         Pôs-se em bicos de pés e tocou com os lábios na face de Carlton, Momentos depois estava no
elevador. Não olhara para trás. Ao rodar a chave na fechadura percebeu que tremia. Apesar da forma
altiva como despachara Carlton, sentia as emoções em torvelinho logo à superfície.
         — Uau! — exclamou a companheira de quarto, Deborah Cochrane. Olhou para a barra de
ferramentas do seu computador para ver as horas. — É muito cedo para uma sexta à noite. Que é que te
deu?
         Deborah vestia roupas largas com o brasão de Harvard. Em comparação com a feminilidade de
porcelana da sua companheira, parecia algo maria-rapaz, com cabelo escuro curto, uma tez mediterrânica
e porte atlético. As suas feições ajudavam, sendo fortes e mais arredondadas do que as de Joanna, mas
não menos femininas, No conjunto, as companheiras de quarto complementavam-se e enfatizavam o
encanto natural uma da outra.
         Joanna não respondeu, enquanto pendurava o casaco no armário do vestíbulo. Deborah observou-a
entrar na sala pouco mobiliada e a cair no sofá. Sentou-se, enlaçou os joelhos com os braços e encarou o
olhar inquisidor de Deborah.
         — Não me digas que tiveram uma discussão — disse esta.
         — Não foi bem uma discussão — retrucou Joanna. — Só uma separação de caminhos.
         Deborah ficou de queixo caído. Conhecia Joanna há seis anos, desde calouras, e Carlton era algo
fixo na vida de Joanna. No que lhe dizia respeito, não havia o menor vestígio de discórdia naquele
relacionamento.
         — Que é que aconteceu? — perguntou, espantada.
         — Vi a luz, de repente — respondeu Joanna. Tinha um leve trinado na voz, que Deborah notou
logo. — Acabei o noivado e, muito mais importante, não vou contar com casamento nenhum, ponto final.
Se acontecer, ótimo; se não, também não faz mal.
        — Palavra de honra! — exclamou Deborah, incapaz de esconder a alegria na sua voz. — Nem
pareces a rapariguinha casadoira que só pensava em bolos e vestidos, e de quem eu aprendi a gostar. Por
que é que mudaste de idéia? — Deborah considerava a marcha de Joanna para o casamento, quase
religiosa na sua intensidade inabalável.
        — Carlton queria adiar o casamento até acabar o estágio — explicou Joanna. Resumidamente,
contou os últimos quinze minutos da sua saída com Carlton. Deborah escutava atentamente.
        — E tu estás bem? — perguntou Deborah quando Joanna acabou. Inclinou-se para a frente para
olhá-la mais de perto.
        — Melhor do que poderia imaginar — admitiu ela. — Sinto-me algo abalada, acho eu, mas,
apesar de tudo, até estou bem.
        — Então, isto pede uma comemoração — interpôs Deborah. Levantou-se e foi até a cozinha. —
Ando a guardar aquela garrafa de champanhe a ocupar a geladeira há meses — disse por cima do ombro.
— Este é o momento de abri-la.
        — Deve ser — conseguiu dizer. Não se sentia com vontade de comemorar, mas resistir ao
entusiasmo de Deborah daria muito trabalho.
        — Ora bem! — proferiu Deborah, saindo da cozinha com a garrafa na mão e duas taças na outra.
        Ajoelhou-se junto à mesinha e atacou a garrafa. A rolha saltou com um pop e ricocheteou no teto.
Deborah riu, mas reparou que Joanna não.
        — Tens certeza de que estás bem? — perguntou Deborah.
        — Tens que convir que é uma grande alteração.
        — Isso é um eufemismo — retrucou Deborah. —Conhecendo-te como conheço, é o equivalente à
queda de São Paulo a caminho de Damasco. Foste programada para o casamento pelo ambiente social de
Houston desde que não eras mais do que a luz dos olhos da tua mãe.
        Joanna riu-se contra vontade.
        Deborah deitou o champanhe depressa demais. As taças ficaram cheias de espuma e entornaram
em cima da mesa. Decidida, Deborah pegou nelas e passou uma a Joanna. E depois fez Joanna brindar
com ela.
        — Bem-vinda ao século XXI! — declarou Deborah.
        Ambas as mulheres ergueram as taças e tentaram beber. Tossiram com a espuma e riram. Sem
querer perder o momento, Deborah levou rapidamente as taças para a cozinha, lavou-as e regressou.
Desta vez deitou o champanhe com mais cuidado, deixando-o correr pelos lados das taças, Quando
beberam, estava quase todo líquido.
        — Não é o melhor espumante — admitiu Deborah. — Mas não me espanta, Foi o David que me
deu, naquele tempo. Infelizmente ele era sovina como o Tio Patinhas.
        Deborah tinha acabado um relacionamento de quatro meses com o anterior namorado, David
Curtis, na semana anterior. Totalmente ao contrário de Joanna, o relacionamento mais longo que tivera
durara menos de dois anos e tinha sido no tempo da escola. As duas mulheres não podiam ser mais
diferentes. Ao invés do meio social suburbano, sulista e abastado, com bailes de debutantes financiados
por dinheiro do petróleo que Joanna conhecera, Deborah crescera em Manhattan com uma mãe solteira e
boêmia que estava imersa na vida acadêmica. Deborah nunca conhecera o pai, pois fora a perspectiva do
seu nascimento que pusera termo à relação dos pais. A mãe só se casara muito mais tarde, quando
Deborah já tinha entrado para a universidade.
        — Nunca fui grande apreciadora de champanhe — disse Joanna. — Aliás, nem saberia dizer se é
do bom ou não.
        Revirou a taça entre os dedos, momentaneamente hipnotizada pela efervescência.
        — Que aconteceu ao teu anel? — perguntou Deborah, reparando pela primeira vez que a jóia
desaparecera.
        — Devolvi-o — respondeu Joanna com ar casual.
        Deborah abanou a cabeça. Estava abismada. Joanna adorava aquele diamante e tudo o que ele
representava. Raramente o tirava do dedo,
        — Estou decidida quanto a isto — declarou Joanna.
— Pois parece que sim — atalhou Deborah. Tinha ficado sem fala.
        O telefone quebrou o curto silêncio. Deborah levantou-se para atender.
        — Deve ser o Carlton, mas eu não quero falar com ele — disse Joanna. Deborah verificou a
identificação do número.
        — Tens razão, é o Carlton.
        — Deixa o atendedor de chamadas ligado — disse Joanna.
        Deborah voltou a sentar-se no sofá. As duas mulheres entreolharam-se enquanto o telefone
continuava a tocar. Depois do quarto toque a máquina atendeu. Houve um silêncio enquanto corria a
mensagem de atendimento. A seguir ouviu-se a voz ansiosa de Carlton, junto com algum ruído estático,
enchendo a sala pouco mobiliada.
        — Tens razão, Joanna! Esperar que eu acabe o estágio é uma parvoíce.
        — Eu nunca disse que era uma parvoíce — interpôs Joanna num sussurro forçado, como se o
interlocutor pudesse ouvir.
        — E sabes que mais? — continuava Carlton. — Vamos avançar e marcar para junho próximo. Se
bem me lembro, sempre quiseste um casamento em junho. Bem, junho está bem para mim. Seja como for,
liga-me assim que receberes esta mensagem e depois podemos conversar, está bem?
        O atendedor fez mais uns ruídos mecânicos antes da luz vermelha começar a piscar.
        — Isto mostra o pouco que ele sabe — disse Joanna. — A minha mãe nunca conseguiria organizar
um decente casamento à moda de Houston em oito meses,
        — Ele parece algo desesperado — disse Deborah. — Se lhe quiseres ligar e precisares de
privacidade eu desapareço.
        — Não quero falar com ele — disse rapidamente Joanna, — Agora não.
        Deborah inclinou a cabeça para um lado e estudou o rosto da amiga, Queria dar-lhe apoio, mas
naquele momento não sabia bem como fazer esse papel.
        — Não se trata de uma discussão entre nós — explicou Joanna. — Nem de um joguinho de
namorados. Não estou a ser manipuladora e, com franqueza, sentir-me-ia constrangida se nos casássemos
agora.
        — Grande viragem,
        — Exatamente — aprovou Joanna. — Cá está ele a tentar antecipar a data e eu a querer adiar.
        Preciso de tempo e espaço.
        — Compreendo muito bem — disse Deborah. — E sabes uma coisa? Acho que és inteligente em
não deixares que a situação se transforme num debate petulante.
        — O problema é que eu o amo mesmo — disse Joanna com um sorriso de esguelha. — Se
houvesse debate, eu poderia perder.
        Deborah riu-se.
        — Concordo. Te converteste tão recentemente a esta nova e mais sensata atitude perante o
casamento que estás vulnerável a uma recaída. Precisas mesmo de tempo e espaço. E sabes? Acho que
tenho a resposta.
        — A resposta a quê? — indagou Joanna.
        — Vou mostrar-te uma coisa — disse Deborah.
        Pôs-se de pé e tirou o jornal Harvard Crimson da sua secretária. Estava dobrado no sentido do
comprimento na seção dos classificados. Passou o jornal a Joanna. Ela varreu a página e leu o anúncio
sublinhado, Ergueu o olhar para Deborah, interrogativamente.
        — Querias que eu visse este anúncio da Clínica Wingate?
        — Pois queria — respondeu Deborah, entusiástica.
        — É um anúncio a pedir doadoras de óvulos — disse Joanna.
        — Precisamente — retrucou Deborah.
        — E em que é que isto é a resposta? — inquiriu Joanna.
        Deborah rodeou a mesinha e sentou-se ao lado de Joanna. Apontou com o dedo indicador para a
retribuição oferecida.
        — O dinheiro é a resposta — disse. — Quarenta e cinco mil dólares o tiro!
        — Este anúncio saiu no Crimson na primavera e causou polêmica — disse Joanna. —Depois
nunca mais apareceu. Achas que é genuíno ou que é uma brincadeira de estudantes?
        — Acho que é genuíno — respondeu Deborah. — A Wingate é uma clínica de infertilidade em
Bookford, Massachusetts, depois de Concord. Foi o que eu percebi na página deles na Internet.
        — Por que é que pagariam tanto dinheiro? — perguntou Joanna.
        — Na página dizem que têm clientes ricos dispostos a pagar pelo melhor. Pelos vistos, os clientes
querem gente de Harvard. Deve ser como aquele banco de esperma na Califórnia, onde os doadores são
todos laureados com o prêmio Nobel. É loucura de um ponto de vista genético, mas quem somos nós para
discutir?
        — Nós não somos propriamente laureadas com o prêmio Nobel — disse Joanna.
        — Tecnicamente, nem sequer somos gente de Harvard. Por que é que achas que eles estariam
interessados em nós duas?
        — E por que não? — contrapôs Deborah. — Acho que estar numa pós-graduação equivale a ser
aluno. Não me parece que só queiram não licenciados. Aliás, na página especificam que querem mulheres
até vinte e cinco anos. Passamos à justa.
        — Mas também diz que temos de ser emocionalmente estáveis, atraentes, não ter peso a mais, e
ter porte atlético. Não estaremos a esticar a realidade um pouco?
        — Olha, eu acho que somos perfeitas.
        — Com porte atlético? — questionou Joanna com um sorriso. — Tu talvez, agora eu não. E
emocionalmente estáveis. Isso é dizer muito, especialmente no meu estado atual.
        — Bem, podemos tentar — disse Deborah. — Tu podes não ser a mulher com mais porte atlético
da faculdade, mas vamos dizer-lhes que só queremos doar se formos as duas. Têm de aceitar a ambas.
Tudo ou nada. E as nossas notas são boas.
        — Estás mesmo a falar a sério? — perguntou Joanna. Observou a sua companheira de quarto, que
podia ser muito gozadora quando estava para aí virada.
        — A princípio não estava — admitiu Deborah. — Mas depois comecei a pensar nisso ao fim da
tarde. Quer dizer, o dinheiro é sedutor, Já viste: quarenta e cinco mil por cabeça! Com esse dinheiro
teríamos liberdade pela primeira vez na vida, mesmo enquanto escrevíamos a tese. E agora que tu optaste
por sair da segurança econômica do objetivo casamento, a idéia devia ser ainda mais sedutora para ti.
Precisas de liquidez, além da tua formação, para manteres a tua decisão e, com franqueza, para começares
a organizar a vida de uma única pessoa. Este dinheiro poderia ser um começo.
        Joanna atirou o jornal para a mesinha.
        — Às vezes não sei quando é que estás a brincar comigo ou não.
        — Ouve, não estou a brincar. Disseste que precisas de tempo e espaço. É o que este dinheiro pode
comprar e muito mais. Fazemos assim: vamos à Clínica Wingate, damos-lhes uns óvulos e ganhamos
noventa brasas. Tiramos cinqüenta e compramos um apartamento com dois quartos em Boston ou
Cambridge, o qual arrendamos para pagar o empréstimo.
        — Por que é que haveríamos de comprar um apartamento para arrendá-lo?
        — Deixa-me acabar — disse Deborah.
        — Mas não seria melhor investir as cinqüenta brasas? Lembra-te, eu sou a economista e tu és a
bióloga.
        — Tu até podes ir fazer um doutoramento em Economia, mas não sabes nada no que toca a ser
mulher solteira no século XXI. Por isso, cala-te e escuta. Compramos um apartamento para começar a
criar raízes, Nas gerações anteriores, as mulheres conseguiam isso com o casamento, mas agora temos de
agir por conta própria. Um apartamento seria um bom começo e um bom investimento.
        —Palavra de honra! —exclamou Joanna. — Estás mesmo mais avançada do que eu.
        — Podes apostar que sim — redargüiu Deborah. — E há mais. Esta é a parte melhor: pegamos nas
outras quarenta brasas e vamos para Veneza para fazer as nossas teses de doutoramento.
        — Veneza! — gritou Joanna. — És louca, menina!
        — Ah, sou!!? — perguntou Deborah. — Pensa só. Quando tu pensas que precisas de tempo e
espaço, o que poderia ser melhor? Estaríamos em Veneza numa casinha amorosa e o Carlton aqui a fazer
o estágio. Fazemos as teses e vivemos um pouco sem o querido doutor sempre em cima de ti.
        Joanna parecia absorta, enquanto invocava imagens de Veneza. Já estivera na cidade mágica uma
vez, mas só durante alguns dias, e tinha ido com os pais e irmãos, estava ela no secundário. Podia
imaginar o brilho das águas no Grand Canal, refletindo as fachadas góticas. Com igual clareza, podia
recordar o bulício da Praça de São Marcos com as músicas concorrentes das duas casas de café em frente
uma da outra. Naquela altura prometera a si própria que voltaria um dia àquela cidade tão romântica.
Claro que a fantasia incluía Carlton, que não fora na altura, mas que ela já namorava.
        — E há mais uma coisa — disse Deborah, interrompendo-lhe o breve devaneio de Joanna. — Ao
doarmos uns óvulos, já que temos tantos que não farão falta, poderemos assim como que satisfazer os
nossos impulsos de procriação.
        — Agora vejo que estás a brincar comigo — disse Joanna.
        — Não estou nada! — insistiu Deborah. — A nossa doação de óvulos significa que alguns casais
que não podem ter filhos os vão ter, e essas crianças terão metade dos nossos genes. Vai haver umas
“meias Joannas” e “meias Deborahs” por aí.
        —Bem, acho que isso é verdade — concedeu Joanna. Visualizou uma rapariguinha parecida com
ela. Era uma imagem agradável, até perceber que a rapariguinha estava com dois estranhos.
        — Claro que é verdade — disse Deborah. — E a parte boa é que não temos que mudar fraldas
nem perder noites de sono. Podemos tentar?
        —Espera aí! —exclamou Joanna. Levantou as mãos como se quisesse proteger-se.
        — Abranda um pouco! Supondo que nos aceitam, o que é pouco provável, dadas as condições do
anúncio, eu tenho umas questões importantes.
        — Por exemplo?
        —Por exemplo, como é que doamos os óvulos? Quer dizer, qual é a intervenção? Tu sabes que eu
detesto médicos e hospitais.
        — Boa desculpa para alguém que namorou um estudante de medicina na última metade do século.
        — É quando sou eu a doente que o problema começa — disse Joanna.
        — O anúncio diz que há uma estimulação mínima — esclareceu Deborah.
        — Isso é bom?
        — É... — respondeu Deborah. — Geralmente têm de hiperestimular os ovários para que eles
libertem mais óvulos e a hiperestimulação pode causar problemas em algumas pessoas, como uma tensão
pré-menstrual infernal, Fazem a hiperestimulação com hormônios fortes. Acredites ou não, alguns
hormônios vêm de freiras italianas na menopausa.
        — Oh, vá lá! — resmungou Joanna. — Não sou assim tão parva!
        — Juro por Deus — afirmou Deborah. — As pituitárias destas freiras estão a dar à manivela para
produzir hormônios de estimulação das gônadas à grande velocidade. Extraem-nas da urina. Acredita!
        — Está bem, acredito — disse Joanna, com uma expressão de nojo. — Mas voltemos ao assunto:
por que é que achas que a Wingate não faz hiperestimulação?
        — Acho que querem qualidade e não quantidade — disse Deborah. — Mas é uma suposição. Essa
é uma pergunta razoável para lhes fazermos.
        — Como é que obtêm os óvulos?
        — Torno a fazer suposições, mas acho que seria por aspiração com uma agulha. Acho que a
orientação se faz por ultrasom.
        — Agh! — verbalizou Joanna com um arrepio. — Não gosto mesmo nada de agulhas e deve ser
uma bem grande, Onde é que a enfiariam?
        — Na vagina, acho eu — alvitrou Deborah. Joanna voltou a estremecer,
        — Oh, vá lá! — instou Deborah. — Acho que não seria brincadeira nenhuma, mas não pode ser
assim tão mau. Há muitas mulheres que o fazem no quadro da fertilização in vitro e não te esqueças que
falamos de quarenta e cinco mil dólares. Vale algum desconforto,
        — Levaríamos anestesia?
        — Não faço idéia — disse Deborah. — Outra questão para colocarmos.
        — Não posso crer que estás decidida quanto a isto.
        — Mas é uma situação em que todos ganham. Nós arranjamos muita massa e alguns casais
conseguem ter filhos. É como ser pago para ser altruísta.
        — Quem me dera que pudéssemos falar com alguém que já tivesse feito! — disse Joanna.
— Ouve, acho que talvez possamos — disse Deborah. — A questão da doação de óvulos surgiu
num debate de grupo no laboratório de biologia em que eu fui instrutora no último semestre, Foi quando a
Clínica Wingate colocou o primeiro anúncio no Crimson. Uma das calouras disse que tinha sido
entrevistada, aceita e que ia fazê-lo.
        — Como se chamava?
        — Não me lembro, mas sei onde procurar. Ela e a companheira de quarto estavam na mesma
seção do laboratório, e eram ambas ótimas alunas. Deve estar no livro de curso. Vou buscá-lo.
        Enquanto Deborah desaparecia no quarto, Joanna tentava assimilar o que acontecera na sua vida
nos últimos trinta minutos, Sentia-se abalada e algo tonta. As coisas estavam a acontecer à velocidade da
luz.
        — Voilá! — chamou Deborah de dentro do quarto. Segundos depois, surgia à porta e
ziguezagueou até a secretária. — Onde está a lista telefônica da faculdade?
        — Segunda gaveta do lado direito — respondeu Joanna. — Como é que se chama?
        — Kristin Overineyer — disse Deborah. — E a companheira de quarto era Jessica Detrick. Eram
colegas de laboratório e eu dei-lhes as melhores notas da turma. Pegou a lista e folheou as páginas.
        — Que estranho! Não consta aqui. Como é possível?
        — Talvez tenha abandonado o curso — sugeriu Joanna.
        — Não pode ser — refutou Deborah. — Como eu te disse, era uma aluna espetacular.
        — Talvez aquilo da doação de óvulos tivesse sido demais.
        — Estás a gozar!
        — Claro que estou a gozar — disse Joanna. — Mas é curioso.
        — Agora tenho mesmo de aprofundar isto ou tu vais aproveitar a desculpa — disse Deborah.
Folheou rapidamente a lista telefônica, encontrou um número e marcou-o.
        — Estás a ligar para quem?
        — Jessica Detrick — respondeu Deborah, — Talvez ela nos possa dizer como entrar em contato
com Kristin, desde que a antiga companheira de quarto esteja no quarto a estudar numa sexta à noite.
        Joanna pôs-se à escuta depois de Deborah lhe ter feito o sinal de polegar para cima indicando que
Jessica tinha atendido. O interesse de Joanna aumentou quando a expressão de Deborah se toldou e ela
começou a dizer coisas como: “Oh, é horrível!” “Lamento ouvir isso!” e “Que tragédia!”
        Depois de concluir uma conversa algo longa, Deborah pousou o auscultador lentamente e virou-se
para ver Joanna. Imersa em pensamentos, chupava absorta o interior da sua bochecha.
