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CONCELHO DE SINTRA
                                              - ROTEIRO MEDIEVAL -




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Escala                 1/100.000
Caminhos-de·Ferro
Estradas Nacionais
Estradas Municipais
Limites de Freguesia




I - Castelo e Igreja de S.la Maria.
2 - Vila: Urbe (ver quadro).
3 - S. Pedro: Capela de S. Lázaro e
        Túmulo dos 2 irmãos.
 4 - Paço de Belas.
VILA DE SINTRA




Roteiro Medieval                   (URBE)

    N




    1




                                                           .-
                                                                  --~----~~              ----       25
                                                   O'-L   _--'-_--'-_-'-_....-<-1   -----.1125 M.




 l-Paço                            14- Alpendre do Mercado
 2 - Rio do Porto                  15-Praça
 3 - Caminho para Mafra-Ericeira   16- Pelourinho
 4 - Caminho para a Ponte          17- Hospital
     da Redonda                    18- Judiaria
 5-Pisões                          19- Sinagoga
 6 - Paço do Alconde               20 - Casa da Vereação (?)
 7 - Caminho de Colares            21- Poço do Romão
 8 - Chão da Oliva                 22- Pedras Ajorradiças
 9 - Rua do Açougue                23- Fonte da Pipa
la - Rua da Pendõa                 24- Rua da Ferraria
11- Igreja de S. Martinho          25- Caminho para arredores
12- Cadeia (7)                          - Lisboa e Cascais
13- Torre do Relógio (7)




2
1. OS VISIGODOS E OS MUÇULMANOS



     A presença visigótica na região sintrense apresenta-se parca de ves-
tígios, sobretudo se comparados com os que foram encontrados em locais
limítrofes aos do concelho, como Lisboa, por exemplo. Será tal consequên-
cia do carácter pouco urbano e tecnicamente pobre da civilização visigó-
tica, sobretudo se comparada com os seus predecessores romanos e com
os seus sucessores árabes? Será tal consequência do menor povoamento
da zona, que tinha relativamente perto uma localidade de maior valia e
fama (Lisboa)? Apenas hipóteses podem por nós ser formuladas e pouco
mais.                             
     Dos suevos sabemos que por Sintra teriam andado, pelo menos no
século v, quando Réquila (441-448)unifica todo o ocidente peninsular -
da Galécia à Lusitânia ocidental. Lisboa e arredores são ocupados por
volta de 458 e em 469, se bem que pouco depois reocupadas pelos visigo-
dos. Prenúncio do que mais tarde sucederia ao próprio reino suevo, ane-
xado pelos godos em 624.
     Em todo o caso, de entre os escassos testemunhos da sua presença,
podemos e devemos referir o espólio funerário encontrado no Museu de
Odrinhas, composto por vários túmulos em bom estado de conservação, e
que constituem umcç.visitcr profícua. Também no Museu Regional de Sin-
tra merece realce um anel de ouro aí exposto, se bem que - por fazer
parte de uma colecção particular - sob a forma de fotografia.
     Quando, em 71 L as hostes do Islão entram na Península Ibérica ini-
cia-se uma nova era para o território de um modo geraL e para a região
de Sintra em particular. Desde cedo fixados nesta área, os muçulmanos
vão marcar com o seu cunho muito particular a vila nascente, deixando
marcas que o tempo diluiu mas que podem ainda ser vistas, se atentos
soubermos entender os sinais que aqui e ali se dispõem.
     A forte fixação muçulmana neste local (entenda-se Sintra e arredores)
não é fruto do acaso. Possuidores de uma cultura e de uma civilização
que a tornavam das mais avançadas do seu tempo, apreciadores da vida
campestre e do contacto com a natureza verdejante, não é difícil de enten-
der de que forma foram os seguidores de Maomé cativados por uma
região onde a natureza parecia corresponder às suas expectativas.
O célebre poema de Alcabideche, escrito em meados do século XI por Ibne
Mucana Alisbuni - um antigo cortesão reformado -, é bem a prova de
tal atracção:

    "Ó tu que habitas Alcabideche! Oxalá nunca te faltem/cereais para
semear nem cebolas nem abóboras!l( ...) Deixei os reis cobertos com os seus
mantos/e renunciei a acompanhá-los nos cortejos ...!Eis-meem Alcabide-
che colhendo silvas com uma podoa/ágil e cortante.!Se te disserem: gostas
deste trabalho?, responde: sim.!O amor da liberdade é o timbre de um
carácter nobre.!Tão bem me governaram o amor e os benefícios de Abú
Bacre Almodafar/que parti para um campo primaveril."

     Se bem que este poema se refira a uma área que não exactamente a
sintrense, poderia ele ser, porém, igualmente - e até mais justamente-
aplicado à região de Sintra, cuja fertilidade, exuberância      natural e
riqueza paisagística    não é, de modo algum, menor. A instalação dos
muçulmanos na região sintrense - onde irão fundar a vila que hoje
conhecemos como Sintra e então apenas vagamente esboçada por uma
ocupação humana antiga mas ainda não estruturada numa urbe como
tal - enquadra-se, pois, nessa lógica de atracção por áreas verdejantes e
de natureza fértil, que os leva a semear, um pouco por toda a parte e com
particular incidência na região que vai da vila até à Várzea, as suas
famosas "clmoínhos". que mais não eram que quintas dedicadas à explo-
ração frutícola mas também com vastas áreas ajardinadas, animadas
ainda por pequenos riachos e contendo uma casa de habitação. Durante


                                                                              3
toda a Idade Média encontramos inúmeras referências a tais almoínhas,
mesmo muito depois de o domínio islâmico ter sido substituído pelo
domínio cristão.
     Também na documentação e nas narrativas árabes a região de Sintra
nos surge documentada. Se bem que a função de um roteiro seja guiar o
visitante mais pelos vestígios monumentais que pelas linhas de poemas
e anais, consideramos útil-    sobretudo enquanto introdução - uma bre-
víssima resenha de tais referências. Assim, vários são os autores que
gabam a fertilidade da região:

    "(Sintra é) uma das vilas que dependem de Lisboa no Andaluz, nas           Museu de Odrinhas: Sepulturas
proximidades do mar. Está permanentemente       mergulhada numa bruma
que se não dissipa. O seu clima é são e os habitantes vivem longo tempo.
Tem dois castelos que são de extrema solidez. A vila está a cerca de uma
milha do mar. Há aí um curso de água que se lança no mar e serve para a
rega das hortas. A região de Sintra é uma das regiões onde as maçãs são
mais abundantes. Esses frutos atingem tal espessura, que alguns chegam
a ter quatro palmos de circunferência. Acontece o mesmo com as pêras.
Na serra de Sintra crescem violetas selvagens. Da costa vizinha extrai-se
âmbar excelente." (Ibne Abde AI-Mumine Al-Himiuri)

     "(...) na região entre Lisboa e Sintra, encontram-se numa montanha,
utilizada outrora como reduto fortificado, pedras judaicas que têm exacta-
mente a forma de glandes. Estas pedras têm, entre outras propriedades, a
de dissolver os cálculos da vesícula e do rim. Fazem-nas também entrar
na composição de eolitios." (Idem)

    "E o termo (arredores) de Lisboa é comprido de muitos bens porque aí
há mui saborosas frutas. E juntou em si as bondades do mar e da terra. E
em todo o tempo, em seu termo criam muito bons açores (...) que usam
mais caça e são melhores que os outros e são muito formosos. E há aí
muito mel e muito bom; e é tão branco que não parece senão açúcar e
sabe melhor que o açúcar. E é tão bom por natureza que, mesmo sendo
posto num pano de linho, não ficaria molhado, nem faria aí sinal tanto
como se fosse pedra." (Ahmede Arrazí)