        — Então? — perguntou Joanna. — Não me vais explicar? Qual é a tragédia?
        — A Kristin Overineyer desapareceu — respondeu Deborah. — Ela e outra caloura, chamada
Rebecca Corey, foram vistas pela última vez por um funcionário da Clínica Wingate a darem carona a um
tipo logo à saída da clínica.
        — Ouvi falar em duas alunas que desapareceram na primavera passada— atalhou Joanna. —
Nunca soube os nomes.
        — Mas o que as terá feito dar carona a alguém?
        — Se calhar, conheciam-no.
        — É possível — concedeu Deborah. Agora era a vez dela estremecer. — Estas histórias causam-
me arrepios.
        — As mulheres nunca foram encontradas? E os corpos?
        — Só o carro, que era da Rebecca Corey. Foi encontrado numa paragem de caminhões junto da
portagem de Nova Jersey. Nunca mais ninguém as viu, nem as posses delas, como as bolsas e as roupas.
        — A Kristin doou óvulos?
        — Meia dúzia, e a família abriu um processo, mas a clínica devolveu-os de livre vontade. Pelo
visto, a família queria ter voz ativa na decisão de quem ficaria com eles. Que história triste!
        — Lá se vai a chance de perguntarmos a alguém pelo processo de doação — lamentou Joanna.
        — Podemos sempre ligar para a clínica e pedir o nome de outra doadora — alvitrou Deborah.
        — Se ligarmos para a clínica podemos fazer as nossas perguntas diretamente a eles — disse
Joanna. — Se correr bem, talvez possamos pedir uma referência.
        — Então, estás disposta a tentar?
— Acho que não há mal em obter mais informação — disse Joanna. — Mas certamente que não
vou me comprometer, exceto a uma eventual visita à clínica.
       — Muito bem! — exclamou Deborah. Aproximou-se de Joanna e bateu com as suas mãos nas
dela. — Veneza, aqui vamos nós!

                                  15 de Outubro de 1999
                                         7.05 h.
        Era um lindo dia de outono, com a folhagem verdejante a bordejar a estrada, enquanto Deborah e
Joanna seguiam para o norte, desde Cambridge em direção a Bookford, Massachusetts. O sol estava
convenientemente por detrás delas, ainda que houvesse ocasionais lampejos de luz nos reflexos dos pára-
brisas dos carros que se cruzavam com elas em direção a Boston. As mulheres usavam ambas óculos de
sol e bonés de basebol.
        Não houvera mais conversa desde que tinham contornado Fresh Pond. Cada qual estava absorta
nos seus pensamentos. Deborah ainda se espantava com a rapidez com que tudo se encaixara, como se o
assunto com a Clínica Wingate estivesse predestinado. Os devaneios de Joanna focavam mais o seu
próprio âmago. Mal podia acreditar como a sua vida mudara numa semana e, mesmo assim, como se
sentia apaziguada. No domingo, quando se achara emocionalmente capaz de falar com Carlton e de lidar
com a insistência que esperava dele de casarem em junho, ele estava tão zangado que se recusara a falar
com ela. Ela telefonara e deixara mensagens sem qualquer resultado. Por conseguinte, não tinham falado
a semana inteira, fato que convenceu ainda mais Joanna de que a sua súbita epifania relativamente ao
casamento em geral e a Carlton em particular, tinha sido apropriada. Depois de todos os episódios que ela
tivera de agüentar, daquilo que interpretara como rejeição, parecia inadequado que Carlton agisse
negativamente naquela instância. Na opinião dela, era mau sinal. A comunicação tinha grande prioridade
no sistema de valores de Joanna.
        — Lembraste-te de trazer aquela lista de perguntas que escreveste? — indagou Deborah.
        — Claro que lembrei — respondeu Joanna. Eram perguntas que versavam sobre o que aconteceria
depois da recolha dos óvulos e se haveria limitações à prática de exercício, etc.
        Deborah ficara impressionada com o acolhimento da Clínica Wingate, Ela e Joanna haviam
telefonado para o número que constava no anúncio do Harvard Cumson na segunda-feira de manhã e,
quando se identificaram como possíveis interessadas na doação de óvulos, tinham passado a chamada a
uma Dra. Sheila Donaldson, que por seu turno se oferecera para visitá-las imediatamente. Em menos de
uma hora, a médica chegava ao apartamento no Craigie Arins e impressionara-as com o seu
profissionalismo. Explicara a totalidade do programa e respondera eficientemente a todas as perguntas
que Deborah e Joanna lhe colocaram.
        — Não consideramos ser necessário hiperestimular — dissera a Dra. Donaldson no início da
conversa. — Aliás, não estimulamos nada, Chamamos a isto a nossa abordagem “orgânica”. A última
coisa que queremos é causar problemas às nossas doadoras, como os hormônios sintéticos ou agrupados
podem fazer,
        — Mas como é que têm a certeza de que conseguem mesmo alguns óvulos? — perguntara
Deborah.
        — Por vezes não conseguimos — respondera a Dra. Donaldson.
        — Mas pagam à mesma, não pagam?
        — Com certeza — replicara a Dra. Donaldson.
        — Qual é a anestesia usada? — indagara Joanna. Era a sua maior preocupação.
        — Isso é opção da doadora — dissera a Dra. Donaldson. — Mas o Dr. Paul Saunders, o
responsável pelas extrações, prefere uma anestesia geral ligeira.
        Nessa altura Joanna levantara os polegares para Deborah em assentimento. No dia seguinte à
entrevista, a Dra. Donaldson telefonara logo de manhã para dizer que ambas tinham sido aceitas e que a
clínica gostaria de fazer as intervenções o mais depressa possível, de preferência nessa semana, e que,
fosse como fosse, gostaria de ter notícias delas nesse mesmo dia. Durante as horas que se seguiram, as
mulheres haviam debatido os prós e os contras. Deborah estava inteiramente a favor de prosseguir e o seu
entusiasmo acabou por conquistar Joanna. Ligaram para a clínica e marcaram para essa sexta de manhã.
        — Tens alguma reserva em relação a isto? — perguntou Joanna de repente, quebrando um quarto
de hora de silêncio.
        — Nem por sombras — disse Deborah. — Especialmente se me lembrar do apartamento na Praça
Louisburg que fomos ver. Espero que ninguém o apanhe antes de termos o dinheiro nas mãozinhas.
        — Também depende do vendedor nos querer fazer um segundo empréstimo atalhou Joanna. —
Caso contrário, é acima das nossas possibilidades.
        As mulheres haviam contatado mediadores imobiliários, tanto em Cambridge como em Boston, e
visto vários apartamentos para venda. O da Praça Louisburg em Beacon Hill fora o que mais as
impressionara.
        Era uma das melhores zonas de Boston, central e junto ao metrô da Linha Vermelha, que as
levaria à Praça de Harvard rapidamente.
        — Para dizer a verdade, estou espantada que o preço seja tão razoável.
        — Deve ser porque fica num quarto andar sem elevador — disse Joanna. — E por ser tão
pequeno, especialmente o segundo quarto.
        — Sim, mas esse quarto tem a melhor vista de todo o apartamento, além do enorme guarda-roupa.
        — Não achas que é aborrecido passar pela cozinha para ir para o quarto de banho?
        — Eu passaria pelo apartamento de outra pessoa para ir para o quarto de banho, só pela
oportunidade de morar na Praça Louisburg.
        — Como é que vamos decidir quem fica com esse quarto? — perguntou Joanna.
        — Ei, eu ficaria muito contente com o menor, se é isso que te aflige — disse Deborah.
        — Sério?
        — Sério — disse Deborah.
        — Talvez possamos trocar de algum modo — sugeriu Joanna.
        — Não é preciso — atalhou Deborah. — Fico muitíssimo bem com o quarto menor. Acredita!
        Joanna virou a cabeça para olhar pela janela do passageiro. Quanto mais andavam para o norte,
mais intensas eram as cores outonais. O vermelho dos bordos era tão brilhante que quase não parecia real,
especialmente em contraste com o verde-escuro dos pinheiros ou abetos.
        — Não estás hesitante, pois não? — indagou Deborah.
        — Nem por isso — disse Joanna. — Mas é estonteante como tudo aconteceu tão depressa. Quero
dizer, se tudo correr bem, na semana que vem por esta altura, seremos não só senhorias, como estaremos
em Veneza. É um sonho!
        Deborah tinha encontrado na Internet viagens incrivelmente baratas para Milão, via Bruxelas. De
Milão apanhariam o comboio para Veneza, onde chegariam a meio da tarde. Deborah encontrara também
um alojamento com pequeno-almoço na sestière de San Polo, perto da ponte do Rialto, onde ficariam até
encontrar um apartamento.
        — Mal posso esperar! — exclamou Deborah. — Estou excitadíssima! Benvenuto a Italia,
signorina!
        Estendeu o braço e despenteou o cabelo de Joanna. Joanna inclinou-se, afastou a mão de Deborah
e riu-se.
        —Mille grazie, cara — disse num tom sarcástico de brincadeira. Depois inclinou a cabeça e assou
os dedos pelo cabelo, na esperança de arranjá-lo novamente. — Acho que estou um pouco atordoada pela
rapidez com que a Clínica Wingate está a fazer isto acontecer — disse, enquanto se mirava no espelho
retrovisor para verificar o resultado dos esforços com o cabelo. Joanna era moderadamente obcecada com
o cabelo e o seu aspecto geral, muito mais do que Deborah, que a costumava picar acerca disso.
        — Talvez sejam os clientes que os estão a apressar — disse Deborah. Reajustou o espelho.
        — A Dra. Donaldson falou nisso? — perguntou Joanna.
        — Não — respondeu Deborah. — Eu é que supus. Ela disse que a clínica só está interessada m
duas doadoras, por isso temos sorte em ter ligado.
        — Está ali um letreiro que diz que Bookford é na próxima saída — disse Joanna, apontando. O
sinal era pequeno e estava à frente de uma pequena mata de carvalhos cor de laranja-incandescente.
— Eu vi — disse Deborah, e ligou o pisca.
         Após mais vinte minutos numa estrada estreita de duas vias, ladeada por macieiras e muros que
serpenteavam na paisagem de colinas ondulantes e campos de milho cor de ferrugem, as mulheres
entraram numa vila típica da Nova Inglaterra. Nos arredores estava um enorme cartaz a dizer BEM
VINDO A BOOKFORD, MASSACHUSETS, TERRA DOS BOOKFORD HIGHSCHOOL
WILDCATS, CAMPEÕES DE FUTEBOL ESTADUAL DA 2.a DIVISÃO EM 1993.
         O caminho que saía da auto-estrada transformava-se na Rua Direita e dividia a cidade em duas
direções, norte e sul, Erguiam-se de cada lado os tradicionais grupos de lojas com fachada em tijolo do
virar do século. A cerca de meio caminho, havia uma grande igreja branca com campanário e um relvado
que se estendia até um edifício municipal de granito. Nos passeios seguia um tropel ruidoso e turbulento
de miúdos com mochilas da escola, como aves migratórias sem asas rumo ao norte.
         — É uma cidade louca — comentou Deborah, debruçando-se para ver melhor pelo pára-brisas.
Abrandou para menos de trinta quilômetros por hora. — Parece quase louca demais para ser verdadeira,
como se estivesse num parque temático.
         — Não vi nenhum letreiro da Clínica Wingate — comentou Joanna.
         — Ei, sabes por que é que é preciso um milhão de espermatozóides para fecundar um óvulo?
         — Acho que não — respondeu Joanna.
         — Porque nenhum deles quer parar para perguntar o caminho.
         Joanna deu uma risadinha.
         — Isso deve querer dizer que nós vamos parar.
         — Claro! — rematou Deborah, virando para um parque de estacionamento em frente ao armazém
Rite Smart. Havia estacionamento em espinha de cada lado da Rua Direita, — Queres vir ou esperas
aqui?
         — Não vou deixar o gozo todo para ti — disse Joanna ao sair do carro.
         As mulheres tiveram de se esquivar de crianças que corriam atrás umas das outras pelo passeio a
fora. Os seus gritos e guinchos quase chegavam ao limiar da dor e foi um alívio para ambas as mulheres
fechar a porta da loja atrás delas. No interior pairava um sossego relativo, ao que não era alheio a
ausência de clientes. Nem havia funcionários à vista.
         Depois de encolherem os ombros uma para a outra, pois não aparecia ninguém, as duas mulheres
dirigiram-se ao balcão na parte de trás da loja. Havia lá uma campainha e Deborah tocou-a
decididamente. Foi um barulho considerável no silêncio reinante. Em poucos segundos, apareceu pelas
portas basculantes, como as dos bares nos westerns de Hollywood, um homem obeso e quase calvo, com
uma bata de farmacêutico desabotoada no colarinho. Ainda que a loja estivesse fresca, havia gotas de suor
na sua testa.
         — Em que posso ajudar? — perguntou o dono, alegremente.
         — Estamos à procura da Clínica Wingate — disse Deborah.
         — Não há problema — retrucou o dono. —Fica no Hospital Estadual Psiquiátrico de Cabot.
         — Perdão?! — exclamou Deborah, espantada. — Fica numa instituição psiquiátrica?
         — Sim — respondeu o dono. — o velho Dr. Wingate comprou ou arrendou aquele lugar todo, não
tenho a certeza. Ninguém sabe e não é que interesse muito.
         — Oh, percebo — disse Deborah. — Era uma instituição psiquiátrica.
         — Sim — repetiu o dono. — Durante coisa de cem anos. Também era um sanatório para
tuberculosos. Parece que as pessoas lá em Boston estavam ansiosas por banir os doentes mentais e os
tísicos. Assim, os fechavam numa espécie de fortaleza. Tipo, longe da vista, longe do coração. Há cem
anos, considerava-se que Bookford ficava longe. Nossa, os tempos mudaram mesmo! Agora somos uma
comunidade dormitório de Boston.
         — Eles fechavam as pessoas num sítio? — indagou Joanna. — Não tentavam tratá-las?
         —Acho que sim— replicou o dono. — Mas não havia assim grandes tratamentos naquele tempo,
Bem, isto não é inteiramente verdade. Faziam-se muitas operações lá. Sabem, experiências como esvaziar
pulmões de tuberculosos e lobotomias aos malucos.
         — Parece-me horrível — disse Joanna, e estremeceu.
         — Sim, deve ter sido — anuiu o dono.
— Bem, já não há doentes mentais nem tísicos — acrescentou Deborah.
        — Pois claro que não — disse o dono. — o Cabot, como lhe chamamos por cá, está fechado há
vinte, trinta anos. Acho que foi nos anos 70 que levaram os últimos doentes. Vocês lembram-se: foi
quando os políticos começaram a pensar seriamente na saúde pública. Foi uma tragédia. Acho que
levaram o resto dos doentes de volta para Boston e os deixaram ao deus-dará no parque de Boston
Cominon.
        — Acho que isso foi antes do nosso tempo — disse Deborah.
        — Sim, deve ter razão — concordou o dono.
        — Poderia dizer-nos como chegar ao Cabot? — inquiriu Deborah.
        — Certinho e direitinho — disse o dono. — Vão em que direção?
        — Norte — disse Deborah.
        — Perfeito — disse o dono. — Sigam até ao próximo semáforo e virem à direita, para a Rua
Pierce, com a biblioteca pública na esquina. Do cruzamento pode ver-se a torre de tijolo do Cabot. Fica a
três quilômetros a leste da cidade, depois da Rua Pierce. Não tem nada que enganar.
        As mulheres agradeceram ao farmacêutico e voltaram ao carro.
        — Parece um ambiente encantador para uma clínica de infertilidade — disse Joanna, apertando o
cinto de segurança.
        — Pelo menos já não é um sanatório de tísicos e uma instituição psiquiátrica — alvitrou Deborah,
fazendo marcha-atrás para sair. — Por momentos, estive prestes a regressar a Cambridge.
        — Talvez devêssemos — disse Joanna.
         Não estás a falar a sério, pois não?
        — Não, não estou — admitiu Joanna. — Mas um lugar com uma história assim causa-me
arrepios. Podes imaginar os horrores que lá passaram?
        — Não, não posso — disse Deborah.
        Paul Saunders pousou o memorando que Sheila Donaldson lhe tinha preparado e esfregou os
olhos com os dedos das duas mãos, mantendo os cotovelos na mesa. Estava de volta ao seu gabinete no
quarto andar da torre, depois de passar várias horas a verificar as suas culturas de embriões. Na sua
maioria estavam a correr bem, mas não na perfeição. Ele temia que fosse por causa da idade e da
qualidade dos óvulos, problema que esperava remediar em breve.
        Paul era madrugador. Costumava saltar da cama antes das cinco e estava no laboratório antes das
seis. Assim conseguia despachar muito trabalho antes da chegada das doentes, o que sucedia por volta das
nove. Naquela manhã começava o seu dia cedo porque tinha marcado duas extrações de óvulos. Gostava
de fazer as intervenções o mais cedo possível para que as doadoras tivessem tempo para recuperar da
anestesia e ter alta no mesmo dia. As camas para doentes internadas eram só para emergências e, mesmo
nesses casos, Paul preferia mandá-las para o hospital de cuidados breves mais próximo.
        Tornou a pegar no memorando e, empurrando a cadeira, dirigiu-se às janelas. Eram monstruosas,
de guilhotina, muito mais altas do que o seu escasso metro e sessenta e cinco. A vista consistia no grande
relvado em frente à clínica que se estendia até a vedação de ferro-forjado e arame farpado que circundava
todo o perímetro. À esquerda de Paul ficava a casa de pedra da portaria, donde vinha o acesso alcatroado.
Este avançava na direção de Paul e depois virava à esquerda até desaparecer de vista no estacionamento a
sul do edifício. À distância, podia ver o pináculo da igreja presbiteriana de Bookford, bem como as
chaminés de alguns prédios mais altos, que irrompiam nas cores outonais. No horizonte ficava o sopé da
serra de Berkshire, recortada sob forma de lampejos, cor de púrpura.
        Paul releu o memorando, ponderou um pouco e tornou a olhar a vista. Tinha todas as razões para
estar contente. As coisas não podiam correr melhor e só a idéia trouxe um sorriso à sua cara pastosa.
Parecia incrível que, apenas seis anos antes, ele tivesse sido praticamente expulso de Illinois, perdido as
regalias do hospital e mal tivesse conseguido manter a licença médica. O advogado na altura dissera-lhe
que as coisas pareciam negras e assim ele partira para o leste, devido a uma barulheira estúpida por causa
do faturamento da Medicare e Medicaid. Claro que ele se tinha esticado, mas os colegas de Ginecologia e
Obstetrícia tinham feito o mesmo. Aliás, ele limitara-se a copiar e a refinar uma prática já usada por outro
grupo dentro do mesmo edifício hospitalar. Por que razão o Governo tinha ido atrás dele era ainda um
mistério, coisa que o podia enfurecer se ele pensasse muito nisso. Mas já não era preciso, agora que as
coisas estavam a ficar cor-de-rosa.
         Quando chegara ao Massachusetts, e porque pensara ter dificuldade em obter a licença se a Ordem
dos Médicos de Massachusetts soubesse dos problemas no Illinois, Paul decidira continuar a
especialização com uma bolsa em infertilidade. Fora a melhor decisão da sua vida. Não somente evitara
problemas com licenciamento, como também ganhara entrada num domínio que não tinha propriamente
fiscalização, nem a nível profissional nem em termos de negócios. Além disso, era espantosamente
lucrativo.
         Para ele, a infertilidade era uma combinação ideal, especialmente porque estivera no lugar certo e
no momento certo, por pura sorte, ao conhecer Spencer Wingate, um especialista em infertilidade, já
estabelecido, desejoso de se aposentar, viver à grande, repousar sobre os louros, angariar fundos e realizar
palestras. Agora, Paul mandava em tudo, tanto na pesquisa como na clínica.
         Sempre que Paul pensava na ironia de ser ele um investigador esboçava um sorriso, porque nunca
se imaginara naquele papel. Tinha sido o último do curso de medicina e nunca tivera formação em
investigação. Conseguira não ter uma única aula de Estatística. Mas não tinha importância. Em
infertilidade, os doentes estavam desesperados o bastante para tentar qualquer coisa. Aliás, até queriam
experimentar coisas novas. Paul achava que podia compensar com imaginação o que lhe faltava em
experiência de pesquisa. Sabia que fazia progressos em várias frentes, o que acabaria por torná-lo rico e
famoso.
         Virando às costas à vista que considerava agora o seu domínio, Paul apanhou um vislumbre
fugidio da sua imagem refletida no espelho de moldura barroca pendurado entre as duas janelas
gigantescas. Olhando diretamente para o reflexo, Paul passou a mão pelas faces. Ficou surpreso e
preocupado com a lividez da sua tez, realçada pelo cabelo quase preto, até perceber que se devia
grandemente à luz fluorescente das lâmpadas montadas no teto alto. Riu-se da sua preocupação
momentânea. Sabia que era pálido; com os horários que fazia, a sua pele raramente via a luz do dia, muito
menos o próprio sol, mas sabia que não tinha tão má cara como a que o espelho lhe devolvia. No reflexo,
a tez igualava-se à madeixa branca que era a sua marca.
         Regressou à secretária e prometeu a si próprio ir até a Florida durante o inverno, ou talvez
aproveitar um congresso de Ginecologia e Obstetrícia num local com bom tempo para apresentar algum
do seu trabalho. Paul pensou também que devia arranjar tempo para fazer exercício, pois ganhara peso,
particularmente no pescoço. Não fazia exercício há anos. Paul não era grande atleta, o que lhe trouxera
aborrecimentos na escola secundária de South Side Chicago, onde o desporto tinha um papel social
preponderante. Tentara entrar em algumas equipes, mas nunca dera resultado, o que fizera dele alvo de
escárnio.
         — Eles que olhem para mim agora — disse Paul em voz alta, pensando nas pessoas que tinham
feito pouco dele. — Devem estar a encher sacos de supermercado.
         Sabia que a vigésima reunião da escola era em junho próximo e perguntava-se se deveria ir só
para alardear o seu sucesso na cara daqueles que tinham gozado com ele. Paul pegou no telefone e ligou
para o laboratório. Quando atenderam, pediu para falar com a Dra. Donaldson. Enquanto esperava, releu
o memorando que tinha na mão.
         — Que se passa, Paul? — perguntou Sheila, sem preâmbulo.
         — Recebi o teu memorando —disse Paul. — As duas mulheres que vêm aí: achas que são boas
candidatas?
         — Excelentes — retrucou Sheila. — São ambas saudáveis, com hábitos normais; não têm
problemas ginecológicos; não estão grávidas; negam uso de drogas ou medicações de qualquer espécie e
estão ambas a meio do ciclo.
         — E são mesmo formadas?
         — Afirmativo.
         — Então, devem ser inteligentes.
         — Sem dúvida.
         — Mas por que é que uma delas quer anestesia local? — perguntou Paul.
         — Porque está a fazer doutoramento em Biologia — respondeu Sheila. — Sabe umas coisas de
anestesia. Eu fiz sugestões, mas ela não mordeu a isca. Acho que o Carl poderá tentar.
— Mas tentaste? — insistiu Paul.
        — Claro que tentei — disse Sheila, irritada.
        — Está bem, Carl que fale com ela — redargüiu Paul. Desligou sem se despedir. Sheila conseguia
aborrecê-lo com os óbvios ciúmes.
        — Deve ser a torre que o farmacêutico falou — disse Deborah, apontando pelo vidro.
        Tinham virado da Rua Direita para a Rua Pierce e mal conseguiam discernir à distância a estreita
estrutura de tijolos elevando-se acima da paisagem circundante.
        — Se fica a três ou quatro quilômetros tem de ser uma torre bem alta.
        — Daqui, a silhueta parece-se um pouco com a torre da Galeria Uffizi, em Florença— disse
Deborah. — Que apropriado!
        Assim que deixaram a vila atrás delas, as árvores que ladeavam a estrada não deixaram ver mais
nada da torre nem do próprio complexo Cabot até passarem por um celeiro vermelho em ruínas à direita.
Na curva seguinte viram à esquerda um sinal para a Clínica Wingate, com uma seta apontada para um
caminho de saibro. Entraram na estrada não alcatroada e viram logo a casa de granito da Portaria, com
dois andares, entre as árvores. Era uma estrutura maciça e atarracada, com persianas nas janelas pequenas
e um telhado de xisto com florões trabalhados em cada ponta das vigas-mestras. O madeiramento estava
pintado de preto. Havia gárgulas de pedra nos cantos.
        Acercaram-se e viram que a estrada seguia por baixo da casa, por um túnel, e que tinha a meio
caminho um pesado portão de ferro entrelaçado. Além do portão podia ver-se um relvado aparado há
pouco tempo, único sinal de que o local era utilizado. Havia uma vedação de ferro-forjado e arame
farpado de cada lado da portaria que desaparecia nas árvores circundantes.
        Deborah abrandou e depois parou.
        — Palavra de honra — disse. — o farmacêutico não estava a brincar quando disse que os
internados do Cabot estavam fechados numa fortaleza. Quase parece uma prisão.
        — Não tem mesmo nada de acolhedor — acrescentou Joanna. — Como é que achas que
conseguimos entrar? Vês algum intercomunicador ou teremos de usar algum telefone?
        —Deve haver um monitor de vídeo, ou coisa assim — sugeriu Deborah. — Vou encostar ao
portão.
        Deborah avançou com o carro e entrou no túnel. Assim que parou novamente, abriu-se uma porta
pesada, trabalhada e sem postigo, de onde saiu um homem fardado com uma prancheta na mão.
Aproximou-se da janela do condutor e Deborah baixou o vidro.
        — Em que posso ajudar? — perguntou o guarda em tom agradável, mas decidido. Tinha um
chapéu brilhante com um boné preto como um polícia.
        — Viemos encontrar-nos com a Dra. Donaldson — explicou Deborah.
        — Os vossos nomes, por favor? — pediu o homem.
        — Deborah Cochrane e Joanna Meissner — respondeu Deborah.
        O homem consultou a prancheta, riscou os dois nomes e apontou com a caneta para além do
portão.
        — Sigam aquele acesso para a direita até ao parque de estacionamento. Alguém estará lá à vossa
espera.
        — Obrigada — disse Deborah.
        O homem não respondeu, mas tocou na beira do chapéu. Com grande chiadeira, o pesado portão
de ferro entrelaçado começou lentamente a abrir.
        — Viste a arma que o guarda tinha? — perguntou Deborah num sussurro, depois de subir o vidro
da janela. O guarda ainda estava lá de pé, à esquerda.
        — Seria difícil não ver — retrucou Joanna.
        — Já vi polícias armados em hospitais de cidades do interior — disse Deborah.
        — Mas nunca numa clínica médica rural. Por que raio é que precisam de tanta segurança aqui,
especialmente numa clínica de infertilidade?
        — É de perguntar se querem manter as pessoas fora ou dentro.
        — Nem brinques com isso — admoestou Deborah. Avançou pelo portão aberto.
        — Achas que também fazem abortos? Já vi guardas em clínicas de aborto neste Estado.
— Não deve haver nada mais inadequado numa clínica de infertilidade.
         — Acho que tens razão — anuiu Deborah.
         Saindo do túnel e rodeando um maciço de árvores, as mulheres obtiveram a primeira visão
desobstruída de Cabot. Era uma enorme estrutura de tijolo vermelho com quatro pisos, um telhado de
xisto pontiagudo e inclinado atrás de uma cornija com ameias, pequenas janelas com grades e uma torre
central imponente. A torre tinha janelas maiores, com vários vidros e sem grades. Deborah abrandou.
         — Que choque ver um edifício destes aqui no campo, sozinho. E que arquitetura curiosa, também.
Vendo a torre mais de perto, eu diria que é cópia deliberada da Uffizi. É tão parecida que não pode ter
sido por acaso. Se a memória não me falha, até tem o mesmo estilo de relógio, ainda que o da Uffizi
funcione.
         — Já vi outros edifícios vitorianos como este em Massachusetts — disse Joanna.
         — Há outro em Worcester, em pedra, não em tijolo, e quase do mesmo tamanho. Só que está
deserto. Ao menos este tem uso.
         — A Clínica Wingate deve estar muitíssimo ocupada, para usar estes metros quadrados todos.
         Joanna assentiu.
         Seguindo o caminho para a direita do edifício, Deborah entrou num parque de estacionamento que
tinha, surpreendentemente, muitos carros. As mulheres repararam que havia várias viaturas diferentes dos
habituais Honda Civics ou Chevy Caprices. Um dos automóveis destacava-se particularmente entre os
Mercedes, Porsches e Lexus. Era um Bentley conversível cor de vinho.
         — Valha-me Deus! — comentou Joanna. — Estás a ver o Bentley?
         — É como a arma do guarda, seria difícil não ver.
         A pintura metalizada resplandecia à luz da manhã.
         — Fazes idéia de quanto custa aquele carro? — perguntou Joanna.
         — Nem por sombras.
         — Mais de trezentos mil dólares.
         — Caraca! É obsceno, especialmente numa instituição médica.
         Deborah estacionou num lugar marcado para visitantes. As mulheres saíram do carro e viram uma
porta abrir-se em frente ao parque. Apareceu uma figura feminina alta, de cabelo castanho e bata branca,
que acenou.
         — Ora, este aceno é diametralmente oposto ao que vimos na casa do guarda — disse Deborah.
Devolveu o aceno enquanto ela e Joanna se dirigiam para a porta, a cinqüenta metros de distância.
         — Parece a Dra. Donaldson.
         — Acho que tens razão — disse Deborah.
         — Espero que não nos venhamos a arrepender disto — disse Joanna, subitamente. Caminhava de
cabeça baixa para ver onde punha os pés. — Tenho a sensação desconfortável de que vamos cometer um
grande erro.
         Deborah agarrou o braço da amiga e obrigou-a a parar.
         — Que é que estás a dizer? Não queres continuar com isto? Se for o caso, temos de dar meia-volta
e regressar a Boston. Não quero que penses que te estou a pressionar, porque não é verdade.
         Joanna estreitou o olhar por causa da luz e observou a elegante médica à porta da clínica. Já
estavam perto para perceberem que era a Dra. Donaldson e que esta estava contente de vê-las. Tinha no
rosto delgado um sorriso largo e acolhedor.
         — Fala comigo — disse Deborah, apertando mais o braço de Joanna. Joanna encarou Deborah.
         — Podes olhar-me nos olhos e dizer que estás confiante de que tudo correrá bem?
         — Posso — afirmou Deborah. — Como já te disse dez vezes: só temos a ganhar.
         — Estou a falar das intervenções — insistiu Joanna.
         — Oh, valham-me os santinhos! Estas extrações são canja. As mulheres que fazem tratamentos de
infertilidade passam por isto várias vezes, além das toneladas de hormônios. Para nós não é nada de
especial.
         Joanna hesitou. Os olhos verdes moviam-se de Deborah para a Dra. Donaldson e vice-versa,
enquanto pesava a sua aversão a procedimentos médicos. Nem lhe agradava levar uma vacina. Suspirou,
pigarreou e arvorou um sorriso.
— Está bem, vamos a isto.
       — Tens a certeza? Quer dizer, não te sentes obrigada, pois não? — Joanna abanou a cabeça.
       — Estou bem. Vamos acabar com isto.
       As mulheres recomeçaram a caminhar.
       — Por momentos assustaste-me — disse Deborah.
       — Eu assusto a mim própria, às vezes — comentou Joanna.

                                  15 de Outubro de 1999
                                         7.45 h.
        — Estimo que a vossa viagem de Boston tenha decorrido sem incidentes — disse a Dra.
Donaldson enquanto fechava a porta da clínica atrás delas.
        — Correu bem — respondeu Deborah, mirando uma sala de espera grande e vazia.
        A mobília parecia de estilo escandinavo, moderno e dispendioso, o que contrastava com os
pormenores arquitetônicos do período vitoriano. Havia uma secretária de recepcionista em forma de U e
vazia no meio da sala. Nas paredes havia cadeiras e sofás de pele estofados, e nas mesinhas baixas um
monte de revistas atualizadas.
        — Percebi esta manhã que me esqueci de vos indicar o caminho — disse a Dra. Donaldson. —
Peço desculpa.
        — Não tem importância — redargüiu Deborah. — Eu devia ter perguntado. Mas não nos
atrapalhamos, paramos na farmácia e pedimos indicações.
        — Muito bem — disse a Dra. Donaldson. Entrelaçou as mãos. — Agora vamos começar pelo
princípio. Creio que nenhuma de vós comeu nada desde a meia-noite de ontem.
        Deborah e Joanna assentiram.
        — Excelente! — exclamou a Dra. Donaldson. — Vou ligar ao Dr. Smith, o nosso anestesista, para
ele falar convosco. Entretanto, se quiserem despir os casacos para ficarem à vontade, já poderemos
começar,
        Enquanto a Dra. Donaldson falava do telefone da recepção, Deborah e Joanna tiraram os casacos e
penduraram-nos no bengaleiro.
        — Estás bem? — sussurrou Deborah ao ouvido de Joanna. Podiam ouvir a Dra. Donaldson ao
telefone.
        — Sim, estou ótima — respondeu Joanna. — Por que perguntas?
        — Estás tão calada. Não estás a mudar de idéia outra vez, pois não?
        — Não! Estou enervada com este lugar — explicou Joanna. — Muitas surpresas, como guardas
armados. Até a mobília da sala de espera me incomoda.
        — Compreendo o que queres dizer — anuiu Deborah. — Parece que custou uma fortuna, mas fica
horrorosa no cenário.
        — É estranho. Estas coisas não costumam me incomodar. Desculpa ser uma pilha de nervos.
        — Tenta descontrair-te e pensa em beber café na Praça de S. Marcos. Voltando à sala, a Dra.
Donaldson indicou-lhes um sofá. Já sentadas, informou-as de que o Dr. Carl Smith estava a caminho. Em
seguida, inquiriu se tinham dúvidas.
        — Quanto tempo acha que vai demorar? — perguntou Joanna.
        — Uma extração leva apenas cerca de quarenta minutos — explicou a Dra. Donaldson. — Depois
têm de recuperar algumas horas para passar completamente a anestesia. Quando menos esperarem já
estarão prontas.
        — Vamos sofrer a intervenção ao mesmo tempo? — perguntou Joanna.
        — Não — disse a Dra. Donaldson. — A menina Meissner vai primeiro porque quer anestesia
geral ligeira. Claro que, se a menina Cochrane quiser mudar para anestesia geral, podem decidir quem vai
primeiro.
        — Basta-me a anestesia local — afirmou Deborah.
        — Como quiser — disse a Dra. Donaldson. Olhou de uma mulher para a outra. — Mais dúvidas,
de momento?
        — A clínica ocupa o edifício todo? — inquiriu Deborah.
        — Não, credo! O edifício é enorme. Albergava uma grande instituição psiquiátrica, assim como
um sanatório para tuberculosos.
        — Já sabíamos — disse Deborah.
        — A clínica de infertilidade ocupa dois andares nesta ala somente — explicou a Dra. Donaldson.
— Também temos alguns escritórios na torre. O resto das instalações está vazio, tirando camas velhas e
muito equipamento antigo. É quase um museu.
        — Quantas pessoas trabalham cá? — perguntou Joanna,
        — Temos cerca de quarenta funcionários, mas o número tem aumentado. Para saber com exatidão,
só falando com Helen Masterson, a diretora de Recursos Humanos.
        — Quarenta empregados é muito — opinou Joanna. — Deve ser uma dádiva dos céus, para uma
pequena comunidade rural como esta.
        — Dir-se-ia que sim — disse a Dra. Donaldson. — mas, na realidade, temos um problema crônico
para recrutar pessoal. Temos sempre anúncios nos jornais de Boston, geralmente para técnicos de
laboratório e pessoal administrativo com experiência. As senhoras estão à procura de emprego? — A Dra.
Donaldson sorriu provocadoramente.
        — Não me parece — respondeu Deborah, com um risinho.
        — O único departamento que não tem falta de gente é a quinta — acrescentou a Dra. Donaldson.
        — Nunca tivemos problemas nessa área desde o primeiro dia.
        — A quinta? — inquiriu Joanna. — Que quer dizer a quinta?
        — A Clínica Wingate tem uma grande quinta de produção animal — explicou a Dra. Donaldson.
        — É parte integrante do nosso esforço de investigação. Interessa-nos a pesquisa reprodutiva
básica em espécies além do homo sapiens.
        — Deveras? — indagou Joanna. — Que outras espécies?
        —Espécies que sejam economicamente vantajosas — respondeu a Dra. Donaldson. — Gado
vacum, porcos, criação, cavalos. E, claro, também estamos desenvolvidos na reprodução de animais de
estimação, como cães e gatos.
        — Onde fica a quinta? — perguntou Joanna.
        — Na propriedade logo atrás deste edifício principal, a que chamamos afetuosamente a
“monstruosidade”, e depois de um pinhal cerrado. O sítio é algo idílico. Há um lago, um dique e até um
velho moinho, além dos celeiros, campos de milho, de forragem e cercados. A Instituição Cabot abrangia
oitenta hectares, com alojamento para o pessoal e a sua quinta própria, para que fosse largamente auto-
suficiente na alimentação. O fato de ter a quinta nas instalações foi determinante para arrendarmos a
propriedade. A investigação torna-se muito mais eficiente por termos a quinta próxima do laboratório,
isto sem falar no alojamento.
        — Têm cá um laboratório? — perguntou Deborah.
        — Com certeza — disse a Dra. Donaldson. — E grande. Tenho muito orgulho nele, talvez por ter
sido responsável pela sua instalação.
        — Podemos fazer uma visita guiada? — indagou Deborah.
        — Acho que se pode arranjar — replicou a Dra. Donaldson. — Ah, aqui vem o Dr. Smith.
        As mulheres viraram-se para observar um homem grande e entroncado, de bata vestida, que
entrava na sala de prancheta na mão. Naquele momento, a porta da frente abria-se e entrava um enxame
de funcionários, em animada conversa. Uma mulher dirigiu-se à recepção, enquanto o resto se amontoava
no vestíbulo de onde Smith acabara de sair.
        Depois de se apresentar e de apertar as mãos de ambas, o Dr. Smith sentou-se, cruzou as pernas e
colocou a prancheta no colo.
        — Ora bem — disse, puxando uma de muitas canetas que tinha no bolso do peito. — Menina
Cochrane, parece que prefere anestesia local.
        — Correto — assentiu Deborah.
        — Posso perguntar por quê? — questionou o Dr. Smith.
        — Sinto-me melhor com essa idéia — respondeu Deborah.
— Presumo que a informaram que preferimos anestesia geral ligeira para extrações de óvulos.
         — A Dra. Donaldson assim mo disse — concordou Deborah. — Também disse que a decisão era
minha.
        — Nada mais verdadeiro — disse o Dr. Smith. — Não obstante, gostaria de lhe dizer por que
preferimos tê-la a dormir. Com anestesia geral ligeira, procedemos à extração sob observação
laparoscópica direta. Com anestesia local e paracervical, a extração processa- se com uma agulha guiada
por ultrasom. Comparativamente, é como trabalhar no escuro. — o Dr. Smith parou e sorriu. — Há
dúvidas acerca do que eu disse até agora?
        — Não — disse Deborah, simplesmente.
        — Há mais uma questão — continuou o Dr. Smith. — Com anestesia não podemos controlar a dor
inerente à manipulação intra-abdominal, ou seja, se tivermos problemas para chegar a um dos ovários e
tivermos de manobrar para isso, poderá sentir algum desconforto.
        — Posso arriscar — redargüiu Deborah.
        — Mesmo considerando a questão da dor?
        — Acho que posso com isso — insistiu Deborah. — Prefiro estar acordada.
        O Dr. Smith olhou brevemente para a Dra. Donaldson que encolheu os ombros. Em seguida, fez o
apanhado do histórico médico de ambas as mulheres. Quando terminou pôs-se de pé.
        — Por agora me basta. Agora vão mudar de roupa e encontramo-nos lá em cima.
        — Vão dar-me um sedativo? — perguntou Joanna.
        — Com certeza — respondeu o Dr. Smith. — Será administrado assim que a puserem a soro.
Mais perguntas por agora?
        Nenhuma das mulheres respondeu e o Dr. Smith sorriu e saiu. A Dra. Donaldson acompanhou-as
a uma sala de espera menor e separada. De um lado havia vários vestiários com portas de venezianas e do
outro um conjunto de armários. Uma enfermeira pequenina e de rosto agradável reabastecia o
equipamento das doentes. Encontravam-se várias macas junto às portas basculantes. No meio da sala,
algumas cadeiras, um sofá e uma mesinha cheia de revistas.
        A Dra. Donaldson apresentou as mulheres à enfermeira, que se chamava Cynthia Carson. Por seu
turno, esta deu-lhes indumentárias hospitalares e uma chave de armário para cada uma, junto com a
recomendação de que as prendessem nas batas, e abriu as portas de dois vestiários adjacentes. Nesse
momento, a Dra. Donaldson pediu licença para sair. Pouco depois, Cynthia saía também para ir buscar o
soro, Disse que voltaria num instante.
        — Não se calava com a história da anestesia geral! — exclamou Joanna do vestiário onde estava.
        — Bem podes dizê-lo — anuiu Deborah.
        As mulheres saíram dos respectivos vestiários, apertando o roupão fino com uma mão e agarrando
as próprias roupas com a outra. Desataram a rir quando olharam uma para a outra.
        — Espero não ter um ar tão patético como tu — conseguiu Joanna dizer.
        — Lamento anunciar — replicou Deborah — mas tens mesmo. Dirigiram-se aos armários para
guardar os pertences.
        — Por que é que não cedeste e aceitaste a anestesia geral? — perguntou Joanna.