     A instalação muçulmana no termo de Lisboa em geral, e na região
sintrense em particular, enquadra-se, portanto, nessa lógica de aproxi-
mação a uma natureza apreciada e fértil.
     Se é certo que, como atrás referimos, a ocupação humana da região
sintrense remonta a épocas bem mais antigas - como já vimos; se é
igualmente certo que as mais recentes campanhas arqueológicas pare-
cem provar que a área onde hoje se instala a vila possuía alguma pre-
sença humana, o que nos parece igualmente certo é que não andaremos
muito longe da verdade se afirmarmos que a vila de Sintra, enquanto tal,
é genericamente de assentamento muçulmano. E a partir da ocupação
árabe que a vila pode ser estudada como uma realidade estruturada, pos-
suindo uma coerência urbanística e características próprias que a fazem
merecer o título de "vila". Para esse efeito, serão sobretudo objecto do
nosso estudo o castelo, o casario e o traçado das ruas, o paço (alcáçova)
da vila e a toponímia do concelho, vestígios mais vivos da presença
muçulmana em Sintra. Um último dado assaz curioso. Não obstante a
importância da permanência muçulmana na região, escassos são os ves-
tígios materiais (em termos de objectos, entenda-se) que foram até hoje
descobertos. Escassa cerâmica, algumas lucernas e ainda menos moedas
estão visíveis no Museu Regional de Sintra. A razão de tão "pobre" espó-
lio em clara desproporção com tão rica presença, dever-se-á ao facto -
de acordo com os especialistas - de a ocupação muçulmana ter sido par-
ticularmente tolerante para com a população autóctone/moçárabe, permi-
tindo a permanência de formas artísticas próprias e o uso de objectos que
se inserem na tradição local. Deste modo, só muito esporadicamente se
poderá falar de formas de expressão tipicamente árabes na região sin-
trense, tanto mais que se crê que o árabe ocuparia mcis os núcleos urba-
nos, deixando o aro rural para a população local (isto partindo do princípio
que se pode traçar uma fronteira clara entre a população dita "local" e os
muçulmanos considerados como "forasteiros", o que é, a nosso ver, duvi-
doso e incorrecto). Mais uma vez se depreende que a ocupação árabe no
concelho, como no país, não terá sido a ruptura que antigos textos - quiçá
mais eivados de ideologia que de rigor factual - sugeriam, ruptura que
hoje a historiografia tende a pôr em causa.


4
2. OS MUÇULMANOS

2.1. O Castelo de Sintra




                                                                              A esquerda: Castelo visto da vila.
                                                                              A direita: Vila vista do castelo.
    Se bem que se desconheça em absoluto a data da sua fundação, é
hoje pacífico que a sua origem é muçulmana. Tome-se em conta todavia
que - como acontece com quase todos os vestígios monumentais sintren-
ses mais remotos - pouco é já o que pode ser observado que seja de ori-
gem. Na verdade, devido a extensas obras levadas a cabo no século XIX
por D. Fernando Il. apenas as bases das torres e as muralhas remontarão
à fundação inicial. Serpenteando pelos acidentes naturais da serra, essas
muralhas assumem características únicas que as tornam inconfundíveis.
  , Outro provável testemunho árabe no castelo é a cisterna. Situado
bem dentro do recinto muralhado, se bem que hoje encerrada ao público
que apenas a pode ver do exterior - o que tira substancialmente uma
visão clara da construção -, a cisterna é composta por um vasto tanque
abaixo do nível do solo e de planta rectangular. Mede de comprimento
dezoito metros por seis de largura. Mede seis metros de altura da soleira
da porta ao pàvimento e três metros até ao fecho da obóbcdu.i O pavi-
mento é constituído por lajes de granito. A abóbada da cisterna possui
ainda duas clarabóias. A água que a abastece é pluvial, entrando pela
parte de cima através de quatro manilhas situadas nos cantos. ·Até há
alguns anos, esta água estava disponível ao público que a podia tirar, ser-
vindo-se de uma bomba apropriada para o efeito. Parece assim evidente
que esta cisterna constituiu, ao longo dos séculos, mais um ponto abaste-
cedor de água para as gentes de Sintra, sobretudo para aquelas que
moravam nas imediações do castelo, como o retratam antigas gravuras
românticas, onde se pode observar alguns sintrenses abastecendo-se.
    Uma análise mais detalhada do castelo de Sintra faz ressaltar, em
primeiro lugar, a sua quase aparente invulnerabilidade. De facto, as ver-
tentes que o circundam não permitem a qualquer intruso uma aproxima-
ção, já que de tão escarpadas     e rochosas tornam-se inacessíveis. De
imediato, parece ao observador como quase impossível a sua conquista.
Sensação reforçada pelo facto de nunca se ter combatido no castelo; de
nunca se ter pelejado pela sua posse nem nenhum cerco lhe ter sido
alguma vez montado. A história surge assim a confirmar a suspeição.
Contudo, a surpresa poderá tomar o observador se se lhe disser que
nunca houve lutas pela posse do castelo pelo simples facto de sempre ele
se ter rendido sem luta, sobretudo se Lisboa era tomada. E isto não obs-
tante a sua invulnerabilidade. A resposta para esta aparente contradição
poderá passar pela própria função do castelo durante quer a ocupação
muçulmana, quer depois. De facto, parece-nos perfeitamente crível que o
castelo fosse mais um ponto de vigia dos campos em redor que um ba-
luarte unicamente defensivo. Vigia da região e sobretudo de Lisboa, inte-


                                                                                                            5
grava-se assim a vila numa gargantilha defensiva - de que outras terras
faziam igualmente parte - que protegia a cidade maior. Esta hipótese
radica em três premissas:

     1 - A boa localização do castelo e suas torres, de onde podem ser
observados os campos em redor. Ainda que integrado numa terra que
considerava já como sua - de nascimento e residência -, o muçulmano
ibérico sabia também que das terras do norte se aproximavam as hostes
cristãs. Alardos e pilhagens, correrias e fossados, ataques súbitos e expe-
dições punitivas eram frequentes em ambos os campos, afirmando-se
deste modo a necessidade de se possuir uma boa rede de atalaias, que
prevenissem ataques, que vislumbrassem os inimigos ao longe e que pre-
cavessem a defesa. Vigilante, o muçulmano ibérico podia assim divisar
ao longe as patrulhas e os cavaleiros inimigos -, coisa que não poderia
fazer no vale onde a vila se dispõe - e assim tomar as providências
necessárias, que poderiam passar por recolher dentro das muralhas os
habitantes dispersos, enquanto os inimigos rondavam as cercanias.

    2 - Em rigor, muito pouco protege o castelo. Se é perfeitamente plau-
sível que o recinto muralhado encerrasse algum casario inicial. cedo a
vila transbordou os estreitos muros e se dispôs de S. Pedro até ao vale. No
cimo, o castelo ficou isolado, muito pouco guardando, pouco protegendo.
Tal é visível. mais tarde, durante a crise de 1383-85,quando os homens do
Mestre se abastecem em Sintra perante o olhar do conde-alcaide - que
se declarara por Castela - que, contudo, não sai dos seus muros. Diz Fer-
não Lopes:

    "(...) estando então em Sintra o conde e gentes com que o bem o podia
defender, que tinha voz por Castela. E correu Nuno Álvares a terra em
redor, sem ter achado nenhum que o torvasse. (...) E teve o (Mestre) fala
com alguns de Sintra (...) para que lhe dessem o castelo daquele lugar que
é uma grande fortaleza em um alto e !ragoso monte, e a vila ao pé dele,
sem nenhuma cerca que a defender possa." (Fernão Lopes, "Crónica de
D. João I", caps. LxxIlcLXIV)

    Como se verifica, a função de vigilância    prossegue   após a Recon-
quista.

    3 - A evolução dos acontecimentos parece, aliás, confirmar esta
ideia. Logo após a conquista de Lisboa, o castelo rende-se sem luta, o que
parece reafirmar claramente que a sua função de atalaia é feita sobre-
tudo em função de Lisboa, da qual Síntra mais não é que um posto avan-
çado e de apoio. Perdida Lisboa, perdia Sintra a sua função. O foral de
1154reforça esta ideia, ao estipular, numa série de artigos, que a função
da cavalaria-vilã sintrense seria a de defender Lisboa, para esta se diri-
gindo quando avistasse inimigos del-rei nas imediações de Sintra. A fun-
ção de vigilância - como se vê mais até de Lisboa do que da própria vila
- só se esbate com a definitiva pacificação do território, após a crise do
Interregno. Mas a este assunto voltaremos mais tarde, quando analisar-
mos o estatuto da vila após a Reconquista.