        — Não vais começar com isso também, pois não? — contrapôs Deborah.
        — Achei que fazia sentido o que o anestesista disse — disse Joanna. — Especialmente quando
falou em dores da manipulação intra-abdominal. Foi o bastante para me dar vertigens. Não achas que
devias reconsiderar?
        — Ouve lá! — saltou Deborah, batendo com a porta do armário e arrancando a chave. Encarou a
amiga. Estava subitamente corada. — Já tivemos esta conversa. Não gosto que me ponham a dormir.
Chama-se fobia. Tu não gostas de agulhas e eu não gosto de anestesia, está bem?
        — Está bem! —disse Joanna. —Credo, tem calma! Eu é que devia estar enervada com isto, não tu.
        Deborah suspirou. Fechou os olhos por segundos e abanou a cabeça.
        — Desculpa. Não queria ser desabrida. Acho que também estou enervada,
        — Não faz mal — apaziguou Joanna.
        Nesse momento, Cynthia reapareceu com uma braçada de objetos, que despejou numa maca.
Pendurou a garrafa de soro que tinha numa mão no respectivo suporte.
— Qual das duas é a Menina Meissner? — chamou.
         Joanna ergueu a mão.
         Cynthia deu uma palmada na maca, que tinha um lençol lavado.
         — E se saltasse para cima desta geringonça para eu a pôr a soro? Depois dou-lhe uma bebida que
a vai fazer sentir como se estivesse na passagem de ano.
         Deborah estendeu a mão e deu uma apertadela no braço da amiga, enquanto trocavam um olhar
compassivo. Joanna fez o que lhe diziam. Deborah passou para o outro lado da maca. Cynthia prosseguiu
com os preparativos da colocação de soro com gestos econômicos e experientes.
         Enquanto isso, ia falando distraidamente do tempo e, antes que Joanna pudesse começar a tremer,
já Cynthia lhe fazia o torniquete no braço esquerdo, abaixo do cotovelo.
         Joanna desviou o olhar e fez uma careta ao sentir a agulha a furar a pele. Logo a seguir já não
havia torniquete e Cynthia punha um penso.
         — Pronto, daqui já está — declarou Cynthia.
         Joanna virou-se. Estava surpresa.
         — O soro já está colocado?
         — Pois está! — disse Cynthia alegremente, enquanto enchia duas seringas com fármacos. — E
agora vem a parte engraçada. Porém, e só para ter a certeza: não tem alergia a medicamento nenhum, pois
não?
         — Não — disse Joanna.
         Cynthia debruçou-se sobre o suporte do soro e tirou a tampa da primeira seringa.
         — Que é que me vai dar? — perguntou Joanna.
         — Quer mesmo saber? — perguntou Cynthia. Acabou a primeira e passou à segunda.
         — Quero!
         — Diazepam e fentanil.
         — Troque isso por miúdos.
         — Valium e um analgésico opiado.
         — Valium conheço. E a outra coisa, o que é?
         —É da família da morfina — explicou Cynthia.
         A enfermeira retirou rapidamente as compressas e outras coisas e deitou tudo num receptáculo
específico. Enquanto registrava algo na prancheta que estava na maca, a porta abriu-se e entrou outra
paciente. Sorriu para as mulheres, dirigiu-se ao cabide da roupa, tirou um conjunto de indumentárias
hospitalares e desapareceu num dos vestiários.
         — Achas que é outra doadora? — perguntou Joanna.
         — Não faço idéia — respondeu Deborah.
         — Chama-se Dorothy Stevens — disse Cynthia em voz abafada, rodeando a maca e destravando
as rodas. — É uma cliente da Wingate, que está cá para outra transferência embrionária, mais uma. A
pobrezita já sofreu muitas desilusões.
         — Eu vou já seguir? — perguntou Joanna quando a maca começou a andar.
         — Vai, sim — disse Cynthia. — Disseram-me que a esperavam urgentemente quando fui buscar o
material para o soro.
         — Posso ir também? — perguntou Deborah. Tinha pegado na mão de Joanna.
         — Receio que não — replicou Cynthia. — Deixe-se estar e descontraia-se. Quando menos esperar
já está lá também.
         — Eu fico bem — disse Joanna, sorrindo para Deborah. — Já sinto aquela coisa do opiado. Não é
nada mau.
         Deborah apertou a mão de Joanna. Antes das portas se fecharem ainda viu Joanna a acenar por
cima do ombro.
         Deborah voltou à sala. Foi até ao sofá e sentou-se pesadamente. Tinha fome por não ter comido
nada desde a noite anterior. Pegou em várias revistas, mas não se conseguia concentrar, muito menos com
o estômago a dar voltas. Tentou imaginar para onde levariam Joanna, naquele edifício enorme e antigo.
Largou as revistas e olhou em seu redor. Lá estava a mesma disparidade entre cornijas e madeiramentos e
o mobiliário que ressaltava na sala de espera maior. Joanna tinha razão: Wingate era um lugar cheio de
contrastes vagamente inquietantes. Deborah queria, tanto como Joanna, ver a extração de óvulos pelas
costas.
        Abriu-se a porta de um dos vestiários e Dorothy Stevens saiu com a roupa na mão, Sorriu para
Deborah antes de ir até aos armários para guardá-la. Deborah observou-a e imaginou como seria enfrentar
tratamentos de infertilidade e desilusões contínuos,
        Dorothy fechou o armário e dirigiu-se aos assentos enquanto prendia a chave na bata. Pegou uma
revista, sentou-se e começou a folheá-la. Aparentemente, sentiu o olhar de Deborah, porque ergueu os
seus olhos incrivelmente azuis. Foi a vez de Deborah sorrir. Depois se apresentou e Dorothy fez o
mesmo. Por momentos, as mulheres fizeram conversa ligeira. Após uma pausa, Deborah perguntou a
Dorothy se ela era doente da Clínica Wingate há muito tempo.
        — Infelizmente, sim — respondeu Dorothy.
        — Tem sido uma experiência agradável?
        — Não me parece que agradável seja o termo certo — replicou Dorothy. — Não tem sido um
caminho fácil, nem por sombras. Mas devo dizer que aqui na clínica me avisaram. Seja como for, nem eu
nem o meu marido vamos desistir, pelo menos por enquanto, até gastarmos o nosso crédito.
        — Vai fazer uma transferência embrionária hoje? — indagou Deborah. Tinha relutância em
admitir que já sabia.
        — A nona — disse Dorothy. Suspirou e depois fez figas com os dedos.
        — Boa sorte — desejou Deborah com sinceridade.
        — Muita falta me faz.
        Deborah imitou o gesto das figas.
        — É a primeira vez que vem à Wingate? — perguntou Dorothy.
        — É — admitiu Deborah. — Para mim e para a minha companheira de quarto.
        — Estou certa de que ficarão satisfeitas com a escolha — disse Dorothy. — Vão ambas fazer in
vitro?
        — Não — disse Deborah. — Somos doadoras de óvulos. Respondemos a um anúncio no Harvard
Crimson.
        — Que maravilha! — proferiu Dorothy, sem esconder a admiração. — Que gesto bonito! Vão dar
esperança a alguns casais desesperados. Aplaudo a vossa generosidade.
        Deborah sentiu-se súbita e desconfortavelmente venal. Queria mudar de assunto antes que
transparecesse o verdadeiro motivo da sua doação. Foi salva pelo abrupto regresso de Cynthia. A
enfermeira entrou pelas portas basculantes sem qualquer aviso.
        — Pronto, Dorothy! — chamou Cynthia com grande entusiasmo. — Está tudo pronto! Siga para a
sala de transferência, que estão preparados para recebê-la.
        Dorothy ergueu-se, respirou fundo e saiu porta fora.
        — Ela é muito corajosa — observou Cynthia quando a porta se fechou. — Espero que este ciclo
seja bem conseguido. Ela merece mais do que ninguém.
        — Quanto é que custa um ciclo? — perguntou Deborah. A preocupação com a sua venalidade
trouxera a questão econômica à superfície.
        — Depende dos procedimentos envolvidos — disse Cynthia. — Mas em média custa entre oito e
dez mil dólares.
        — Minha nossa! — comentou Deborah. — Isso quer dizer que Dorothy e o marido já gastaram
quase noventa mil dólares!
        — Talvez mais — continuou Cynthia — Isso não inclui o tratamento de infertilidade inicial ou
quaisquer outros auxiliares que tenham sido indicados. A infertilidade é uma empresa dispendiosa para os
casais, mesmo porque os seguros não costumam abrangê-la. A maioria dos casais tem de arranjar o
dinheiro.
        Entraram mais duas doentes e Cynthia deu-lhes toda a sua atenção. Pegou a papelada das
mulheres, deu uma olhadela, pegou na indumentária e mandou-as para os vestiários. Deborah ficou
surpreendida com a idade que uma delas aparentava. Não tinha a certeza, mas achou que a mulher parecia
velha, com cerca de cinqüenta anos. Sentindo-se inquieta, Deborah pôs-se de pé.
        — Desculpe, Cynthia — disse. A enfermeira lia agora os papéis das doentes com mais atenção. —
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  • 1. ROBIN COOK CHOQUE http://groups.google.com/group/digitalsource
  • 2. A célula do óvulo humano, ou oócito, que tinha sido atraída pela ligeira sucção da ponta aguçada da pipeta, não se distinguia das suas cerca de sessenta irmãs. Era simplesmente a mais próxima da extremidade da pequena vareta de vidro quando esta entrou no campo de visão do analista. O grupo de oócitos estava suspenso numa gota de fluido de cultura, sob uma fina camada de óleo mineral, e debaixo da objetiva de um potente microscópio de dissecação. O óleo impedia a evaporação. Era sumamente importante que o ambiente destas células vivas permanecesse adequadamente estável. Tal como os outros, o oócito fixado parecia saudável, com uma granulosidade apropriada do respectivo citoplasma. Também como os outros, a sua cromatina, ou ADN brilhava à luz ultravioleta como moscas diminutas numa bruma de sopa de ervilhas. A única prova da prévia rude aspiração da célula do seu folículo em desenvolvimento residia nos restos esfarrapados da corona radiata de células granulosas aderentes ao invólucro, comparativamente denso, denominado zona peflucida. Os oócitos haviam sido todos puxados prematuramente do seu ninho ovariano e encorajados a amadurecer in vitro. Nesse momento, estavam prontos para a penetração espermática, mas não seria o caso. Estes gametas femininos não seriam fertilizados. Surgiu outra pipeta no campo de visão. Parecia um instrumento mais letal, especialmente debaixo da forte ampliação do microscópio. Apesar de ter somente vinte e cinco milionésimos de um metro de diâmetro, parecia uma espada com a ponta afiada como uma agulha. Inexoravelmente, acercou—se do gameta imóvel e indefeso e entrou na zona peflucida da célula. Em seguida, com um toque experiente do analista no micrometro que controlava a pipeta, a ponta desta mergulhou no interior da célula. Avançando para o ADN brilhante, aplicou-se uma ligeira sucção no interior da pipeta e o ADN desapareceu dentro da vareta de vidro. Mais tarde, depois de verificar se o gameta e os seus irmãos tinham agüentado o suplício da enucleação tão bem como se esperava, a célula voltou a ser imobilizada. Introduziu-se outra pipeta afiada, desta vez com a penetração limitada à zona peflucida, poupando a membrana celular do oócito, e em vez de aplicar sucção, inseriu-se uma leve quantidade de fluido no que se chama espaço perivitelino. Junto com o fluido veio uma única célula adulta, menor, em forma de fuso, obtida do esfregaço de uma boca humana adulta. O passo seguinte implicou suspender os gametas, com o seu par de células epiteliais adultas, em quatro mililitros de um meio de fusão, e colocá-las entre os elétrodos de uma câmara de fusão. Quando os gametas já estavam devidamente alinhados, enviou-se uma corrente elétrica de noventa volts para o meio, durante quinze milionésimos de segundo. O resultado foi idêntico em todos os gametas: o choque fez com que as membranas entre os gametas enucleados e respectivas células parceiras adultas se dissociassem momentaneamente, fundindo as duas células. Na seqüência do processo de fusão, as células foram colocadas num meio de ativação. Sob estimulação química, cada gameta que estivera pronto para a fertilização antes da remoção do ADN fazia maravilhas agora, como seu complemento integral de cromossomas. Seguindo um misterioso mecanismo molecular, os núcleos adultos abandonaram os seus anteriores deveres epiteliais e regressaram ao seu papel embrionário. Após breve período, cada um dos gametas começou a dividir-se para formar embriões individuais, os quais brevemente ficariam prontos para implantação. O doador das células adultas havia sido clonado. Na realidade, havia sido clonado cerca de sessenta vezes...
  • 3. PRÓLOGO 6 de ABRIL de 1999 — Sente-se confortável? — perguntou o Dr. Paul Saunders à sua doente, Kristin. Overineyer, deitada na velha mesa de operações, vestida somente com a bata sem costas do hospital. — Acho que sim — respondeu Kristin, embora não estivesse nada confortável. Os ambientes hospitalares causavam-lhe sempre uma ansiedade tolerável, mas nunca agradável, e a sala em questão era particularmente pouco simpática. Tratava-se de um antigo bloco operatório cuja decoração era diametralmente oposta ao utilitarismo estéril de uma unidade médica moderna. Tinha as paredes cobertas por azulejos de um verde-bilioso, rachados e com borrões escuros, provavelmente de sangue que manchara a argamassa. Parecia mais um cenário de filme de terror gótico passado no século xix do que um espaço usado nos dias de hoje. Havia ainda níveis de assentos para observação que desapareciam na obscuridade, para além do alcance dos holofotes suspensos. Ainda bem que os assentos estavam todos vazios. —“Acho que sim” não me convenceu — disse a Dra. Sheila Donaldson do outro lado da mesa de operação, em frente ao Dr. Saunders. Sorriu para a doente, ainda que o único efeito perceptível tenha sido as ruguinhas nos cantos dos olhos. Tinha o rosto oculto por uma máscara cirúrgica e um capuz. — Quem me dera que isto acabasse — conseguiu Kristin dizer. Nesse momento, desejou não ter se oferecido para doação de óvulos. O dinheiro dar-lhe-ia uma liberdade financeira a que poucos dos seus colegas de Harvard poderiam aspirar, mas isso agora não parecia importante. O único consolo é que depressa estaria a dormir; a pequena intervenção seria indolor. Quando lhe tinham dito que escolhesse entre anestesia geral ou local, ela preferira a primeira sem hesitar um segundo. A última coisa que queria era estar acordada enquanto lhe metiam uma agulha de aspiração de 30 cm na barriga. — Espero que possamos tratar disto ainda hoje — disse Paul, sarcástico, ao Dr. Cari Smith, o anestesista. Paul tinha muito que fazer naquele dia e só tinha reservado quarenta minutos para aquela intervenção. Entre a experiência que tinha da operação e a sua destreza com os instrumentos, considerava que estava a ser generoso ao atribuir quarenta minutos. O único obstáculo era Carl; Paul não podia começar enquanto a doente não estivesse adormecida e os minutos passavam inexoravelmente. Carl não respondeu. Paul estava sempre com pressa, Carl concentrou-se em pôr a cabeça do estetoscópio precordial no peito de Kristin. Já tinha o soro a funcionar, a manga da tensão arterial a jeito, as sondas de EM colocadas e o oxímetro do pulso no lugar. Satisfeito com os sons que ouvira através do auricular, esticou o braço e puxou a máquina da anestesia para junto da cabeça de Kristin. Estava tudo a postos. — Pronto, Kristin — disse Carl, apaziguador. — Tal como lhe expliquei antes, vou dar-lhe um pouco de “leite de amnésia”. Está preparada? — Estou — respondeu Kristin. No que lhe dizia respeito, quanto mais depressa melhor. — Boa soneca — desejou Carl. — Da próxima vez que falarmos será na sala de recuperação. Era o comentário habitual de Carl para o doente antes de começar a anestesia e era, com efeito, o curso natural das coisas. Porém, nesta ocasião, não seria assim. Jovialmente inconsciente da catástrofe iminente, Carl pegou no tubo de soro onde tinha inserido o agente anestésico. Com facilidade experimentada, deu à doente a dose predeterminada com base no seu peso, mas nivelada por baixo da dosagem recomendada. Era política da Clínica de Infertilidade Wingate, para anestesia de doentes externas, dar às doentes a quantidade mais baixa de qualquer medicamento apropriado. O objetivo era dar alta no mesmo dia, dado que as instalações da clínica para doentes internadas eram limitadas. Carl observou atentamente enquanto a dose de indução de propofol entrava no organismo de Kristin, olhando e escutando os seus dispositivos de monitorização. Parecia estar tudo em ordem. Sheila riu debaixo da máscara. “Leite de amnésia” era a alcunha que Carl dava na brincadeira ao agente anestésico propofol, administrado sob forma de líquido branco; e o termo nunca deixava de apelar ao sentido de humor dela, — Podemos começar? — inquiriu Paul. Alternou o próprio peso de uma perna para a outra. Sabia que ainda não podia começar, mas
  • 4. queria comunicar a sua impaciência e insatisfação. Não o deviam ter chamado enquanto não estivesse tudo pronto. O seu tempo era valioso demais para ele ficar ali expectante enquanto Carl mexia nos brinquedos dele. Continuando a ignorar a impertinência de Paul, Carl concentrou-se na tarefa de testar o nível de consciência de Kristin. Satisfeito por ela ter atingido um estado apropriado, injetou o relaxante muscular mivacurium, que ele preferia a muitos outros devido ao seu rápido tempo de recuperação espontânea. Depois de o mivacurium fazer efeito, introduziu destramente um tubo endotraqueal para poder controlar as vias respiratórias de Kristin. Depois sentou-se, ligou a máquina da anestesia e fez sinal a Paul de que tudo estava preparado. — Já não era sem tempo — resmungou Paul. Ele e Sheila envolveram rapidamente a doente para a laparoscopia. O alvo era o ovário direito. Carl sossegou, depois de ter introduzido os dados no registro de anestesia. Naquela altura, o seu papel era observar os monitores e manter a anestesia, controlando cuidadosamente o estado de consciência da doente com uma infusão de propofol contínua. Paul movia-se rapidamente e Sheila antecipava cada movimento seu. Com Constance Bartolo, a enfermeira instrumentista, e Maorie Hickarn, a enfermeira volante, a equipe trabalhava com eficiência milimétrica. Nesta altura não havia conversa nenhuma. A primeira finalidade de Paul era introduzir o trocarte da unidade de insuflação para encher a cavidade abdominal da doente com gás. Era a criação de um espaço cheio de gás que viabilizava a cirurgia laparoscópica, Sheila ajudava, prendendo duas pregas de pele em torno do umbigo de Krístin com pinças de compressas e puxando para cima a parede abdominal descontraída. Entretanto, Paul fizera uma pequena incisão no umbigo e começara a empurrar a agulha de insuflação Veress, com quase 30 cm. Em suas mãos experientes, podia ouvir-se distintamente dois estalidos, enquanto a agulha passava para a cavidade abdominal. Segurando firmemente na agulha pelo rolo serrilhado, Paul ativou a unidade de insuflação. Instantaneamente, o dióxido de carbono começou a fluir para a cavidade abdominal de Kristin, ao ritmo de um litro de gás por minuto. Enquanto esperavam que entrasse a quantidade de gás adequada, deu-se a catástrofe. Carl estava preocupado a procurar nos monitores cardiovascular e respiratório sinais da crescente pressão intra- abdominal e não reparou em dois movimentos aparentemente inócuos: Kristin pestanejou e moveu ligeiramente a perna esquerda. Se Carl ou um deles os tivesse notado, teriam percebido que o nível de anestesia de Kristin era baixo. Ainda estava inconsciente, mas quase a acordar, e o desconforto da pressão crescente na barriga contribuiu para despertá-la. Subitamente, Kristin gemeu e soergueu-se. Carl agiu por reflexo, agarrando-lhe os ombros e empurrando-a para baixo. Mas era tarde de mais. Ao levantar-se na mesa, forçara a agulha Veress na mão de Paul a penetrar mais fundo na sua barriga, furando uma grande veia intra-abdominal. Antes de Paul poder parar a unidade de insuflação, uma grande bolha de gás entrara no sistema vascular de Kristin. — Oh, meu Deus! — gritou Carl ao ouvir no auricular o começo do revelador murmúrio de rotação, enquanto o gás chegava ao coração dela; um ruído que parecia o ciclo de centrifugação de uma máquina de lavar. — Temos uma embolia de gás — gritou. — Virem-na para o lado esquerdo! Paul puxou a agulha ensangüentada e atirou-a para o chão. Ajudou Carl a virar Kristin, numa vã tentativa de manter o gás isolado no lado direito do coração. Depois, Paul inclinou-se para cima dela para mantê-la na posição. Mesmo estando ainda inconsciente, ela se debatia. Entretanto, Carl apressava-se a introduzir, o mais assepticamente possível, um cateter na veia jugular de Kristin. Esta resistiu e debateu- se contra o peso que tinha em cima. A inserção do cateter era como tentar atingir um alvo em movimento. Carl pensou em aumentar o propofol ou em dar-lhe mais mivacurium, mas relutava em dispor desse tempo. Por fim, conseguiu pôr o cateter, mas quando puxou o êmbolo da seringa só trouxe uma espuma sanguinolenta. Repetiu a operação com o mesmo resultado. Abanou a cabeça, desalentado, mas antes de poder dizer alguma coisa, Kristin retesou-se e depois entrou em convulsões. O seu corpo foi sacudido por um ataque de grandes proporções. Freneticamente Carl tratou deste novo problema enquanto se debatia com a sensação de fracasso que o assaltava. Sabia muito bem que a anestesiologia era uma profissão marcada por uma rotina repetitiva e entorpecedora, ocasionalmente devastada por episódios de puro terror, e este era o pior que
  • 5. podia acontecer: uma grande complicação com uma pessoa jovem e saudável que sofria uma intervenção meramente eletiva. Tanto Paul como Sheila se tinham afastado com as mãos enluvadas torcidas em frente ao peito. Junto com as duas enfermeiras, assistiam enquanto Carl lutava para acabar com o ataque de Kristin. Uma vez terminado e com Kristin já deitada de costas e imóvel, ninguém disse palavra. O único som que se ouvia, além do ruído abafado do rádio que passava pela porta fechada da sala de esterilização, era a máquina da anestesia a respirar pela doente. — Qual é o veredicto? — perguntou Paul, finalmente. A voz não tinha emoção e ressoava nos azulejos. Carl expirou como um balão a esvaziar-se. Hesitante, estendeu as mãos com os dedos indicadores esticados e abriu as pálpebras de Kristin. Ambas as pupilas estavam muito dilatadas e não reagiram à luminosidade do holofote suspenso. Ele tirou a sua caneta luminosa do bolso e apontou o feixe para os olhos de Kristin. Não houve reação alguma. — Não está com bom aspecto — resmungou Carl. Tinha a garganta seca. Nunca lhe tinha acontecido tal complicação. — Ou seja? — inquiriu Paul. Carl engolia com dificuldade. — Ou seja, eu acho que ela teve um enfarte. Quer dizer, há coisa de um minuto estava bem e agora se passou, só Deus sabe como. Nem sequer respira sozinha. Paul acenou com a cabeça enquanto ponderava a questão. Depois tirou as luvas e atirou-as para o chão, desatou a máscara e deixou-a cair no peito. Olhou para Sheila. —Porque não continua com a intervenção? Pelo menos ganha prática. E faça dos dois lados. — Sério? — indagou Sheila. — Não é de desperdiçar — retrucou Paul. — Que vai fazer? — perguntou Sheila. — Vou procurar Kurt Hermann e ter uma conversinha com ele — disse Paul enquanto desatava e tirava a bata. — Mesmo que seja um incidente infeliz, não é que não tenhamos previsto tal catástrofe, e pelo menos tomamos medidas. — Tenciona informar Spencer Wingate? —perguntou Sheila. O Dr. Wingate era o fundador e diretor titular da clínica. — Não sei — redargüiu Paul. — Depende. Prefiro agüentar e ver no que dá. O que sabe da chegada de Kristin Overineyer à clínica hoje? — Veio no carro dela — respondeu Sheila. — Está no estacionamento. — Veio sozinha? — Não. Tal como lhe dissemos, trouxe uma amiga — disse Sheila. — Chama-se Rebecca Corey e está na sala de espera. Paul encaminhava-se para a porta e trocou um olhar com Carl. — Lamento — disse este. Paul hesitou um momento. Apetecia-lhe dizer ao anestesista o que pensava dele, mas mudou de idéia. Paul queria manter a cabeça fria e, se entrasse numa discussão com Carl naquele momento, ficaria alterado. Já bastava que Carl o tivesse feito esperar tanto tempo. Sem sequer tirar a farda cirúrgica, Paul agarrou numa bata branca comprida na sala adjacente. Enfiou-a enquanto descia escada abaixo. Passando o primeiro andar, saiu para o relvado, que já dava sinais da chegada da primavera. Com o casaco apertado à sua volta por causa do vento fustigante do início de abril na Nova Inglaterra, apressou-se para a portaria de pedra da clínica. Encontrou o chefe da segurança atrás de uma secretária velha e usada, debruçado sobre o calendário departamental para o mês de maio. Se Kurt Hermann ficou surpreendido pela chegada súbita do homem que geria a Clínica Wingate, não o demonstrou. Além de erguer o olhar, o único sinal de percepção da presença de Paul foi levantar a sobrancelha direita. Paul puxou uma das cadeiras de costas direitas que enchiam o esparso gabinete e sentou-se em frente ao chefe da segurança.
  • 6. — Temos um problema — disse Paul. — Estou a ouvir — respondeu Kurt. A cadeira rangeu quando ele se recostou. — Tivemos uma grande complicação com a anestesia. Uma catástrofe, mesmo. — Onde está a doente? — Ainda está no BO, mas sai daqui a pouco. — Nome? — Kristin Overineyer. — Veio sozinha? — perguntou Kurt enquanto tomava nota do nome de Kristin. — Não. Veio com uma amiga chamada Rebecca Corey. A Dra. Donaldson diz que ela está na sala de espera. — Como é o carro? — Não faço idéia — admitiu Paul. — Vamos descobrir— disse Kurt. Ergueu os olhos azuis-metálicos para encarar Paul. — Foi para isto que vos contratamos — afirmou Paul, num tom cortante. — Quero que trate disto e não quero saber mais nada. — Fique descansado — disse Kurt. Ele pousou a caneta com cuidado, como se fosse algo frágil. Por momentos, os dois homens olharam um para o outro. Depois, Paul levantou-se, virou-se e desapareceu na manhã desabrida de abril. 8 de outubro de 1999 23:15 h. —Deixa-me ver se percebi — disse Joanna Meissner a Carlton Wiliams. Os dois estavam sentados às escuras dentro do jipe Cherokee de Carlton numa zona de estacionamento proibido em Cambridge, Massachusetts. — Tu decidiste que era melhor só casarmos depois de tu acabares o estágio de Cirurgia, daqui a três ou quatro anos. — Ainda não decidi nada — disse Carlton, na defensiva, — Estamos a debater isto agora. Joanna e Carlton tinham ido jantar na Praça de Harvard, nessa noite de sexta-feira e estavam a divertir-se até Joanna mencionar a questão problemática dos seus planos a longo prazo. Como sempre, a partir desse momento, o tom da conversa tinha se deteriorado. Já tinham abordado o assunto várias vezes no passado, a propósito do seu noivado. Tinham uma relação já longa; conheciam-se desde o jardim de infância e só tinham namorado um com o outro desde o nono ano, — Escuta — disse Carlton, apaziguador. — Só estou a tentar pensar no que é melhor para nós dois. — Oh, tretas! — saltou Joanna. Apesar de ter prometido a si própria manter a calma, podia sentir a raiva a fervilhar, como se fosse um reator nuclear prestes a explodir. — Estou a falar sério! — disse Carlton. — Joanna, estou a trabalhar que nem um cão. Tu sabes quantas vezes estou de banco. Sabes as horas... Ser estagiário no Massachusetts General Hospital é muito mais exigente do que eu imaginava, — Mas que diferença faz? — estalou Joanna, incapaz de dissimular a irritação, que era dolorosamente óbvia. Não podia evitar sentir-se traída e rejeitada. — Faz muita diferença — persistiu Carlton. — Estou esgotado. Não sou boa companhia. Não consigo ter uma conversa normal fora do âmbito do hospital. É patético. Nem sei o que se passa em Boston, quanto mais no mundo. — Esse tipo de comentário podia ter alguma validade se nós saíssemos casualmente. Mas o fato é que nós namoramos há onze anos. E até eu abordar este assunto delicado de marcar a data esta noite, tu estavas a divertir-te e eras boa companhia. — Porque gosto muito de te ver... — disse Carlton. — Que reconfortante! — interpôs Joanna, sarcástica. — o que eu acho ainda mais irônico nisto tudo é que foste tu quem me pediu em casamento e não o contrário. Só que já foi há sete anos. Eu diria que isto demonstra que o teu ardor arrefeceu significativamente.
  • 7. — Não arrefeceu nada — protestou Carlton. — Eu quero casar contigo. — Lamento, mas não és convincente; não ao fim deste tempo todo. Primeiro querias acabar o curso. Tudo bem. Não havia problema. Até achei apropriado. Depois achaste que podias fazer os primeiros dois anos de Medicina. Nem isso me incomodou, já que assim consegui fazer a maior parte do trabalho para o meu doutoramento. Mas depois pensaste que era melhor adiar as coisas até acabares medicina. Estabelece-se aqui um padrão ou só eu é que o vejo? Depois veio a questão de passar o primeiro ano de estágio. E estúpida como sou até concordei nisso, mas agora é o estágio todo. E a bolsa de que falaste no mês passado? Depois disso até és capaz de querer esperar até abrir consultório. — Estou a tentar ser racional acerca disto — disse Carlton. — É uma decisão difícil, e compete- nos aos dois pesar os prós e contras... Joanna já não o ouvia. O seu olhar verde-esmeralda afastou-se do rosto do noivo que, reconhecia ela, nem a olhava enquanto falava, Aliás, evitara olhar para ela durante a conversa toda; tanto quanto se apercebera, ele só a olhara de soslaio durante o seu monólogo. Com ar ausente, olhou para longe. De repente, era como se uma mão invisível a tivesse esbofeteado. A sugestão de Carlton de adiar novamente a data do casamento causara uma epifania e ela deu por si a rir, não com humor, mas de descrença. Carlton parou a meio da sua enumeração dos prós e contras de casar mais cedo e não mais tarde. — De que é que estás a rir? — perguntou. Ele ergueu os olhos com que fixava as chaves na ignição e olhou para Joanna na obscuridade do carro. O rosto dela era uma silhueta contra a janela, iluminado por um candeeiro cuja luz brotava pelo vidro adentro. O seu perfil elegante e delicado estava recortado pelo cabelo lustroso e loiro como espiga de milho, que parecia brilhar à média luz. Lampejos como diamantes brilhavam nos seus dentes brancos, pouco visíveis através dos lábios entreabertos e cheios. Para Carlton, era a mulher mais bela do mundo, mesmo quando o atormentava. Ignorando a pergunta de Carlton, Joanna continuou a rir suave e tristemente, à medida que a clareza da sua revelação se aprofundava. Subitamente conseguira reconhecer a pertinência daquilo que a sua companheira de quarto Deborah Cochrane e as suas outras amigas lhe andavam a apregoar desde sempre, nomeadamente, que o casamento de per si não devia ser a finalidade da vida dela. Afinal, estavam certas: ela tinha sido programada durante toda a sua educação suburbana típica de Houston. Joanna não podia crer que tinha sido tão estúpida durante tanto tempo e tão renitente em questionar um sistema que aceitara de olhos vendados. Ainda bem que, enquanto flutuava à espera de Carlton, tivera a esperteza de lançar as bases de uma carreira compensadora. Só lhe faltava a tese de doutoramento em Economia em Harvard, além de possuir extensas competências informáticas. — De que é que estás a rir? — insistiu Carlton. — Vá lá! Fala comigo. — Estou a rir de mim própria — disse finalmente Joanna. Virou-se para encarar o noivo. Ele parecia perplexo, de sobrolho franzido. — Não percebo — disse Carlton. — É curioso — redargüiu Joanna. — Eu vejo tudo com grande clareza. Olhou para o anel de noivado na mão esquerda. O solitário de diamante sugava a fraca luz circundante e devolvia-a a Joanna com surpreendente intensidade. A pedra pertencera à avó de Carlton e Joanna ficara radiante ao recebê-la, devido ao seu valor sentimental. Mas agora só lhe recordava a sua própria ingenuidade. Uma súbita sensação de claustrofobia assaltou Joanna. Sem aviso, destrancou a porta, escorregou para fora do carro e ficou em pé, no passeio. — Joanna! — chamou Carlton. Debruçou-se no carro e espreitou. O rosto de Joanna tinha uma expressão decidida. Os seus lábios habitualmente suaves estavam apertados com determinação sombria. Carlton começou a perguntar a Joanna o que se passava, ainda que já calculasse. Ainda antes de acabar a frase, a porta do carro bateu-lhe na cara. Endireitou-se e procurou o comando do vidro da janela do passageiro. Quando a janela abriu, Joanna virou-se para ele. O seu semblante não tinha mudado. — Não me insultes a perguntar o que se passa — disse ela. — Estás a ser pouco adulta nisto — afirmou Carlton, firmemente. — Obrigada pela tua apreciação imparcial — retrucou Joanna. — Também te quero agradecer por tornares as coisas tão claras para mim. Fica muito mais fácil tomar decisões.
  • 8. — Tomar decisões acerca de quê? — perguntou Carlton. A firmeza na voz que encontrara antes desaparecera. Agora balbuciava. Tinha um pressentimento acerca do que se seguia, junto com uma sensação de desânimo na boca do estômago. — Acerca do meu futuro — disse Joanna. — Toma! — estendeu o punho fechado com evidente intenção de dar algo a Carlton. Carlton esticou a mão em concha. Sentia que lhe ia cair alguma coisa na mão. Olhou para baixo e viu o diamante da avó. — Isto é para quê? — titubeou Carlton. — Parece-me muito claro — disse Joanna. — Considera-te livre para acabares o estágio e o que mais a tua cabecinha desejar. Não quero que pense em mim como um fardo. — Não estás a falar a sério? — indagou Carlton. Fora apanhado desprevenido pela viragem nos acontecimentos, e estava aturdido. — Oh, mas estou mesmo — disse Joanna. — Considera o nosso noivado oficialmente acabado. Boa noite, Carlton. Joanna virou-se e caminhou pela Rua Craigie em direção à Avenida Concord e à entrada do Craigie Arins. O apartamento dela ficava no terceiro piso, Após breve luta com o comando da porta, Carlton saltou do jipe e correu atrás de Joanna, que já chegara à esquina. Algumas folhas vermelhas de ácer, caídas nesse mesmo dia, restolhavam debaixo dos seus pés. Apanhou a sua antiga noiva quando ela estava prestes a entrar no prédio. Estava ofegante. Segurava o anel de noivado na mão fechada. — Está bem — conseguiu Carlton dizer. — Já te afirmaste. Toma lá o anel. — Estendeu o braço. Joanna abanou a cabeça. A sua determinação sombria desaparecera para dar lugar a um tênue sorriso. — Eu não te devolvi o anel para fazer joguinhos. Nem estou realmente zangada. É evidente que não te queres casar agora e, de repente, eu também não. Deixemos o assunto. Ainda somos amigos. — Mas eu amo-te — balbuciou Carlton. — Sinto-me lisonjeada — disse Joanna. — E acho que ainda te amo, mas as coisas arrastam-se há demasiado tempo. Vamos seguir caminhos separados, pelo menos por agora. — Mas... — Boa noite, Carlton — disse Joanna. Pôs-se em bicos de pés e tocou com os lábios na face de Carlton, Momentos depois estava no elevador. Não olhara para trás. Ao rodar a chave na fechadura percebeu que tremia. Apesar da forma altiva como despachara Carlton, sentia as emoções em torvelinho logo à superfície. — Uau! — exclamou a companheira de quarto, Deborah Cochrane. Olhou para a barra de ferramentas do seu computador para ver as horas. — É muito cedo para uma sexta à noite. Que é que te deu? Deborah vestia roupas largas com o brasão de Harvard. Em comparação com a feminilidade de porcelana da sua companheira, parecia algo maria-rapaz, com cabelo escuro curto, uma tez mediterrânica e porte atlético. As suas feições ajudavam, sendo fortes e mais arredondadas do que as de Joanna, mas não menos femininas, No conjunto, as companheiras de quarto complementavam-se e enfatizavam o encanto natural uma da outra. Joanna não respondeu, enquanto pendurava o casaco no armário do vestíbulo. Deborah observou-a entrar na sala pouco mobiliada e a cair no sofá. Sentou-se, enlaçou os joelhos com os braços e encarou o olhar inquisidor de Deborah. — Não me digas que tiveram uma discussão — disse esta. — Não foi bem uma discussão — retrucou Joanna. — Só uma separação de caminhos. Deborah ficou de queixo caído. Conhecia Joanna há seis anos, desde calouras, e Carlton era algo fixo na vida de Joanna. No que lhe dizia respeito, não havia o menor vestígio de discórdia naquele relacionamento. — Que é que aconteceu? — perguntou, espantada. — Vi a luz, de repente — respondeu Joanna. Tinha um leve trinado na voz, que Deborah notou logo. — Acabei o noivado e, muito mais importante, não vou contar com casamento nenhum, ponto final.
  • 9. Se acontecer, ótimo; se não, também não faz mal. — Palavra de honra! — exclamou Deborah, incapaz de esconder a alegria na sua voz. — Nem pareces a rapariguinha casadoira que só pensava em bolos e vestidos, e de quem eu aprendi a gostar. Por que é que mudaste de idéia? — Deborah considerava a marcha de Joanna para o casamento, quase religiosa na sua intensidade inabalável. — Carlton queria adiar o casamento até acabar o estágio — explicou Joanna. Resumidamente, contou os últimos quinze minutos da sua saída com Carlton. Deborah escutava atentamente. — E tu estás bem? — perguntou Deborah quando Joanna acabou. Inclinou-se para a frente para olhá-la mais de perto. — Melhor do que poderia imaginar — admitiu ela. — Sinto-me algo abalada, acho eu, mas, apesar de tudo, até estou bem. — Então, isto pede uma comemoração — interpôs Deborah. Levantou-se e foi até a cozinha. — Ando a guardar aquela garrafa de champanhe a ocupar a geladeira há meses — disse por cima do ombro. — Este é o momento de abri-la. — Deve ser — conseguiu dizer. Não se sentia com vontade de comemorar, mas resistir ao entusiasmo de Deborah daria muito trabalho. — Ora bem! — proferiu Deborah, saindo da cozinha com a garrafa na mão e duas taças na outra. Ajoelhou-se junto à mesinha e atacou a garrafa. A rolha saltou com um pop e ricocheteou no teto. Deborah riu, mas reparou que Joanna não. — Tens certeza de que estás bem? — perguntou Deborah. — Tens que convir que é uma grande alteração. — Isso é um eufemismo — retrucou Deborah. —Conhecendo-te como conheço, é o equivalente à queda de São Paulo a caminho de Damasco. Foste programada para o casamento pelo ambiente social de Houston desde que não eras mais do que a luz dos olhos da tua mãe. Joanna riu-se contra vontade. Deborah deitou o champanhe depressa demais. As taças ficaram cheias de espuma e entornaram em cima da mesa. Decidida, Deborah pegou nelas e passou uma a Joanna. E depois fez Joanna brindar com ela. — Bem-vinda ao século XXI! — declarou Deborah. Ambas as mulheres ergueram as taças e tentaram beber. Tossiram com a espuma e riram. Sem querer perder o momento, Deborah levou rapidamente as taças para a cozinha, lavou-as e regressou. Desta vez deitou o champanhe com mais cuidado, deixando-o correr pelos lados das taças, Quando beberam, estava quase todo líquido. — Não é o melhor espumante — admitiu Deborah. — Mas não me espanta, Foi o David que me deu, naquele tempo. Infelizmente ele era sovina como o Tio Patinhas. Deborah tinha acabado um relacionamento de quatro meses com o anterior namorado, David Curtis, na semana anterior. Totalmente ao contrário de Joanna, o relacionamento mais longo que tivera durara menos de dois anos e tinha sido no tempo da escola. As duas mulheres não podiam ser mais diferentes. Ao invés do meio social suburbano, sulista e abastado, com bailes de debutantes financiados por dinheiro do petróleo que Joanna conhecera, Deborah crescera em Manhattan com uma mãe solteira e boêmia que estava imersa na vida acadêmica. Deborah nunca conhecera o pai, pois fora a perspectiva do seu nascimento que pusera termo à relação dos pais. A mãe só se casara muito mais tarde, quando Deborah já tinha entrado para a universidade. — Nunca fui grande apreciadora de champanhe — disse Joanna. — Aliás, nem saberia dizer se é do bom ou não. Revirou a taça entre os dedos, momentaneamente hipnotizada pela efervescência. — Que aconteceu ao teu anel? — perguntou Deborah, reparando pela primeira vez que a jóia desaparecera. — Devolvi-o — respondeu Joanna com ar casual. Deborah abanou a cabeça. Estava abismada. Joanna adorava aquele diamante e tudo o que ele representava. Raramente o tirava do dedo, — Estou decidida quanto a isto — declarou Joanna.