2.2. O Casario

    Um outro vestígio - ainda que remoto - da presença muçulmana na
região sintrense parece-nos ser o casario. Mais exactamente, a malha
urbana e a disposição das ruas da vila.
    O observador que percorra a vila, nas imediações do paço e da igreja
de S. Martinho, facilmente nota a estreiteza de algumas ruas e becos, a
forma como elas serpenteiam entre o casario, a existência de becos e de
ruas sem saída, as curvas súbitas que mudam, por vezes, o sentido de
uma ruela. Na verdade, o casario parece ter sido disposto e orientado sem
um plano claro que o definisse, deambulando as ruas de acordo com dita-
mes que passam mais pelo capricho ou pela necessidade momentânea
que pela planificação prévia. A chamada "lei da permanência do plano"
- que afirma que salvo cataclismos monumentais o plano e o traçado de
um povoado tendem a manter-se mais ou menos constantes ao longo dos
tempos - permite -nos de algum modo filiar este traçado, naquele que os


6
muçulmanos terão forjado em Sintra, à medida que a vila ia crescendo
sob as suas mãos. Edificada primeiro em torno do castelo, instalada ini-
cialmente nas casas que se erguiam fronteiras ao castelo, cedo a popula-
ção desce o vale e se instala nos arrabaldes de S." Maria, S. Miguel e
sobretudo S. Martinho, bairros esses que, a breve trecho (sobretudo o
último), ultrapassam o casario do castelo como núcleo principal da vila.
Aí instalarão os muçulmanos o seu paço acastelado onde os governado-
res regionais (os walis) habitavam, aí passou a residir a casta mais aris-
tocrática dos islâmicos do local, que entre Sintra e Lisboa repartia o seu
tempo, como reconhece o suposto Osberno em 1147:

    "Ali (Lisboa) se tinham fixado como hóspedes   (...) todos os nobres (ára-
bes) de Sintra."

   o    casario e as ruelas do que é hoje comum chamar-se         a "Vila
Velha" são assim dispostos de acordo com o que eram os princípios
                                                                                                  Ruela da vila velha
gerais da urbanística árabe e hispano-muçulmana,        que se caracteri-
zava pela ausência de regras e de princípios normativos para esse
assentamento urbano. Na verdade, se percorrermos, ainda hoje, as ruas
das cidades islâmicas do Magrebe, notamos que as características que
atrás apontámos para o casario velho sintrense são aí elevados ao
paroxismo. As ruas estreitam-se, os becos surgem inesperadamente,         o
labiríntico das ruelas torna difícil a visita sem guia. Em Sintra, salva-
guardadas as devidas distâncias, é possível ver tais tendências esbo-
çadas, o que nos leva a afirmar - com a devida prudência que o tempo
já passado e que a escassa dimensão da vila aconselham - que o tra-
çado urbano sintrense é subsidiário do modelo islâmico de edificação
urbana.
     Refira-se, já agora, que este modelo árabe de uma certa "desorgani-         Vila: Poço Rosto e Pedras Ajorradiças
zação" urbana radica em três ordens de factores:

 . - Razões de mentalidade: para o muçulmano, a casa sobrepõe-se à rua.
E lá que o fiel reza, que vive, que passa o tempo, sobretudo quando as mui-
tas horas de calor não lhe permitem uma saída confortável. A casa é um
espaço de sociabilidade maior do que a rua, tanto mais que as mulheres,
por exemplo, centram a sua actividade muito mais lá que no exterior, onde
os seus movimentos sofrem restrições. Assim sendo, é lícito que um morador
prolongue a sua casa, que cerceie o espaço da rua ou mesmo que a feche
num beco sem saída. A ausência de regulamentação urbana entre os muçul-
manos (e, por extensão, os hispano-muçulmanos) favorece tal tendência;

    - Razões climáticas: as ruas estreitas e apertadas permitem uma
menor exposição ao sol e favorecem a sombra, caracteristícas bem apre-
ciadas para quem à força do calor está acostumado;

    - Razões defensivas: becos e curvas apertadas, espaços labirínticos
e uma disposição irregular das ruelas favorecem quem defende, quem
melhor conhece o espaço onde se move e pode assim enfrentar com mais
armas o invasor. Ora, ainda que integrado no mundo ibérico que há muito
conquistara, não raro ainda se sentia o muçulmano ameaçado. Não só as
armas cristãs ameaçavam, como podiam suceder revoltas moçárabes,
como as que efectivamente sucederam em meados do século IX, quando
duas rebeliões moçárabes eclodiram em Sintra, secundando igual movi-
mento em Lisboa (e terminando, claro, quando em Lisboa terminaram).
    Deste modo, parece-nos perfeitamente credível afirmar que o traçado
urbano sintrense é subsidiário da influência hispano-muçulmana, mesmo
levando em conta que as ruas possam, com o tempo, ter sofrido algumas
modificações que impeçam uma correspondência         plena. Mas a matriz
está lá.



2.3. O Paço

    Até há alguns anos, a problemática respeitante à fundação do paço
de Sintra era objecto de polémica. Vários autores - como Reinaldo dos
Santos ou Mário Chicó - eram claros na sua asserção de que os paços de
Sintra eram de edificação joanina ou até manuelina, fazendo assim tábua
rasa de anteriores vestígios e notícias, no que foi interpretado por outros


                                                                                                                 7
autores - como Borges Coelho e com alguma lógica - como fruto de um
determinado preconceito histórico antimouro.
     Na actualidade, a fundação árabe do paço de Sintra parece já pouco
questionáveL se bem que seja perfeitamente pacífico que o que resta
dessa fundação muçulmana se restringe a uma mão-cheia de pormeno-
res, fruto de várias reconstruções e alterações posteriores. Os argumentos
a favor da fundação árabe do paço - em contraponto à tese da fundação
joanina, tão cara a alguns autores - são vários. Em primeiro lugar, os
documentos, os testemunhos. Ouçamos de novo AI-Himiari:

    "Sintxa tem dois castelos e são ambos de extrema solidez."

    Se é óbvio que um dos castelos é o da vila, no cimo da serra edificado,
o outro só pode corresponder ao paço de Sintra, acastelado como uma
alcáçova ou alcazar, tal como era usual entre os hispano-muçulmanos        e
mais tarde entre os cristãos da reconquista.
    Depois, os factos. D. Dinis estabelece com os mouros forros de Colares
um protocolo no qual lhes concede algumas benesses fiscais, desde que
eles garantam a manutenção das muralhas do castelo e do seu "palácio
real da Olivc" (leia-se "o palácio real do Chão da Olivc" , como na Idade
Média se chamava ao local que é hoje o largo fronteiro ao paço). Não é
necessário muito esforço para depreender de que palácio se trataria.
    Mais tarde, em 1385,é o recém-aclamado D. João I que doa a D. Henri-
que Manuel de Vilhena, alcaide de Sintra, "todos os nossos paços que nós
havemos na vila de Sintra com todas as suas entradas e saídas". Isto
décadas antes das obras ordenadas pelo monarca que, como adiante
veremos, o reconstruíram e alteraram, obras que estão, de resto, na base
da argumentação favorável à fundação joanina.
    Actualmente, os vestígios da fundação muçulmana diluem-se no
emaranhado de um palácio que cresceu sem uma grande regularidade -
o que mais o torna original, diga-se. Mas em todo o caso podem ainda ser
observados do primitivo paço acastelado mourisco alguns revestimentos
de azulejaria existentes em pavimentos, como o tapete de azulejos alica-
tados da capela real, ou o pavimento também de azulejos - verdes, cas-
tanhos, manganés e amarelo - com desenho de laçaria, existente na
chamada sala Afonso VI. Também alguns apontamentos            patentes um
pouco por toda a parte, se bem que de construção posterior (a disposição
dos jardins suspensos, a decoração de portas e janelas, o desnivela-
menmto das várias alas e corpos construtivos ou até alguma toponímia
- "Terreiro de Meca", por exemplo - traem essa anciana influência que
o tempo manteve.
    Para todos os efeitos, ainda que os vestígios sejam hoje vagos e difu-
sos, o paço assume-se como herança muçulmana em Sintra, e seria
injusto como talo não considerar.



2.4. A Toponímia

     Um facto evidente e por de mais sabido: uma das principais heranças
muçulmanas no nosso país deixadas foi a linguística. No domínio da
toponímia, os exemplos encontram-se um pouco espalhados por todo o
território nacional, se bem que com maior incidência no centro/sul, e Sin-
tra não foge à regra. Pelo concelho fora, várias localidades deixam entre-
ver, no seu nome, uma remota influência           árabe, e se bem que os
especialistas nem sempre estejam de acordo sobre a etimologia de várias
dessas localidades, o elevado número encontrado não permite que se
olvide tal herança. E se tais testemunhos não se enquadram necessaria-
mente no campo dos vestígios mais monumentais, certo é também que
cabem dentro de uma outra herança que não passa tanto pelas pedras e
pelos muros: a da memória colectiva que se fixa na língua que usamos e
nos nomes das terras onde nascemos, vivemos e morremos.
     Não é total o acordo entre os linguístas acerca da toponímia sintrense
e suas etimologias árabes. Um dos mais conceituados linguístas portu-
gueses - José Pedro Machado - divide os topónimos locais de origem
árabe em três grupos: os árabes, os híbridos e os arábico-modernos. De
cada grupo forneceremos uma lista, acómpanhada da raiz e do signifi-
cado em anexo. Esta lista é ainda complementada com apontamentos de
outros autores que a este assunto se dedicaram igualmente, nomeada-


8
I




mente Mário Guedes Real e Oliveira Boléo, se bem que demonstrassem
estes menor profundidade que o linguista anteriormente citado. Assim
temos:

     - Topónimos de origem árabe (aqueles que possuem raiz árabe e que
permaneceram com pequenas alterações desse radical): Albarraque (al-
-barrak. isto é, "o brilhante", se bem que Guedes Real sugira um étimo em
al-barraque,    ou seja, plural de aI-barca - "solo duro"); Alcainça (al-
-kaniça, isto é, "a igreja"); Alcoruim ou Alcorvim (al-cairuáne, isto é, "o
caimão"); Alfaquiques (alfaqueques, cargo muçulmano que designava o
indivíduo que resgatava prisioneiros); Alfouvar (al-fauwara, isto é, "o
bolhão"): Algueirão (al-guerane, isto é, "a gruta"); Almargem (al-marge,
isto é, "o prado"); Arrabalde (arabáde, isto é, "os subúrbios"); Azenha (cç-
-çania, isto é, "a nora"); Azoia (az-zavia, isto é, "o mosteiro"); Cacém
(qácine, que mais não parece ser que um antroponómico, apesar de
Guedes Real sugerir raiz em cacéme, ou seja "o que divide"); Moçaravia
(muçtarabe, isto é, "aquele que se tornou árabe"); Queluz (qá-luz, isto é,
"vale da amendoeira"). Guedes Real apresenta também: Mucifal (moçícl.
isto é, "o lugar que está em baixo"); Massamá (maçama, isto é, "o que está
alto"); Meleças (meliça, isto é, "o vazio"); Almoçageme (al-mesjide, isto é,
"a mesquita"), entre outros mais improváveis.

     - Topónimos híbridos (aqueles que resultariam da associação de
dois topónímos,  um árabe e um latino): Alcolombal (da junção do artigo
árabe "ol" com a palavra latina "columbcre", que significa pombal), Alco-
bela (do árabe "al-quibba" mais o sufixo "ela"), Almoster (mescla do
artigo "al" mais o termo latino "monosteriurn". que designa mosteiro).

    - Topónimos arábicos modernos (aqueles onde, apesar de se reco-
nhecer uma etimologia      árabe mais ou menos comprovada,       não se
conhece claramente a raiz, devido a influências posteriores): Abonemar,
Açafora, Aljabafaria, Almoçageme (note-se o que Guedes Real propõe
para este topónimo), Almornos, Almosquer, AlparreL Alpoletim, Alvegas,
AsfamiL Boqcrlho. Calaferrim (o mesmo que Canaferrim, que daria mais
tarde Penaferrim, termo que designa também o bairro de S. Pedro - S.
Pedro de Penaferrim), Galamares, Mafarros (ou Nafarros), Magoito, Mele-
ças (ver tese de Guedes Real), Massamá (idem).

     Esta lista não é, por certo, nem definitiva nem isenta de bastas diver-
gências. Não nos competindo arrogar o papel de árbitro - até porque nos
carece a competência linguística para tanto -, resta-nos esperar que
futuros estudos esclareçam questões em aberto. Entretanto, registe-se
uma curiosidade      (e uma prova, afinaL de que este é um dossier em
aberto): nenhum dos linguistas citou o topónimo Tercena, que se sabe ter
o étimo em "dor-cs-sincr'c". isto é, "tulha" ou "armazém".




                                                                               9
3. DA RECONQUISTA AO DEALBAR DA EXPANSÃO



          Após a queda de Lisboa. em 1147.Sintra rende-se sem luta. Esta ren-
     dição de tão inacessível castelo não surpreende. se se relembrar que a
     sua função não era tanto defender a vila - que visivelmente não defen-
     dia - mas mais a de se integrar na cintura defensiva que protegia Lis-
     boa. Cintura essa que se estendia por várias vilas do termo de Lisboa. e
     que visava fornecer à capital a vigilância e os homens necessários para a
     sua segurança. Perdida Lisboa. perdia-se o sentido de Sintra. Daí a sua
     rendição sem luta.
          Este estatuto de subordinação de Sintra em relação a Lisboa man-
     teve-se durante toda a Baixa Idade Média - quase nos atrevemos a dizer
     que é uma constante da sua história. Subordinação. antes do mais. mili-
     tar. Até à crise de 1383-85. enquanto a independência      nacional corria
     perigo (primeiro mais às mãos dos muçulmanos; depois de Afonso III.
     somente de Castela). Sintra assumiu-se como um bastião militar de apoio
     a Lisboa. O castelo - vimo-lo já - erigia-se como ponto de vigia. como
     núcleo aglutinador de hostes que para a capital se deviam dirigir se fos-
     sem avistados inimigos deI-rei (recorde-se o articulado do foral que
     subordinava a cavalaria-vilã às necessidades lisboetas); os sintrenses
     assumiam-se - ou eram levados a ... - como mão-de-obra útil ao poder
     central. como sucedeu aquando da construção da muralha fernandina de
     Lisboa em 1373.na qual colaboraram habitantes de Sintra (e mais dezoito
     terras. de Setúbal a Benavente. de Cascais a Torres Vedras. de Lourinhã a
     Sesimbra. o que define o aro defensivo que resguardava a cidade maior);
     os guerreiros da vila auxiliavam-na com armas e homens. como aquando
     da crise de 1383-85.após a rendição de Henrique Manuel de Vilhena -
     que declarara a vila por Castela -. quando de Sintra seguiram "lanças"
     para Lisboa.
          Com a estabilização política e com a acalmia das fronteiras ocorridas
     após o triunfo da dinastia de Avis. o estatuto de Sintra muda quase radi-
     calmente. De bastião militar passa a vila cortesã. habitada sazonalmente
     por uma corte em busca de ares frescos e sombras calmas. que percorre
     Sintra como em casa sua. Nesse sentido se integram as constantes obras
     no paço da vila - que pela primeira vez se assume inequivocamente
     como residência real - e a extinção da coudelaria de Sintra em 1460-
     dispositivo militar inútil. numa vila que perdeu a sua função militari-
     zante.
          Agora. neste virar da centúria de trezentos para a de quatrocentos.
     que representa a mudança da vila militarizante para a vila áulica. o dis-
     curso do poder é já outro. Se no século XII o articulado do fora 1 ordenava
     aos cavaleiros-vilãos   que acorressem a Lisboa para a ajudar belica-
     mente. agora. em 1436.D. Duarte diz de Sintra:

          ..... vimos a esta vila de Sintra muitas vezes ter alguns verãos (...); (a
     terra é) de muitos bons ares e águas e de comarcas. em que há grande
     abundância de mantimentos de mar e de terra. e por a nossa mui nobre e
     leal cidade de Lisboa ser tão acerca; e por havermos nela assaz de fol-
     ganças e desenfadamentos de montes e caças. e por termos nela nobres
     paços de mui espaçadas vistas .:"