  • 10. — Pois parece que sim — atalhou Deborah. Tinha ficado sem fala. O telefone quebrou o curto silêncio. Deborah levantou-se para atender. — Deve ser o Carlton, mas eu não quero falar com ele — disse Joanna. Deborah verificou a identificação do número. — Tens razão, é o Carlton. — Deixa o atendedor de chamadas ligado — disse Joanna. Deborah voltou a sentar-se no sofá. As duas mulheres entreolharam-se enquanto o telefone continuava a tocar. Depois do quarto toque a máquina atendeu. Houve um silêncio enquanto corria a mensagem de atendimento. A seguir ouviu-se a voz ansiosa de Carlton, junto com algum ruído estático, enchendo a sala pouco mobiliada. — Tens razão, Joanna! Esperar que eu acabe o estágio é uma parvoíce. — Eu nunca disse que era uma parvoíce — interpôs Joanna num sussurro forçado, como se o interlocutor pudesse ouvir. — E sabes que mais? — continuava Carlton. — Vamos avançar e marcar para junho próximo. Se bem me lembro, sempre quiseste um casamento em junho. Bem, junho está bem para mim. Seja como for, liga-me assim que receberes esta mensagem e depois podemos conversar, está bem? O atendedor fez mais uns ruídos mecânicos antes da luz vermelha começar a piscar. — Isto mostra o pouco que ele sabe — disse Joanna. — A minha mãe nunca conseguiria organizar um decente casamento à moda de Houston em oito meses, — Ele parece algo desesperado — disse Deborah. — Se lhe quiseres ligar e precisares de privacidade eu desapareço. — Não quero falar com ele — disse rapidamente Joanna, — Agora não. Deborah inclinou a cabeça para um lado e estudou o rosto da amiga, Queria dar-lhe apoio, mas naquele momento não sabia bem como fazer esse papel. — Não se trata de uma discussão entre nós — explicou Joanna. — Nem de um joguinho de namorados. Não estou a ser manipuladora e, com franqueza, sentir-me-ia constrangida se nos casássemos agora. — Grande viragem, — Exatamente — aprovou Joanna. — Cá está ele a tentar antecipar a data e eu a querer adiar. Preciso de tempo e espaço. — Compreendo muito bem — disse Deborah. — E sabes uma coisa? Acho que és inteligente em não deixares que a situação se transforme num debate petulante. — O problema é que eu o amo mesmo — disse Joanna com um sorriso de esguelha. — Se houvesse debate, eu poderia perder. Deborah riu-se. — Concordo. Te converteste tão recentemente a esta nova e mais sensata atitude perante o casamento que estás vulnerável a uma recaída. Precisas mesmo de tempo e espaço. E sabes? Acho que tenho a resposta. — A resposta a quê? — indagou Joanna. — Vou mostrar-te uma coisa — disse Deborah. Pôs-se de pé e tirou o jornal Harvard Crimson da sua secretária. Estava dobrado no sentido do comprimento na seção dos classificados. Passou o jornal a Joanna. Ela varreu a página e leu o anúncio sublinhado, Ergueu o olhar para Deborah, interrogativamente. — Querias que eu visse este anúncio da Clínica Wingate? — Pois queria — respondeu Deborah, entusiástica. — É um anúncio a pedir doadoras de óvulos — disse Joanna. — Precisamente — retrucou Deborah. — E em que é que isto é a resposta? — inquiriu Joanna. Deborah rodeou a mesinha e sentou-se ao lado de Joanna. Apontou com o dedo indicador para a retribuição oferecida. — O dinheiro é a resposta — disse. — Quarenta e cinco mil dólares o tiro! — Este anúncio saiu no Crimson na primavera e causou polêmica — disse Joanna. —Depois
  • 11. nunca mais apareceu. Achas que é genuíno ou que é uma brincadeira de estudantes? — Acho que é genuíno — respondeu Deborah. — A Wingate é uma clínica de infertilidade em Bookford, Massachusetts, depois de Concord. Foi o que eu percebi na página deles na Internet. — Por que é que pagariam tanto dinheiro? — perguntou Joanna. — Na página dizem que têm clientes ricos dispostos a pagar pelo melhor. Pelos vistos, os clientes querem gente de Harvard. Deve ser como aquele banco de esperma na Califórnia, onde os doadores são todos laureados com o prêmio Nobel. É loucura de um ponto de vista genético, mas quem somos nós para discutir? — Nós não somos propriamente laureadas com o prêmio Nobel — disse Joanna. — Tecnicamente, nem sequer somos gente de Harvard. Por que é que achas que eles estariam interessados em nós duas? — E por que não? — contrapôs Deborah. — Acho que estar numa pós-graduação equivale a ser aluno. Não me parece que só queiram não licenciados. Aliás, na página especificam que querem mulheres até vinte e cinco anos. Passamos à justa. — Mas também diz que temos de ser emocionalmente estáveis, atraentes, não ter peso a mais, e ter porte atlético. Não estaremos a esticar a realidade um pouco? — Olha, eu acho que somos perfeitas. — Com porte atlético? — questionou Joanna com um sorriso. — Tu talvez, agora eu não. E emocionalmente estáveis. Isso é dizer muito, especialmente no meu estado atual. — Bem, podemos tentar — disse Deborah. — Tu podes não ser a mulher com mais porte atlético da faculdade, mas vamos dizer-lhes que só queremos doar se formos as duas. Têm de aceitar a ambas. Tudo ou nada. E as nossas notas são boas. — Estás mesmo a falar a sério? — perguntou Joanna. Observou a sua companheira de quarto, que podia ser muito gozadora quando estava para aí virada. — A princípio não estava — admitiu Deborah. — Mas depois comecei a pensar nisso ao fim da tarde. Quer dizer, o dinheiro é sedutor, Já viste: quarenta e cinco mil por cabeça! Com esse dinheiro teríamos liberdade pela primeira vez na vida, mesmo enquanto escrevíamos a tese. E agora que tu optaste por sair da segurança econômica do objetivo casamento, a idéia devia ser ainda mais sedutora para ti. Precisas de liquidez, além da tua formação, para manteres a tua decisão e, com franqueza, para começares a organizar a vida de uma única pessoa. Este dinheiro poderia ser um começo. Joanna atirou o jornal para a mesinha. — Às vezes não sei quando é que estás a brincar comigo ou não. — Ouve, não estou a brincar. Disseste que precisas de tempo e espaço. É o que este dinheiro pode comprar e muito mais. Fazemos assim: vamos à Clínica Wingate, damos-lhes uns óvulos e ganhamos noventa brasas. Tiramos cinqüenta e compramos um apartamento com dois quartos em Boston ou Cambridge, o qual arrendamos para pagar o empréstimo. — Por que é que haveríamos de comprar um apartamento para arrendá-lo? — Deixa-me acabar — disse Deborah. — Mas não seria melhor investir as cinqüenta brasas? Lembra-te, eu sou a economista e tu és a bióloga. — Tu até podes ir fazer um doutoramento em Economia, mas não sabes nada no que toca a ser mulher solteira no século XXI. Por isso, cala-te e escuta. Compramos um apartamento para começar a criar raízes, Nas gerações anteriores, as mulheres conseguiam isso com o casamento, mas agora temos de agir por conta própria. Um apartamento seria um bom começo e um bom investimento. —Palavra de honra! —exclamou Joanna. — Estás mesmo mais avançada do que eu. — Podes apostar que sim — redargüiu Deborah. — E há mais. Esta é a parte melhor: pegamos nas outras quarenta brasas e vamos para Veneza para fazer as nossas teses de doutoramento. — Veneza! — gritou Joanna. — És louca, menina! — Ah, sou!!? — perguntou Deborah. — Pensa só. Quando tu pensas que precisas de tempo e espaço, o que poderia ser melhor? Estaríamos em Veneza numa casinha amorosa e o Carlton aqui a fazer o estágio. Fazemos as teses e vivemos um pouco sem o querido doutor sempre em cima de ti. Joanna parecia absorta, enquanto invocava imagens de Veneza. Já estivera na cidade mágica uma
  • 12. vez, mas só durante alguns dias, e tinha ido com os pais e irmãos, estava ela no secundário. Podia imaginar o brilho das águas no Grand Canal, refletindo as fachadas góticas. Com igual clareza, podia recordar o bulício da Praça de São Marcos com as músicas concorrentes das duas casas de café em frente uma da outra. Naquela altura prometera a si própria que voltaria um dia àquela cidade tão romântica. Claro que a fantasia incluía Carlton, que não fora na altura, mas que ela já namorava. — E há mais uma coisa — disse Deborah, interrompendo-lhe o breve devaneio de Joanna. — Ao doarmos uns óvulos, já que temos tantos que não farão falta, poderemos assim como que satisfazer os nossos impulsos de procriação. — Agora vejo que estás a brincar comigo — disse Joanna. — Não estou nada! — insistiu Deborah. — A nossa doação de óvulos significa que alguns casais que não podem ter filhos os vão ter, e essas crianças terão metade dos nossos genes. Vai haver umas “meias Joannas” e “meias Deborahs” por aí. —Bem, acho que isso é verdade — concedeu Joanna. Visualizou uma rapariguinha parecida com ela. Era uma imagem agradável, até perceber que a rapariguinha estava com dois estranhos. — Claro que é verdade — disse Deborah. — E a parte boa é que não temos que mudar fraldas nem perder noites de sono. Podemos tentar? —Espera aí! —exclamou Joanna. Levantou as mãos como se quisesse proteger-se. — Abranda um pouco! Supondo que nos aceitam, o que é pouco provável, dadas as condições do anúncio, eu tenho umas questões importantes. — Por exemplo? —Por exemplo, como é que doamos os óvulos? Quer dizer, qual é a intervenção? Tu sabes que eu detesto médicos e hospitais. — Boa desculpa para alguém que namorou um estudante de medicina na última metade do século. — É quando sou eu a doente que o problema começa — disse Joanna. — O anúncio diz que há uma estimulação mínima — esclareceu Deborah. — Isso é bom? — É... — respondeu Deborah. — Geralmente têm de hiperestimular os ovários para que eles libertem mais óvulos e a hiperestimulação pode causar problemas em algumas pessoas, como uma tensão pré-menstrual infernal, Fazem a hiperestimulação com hormônios fortes. Acredites ou não, alguns hormônios vêm de freiras italianas na menopausa. — Oh, vá lá! — resmungou Joanna. — Não sou assim tão parva! — Juro por Deus — afirmou Deborah. — As pituitárias destas freiras estão a dar à manivela para produzir hormônios de estimulação das gônadas à grande velocidade. Extraem-nas da urina. Acredita! — Está bem, acredito — disse Joanna, com uma expressão de nojo. — Mas voltemos ao assunto: por que é que achas que a Wingate não faz hiperestimulação? — Acho que querem qualidade e não quantidade — disse Deborah. — Mas é uma suposição. Essa é uma pergunta razoável para lhes fazermos. — Como é que obtêm os óvulos? — Torno a fazer suposições, mas acho que seria por aspiração com uma agulha. Acho que a orientação se faz por ultrasom. — Agh! — verbalizou Joanna com um arrepio. — Não gosto mesmo nada de agulhas e deve ser uma bem grande, Onde é que a enfiariam? — Na vagina, acho eu — alvitrou Deborah. Joanna voltou a estremecer, — Oh, vá lá! — instou Deborah. — Acho que não seria brincadeira nenhuma, mas não pode ser assim tão mau. Há muitas mulheres que o fazem no quadro da fertilização in vitro e não te esqueças que falamos de quarenta e cinco mil dólares. Vale algum desconforto, — Levaríamos anestesia? — Não faço idéia — disse Deborah. — Outra questão para colocarmos. — Não posso crer que estás decidida quanto a isto. — Mas é uma situação em que todos ganham. Nós arranjamos muita massa e alguns casais conseguem ter filhos. É como ser pago para ser altruísta. — Quem me dera que pudéssemos falar com alguém que já tivesse feito! — disse Joanna.
  • 13. — Ouve, acho que talvez possamos — disse Deborah. — A questão da doação de óvulos surgiu num debate de grupo no laboratório de biologia em que eu fui instrutora no último semestre, Foi quando a Clínica Wingate colocou o primeiro anúncio no Crimson. Uma das calouras disse que tinha sido entrevistada, aceita e que ia fazê-lo. — Como se chamava? — Não me lembro, mas sei onde procurar. Ela e a companheira de quarto estavam na mesma seção do laboratório, e eram ambas ótimas alunas. Deve estar no livro de curso. Vou buscá-lo. Enquanto Deborah desaparecia no quarto, Joanna tentava assimilar o que acontecera na sua vida nos últimos trinta minutos, Sentia-se abalada e algo tonta. As coisas estavam a acontecer à velocidade da luz. — Voilá! — chamou Deborah de dentro do quarto. Segundos depois, surgia à porta e ziguezagueou até a secretária. — Onde está a lista telefônica da faculdade? — Segunda gaveta do lado direito — respondeu Joanna. — Como é que se chama? — Kristin Overineyer — disse Deborah. — E a companheira de quarto era Jessica Detrick. Eram colegas de laboratório e eu dei-lhes as melhores notas da turma. Pegou a lista e folheou as páginas. — Que estranho! Não consta aqui. Como é possível? — Talvez tenha abandonado o curso — sugeriu Joanna. — Não pode ser — refutou Deborah. — Como eu te disse, era uma aluna espetacular. — Talvez aquilo da doação de óvulos tivesse sido demais. — Estás a gozar! — Claro que estou a gozar — disse Joanna. — Mas é curioso. — Agora tenho mesmo de aprofundar isto ou tu vais aproveitar a desculpa — disse Deborah. Folheou rapidamente a lista telefônica, encontrou um número e marcou-o. — Estás a ligar para quem? — Jessica Detrick — respondeu Deborah, — Talvez ela nos possa dizer como entrar em contato com Kristin, desde que a antiga companheira de quarto esteja no quarto a estudar numa sexta à noite. Joanna pôs-se à escuta depois de Deborah lhe ter feito o sinal de polegar para cima indicando que Jessica tinha atendido. O interesse de Joanna aumentou quando a expressão de Deborah se toldou e ela começou a dizer coisas como: “Oh, é horrível!” “Lamento ouvir isso!” e “Que tragédia!” Depois de concluir uma conversa algo longa, Deborah pousou o auscultador lentamente e virou-se para ver Joanna. Imersa em pensamentos, chupava absorta o interior da sua bochecha. — Então? — perguntou Joanna. — Não me vais explicar? Qual é a tragédia? — A Kristin Overineyer desapareceu — respondeu Deborah. — Ela e outra caloura, chamada Rebecca Corey, foram vistas pela última vez por um funcionário da Clínica Wingate a darem carona a um tipo logo à saída da clínica. — Ouvi falar em duas alunas que desapareceram na primavera passada— atalhou Joanna. — Nunca soube os nomes. — Mas o que as terá feito dar carona a alguém? — Se calhar, conheciam-no. — É possível — concedeu Deborah. Agora era a vez dela estremecer. — Estas histórias causam- me arrepios. — As mulheres nunca foram encontradas? E os corpos? — Só o carro, que era da Rebecca Corey. Foi encontrado numa paragem de caminhões junto da portagem de Nova Jersey. Nunca mais ninguém as viu, nem as posses delas, como as bolsas e as roupas. — A Kristin doou óvulos? — Meia dúzia, e a família abriu um processo, mas a clínica devolveu-os de livre vontade. Pelo visto, a família queria ter voz ativa na decisão de quem ficaria com eles. Que história triste! — Lá se vai a chance de perguntarmos a alguém pelo processo de doação — lamentou Joanna. — Podemos sempre ligar para a clínica e pedir o nome de outra doadora — alvitrou Deborah. — Se ligarmos para a clínica podemos fazer as nossas perguntas diretamente a eles — disse Joanna. — Se correr bem, talvez possamos pedir uma referência. — Então, estás disposta a tentar?
  • 14. — Acho que não há mal em obter mais informação — disse Joanna. — Mas certamente que não vou me comprometer, exceto a uma eventual visita à clínica. — Muito bem! — exclamou Deborah. Aproximou-se de Joanna e bateu com as suas mãos nas dela. — Veneza, aqui vamos nós! 15 de Outubro de 1999 7.05 h. Era um lindo dia de outono, com a folhagem verdejante a bordejar a estrada, enquanto Deborah e Joanna seguiam para o norte, desde Cambridge em direção a Bookford, Massachusetts. O sol estava convenientemente por detrás delas, ainda que houvesse ocasionais lampejos de luz nos reflexos dos pára- brisas dos carros que se cruzavam com elas em direção a Boston. As mulheres usavam ambas óculos de sol e bonés de basebol. Não houvera mais conversa desde que tinham contornado Fresh Pond. Cada qual estava absorta nos seus pensamentos. Deborah ainda se espantava com a rapidez com que tudo se encaixara, como se o assunto com a Clínica Wingate estivesse predestinado. Os devaneios de Joanna focavam mais o seu próprio âmago. Mal podia acreditar como a sua vida mudara numa semana e, mesmo assim, como se sentia apaziguada. No domingo, quando se achara emocionalmente capaz de falar com Carlton e de lidar com a insistência que esperava dele de casarem em junho, ele estava tão zangado que se recusara a falar com ela. Ela telefonara e deixara mensagens sem qualquer resultado. Por conseguinte, não tinham falado a semana inteira, fato que convenceu ainda mais Joanna de que a sua súbita epifania relativamente ao casamento em geral e a Carlton em particular, tinha sido apropriada. Depois de todos os episódios que ela tivera de agüentar, daquilo que interpretara como rejeição, parecia inadequado que Carlton agisse negativamente naquela instância. Na opinião dela, era mau sinal. A comunicação tinha grande prioridade no sistema de valores de Joanna. — Lembraste-te de trazer aquela lista de perguntas que escreveste? — indagou Deborah. — Claro que lembrei — respondeu Joanna. Eram perguntas que versavam sobre o que aconteceria depois da recolha dos óvulos e se haveria limitações à prática de exercício, etc. Deborah ficara impressionada com o acolhimento da Clínica Wingate, Ela e Joanna haviam telefonado para o número que constava no anúncio do Harvard Cumson na segunda-feira de manhã e, quando se identificaram como possíveis interessadas na doação de óvulos, tinham passado a chamada a uma Dra. Sheila Donaldson, que por seu turno se oferecera para visitá-las imediatamente. Em menos de uma hora, a médica chegava ao apartamento no Craigie Arins e impressionara-as com o seu profissionalismo. Explicara a totalidade do programa e respondera eficientemente a todas as perguntas que Deborah e Joanna lhe colocaram. — Não consideramos ser necessário hiperestimular — dissera a Dra. Donaldson no início da conversa. — Aliás, não estimulamos nada, Chamamos a isto a nossa abordagem “orgânica”. A última coisa que queremos é causar problemas às nossas doadoras, como os hormônios sintéticos ou agrupados podem fazer, — Mas como é que têm a certeza de que conseguem mesmo alguns óvulos? — perguntara Deborah. — Por vezes não conseguimos — respondera a Dra. Donaldson. — Mas pagam à mesma, não pagam? — Com certeza — replicara a Dra. Donaldson. — Qual é a anestesia usada? — indagara Joanna. Era a sua maior preocupação. — Isso é opção da doadora — dissera a Dra. Donaldson. — Mas o Dr. Paul Saunders, o responsável pelas extrações, prefere uma anestesia geral ligeira. Nessa altura Joanna levantara os polegares para Deborah em assentimento. No dia seguinte à entrevista, a Dra. Donaldson telefonara logo de manhã para dizer que ambas tinham sido aceitas e que a clínica gostaria de fazer as intervenções o mais depressa possível, de preferência nessa semana, e que, fosse como fosse, gostaria de ter notícias delas nesse mesmo dia. Durante as horas que se seguiram, as
  • 15. mulheres haviam debatido os prós e os contras. Deborah estava inteiramente a favor de prosseguir e o seu entusiasmo acabou por conquistar Joanna. Ligaram para a clínica e marcaram para essa sexta de manhã. — Tens alguma reserva em relação a isto? — perguntou Joanna de repente, quebrando um quarto de hora de silêncio. — Nem por sombras — disse Deborah. — Especialmente se me lembrar do apartamento na Praça Louisburg que fomos ver. Espero que ninguém o apanhe antes de termos o dinheiro nas mãozinhas. — Também depende do vendedor nos querer fazer um segundo empréstimo atalhou Joanna. — Caso contrário, é acima das nossas possibilidades. As mulheres haviam contatado mediadores imobiliários, tanto em Cambridge como em Boston, e visto vários apartamentos para venda. O da Praça Louisburg em Beacon Hill fora o que mais as impressionara. Era uma das melhores zonas de Boston, central e junto ao metrô da Linha Vermelha, que as levaria à Praça de Harvard rapidamente. — Para dizer a verdade, estou espantada que o preço seja tão razoável. — Deve ser porque fica num quarto andar sem elevador — disse Joanna. — E por ser tão pequeno, especialmente o segundo quarto. — Sim, mas esse quarto tem a melhor vista de todo o apartamento, além do enorme guarda-roupa. — Não achas que é aborrecido passar pela cozinha para ir para o quarto de banho? — Eu passaria pelo apartamento de outra pessoa para ir para o quarto de banho, só pela oportunidade de morar na Praça Louisburg. — Como é que vamos decidir quem fica com esse quarto? — perguntou Joanna. — Ei, eu ficaria muito contente com o menor, se é isso que te aflige — disse Deborah. — Sério? — Sério — disse Deborah. — Talvez possamos trocar de algum modo — sugeriu Joanna. — Não é preciso — atalhou Deborah. — Fico muitíssimo bem com o quarto menor. Acredita! Joanna virou a cabeça para olhar pela janela do passageiro. Quanto mais andavam para o norte, mais intensas eram as cores outonais. O vermelho dos bordos era tão brilhante que quase não parecia real, especialmente em contraste com o verde-escuro dos pinheiros ou abetos. — Não estás hesitante, pois não? — indagou Deborah. — Nem por isso — disse Joanna. — Mas é estonteante como tudo aconteceu tão depressa. Quero dizer, se tudo correr bem, na semana que vem por esta altura, seremos não só senhorias, como estaremos em Veneza. É um sonho! Deborah tinha encontrado na Internet viagens incrivelmente baratas para Milão, via Bruxelas. De Milão apanhariam o comboio para Veneza, onde chegariam a meio da tarde. Deborah encontrara também um alojamento com pequeno-almoço na sestière de San Polo, perto da ponte do Rialto, onde ficariam até encontrar um apartamento. — Mal posso esperar! — exclamou Deborah. — Estou excitadíssima! Benvenuto a Italia, signorina! Estendeu o braço e despenteou o cabelo de Joanna. Joanna inclinou-se, afastou a mão de Deborah e riu-se. —Mille grazie, cara — disse num tom sarcástico de brincadeira. Depois inclinou a cabeça e assou os dedos pelo cabelo, na esperança de arranjá-lo novamente. — Acho que estou um pouco atordoada pela rapidez com que a Clínica Wingate está a fazer isto acontecer — disse, enquanto se mirava no espelho retrovisor para verificar o resultado dos esforços com o cabelo. Joanna era moderadamente obcecada com o cabelo e o seu aspecto geral, muito mais do que Deborah, que a costumava picar acerca disso. — Talvez sejam os clientes que os estão a apressar — disse Deborah. Reajustou o espelho. — A Dra. Donaldson falou nisso? — perguntou Joanna. — Não — respondeu Deborah. — Eu é que supus. Ela disse que a clínica só está interessada m duas doadoras, por isso temos sorte em ter ligado. — Está ali um letreiro que diz que Bookford é na próxima saída — disse Joanna, apontando. O sinal era pequeno e estava à frente de uma pequena mata de carvalhos cor de laranja-incandescente.