          Este palavreado serve de preâmbulo ao conjunto de privilégios que o
     monarca concede aos sintrenses por motivo dos incómodos que eles sen-
     tem ao colaborar na reconstrução e obras do paço. Simbólico: se antes
     colaboravam na edificação da muralha fernandina de Lisboa. trabalha-
     vam,agora os sintrenses no paço da sua própria vila.
          E à luz desta subordinação de Sintra em relação a Lisboa que deve-
     mos interpretar a vila medieval e mesmo moderna. A subordinação não
     assume apenas aspectos militares ou áulicos; é também económica e ins-
     titucional. Para Lisboa vão alguns dos melhores produtos da terra. vendi-


     10




ta
dos pelos almocreves e pelos campónios; para Lisboa vão os jovens inte-
lectualmente mais promissores, os artesãos mais dotados, as gentes mais
ambiciosas. A proximidade da capital e a respectiva força centrípeta
potenciavam uma constante sangria de gentes mais habilitadas e dos
produtos mais procurados, que os documentos aqui e ali revelam. De Lis-
boa, por seu turno, vinha o poder e a corte, os fidalgos que em Sintra e
arredores arrendavam e compravam vastas terras, instalavam quintas e
influenciavam vereações. A consagração máxima desta subordinação é
constatada logo após 1385,quando Sintra (entre outras terras) é doada a
Lisboa como seu termo, o que, na prática, acarreta uma subalternização
concelhia em relação ao município sintrense e seus edis. O facto de tal
doação ter sido anulada, cerca de um século depois, não lhe retira o
impacte.
     Em todo o caso, a subordinação em relação a Lisboa, e os incómodos
que daí decorrem, tem as suas contrapartidas. A presença da corte acar-
reta a doação de regalias aos sintrenses (como se viu com D. Duorte), a
presença dos nobres e da corte conduz a uma subida dos preços pelos
mercadores sintrenses, a presença ofuscante de Lisboa permite, enfim,
que Sintra possua um estatuto no todo nacional que a sua pequena
dimensão e escassa população (nunca ultrapassará o milhor de habitan-
tes, de acordo com os nossos cálculos) não pressuporiam. E por isso que
Sintra tem uma posição de destaque em Cortes, onde se senta em lugar
privilegiado a par com terras de maior tamanho e mais população.
Recorde-se que, de acordo com o protocolo, os concelhos sentavam-se
tanto mais à frente quanto mais importantes eram. Por outras palavras, o
preço de tal subordinação é um estatuto de algum modo superior.
     Como veremos a seguir, o percurso dos monumentos segue bastante
essa evolução de estatuto.




                                                                           11
4. IDADE MÉDIA

4.1. O Paço de Belas

     o hoje olvidado Paço de Belas foi, contudo, até ao século xv, um pala-
cete bastante frequentado pelos monarcas portugueses, pela família real
                                                                                                        :f
e por várias famílias da alta nobreza, concorrendo e suplantando mesmo
episodicamente - com D. Pedro, por exemplo - o Paço de Sintra, então                                    J
numa penumbra que só o interesse joanino iria romper.
     Situado na actual vila de Belas, o Palácio do Senhor da Serra como
também é conhecido, encontra-se fronteiro ao jardim central da locali-
dade, inserindo-se numa vasta propriedade, de resto também interes-
sante para outras épocas. O paço parece ter tido a sua origem numa
herdade construí da em torno de alguns casais, herdade que tinha, em
princípios do século XIV, o cavaleiro Gonçalo Anes Correia como proprie-                Paço de Belas
tário. Em 1318,a herdade passa para o Convento de Santos por cláusula
testamentária, para ser trocado pelas freiras dez anos depois, indo então
parar às mãos do meirinho-mor, Lopo Fernandes Pacheco. Em 1357,a her-
dade sai da posse desta família confiscada pelo monarca D. Pedro, já que
o seu dono - ao tempo Diogo Lopes Pacheco - fora um dos executores
da Castro.
     É então que o rei ordena a construção do paço nos terrenos dessa her-
dade, paço que ainda hoje existe, e onde pousava frequentemente. Ouça-
mos, a tal propósito, Fernão Lopes:

     "Assim sucedeu que pousando (D. Pedro) nos Paços de Belas, que ele
fizera, dois dos seus escudeiros, que há muito com ele viviam ..."
                               (Fernão Lopes, "Crónica de D. Pedra", Capo VI, adapt.)

    Após a subida ao trono de D. Fernando, a quinta e o paço são devolvi-
dos aos Pacheco em 1367.Em 1389,João Fernandes Pacheco é confirmado
no morgadio de Belas. A deserção deste para Castela leva a novo con-
fisco e posterior doação régia a Gonçalo Peres Malafaia. Por fim, em 1424,
a coroa volta a comprar a propriedade à viúva de Gonçalo Peres, retor-
nando assim para a Casa Real. A partir de 1499,o paço é aforado pela
casa real a particulares.
    Um facto importante com este paço relacionado é a sua ligação às
Minas do Suímo (a "Ossumo" referida na "Crónica Geral de Espanha" e
durante tanto tempo motivo de dúvidas) que ficavam próximo, na Serra
da Carregueira. Durante largo tempo uma fonte de pedras semipreciosas,
tiveram estas minas no paço um ponto de apoio importante, já que as
minas estavam, tal como o paço, sob a directa posse da Coroa. Mesmo
após o aforamento a particulares do palacete, a Coroa salvaguardou
sempre a sua directa exploração do complexo mineiro.
     Sobre o Paço, e dum ponto de vista monumental. não há, infelizmente,
muito a dizer. Pertença de particulares, não é tão fácil a sua visita como
se fosse propriedade pública; para além disso, durante muito tempo alvo                                 r-
de depradações constantes e num estado pouco menos que ruinoso, só
recentemente tem vindo a ser alvo de uma recuperação que parece (na
altura em que este roteiro é escrito) augurar melhores dias.                                            I
4.2. O Ramalhão

    Entendamo-nos. Quando paramos no Largo do Ramalhão, que hoje
como ontem marcava a entrada para a vila de Sintra, estamo-nos a referir
mais ao espaço propriamente dito que a qualquer vestígio monumental aí
existente. Uma paragem no lugar do Ramalhão não representa, contudo,
uma mera pausa. Mais do que isso, estamos perante um ponto fulcral da
rede viária da vila medieva.


12
Aí se separavam. ou para aí confluíam. três das mais importantes
vias da Sintra medieval. Aí começava o caminho que para Cascais
levava. caminho esse que passava pelo convento jerónimo de Penha
Longa. fundado nos finais da centúria de trezentos. Penha Longa ficava.
aliás. na extrema que separava os concelhos de Sintra e de Cascais. exis-
tente este desde 1364resultante precisamente de uma cisão no município
sintrense.
     Voltando ao Ramalhão. temos ainda a segunda grande via. aquela
que levava de Sintra a Lisboa. Daí partia. seguindo depois para Ranho-
las. Rio de Mouro (hoje mais conhecido como Rio de Mouro Velho).
Agualva-Cacém. Belas. Pendão. Carenque. Falagueira (Amadora) e Ben-
fica. num trajecto que demorava três a quatro horas em cavalo ou carrua-
gem. Grande eixo viário. decisivo - ontem como hoje - para a vila de
Sintra. por ele se escoavam gentes e mercadorias. constituindo-se como o
cordão umbilical que associava a nossa vila à capital.
     Mas do Ramalhão partia um outro caminho. aquele que vamos tam-
bém nós agora retomar e que nos irá conduzir ao cerne da vila medieval.
Seguindo do Ramalhão para S. Pedro, encontramos. logo à direita da
estrada que do Ramalhão sai (Av. Conde de Suceno). um curioso túmulo
medieval que merece nova pausa e uma atenção muito particular.