  • 16. — Eu vi — disse Deborah, e ligou o pisca. Após mais vinte minutos numa estrada estreita de duas vias, ladeada por macieiras e muros que serpenteavam na paisagem de colinas ondulantes e campos de milho cor de ferrugem, as mulheres entraram numa vila típica da Nova Inglaterra. Nos arredores estava um enorme cartaz a dizer BEM VINDO A BOOKFORD, MASSACHUSETS, TERRA DOS BOOKFORD HIGHSCHOOL WILDCATS, CAMPEÕES DE FUTEBOL ESTADUAL DA 2.a DIVISÃO EM 1993. O caminho que saía da auto-estrada transformava-se na Rua Direita e dividia a cidade em duas direções, norte e sul, Erguiam-se de cada lado os tradicionais grupos de lojas com fachada em tijolo do virar do século. A cerca de meio caminho, havia uma grande igreja branca com campanário e um relvado que se estendia até um edifício municipal de granito. Nos passeios seguia um tropel ruidoso e turbulento de miúdos com mochilas da escola, como aves migratórias sem asas rumo ao norte. — É uma cidade louca — comentou Deborah, debruçando-se para ver melhor pelo pára-brisas. Abrandou para menos de trinta quilômetros por hora. — Parece quase louca demais para ser verdadeira, como se estivesse num parque temático. — Não vi nenhum letreiro da Clínica Wingate — comentou Joanna. — Ei, sabes por que é que é preciso um milhão de espermatozóides para fecundar um óvulo? — Acho que não — respondeu Joanna. — Porque nenhum deles quer parar para perguntar o caminho. Joanna deu uma risadinha. — Isso deve querer dizer que nós vamos parar. — Claro! — rematou Deborah, virando para um parque de estacionamento em frente ao armazém Rite Smart. Havia estacionamento em espinha de cada lado da Rua Direita, — Queres vir ou esperas aqui? — Não vou deixar o gozo todo para ti — disse Joanna ao sair do carro. As mulheres tiveram de se esquivar de crianças que corriam atrás umas das outras pelo passeio a fora. Os seus gritos e guinchos quase chegavam ao limiar da dor e foi um alívio para ambas as mulheres fechar a porta da loja atrás delas. No interior pairava um sossego relativo, ao que não era alheio a ausência de clientes. Nem havia funcionários à vista. Depois de encolherem os ombros uma para a outra, pois não aparecia ninguém, as duas mulheres dirigiram-se ao balcão na parte de trás da loja. Havia lá uma campainha e Deborah tocou-a decididamente. Foi um barulho considerável no silêncio reinante. Em poucos segundos, apareceu pelas portas basculantes, como as dos bares nos westerns de Hollywood, um homem obeso e quase calvo, com uma bata de farmacêutico desabotoada no colarinho. Ainda que a loja estivesse fresca, havia gotas de suor na sua testa. — Em que posso ajudar? — perguntou o dono, alegremente. — Estamos à procura da Clínica Wingate — disse Deborah. — Não há problema — retrucou o dono. —Fica no Hospital Estadual Psiquiátrico de Cabot. — Perdão?! — exclamou Deborah, espantada. — Fica numa instituição psiquiátrica? — Sim — respondeu o dono. — o velho Dr. Wingate comprou ou arrendou aquele lugar todo, não tenho a certeza. Ninguém sabe e não é que interesse muito. — Oh, percebo — disse Deborah. — Era uma instituição psiquiátrica. — Sim — repetiu o dono. — Durante coisa de cem anos. Também era um sanatório para tuberculosos. Parece que as pessoas lá em Boston estavam ansiosas por banir os doentes mentais e os tísicos. Assim, os fechavam numa espécie de fortaleza. Tipo, longe da vista, longe do coração. Há cem anos, considerava-se que Bookford ficava longe. Nossa, os tempos mudaram mesmo! Agora somos uma comunidade dormitório de Boston. — Eles fechavam as pessoas num sítio? — indagou Joanna. — Não tentavam tratá-las? —Acho que sim— replicou o dono. — Mas não havia assim grandes tratamentos naquele tempo, Bem, isto não é inteiramente verdade. Faziam-se muitas operações lá. Sabem, experiências como esvaziar pulmões de tuberculosos e lobotomias aos malucos. — Parece-me horrível — disse Joanna, e estremeceu. — Sim, deve ter sido — anuiu o dono.
  • 17. — Bem, já não há doentes mentais nem tísicos — acrescentou Deborah. — Pois claro que não — disse o dono. — o Cabot, como lhe chamamos por cá, está fechado há vinte, trinta anos. Acho que foi nos anos 70 que levaram os últimos doentes. Vocês lembram-se: foi quando os políticos começaram a pensar seriamente na saúde pública. Foi uma tragédia. Acho que levaram o resto dos doentes de volta para Boston e os deixaram ao deus-dará no parque de Boston Cominon. — Acho que isso foi antes do nosso tempo — disse Deborah. — Sim, deve ter razão — concordou o dono. — Poderia dizer-nos como chegar ao Cabot? — inquiriu Deborah. — Certinho e direitinho — disse o dono. — Vão em que direção? — Norte — disse Deborah. — Perfeito — disse o dono. — Sigam até ao próximo semáforo e virem à direita, para a Rua Pierce, com a biblioteca pública na esquina. Do cruzamento pode ver-se a torre de tijolo do Cabot. Fica a três quilômetros a leste da cidade, depois da Rua Pierce. Não tem nada que enganar. As mulheres agradeceram ao farmacêutico e voltaram ao carro. — Parece um ambiente encantador para uma clínica de infertilidade — disse Joanna, apertando o cinto de segurança. — Pelo menos já não é um sanatório de tísicos e uma instituição psiquiátrica — alvitrou Deborah, fazendo marcha-atrás para sair. — Por momentos, estive prestes a regressar a Cambridge. — Talvez devêssemos — disse Joanna. Não estás a falar a sério, pois não? — Não, não estou — admitiu Joanna. — Mas um lugar com uma história assim causa-me arrepios. Podes imaginar os horrores que lá passaram? — Não, não posso — disse Deborah. Paul Saunders pousou o memorando que Sheila Donaldson lhe tinha preparado e esfregou os olhos com os dedos das duas mãos, mantendo os cotovelos na mesa. Estava de volta ao seu gabinete no quarto andar da torre, depois de passar várias horas a verificar as suas culturas de embriões. Na sua maioria estavam a correr bem, mas não na perfeição. Ele temia que fosse por causa da idade e da qualidade dos óvulos, problema que esperava remediar em breve. Paul era madrugador. Costumava saltar da cama antes das cinco e estava no laboratório antes das seis. Assim conseguia despachar muito trabalho antes da chegada das doentes, o que sucedia por volta das nove. Naquela manhã começava o seu dia cedo porque tinha marcado duas extrações de óvulos. Gostava de fazer as intervenções o mais cedo possível para que as doadoras tivessem tempo para recuperar da anestesia e ter alta no mesmo dia. As camas para doentes internadas eram só para emergências e, mesmo nesses casos, Paul preferia mandá-las para o hospital de cuidados breves mais próximo. Tornou a pegar no memorando e, empurrando a cadeira, dirigiu-se às janelas. Eram monstruosas, de guilhotina, muito mais altas do que o seu escasso metro e sessenta e cinco. A vista consistia no grande relvado em frente à clínica que se estendia até a vedação de ferro-forjado e arame farpado que circundava todo o perímetro. À esquerda de Paul ficava a casa de pedra da portaria, donde vinha o acesso alcatroado. Este avançava na direção de Paul e depois virava à esquerda até desaparecer de vista no estacionamento a sul do edifício. À distância, podia ver o pináculo da igreja presbiteriana de Bookford, bem como as chaminés de alguns prédios mais altos, que irrompiam nas cores outonais. No horizonte ficava o sopé da serra de Berkshire, recortada sob forma de lampejos, cor de púrpura. Paul releu o memorando, ponderou um pouco e tornou a olhar a vista. Tinha todas as razões para estar contente. As coisas não podiam correr melhor e só a idéia trouxe um sorriso à sua cara pastosa. Parecia incrível que, apenas seis anos antes, ele tivesse sido praticamente expulso de Illinois, perdido as regalias do hospital e mal tivesse conseguido manter a licença médica. O advogado na altura dissera-lhe que as coisas pareciam negras e assim ele partira para o leste, devido a uma barulheira estúpida por causa do faturamento da Medicare e Medicaid. Claro que ele se tinha esticado, mas os colegas de Ginecologia e Obstetrícia tinham feito o mesmo. Aliás, ele limitara-se a copiar e a refinar uma prática já usada por outro grupo dentro do mesmo edifício hospitalar. Por que razão o Governo tinha ido atrás dele era ainda um mistério, coisa que o podia enfurecer se ele pensasse muito nisso. Mas já não era preciso, agora que as
  • 18. coisas estavam a ficar cor-de-rosa. Quando chegara ao Massachusetts, e porque pensara ter dificuldade em obter a licença se a Ordem dos Médicos de Massachusetts soubesse dos problemas no Illinois, Paul decidira continuar a especialização com uma bolsa em infertilidade. Fora a melhor decisão da sua vida. Não somente evitara problemas com licenciamento, como também ganhara entrada num domínio que não tinha propriamente fiscalização, nem a nível profissional nem em termos de negócios. Além disso, era espantosamente lucrativo. Para ele, a infertilidade era uma combinação ideal, especialmente porque estivera no lugar certo e no momento certo, por pura sorte, ao conhecer Spencer Wingate, um especialista em infertilidade, já estabelecido, desejoso de se aposentar, viver à grande, repousar sobre os louros, angariar fundos e realizar palestras. Agora, Paul mandava em tudo, tanto na pesquisa como na clínica. Sempre que Paul pensava na ironia de ser ele um investigador esboçava um sorriso, porque nunca se imaginara naquele papel. Tinha sido o último do curso de medicina e nunca tivera formação em investigação. Conseguira não ter uma única aula de Estatística. Mas não tinha importância. Em infertilidade, os doentes estavam desesperados o bastante para tentar qualquer coisa. Aliás, até queriam experimentar coisas novas. Paul achava que podia compensar com imaginação o que lhe faltava em experiência de pesquisa. Sabia que fazia progressos em várias frentes, o que acabaria por torná-lo rico e famoso. Virando às costas à vista que considerava agora o seu domínio, Paul apanhou um vislumbre fugidio da sua imagem refletida no espelho de moldura barroca pendurado entre as duas janelas gigantescas. Olhando diretamente para o reflexo, Paul passou a mão pelas faces. Ficou surpreso e preocupado com a lividez da sua tez, realçada pelo cabelo quase preto, até perceber que se devia grandemente à luz fluorescente das lâmpadas montadas no teto alto. Riu-se da sua preocupação momentânea. Sabia que era pálido; com os horários que fazia, a sua pele raramente via a luz do dia, muito menos o próprio sol, mas sabia que não tinha tão má cara como a que o espelho lhe devolvia. No reflexo, a tez igualava-se à madeixa branca que era a sua marca. Regressou à secretária e prometeu a si próprio ir até a Florida durante o inverno, ou talvez aproveitar um congresso de Ginecologia e Obstetrícia num local com bom tempo para apresentar algum do seu trabalho. Paul pensou também que devia arranjar tempo para fazer exercício, pois ganhara peso, particularmente no pescoço. Não fazia exercício há anos. Paul não era grande atleta, o que lhe trouxera aborrecimentos na escola secundária de South Side Chicago, onde o desporto tinha um papel social preponderante. Tentara entrar em algumas equipes, mas nunca dera resultado, o que fizera dele alvo de escárnio. — Eles que olhem para mim agora — disse Paul em voz alta, pensando nas pessoas que tinham feito pouco dele. — Devem estar a encher sacos de supermercado. Sabia que a vigésima reunião da escola era em junho próximo e perguntava-se se deveria ir só para alardear o seu sucesso na cara daqueles que tinham gozado com ele. Paul pegou no telefone e ligou para o laboratório. Quando atenderam, pediu para falar com a Dra. Donaldson. Enquanto esperava, releu o memorando que tinha na mão. — Que se passa, Paul? — perguntou Sheila, sem preâmbulo. — Recebi o teu memorando —disse Paul. — As duas mulheres que vêm aí: achas que são boas candidatas? — Excelentes — retrucou Sheila. — São ambas saudáveis, com hábitos normais; não têm problemas ginecológicos; não estão grávidas; negam uso de drogas ou medicações de qualquer espécie e estão ambas a meio do ciclo. — E são mesmo formadas? — Afirmativo. — Então, devem ser inteligentes. — Sem dúvida. — Mas por que é que uma delas quer anestesia local? — perguntou Paul. — Porque está a fazer doutoramento em Biologia — respondeu Sheila. — Sabe umas coisas de anestesia. Eu fiz sugestões, mas ela não mordeu a isca. Acho que o Carl poderá tentar.
  • 19. — Mas tentaste? — insistiu Paul. — Claro que tentei — disse Sheila, irritada. — Está bem, Carl que fale com ela — redargüiu Paul. Desligou sem se despedir. Sheila conseguia aborrecê-lo com os óbvios ciúmes. — Deve ser a torre que o farmacêutico falou — disse Deborah, apontando pelo vidro. Tinham virado da Rua Direita para a Rua Pierce e mal conseguiam discernir à distância a estreita estrutura de tijolos elevando-se acima da paisagem circundante. — Se fica a três ou quatro quilômetros tem de ser uma torre bem alta. — Daqui, a silhueta parece-se um pouco com a torre da Galeria Uffizi, em Florença— disse Deborah. — Que apropriado! Assim que deixaram a vila atrás delas, as árvores que ladeavam a estrada não deixaram ver mais nada da torre nem do próprio complexo Cabot até passarem por um celeiro vermelho em ruínas à direita. Na curva seguinte viram à esquerda um sinal para a Clínica Wingate, com uma seta apontada para um caminho de saibro. Entraram na estrada não alcatroada e viram logo a casa de granito da Portaria, com dois andares, entre as árvores. Era uma estrutura maciça e atarracada, com persianas nas janelas pequenas e um telhado de xisto com florões trabalhados em cada ponta das vigas-mestras. O madeiramento estava pintado de preto. Havia gárgulas de pedra nos cantos. Acercaram-se e viram que a estrada seguia por baixo da casa, por um túnel, e que tinha a meio caminho um pesado portão de ferro entrelaçado. Além do portão podia ver-se um relvado aparado há pouco tempo, único sinal de que o local era utilizado. Havia uma vedação de ferro-forjado e arame farpado de cada lado da portaria que desaparecia nas árvores circundantes. Deborah abrandou e depois parou. — Palavra de honra — disse. — o farmacêutico não estava a brincar quando disse que os internados do Cabot estavam fechados numa fortaleza. Quase parece uma prisão. — Não tem mesmo nada de acolhedor — acrescentou Joanna. — Como é que achas que conseguimos entrar? Vês algum intercomunicador ou teremos de usar algum telefone? —Deve haver um monitor de vídeo, ou coisa assim — sugeriu Deborah. — Vou encostar ao portão. Deborah avançou com o carro e entrou no túnel. Assim que parou novamente, abriu-se uma porta pesada, trabalhada e sem postigo, de onde saiu um homem fardado com uma prancheta na mão. Aproximou-se da janela do condutor e Deborah baixou o vidro. — Em que posso ajudar? — perguntou o guarda em tom agradável, mas decidido. Tinha um chapéu brilhante com um boné preto como um polícia. — Viemos encontrar-nos com a Dra. Donaldson — explicou Deborah. — Os vossos nomes, por favor? — pediu o homem. — Deborah Cochrane e Joanna Meissner — respondeu Deborah. O homem consultou a prancheta, riscou os dois nomes e apontou com a caneta para além do portão. — Sigam aquele acesso para a direita até ao parque de estacionamento. Alguém estará lá à vossa espera. — Obrigada — disse Deborah. O homem não respondeu, mas tocou na beira do chapéu. Com grande chiadeira, o pesado portão de ferro entrelaçado começou lentamente a abrir. — Viste a arma que o guarda tinha? — perguntou Deborah num sussurro, depois de subir o vidro da janela. O guarda ainda estava lá de pé, à esquerda. — Seria difícil não ver — retrucou Joanna. — Já vi polícias armados em hospitais de cidades do interior — disse Deborah. — Mas nunca numa clínica médica rural. Por que raio é que precisam de tanta segurança aqui, especialmente numa clínica de infertilidade? — É de perguntar se querem manter as pessoas fora ou dentro. — Nem brinques com isso — admoestou Deborah. Avançou pelo portão aberto. — Achas que também fazem abortos? Já vi guardas em clínicas de aborto neste Estado.