4.3. O Chamado "Túmulo dos Dois Irmãos"

      Perpendicular à estrada está o que se designa tradicionalmente por
Túmulo dos Dois Irmãos. Na realidade. trata-se de um túmulo do cemité-
rio da gafaria de Sintra que em S. Pedro se situava. e neste ponto reside
parte do seu interesse. O cemitério da gafaria ficava no outro lado da
estrada. hoje em dia parcialmente ocupado por um campo de futebol. e
era também aí que até alguns anos atrás se situava igualmente o túmulo.
De facto. até 1976. e amputado da cruz que o encima. mudou ele várias
vezes de poiso. até ser definitavamente instalado e restaurado no ponto
onde agora se encontra.
      A designação do túmulo, e o seu maior ponto de curiosidade monu-
mental. reside no facto de possuir duas estelas discóides em cada uma das
extremidades da arca sepulcral. fenómeno pouco frequente e - necessaria-
mente - gerador tanto de lendas como de especulações de índole vária.
De acordo com a lenda - passada para texto por D. João da Câmara. por
exemplo -. aí estariam sepultados dois irmãos que se teriam apaixonado
pela mesma dama. Numa escura noite. um deles. ao aproximar-se para
cortejar a dama. terá visto um vulto que se lhe antecipara em tais intentos.
Movido pelo ciúme. prestes o assalta e prestes duelam ambos. sem que a
escassa luz permita que se reconheçam. Num golpe mais forte. um deles
sucumbe nos braços do outro. até que um raio de luz faz com que. enfim. o
sobrevivente reconheça no moribundo o próprio irmão. Desvairado de dor.
o sobrevivente volta contra si a espada e mata-se. De acordo com esta
lenda. o túmulo encerra os dois irmãos. Se o carácter lendário do episódio
seria já de si suficiente para nos pôr de sobreaviso. o facto de estar apenas
um esqueleto guardado no túmulo desmente de vez esta versão. De facto.
aberto em 1830por ordem expressa de D. Miguel. o túmulo apenas revelou
a existência de um só corpo. A lenda revela-se - como sempre sucede com
as lendas - sem fundamento histórico.
      Também algumas especulações históricas não dão melhor solução.
A tese de que aí estaria enterrado algum grande cavaleiro. em Sintra
tombado após lutas com mouros, mais não merece que a brevidade de
uma contradita: nunca se combateu a moirama em Sintrc, pois esta ren-
deu-se sem luta após a tomada de Lisboa. Finalmente. a tese mais propa-
la da é aquela que afirma estar aí sepultado o bispo D. Luís Coutinho,
bispo de Viseu (1439-1444).de Coimbra (1444-1452)e - se bem que com
dúvidas - de Lisboa (1452-1454).De acordo com a tese citada. o bispo
teria vindo falecer de lepra em Sintra. e em Sintra estaria sepultado. pre-
cisamente no túmulo que temos vindo a estudar. de arquitectura tão pecu-
liar apenas para albergar personalidade do seu quilate. Esta teoria não
tem porém mais fundamento que a simples suposição. já que na reali-
dade nada liga. factual e objectivamente. o bispo ao túmulo sintrense, a
não ser o facto de um estar em Sintro; e o outro por lá ter (segundo se crê)
passado. Não é sequer claro que D. Luís Coutinho tenha falecido em Sin-
trcr, o que transforma esta teoria em pouco mais que nada.


                                                                                13
Observando o túmulo mais em pormenor, verificamos que as cabecei-
ras têm ambas o emblema da cruz voltado para lados opostos; a tampa
tem três faces sendo aproximadamente      rectangular, possuindo na face
plana - a central-    uma cruz esculpida a todo o comprimento. De cabe-
ceira a cabeceira, mede o túmulo 1.70m. As cabeceiras têm de diâmetro
0,35 m e de espessura 0,20 m. O fuste e a cruz que o encima são recentes,
devido aos originais terem sido há muito depradados.



4.4. A Gafaria de Sintra e a Capela de S. Lázaro

     Se do antigo cemitério dos gafos nada mais existe que uma memória
documental poeirenta e o túmulo denominado "dos Dois Irmãos", da
antiga gafaria sintrense não é a fortuna mais pródiga. O seu antigo
recinto é hoje ocupado pelo largo D. Fernando Il, mais conhecido por ser
actualmente o sítio da feira de S. Pedro que pelas lembranças de antigos
gafos. E contudo, é impossível falar da vila medieval sem referir essa ins-
tituição central da assistência sintrense que era a gafaria. Pertencente ao
Hospital da vila - gerido pelo próprio concelho sob a supervisão última
doís) rainha(s) de Portugal (donatárias da vila desde D. Dinis) -, a Gafaria
atingiu uma dimensão regional bem patente nos documentos esparsos
que subsistiram. Desconhece-se a data da sua fundação, mas tudo indica
que a sua antiguidade radica nos primeiros tempos da nacionalidade.
     Se bem que a sua gestão levantasse problemas frequentes - as eter-
nas questões do equilíbrio receitas/despesas e da gestão do património,
parecem ter sido problemáticas, exemplo aliás do que sucedia por todo o
país em instituições afins -, o que parece igualmente certo é que, quer
pela área sob a sua jurisdição (correspondente a todo o oeste de Lisboa,
de Cascais a Mofrcr). quer pelas verbas movimentadas (de que há registos
num tombo de finais do século xv, depositado no Arquivo da Misericórdia
de Sintro), quer pelas próprias dimensões da gafaria e anexos (que, como             Interior da Capela de S. Lázaro
vimos e segundo parece, abrangeria uma vasta zona que ia desde as ime-         (Desenho de José Alfredo C. Azevedo)
diações da Igreja de S. Pedro até ao Ramalhão), se bem que a sua gestão
apresentasse problemas, dizíamos, o que é certo é que a sua fama ultra-
passou as fronteiras municipais e a sua eficácia assistencial        parece
nunca ter sido muito posta em causa.
     Tal como era comum suceder na Idade Média, a gafaria situava-se
nas imediações de uma via de algum movimento, já que tal lhe permitia o
acumular das esmolas e dos donativos dos viandantes, o que constituía
mais uma receita não negligenciável. Não olvidemos que a assistência
medieval gira essencialmente em torno do princípio da caridade cristã, e
não tanto da responsabilidade do Estado, o que transforma a "esmola", o
"donctivo". numa das principais fontes de receita deste tipo de institui-
ções. Outras fontes de receita, bem importantes de resto, resultavam da
gestão do respectivo património imobiliário, sobretudo prédios rústicos e
urbanos. As normas da gafaria, entretanto, eram decalcadas das da Casa
de S. Lázaro de Lisboa, tida ao tempo como a instituição modelar ao nível
do apoio e internamento de leprosos.
     Refira-se, aliás, que o maior vestígio que ainda hoje resta da gafaria,
remete precisamente para o teor religioso/piedoso que rodeava o acto
assistencial medievo: a capela de S. Lázaro. Feita para prestar amparo
moral aos internados - recorde-se que, salvo certas condições e certos
casos, os gafos estavam compulsivamente circunscritos e encerrados na
gafaria -, a capela tinha como orago um dos santos mais venerados
pelos leprosos - S. Lázaro - ele próprio um padecente do mal "ardente".
A capela situa-se num beco junto à actual Rua Serpa Pinto, e destaca-se
pela simplicidade de formas e singeleza de proporções monumentais.
Contudo, pode-se referir o pequeno portal manuelino; o altar, simples,
mas ainda assim revestido de azulejos hispano-árabes; o tecto da capela-
mor, composto por uma abóbada artesonada e com mísulas manuelinas,
e onde se vêem ainda um camaroeiro em pedra (emblema da rainha
D. Leonor), além de três florões como fecho das nervuras; o tecto da nave,
composto, por seu turno, por três nervuras na sua abóbada, fechadas por
um escudo representando um pelicano (as armas de D. João n). pelo citado
camaroeiro e pelas armas nacionais.
     A única nave existente mede 5 metros de comprimento por 3,85metros
                                                                                       Porta da Capela de S. Lázaro
de largura. No exterior da capela, duas pequenas janelas serviriam                            em S. Pedro de Sintra
- segundo se pensa - para que os leprosos pudessem assistir à Euca-            (Desenho de José Alfredo C. Azevedo)



14
Capela de S. Lázaro (Desenho de José
                                                                              Alfredo C. Azevedo)


ristia sem contactarem com as pessoas sãs que no seu interior estives-
sem.
     Tal como sucedeu um pouco por todo o país e por toda a Europa, o
decréscimo da lepra, verificado nos finais do século XV,acarretou a deca-
dência - ou, pelo menos, a diminuição - das gafarias. A de Sintra
parece não ter escapado à regra, já que temos notícia da gradual diminu-
ição do número de internados (um apenas, no princípio do século XVI),   e
da correspondente diminuição dos rendimentos. Não se esqueça que as
gafarias também viviam, em grande medida, de parte dos bens dos inter-
nados, que à gafaria eram obrigatoriamente doados como contrapartida
pelo internamento e respectivo apoio. No século XVI. m 1545,a Gafaria-
                                                     e
bem como o Hospital, a que pertencia - foi anexada à Misericórdia de
Sintra, por determinação de D. João m.



4.5. A Igreja Paroquial de S. Pedro

    A igreja paroquial de S. Pedro (de Penaferrim ou, como por vezes
surge nos mais antigos documentos, de Canaferrim) era uma das quatro
que aos fregueses da vila davam amparo religioso. As outras eram as de
S." Maria, S. Miguel e S. Martinho, que em devido tempo abordaremos.
Todas elas - excepto a de S. Martinho, no coração da vila medieval -
estavam situadas no que se chamava genericamente o "Arrcbcrlde", isto é,
as áreas periféricas do burgo medievo.
    As origens desta igreja não são claramente conhecidas. Uma tese
plausível é que a sua edificação viria substituir a capela existente no
Castelo e que teria sido o mais antigo templo cristão aberto ao culto na
zona. Seja como for, o certo é que a actual igreja de S. Pedro remonta pelo
menos ao século XIV.
    De medieval, porém, não terá já muito, que as sucessivas reconstru-
ções alteraram-lhe a traça original. Em meados do século XVI. oi o primi-
                                                                 f
tivo templo reconstruído - ~u pelo menos ampliado - por D. Alvaro de
Castro, filho do vice-rei da India, D. João de Castro, possivelmente na                Igreja de S. Pedro - Ábside



                                                                                                            15
sequência do terramoto que assolou a vila em 1531;e em 1755.na sequên-
cia de outro (e mais célebre) terramoto que muito danificou a vila. foi de
novo reconstruída.
    Actualmente. podemos ainda ver de medieval. no templo. a ábside
gótica amparada por quatro contrafortes e. já no interior. uma estátua de
S. Pedro em pedra de Ançõ, situado numa peanha por cima do púlpito. Se
bem que não seja completamente clara a medievalidade desta estátua.
parece ser essa a hipótese mais provável. pelo menos de acordo com
especialistas - como Félix Alves Pereira - que o estudaram. A pequena
estátua. que mede 75 em de altura. representa S. Pedro sentado. com a
mão direita ergui da à altura do tronco. e abençoando à latina - polegar.
indicador e médio levantados - e vestido com uma casula ponteaguda
que lhe desce até aos pés. A roupa é talar e fechada à frente. caindo em
pregas; Félix Alves Pereira sugere a existência de uma pequena túnica
sobreposta. talvez a indicação de uma dalmática. Um aspecto interes-
sante é o facto do assento (sella) onde o pontífice repousa apresentar
lavores ogivais que decoram os seus dois lados.



4.6. O Convento da Trindade

     Se da igreja paroquial de S. Pedro se seguir pela Calçada do Penalva
e pela Rua da Trindade. chegaremos ao local onde se situa o Convento da
Santíssima Trindade. Fundado em finais do século XIV. inícios do século
xv. pertencia à Ordem dos Frades Trinitários. uma ordem mendicante que
se dedicava. sobretudo. à remissão de cristãos cativos. tarefa que cum-
priam fazendo peditórios pela vila e arredores. A notícia mais antiga que
deste convento temos remonta a 1408.quando os clérigos da colegiada de
S." Maria - que fica(va) fronteira - trazem a lume uma série de reclama-
ções sobre pretensas irregularidades       dos trinitários (erecção de altar.
campanário e.sino indevidamente). Parece portanto claro que o convento
é anterior àquela data.
     O edifício actual - fácil é supô-lo pelo simples estudo da sua
fachada - nada tem já de medieval. sendo antes o fruto de várias altera-
ções. Essa alteração da traça original atingiu igualmente. ao longo dos
séculos. o seu interior. que de resto só na década de 1980começou a bene-
ficiar de obras de restauro dignas desse nome por parte dos actuais pro-
prietários.
     No primeiro andar do convento situa(va)m-se as celas dos frades tri-
nos. hoje casa de habitação; no piso térreo é ainda visível a cozinha do
convento. com o refeitório artesonado em arco abatido e um conjunto de
azulejos. O claustro é pequeno. com quatro arcos dóricos e com uma gale-
ria aberta com colunas em estilo similar.
     O convento é delimitado por uma cerca de extensão razoável. subindo                      Convento da Trindade
em encosta para o castelo.



4.7. As Igrejas Paroquiais de       s.ta Maria e de S. Miguel
    Um pouco adiante do convento da Trindade fica a igreja paroquial de
S." Maria. Talvez a proximidade com os trinos propiciasse as contendas.
como vimos a propósito das queixas de 1408.Em todo 9 caso. é este tem-
plo aquele que - dentro das igrejas paroquiais da vila - melhor con-
serva algumas das características medievais da sua fundação.
    Fundado no século XII. foi reformulado nos finais do século XIII
segundo os canônes dominantes do gótico. São ainda visíveis na fachada
- não obstante a reconstrução pombalina subsequente ao terramoto - o
pórtico inscrito em gablete (remate triangular sobre as arquivoltas dos
portais) e com três arcos ogivais que assentam em capitéis encimando
estreitos colunelos. A geminação da porta com a construção do colunelo          Igreja de s.- Maria - Portal com figu-
central é já renacentista. No exterior. encontramos duas portas. também         ras antropomórficas
góticas. sendo uma delas decorada nos umbrais com curiosos elementos
antropomórficos. como rostos vigiando os que passam.
     O interior. por seu turno. possui três naves divididas por tramos de
arcaria ogival. sendo ainda visíveis alguns traços da decoração medieva
que os séculos seguintes - sobretudo as alterações setecentistas - não


16
conseguiram apagar, como os capitéis com seus motivos naturalistas ou
a abóbada artesonada da capela-mor.
     Se bem que os aspectos da vivência religiosa deste tempo não façam
propriamente parte dos objectivos deste roteiro, merece aqui menção
especial a Confraria dos Fiéis de Deus da Igreja de S.la Maria, conside-
rada como uma das principais (senão a principal) confrarias da Sintra
medieva, e que chegou a ter, em 1346, 141 confrades (85 homens e
56 mulheres), número tanto mais significativo se se levar em conta que a
vila nunca ultrapassou - se é que perto andou - o milhar de almas.
     E mais acima, na íngreme ladeira que conduz a uma das entradas
para o Castelo, encontramos os vestígios - escassos estes - da outra
igreja paroquial do núcleo urbano: a igreja paroquial de S. Miguel. Se de
início formava, com as três restantes (recorde-se: S. Pedro, S." Maria,
S. Martinho) o quarteto das igrejas paroquiais da vila, veio contudo a per-
der importância com o tempo, até ser integrada, já mais tarde, na paró-
quia de S.la Maria que perto lhe ficava (a extinção da paróquia ocorreu
depois de 1755).Actualmente é apenas visível a ábside gótica quatrocen-
tista, integrada num edifício de laivos neogóticos revivalistas e que é a
sede dos Serviços Florestais.