  • 20. — Não deve haver nada mais inadequado numa clínica de infertilidade. — Acho que tens razão — anuiu Deborah. Saindo do túnel e rodeando um maciço de árvores, as mulheres obtiveram a primeira visão desobstruída de Cabot. Era uma enorme estrutura de tijolo vermelho com quatro pisos, um telhado de xisto pontiagudo e inclinado atrás de uma cornija com ameias, pequenas janelas com grades e uma torre central imponente. A torre tinha janelas maiores, com vários vidros e sem grades. Deborah abrandou. — Que choque ver um edifício destes aqui no campo, sozinho. E que arquitetura curiosa, também. Vendo a torre mais de perto, eu diria que é cópia deliberada da Uffizi. É tão parecida que não pode ter sido por acaso. Se a memória não me falha, até tem o mesmo estilo de relógio, ainda que o da Uffizi funcione. — Já vi outros edifícios vitorianos como este em Massachusetts — disse Joanna. — Há outro em Worcester, em pedra, não em tijolo, e quase do mesmo tamanho. Só que está deserto. Ao menos este tem uso. — A Clínica Wingate deve estar muitíssimo ocupada, para usar estes metros quadrados todos. Joanna assentiu. Seguindo o caminho para a direita do edifício, Deborah entrou num parque de estacionamento que tinha, surpreendentemente, muitos carros. As mulheres repararam que havia várias viaturas diferentes dos habituais Honda Civics ou Chevy Caprices. Um dos automóveis destacava-se particularmente entre os Mercedes, Porsches e Lexus. Era um Bentley conversível cor de vinho. — Valha-me Deus! — comentou Joanna. — Estás a ver o Bentley? — É como a arma do guarda, seria difícil não ver. A pintura metalizada resplandecia à luz da manhã. — Fazes idéia de quanto custa aquele carro? — perguntou Joanna. — Nem por sombras. — Mais de trezentos mil dólares. — Caraca! É obsceno, especialmente numa instituição médica. Deborah estacionou num lugar marcado para visitantes. As mulheres saíram do carro e viram uma porta abrir-se em frente ao parque. Apareceu uma figura feminina alta, de cabelo castanho e bata branca, que acenou. — Ora, este aceno é diametralmente oposto ao que vimos na casa do guarda — disse Deborah. Devolveu o aceno enquanto ela e Joanna se dirigiam para a porta, a cinqüenta metros de distância. — Parece a Dra. Donaldson. — Acho que tens razão — disse Deborah. — Espero que não nos venhamos a arrepender disto — disse Joanna, subitamente. Caminhava de cabeça baixa para ver onde punha os pés. — Tenho a sensação desconfortável de que vamos cometer um grande erro. Deborah agarrou o braço da amiga e obrigou-a a parar. — Que é que estás a dizer? Não queres continuar com isto? Se for o caso, temos de dar meia-volta e regressar a Boston. Não quero que penses que te estou a pressionar, porque não é verdade. Joanna estreitou o olhar por causa da luz e observou a elegante médica à porta da clínica. Já estavam perto para perceberem que era a Dra. Donaldson e que esta estava contente de vê-las. Tinha no rosto delgado um sorriso largo e acolhedor. — Fala comigo — disse Deborah, apertando mais o braço de Joanna. Joanna encarou Deborah. — Podes olhar-me nos olhos e dizer que estás confiante de que tudo correrá bem? — Posso — afirmou Deborah. — Como já te disse dez vezes: só temos a ganhar. — Estou a falar das intervenções — insistiu Joanna. — Oh, valham-me os santinhos! Estas extrações são canja. As mulheres que fazem tratamentos de infertilidade passam por isto várias vezes, além das toneladas de hormônios. Para nós não é nada de especial. Joanna hesitou. Os olhos verdes moviam-se de Deborah para a Dra. Donaldson e vice-versa, enquanto pesava a sua aversão a procedimentos médicos. Nem lhe agradava levar uma vacina. Suspirou, pigarreou e arvorou um sorriso.
  • 21. — Está bem, vamos a isto. — Tens a certeza? Quer dizer, não te sentes obrigada, pois não? — Joanna abanou a cabeça. — Estou bem. Vamos acabar com isto. As mulheres recomeçaram a caminhar. — Por momentos assustaste-me — disse Deborah. — Eu assusto a mim própria, às vezes — comentou Joanna. 15 de Outubro de 1999 7.45 h. — Estimo que a vossa viagem de Boston tenha decorrido sem incidentes — disse a Dra. Donaldson enquanto fechava a porta da clínica atrás delas. — Correu bem — respondeu Deborah, mirando uma sala de espera grande e vazia. A mobília parecia de estilo escandinavo, moderno e dispendioso, o que contrastava com os pormenores arquitetônicos do período vitoriano. Havia uma secretária de recepcionista em forma de U e vazia no meio da sala. Nas paredes havia cadeiras e sofás de pele estofados, e nas mesinhas baixas um monte de revistas atualizadas. — Percebi esta manhã que me esqueci de vos indicar o caminho — disse a Dra. Donaldson. — Peço desculpa. — Não tem importância — redargüiu Deborah. — Eu devia ter perguntado. Mas não nos atrapalhamos, paramos na farmácia e pedimos indicações. — Muito bem — disse a Dra. Donaldson. Entrelaçou as mãos. — Agora vamos começar pelo princípio. Creio que nenhuma de vós comeu nada desde a meia-noite de ontem. Deborah e Joanna assentiram. — Excelente! — exclamou a Dra. Donaldson. — Vou ligar ao Dr. Smith, o nosso anestesista, para ele falar convosco. Entretanto, se quiserem despir os casacos para ficarem à vontade, já poderemos começar, Enquanto a Dra. Donaldson falava do telefone da recepção, Deborah e Joanna tiraram os casacos e penduraram-nos no bengaleiro. — Estás bem? — sussurrou Deborah ao ouvido de Joanna. Podiam ouvir a Dra. Donaldson ao telefone. — Sim, estou ótima — respondeu Joanna. — Por que perguntas? — Estás tão calada. Não estás a mudar de idéia outra vez, pois não? — Não! Estou enervada com este lugar — explicou Joanna. — Muitas surpresas, como guardas armados. Até a mobília da sala de espera me incomoda. — Compreendo o que queres dizer — anuiu Deborah. — Parece que custou uma fortuna, mas fica horrorosa no cenário. — É estranho. Estas coisas não costumam me incomodar. Desculpa ser uma pilha de nervos. — Tenta descontrair-te e pensa em beber café na Praça de S. Marcos. Voltando à sala, a Dra. Donaldson indicou-lhes um sofá. Já sentadas, informou-as de que o Dr. Carl Smith estava a caminho. Em seguida, inquiriu se tinham dúvidas. — Quanto tempo acha que vai demorar? — perguntou Joanna. — Uma extração leva apenas cerca de quarenta minutos — explicou a Dra. Donaldson. — Depois têm de recuperar algumas horas para passar completamente a anestesia. Quando menos esperarem já estarão prontas. — Vamos sofrer a intervenção ao mesmo tempo? — perguntou Joanna. — Não — disse a Dra. Donaldson. — A menina Meissner vai primeiro porque quer anestesia geral ligeira. Claro que, se a menina Cochrane quiser mudar para anestesia geral, podem decidir quem vai primeiro. — Basta-me a anestesia local — afirmou Deborah. — Como quiser — disse a Dra. Donaldson. Olhou de uma mulher para a outra. — Mais dúvidas,
  • 22. de momento? — A clínica ocupa o edifício todo? — inquiriu Deborah. — Não, credo! O edifício é enorme. Albergava uma grande instituição psiquiátrica, assim como um sanatório para tuberculosos. — Já sabíamos — disse Deborah. — A clínica de infertilidade ocupa dois andares nesta ala somente — explicou a Dra. Donaldson. — Também temos alguns escritórios na torre. O resto das instalações está vazio, tirando camas velhas e muito equipamento antigo. É quase um museu. — Quantas pessoas trabalham cá? — perguntou Joanna, — Temos cerca de quarenta funcionários, mas o número tem aumentado. Para saber com exatidão, só falando com Helen Masterson, a diretora de Recursos Humanos. — Quarenta empregados é muito — opinou Joanna. — Deve ser uma dádiva dos céus, para uma pequena comunidade rural como esta. — Dir-se-ia que sim — disse a Dra. Donaldson. — mas, na realidade, temos um problema crônico para recrutar pessoal. Temos sempre anúncios nos jornais de Boston, geralmente para técnicos de laboratório e pessoal administrativo com experiência. As senhoras estão à procura de emprego? — A Dra. Donaldson sorriu provocadoramente. — Não me parece — respondeu Deborah, com um risinho. — O único departamento que não tem falta de gente é a quinta — acrescentou a Dra. Donaldson. — Nunca tivemos problemas nessa área desde o primeiro dia. — A quinta? — inquiriu Joanna. — Que quer dizer a quinta? — A Clínica Wingate tem uma grande quinta de produção animal — explicou a Dra. Donaldson. — É parte integrante do nosso esforço de investigação. Interessa-nos a pesquisa reprodutiva básica em espécies além do homo sapiens. — Deveras? — indagou Joanna. — Que outras espécies? —Espécies que sejam economicamente vantajosas — respondeu a Dra. Donaldson. — Gado vacum, porcos, criação, cavalos. E, claro, também estamos desenvolvidos na reprodução de animais de estimação, como cães e gatos. — Onde fica a quinta? — perguntou Joanna. — Na propriedade logo atrás deste edifício principal, a que chamamos afetuosamente a “monstruosidade”, e depois de um pinhal cerrado. O sítio é algo idílico. Há um lago, um dique e até um velho moinho, além dos celeiros, campos de milho, de forragem e cercados. A Instituição Cabot abrangia oitenta hectares, com alojamento para o pessoal e a sua quinta própria, para que fosse largamente auto- suficiente na alimentação. O fato de ter a quinta nas instalações foi determinante para arrendarmos a propriedade. A investigação torna-se muito mais eficiente por termos a quinta próxima do laboratório, isto sem falar no alojamento. — Têm cá um laboratório? — perguntou Deborah. — Com certeza — disse a Dra. Donaldson. — E grande. Tenho muito orgulho nele, talvez por ter sido responsável pela sua instalação. — Podemos fazer uma visita guiada? — indagou Deborah. — Acho que se pode arranjar — replicou a Dra. Donaldson. — Ah, aqui vem o Dr. Smith. As mulheres viraram-se para observar um homem grande e entroncado, de bata vestida, que entrava na sala de prancheta na mão. Naquele momento, a porta da frente abria-se e entrava um enxame de funcionários, em animada conversa. Uma mulher dirigiu-se à recepção, enquanto o resto se amontoava no vestíbulo de onde Smith acabara de sair. Depois de se apresentar e de apertar as mãos de ambas, o Dr. Smith sentou-se, cruzou as pernas e colocou a prancheta no colo. — Ora bem — disse, puxando uma de muitas canetas que tinha no bolso do peito. — Menina Cochrane, parece que prefere anestesia local. — Correto — assentiu Deborah. — Posso perguntar por quê? — questionou o Dr. Smith. — Sinto-me melhor com essa idéia — respondeu Deborah.
  • 23. — Presumo que a informaram que preferimos anestesia geral ligeira para extrações de óvulos. — A Dra. Donaldson assim mo disse — concordou Deborah. — Também disse que a decisão era minha. — Nada mais verdadeiro — disse o Dr. Smith. — Não obstante, gostaria de lhe dizer por que preferimos tê-la a dormir. Com anestesia geral ligeira, procedemos à extração sob observação laparoscópica direta. Com anestesia local e paracervical, a extração processa- se com uma agulha guiada por ultrasom. Comparativamente, é como trabalhar no escuro. — o Dr. Smith parou e sorriu. — Há dúvidas acerca do que eu disse até agora? — Não — disse Deborah, simplesmente. — Há mais uma questão — continuou o Dr. Smith. — Com anestesia não podemos controlar a dor inerente à manipulação intra-abdominal, ou seja, se tivermos problemas para chegar a um dos ovários e tivermos de manobrar para isso, poderá sentir algum desconforto. — Posso arriscar — redargüiu Deborah. — Mesmo considerando a questão da dor? — Acho que posso com isso — insistiu Deborah. — Prefiro estar acordada. O Dr. Smith olhou brevemente para a Dra. Donaldson que encolheu os ombros. Em seguida, fez o apanhado do histórico médico de ambas as mulheres. Quando terminou pôs-se de pé. — Por agora me basta. Agora vão mudar de roupa e encontramo-nos lá em cima. — Vão dar-me um sedativo? — perguntou Joanna. — Com certeza — respondeu o Dr. Smith. — Será administrado assim que a puserem a soro. Mais perguntas por agora? Nenhuma das mulheres respondeu e o Dr. Smith sorriu e saiu. A Dra. Donaldson acompanhou-as a uma sala de espera menor e separada. De um lado havia vários vestiários com portas de venezianas e do outro um conjunto de armários. Uma enfermeira pequenina e de rosto agradável reabastecia o equipamento das doentes. Encontravam-se várias macas junto às portas basculantes. No meio da sala, algumas cadeiras, um sofá e uma mesinha cheia de revistas. A Dra. Donaldson apresentou as mulheres à enfermeira, que se chamava Cynthia Carson. Por seu turno, esta deu-lhes indumentárias hospitalares e uma chave de armário para cada uma, junto com a recomendação de que as prendessem nas batas, e abriu as portas de dois vestiários adjacentes. Nesse momento, a Dra. Donaldson pediu licença para sair. Pouco depois, Cynthia saía também para ir buscar o soro, Disse que voltaria num instante. — Não se calava com a história da anestesia geral! — exclamou Joanna do vestiário onde estava. — Bem podes dizê-lo — anuiu Deborah. As mulheres saíram dos respectivos vestiários, apertando o roupão fino com uma mão e agarrando as próprias roupas com a outra. Desataram a rir quando olharam uma para a outra. — Espero não ter um ar tão patético como tu — conseguiu Joanna dizer. — Lamento anunciar — replicou Deborah — mas tens mesmo. Dirigiram-se aos armários para guardar os pertences. — Por que é que não cedeste e aceitaste a anestesia geral? — perguntou Joanna. — Não vais começar com isso também, pois não? — contrapôs Deborah. — Achei que fazia sentido o que o anestesista disse — disse Joanna. — Especialmente quando falou em dores da manipulação intra-abdominal. Foi o bastante para me dar vertigens. Não achas que devias reconsiderar? — Ouve lá! — saltou Deborah, batendo com a porta do armário e arrancando a chave. Encarou a amiga. Estava subitamente corada. — Já tivemos esta conversa. Não gosto que me ponham a dormir. Chama-se fobia. Tu não gostas de agulhas e eu não gosto de anestesia, está bem? — Está bem! —disse Joanna. —Credo, tem calma! Eu é que devia estar enervada com isto, não tu. Deborah suspirou. Fechou os olhos por segundos e abanou a cabeça. — Desculpa. Não queria ser desabrida. Acho que também estou enervada, — Não faz mal — apaziguou Joanna. Nesse momento, Cynthia reapareceu com uma braçada de objetos, que despejou numa maca. Pendurou a garrafa de soro que tinha numa mão no respectivo suporte.
  • 24. — Qual das duas é a Menina Meissner? — chamou. Joanna ergueu a mão. Cynthia deu uma palmada na maca, que tinha um lençol lavado. — E se saltasse para cima desta geringonça para eu a pôr a soro? Depois dou-lhe uma bebida que a vai fazer sentir como se estivesse na passagem de ano. Deborah estendeu a mão e deu uma apertadela no braço da amiga, enquanto trocavam um olhar compassivo. Joanna fez o que lhe diziam. Deborah passou para o outro lado da maca. Cynthia prosseguiu com os preparativos da colocação de soro com gestos econômicos e experientes. Enquanto isso, ia falando distraidamente do tempo e, antes que Joanna pudesse começar a tremer, já Cynthia lhe fazia o torniquete no braço esquerdo, abaixo do cotovelo. Joanna desviou o olhar e fez uma careta ao sentir a agulha a furar a pele. Logo a seguir já não havia torniquete e Cynthia punha um penso. — Pronto, daqui já está — declarou Cynthia. Joanna virou-se. Estava surpresa. — O soro já está colocado? — Pois está! — disse Cynthia alegremente, enquanto enchia duas seringas com fármacos. — E agora vem a parte engraçada. Porém, e só para ter a certeza: não tem alergia a medicamento nenhum, pois não? — Não — disse Joanna. Cynthia debruçou-se sobre o suporte do soro e tirou a tampa da primeira seringa. — Que é que me vai dar? — perguntou Joanna. — Quer mesmo saber? — perguntou Cynthia. Acabou a primeira e passou à segunda. — Quero! — Diazepam e fentanil. — Troque isso por miúdos. — Valium e um analgésico opiado. — Valium conheço. E a outra coisa, o que é? —É da família da morfina — explicou Cynthia. A enfermeira retirou rapidamente as compressas e outras coisas e deitou tudo num receptáculo específico. Enquanto registrava algo na prancheta que estava na maca, a porta abriu-se e entrou outra paciente. Sorriu para as mulheres, dirigiu-se ao cabide da roupa, tirou um conjunto de indumentárias hospitalares e desapareceu num dos vestiários. — Achas que é outra doadora? — perguntou Joanna. — Não faço idéia — respondeu Deborah. — Chama-se Dorothy Stevens — disse Cynthia em voz abafada, rodeando a maca e destravando as rodas. — É uma cliente da Wingate, que está cá para outra transferência embrionária, mais uma. A pobrezita já sofreu muitas desilusões. — Eu vou já seguir? — perguntou Joanna quando a maca começou a andar. — Vai, sim — disse Cynthia. — Disseram-me que a esperavam urgentemente quando fui buscar o material para o soro. — Posso ir também? — perguntou Deborah. Tinha pegado na mão de Joanna. — Receio que não — replicou Cynthia. — Deixe-se estar e descontraia-se. Quando menos esperar já está lá também. — Eu fico bem — disse Joanna, sorrindo para Deborah. — Já sinto aquela coisa do opiado. Não é nada mau. Deborah apertou a mão de Joanna. Antes das portas se fecharem ainda viu Joanna a acenar por cima do ombro. Deborah voltou à sala. Foi até ao sofá e sentou-se pesadamente. Tinha fome por não ter comido nada desde a noite anterior. Pegou em várias revistas, mas não se conseguia concentrar, muito menos com o estômago a dar voltas. Tentou imaginar para onde levariam Joanna, naquele edifício enorme e antigo. Largou as revistas e olhou em seu redor. Lá estava a mesma disparidade entre cornijas e madeiramentos e o mobiliário que ressaltava na sala de espera maior. Joanna tinha razão: Wingate era um lugar cheio de
  • 25. contrastes vagamente inquietantes. Deborah queria, tanto como Joanna, ver a extração de óvulos pelas costas. Abriu-se a porta de um dos vestiários e Dorothy Stevens saiu com a roupa na mão, Sorriu para Deborah antes de ir até aos armários para guardá-la. Deborah observou-a e imaginou como seria enfrentar tratamentos de infertilidade e desilusões contínuos, Dorothy fechou o armário e dirigiu-se aos assentos enquanto prendia a chave na bata. Pegou uma revista, sentou-se e começou a folheá-la. Aparentemente, sentiu o olhar de Deborah, porque ergueu os seus olhos incrivelmente azuis. Foi a vez de Deborah sorrir. Depois se apresentou e Dorothy fez o mesmo. Por momentos, as mulheres fizeram conversa ligeira. Após uma pausa, Deborah perguntou a Dorothy se ela era doente da Clínica Wingate há muito tempo. — Infelizmente, sim — respondeu Dorothy. — Tem sido uma experiência agradável? — Não me parece que agradável seja o termo certo — replicou Dorothy. — Não tem sido um caminho fácil, nem por sombras. Mas devo dizer que aqui na clínica me avisaram. Seja como for, nem eu nem o meu marido vamos desistir, pelo menos por enquanto, até gastarmos o nosso crédito. — Vai fazer uma transferência embrionária hoje? — indagou Deborah. Tinha relutância em admitir que já sabia. — A nona — disse Dorothy. Suspirou e depois fez figas com os dedos. — Boa sorte — desejou Deborah com sinceridade. — Muita falta me faz. Deborah imitou o gesto das figas. — É a primeira vez que vem à Wingate? — perguntou Dorothy. — É — admitiu Deborah. — Para mim e para a minha companheira de quarto. — Estou certa de que ficarão satisfeitas com a escolha — disse Dorothy. — Vão ambas fazer in vitro? — Não — disse Deborah. — Somos doadoras de óvulos. Respondemos a um anúncio no Harvard Crimson. — Que maravilha! — proferiu Dorothy, sem esconder a admiração. — Que gesto bonito! Vão dar esperança a alguns casais desesperados. Aplaudo a vossa generosidade. Deborah sentiu-se súbita e desconfortavelmente venal. Queria mudar de assunto antes que transparecesse o verdadeiro motivo da sua doação. Foi salva pelo abrupto regresso de Cynthia. A enfermeira entrou pelas portas basculantes sem qualquer aviso. — Pronto, Dorothy! — chamou Cynthia com grande entusiasmo. — Está tudo pronto! Siga para a sala de transferência, que estão preparados para recebê-la. Dorothy ergueu-se, respirou fundo e saiu porta fora. — Ela é muito corajosa — observou Cynthia quando a porta se fechou. — Espero que este ciclo seja bem conseguido. Ela merece mais do que ninguém. — Quanto é que custa um ciclo? — perguntou Deborah. A preocupação com a sua venalidade trouxera a questão econômica à superfície. — Depende dos procedimentos envolvidos — disse Cynthia. — Mas em média custa entre oito e dez mil dólares. — Minha nossa! — comentou Deborah. — Isso quer dizer que Dorothy e o marido já gastaram quase noventa mil dólares! — Talvez mais — continuou Cynthia — Isso não inclui o tratamento de infertilidade inicial ou quaisquer outros auxiliares que tenham sido indicados. A infertilidade é uma empresa dispendiosa para os casais, mesmo porque os seguros não costumam abrangê-la. A maioria dos casais tem de arranjar o dinheiro. Entraram mais duas doentes e Cynthia deu-lhes toda a sua atenção. Pegou a papelada das mulheres, deu uma olhadela, pegou na indumentária e mandou-as para os vestiários. Deborah ficou surpreendida com a idade que uma delas aparentava. Não tinha a certeza, mas achou que a mulher parecia velha, com cerca de cinqüenta anos. Sentindo-se inquieta, Deborah pôs-se de pé. — Desculpe, Cynthia — disse. A enfermeira lia agora os papéis das doentes com mais atenção. —