4.8. A Capela Românica do Castelo                                                        Igreja de   s.'a Maria: Porta


     Perto da entrada principal do castelo de Sintra, mas já dentro do troço
muralhado, encontra-se uma pequena igreja românica que deve merecer,
mesmo que por breve, a nossa atenção. O estado ruinoso em que se
encontra não permite que possamos uma observação mais cuidada, mas
conseguimos ocasionalmente vislumbrar algumas características que tor-
nam este templo - há muito já abandonado - merecedor de atenção.
     A capela do castelo foi o primeiro templo cristão e a primeira sede de
freguesia sintrense. Não é claro, porém, se a fundação desta capela data
forçosamente da reconquista afonsina, se se está perante um antigo tem-
plo islâmico reconvertido após aquela data - hipótese também muito
divulgada e nada improvável-,      ou até mesmo se a capela não foi, antes
da Reconquista, uma igreja moçárabe. Decerto, apenas o facto de ter sido
a primeira sede de freguesia e paróquia, como se disse. Esclareça-se que
o burgo original se sedimentou em torno do castelo, espalhando-se lenta-
mente para o ..:.-agora - bairro de S. Pedro, onde mais tarde se viria a
erguer o templo que já vimos com tal orago. Mas por esse tempo, aquando
da fundação da nova igreja, já há muito que o centro da vila se deslocara
mais para baixo, para o vale onde outro bairro e outra freguesia e outra
paróquia - S. Martinho - se tornara o eixo principal do núcleo urbano. A       Portal Manuelino   da Igreja de       s.'a
                                                                               Maria
igreja - e freguesia e paróquia - de S. Martinho tomava a vez a S. Pedro,
tal como esta o havia já tomado à capela do castelo.
     Do abandono - a capela foi fechada ao culto no princípio do século
XVI - cedo se passou à ruína que o caracteriza, ruína que chegou aos nos-
sos dias sem se ter em conta que se está na presença do potencialmente
melhor vestígio românico do concelho.
     A capela é de uma só nave e podem ainda ser vistos no interior da
ábside e junto ao que era o altar-mor, um revestimento de pintura a fresco
quatrocentista, com uma decoração geometrizante envolvendo a figura do
padroeiro - S. Pedro. Este fresco, porém, encontra-se hoje totalmente e
irremediavelmente     danificado, sendo apenas visíveis alguns troços de
pintura, já muito diluídos. Outros vestígios entretanto descobertos no
local são visíveis no Museu Regional de Sintra. Refira-se entretanto que o
S. Pedro gótico que tivemos possibilidade de observar na igreja paroquial
de S. Pedro, terá vindo desta capela. Passagem de testemunho simbólica,
decerto, mas também a constatação de uma evidência: os tempos áureos
da pequena capela haviam cessado.



4.9. A Vila: Trajectos, Ruas e Lugares

    Após termos andado - de algum modo - em círculos pelos arrabal-
des urbanos, tempo é que nos dispúnhamos a visitar e percorrer o núcleo
urbano principal da vila de Sintra. Este núcleo é constituído pelo casario


                                                                                                                17
Vila: Poço do Porto e Pedras Ajorrádicas

envolvente do Paço da vila e igreja paroquial de S. Mortinho, estendendo-
-se numa área que rondaria grosso modo os 17000mZ• Area pouco extensa,
caracterizando uma vila medieval de dimensões algo modestas, sobre-
tudo se se levar em conta que o paço e anexos ocupariam entre um quarto
a um terço desse espaço. Mesmo assim esta área não muito impressio-
nante era suficiente para albergar os cerca de duzentos fogos e os menos
de mil habitantes que a vila possuiu durante os séculos da Idade Média
portuguesa. Ressalve-se que tempos houve - sobretudo a seguir à peste
negra de 1348- em que sobrava área e fogos e faltavam habitantes.
     Esta área estendia-se de acordo com um eixo viário que atravessava
a vila aproximadamente no sentido este-oeste. Para leste iam os cami-
nhos para Lisboa e Cascais e que desembocavam no Largo do Ramalhão,
como vimos. Para oeste seguia o caminho que a Colares - ao tempo
reguengo - conduzia.
     Ponto central desta via, e ponto central desta vila era a praça da
vila. E daí que o observador deverá começar o seu trajecto urbano, já
que as principais ruas medievais - e modernas, pois a regra da per-
manência do plano parece ter-se mantido com mais ou menos coerên-
cia - daí partiam e para aí convergiam. No centro da vila teremos
junto a nós o Paço Real. lugar habitual da permanência dos monarcas e
da família real. sobretudo após D. João I, quando o paço começou a
fazer parte de forma decisiva dos percursos áulicos da corte. Murado
durante toda a Idade Média - só no início da I República foi a muralha
derribada -, ele representava, mesmo quando vazio dos seus detento-
res, o poder central que tudo dominava e a que a vila se submetia como
serventuária de Lisboa que era. Iniciemos o trajecto e percorramos as
ruas mais concorridas, que ao paço retornaremos em breve para uma
análise mais detalhada.
     Situado no centro da vila - na Praça, como ao tempo se chamava - o
observador tem junto a si o recinto então conhecido pelo Chão da Oliva,
terreiro imediatamente fronteiro à entrada do paço. Mas deixando o cen-
tro, observe-se melhor o primeiro percurso, aquele que conduz à própria
vila todos quantos vêm de Lisboa, de Cascais, e de grande parte dos arra-
baldes urbanos de S. Pedro, S.laMaria e S. Miguel. Desloquemo-nos então
para leste. Perto está a então chamada Rua da Ferraria, que permitia
também o acesso à vila mas por outro ponto menos concorrido. A maioria
dos que vinham de Lisboa, Cascais e arrabaldes entrava na vila por um
outro caminho que mais acima se cindia da Rua da Ferraria, e que
entrava no casario urbano mais junto ao Hospital.
     Descendo por essa rua e entrando na vila, veria o observador logo à
 sua direita o local chamado Pedras Ajorradiças, assim designado pelo
 facto de a água - frequente na serra e oriunda das várias nascentes
 naturais - jorrar abundantemente      de entre as pedras e rochas. Hoje
 existe aí um fontanário, como que para não desmentir essa realidade lon-
 gínqua. Defronte seria o sítio provável da Casa da Vereação, num lugar


18
Vila: Praça e Chão da Oliva



até há pouco ocupado pelos Bombeiros Voluntários. A não existência de
provas documentais sobre a localização da Casa da Vereação para a Idade
Média leva-nos a ter sérias reservas sobre esta possibilidade. Apenas o
facto de sabermos ser aí o antigo edifício da Câmara, cuja instalação se
perde na memória, nos leva a concluir da possibilidade de ser esse o local
da primitiva Casa da Vereação. Perto - e mais certo - ficava o Poço do
Romão. Este triângulo - Pedras Ajorradiças, Poço do Romão, Casa da
Vereação (?) ~ constituíam a entrada para o casario, para o centro urbano.
     Entrando na vila, o visitante era recebido pelo edifício do Hospital. O
local onde o primitivo edifício se instalava é o mesmo, se bem que o prédio
- fácil é supô-lo - seja já outro. No antigo hospital, a fachada principal
media cerca de 12,10m, a parede posterior de cerca de 12,65m, a parede do
lado norte (lado esquerdo de quem entre no edifício) media cerca de 9,7 m
e a parede do lado sul (lado direito de quem entra) media cerca de 9,16 m.
Estas medidas - já de si aproximadas porque resultam da conversão de
"passos" medievais para os actuais metros - faziam com que a área ocu-
pada pelo hospital medievo rondasse aproximadamente os 115 m", área
considerável se se levar em conta a habitual exiguidade dos hospitais do
tempo, a maioria dos quais não comportava mais do quatro/cinco leitos.
Recorde-se que o conceito de hospital moderno, de grande área e de múlti-
plos serviços assistenciais, resultante da acção do poder central e não
tanto da iniciativa de particulares imbuídos do espírito de caridade cristã,
só data de finais do século XV, com a fundação, em Lisboa, do Hospital
Real de Todos os Santos, levada a cabo por D. João 11.
     Este hospital assumia-se como o centro da estrutura assistencial da
Sintra medieval. A ele pertencia a gafaria de S. Pedro, com sua capela de
S. Lázaro e cemitério anexo, a ele pertenciam vários prédios rústicos e
urbanos, cujo arrendamento constituía a principal fonte de receitas da
instituição (era o Hospital um dos maiores proprietários do concelho), a
ele pertencia ainda o cemitério do próprio hospital, situado nos terrenos
anexos. Dirigido por um provedor e escrivão e ainda coadjuvados por um
"medidor de pão" (espécie de dispenseiro), e administrado pela Câmara
sob a alçada última das Rainhas (donatárias da vila), o hospital assumia
ainda a tarefa de ilustrar os "moços da vila", sustentando um mestre de
gramática, se bem que não tenhamos a certeza de ter tal intento passado
das intenções declaradas em alguns documentos coevos.
     No pequeno largo fronteiro ao Hospital e simultaneamente perto do
Paço e da praça, ficava o pelourinho da vila. Infelizmente, o pelourinho
actual que aí pode ser observado não corresponde ao primitivo, que foi
destruído em 1854por ordem camarária (sob a extravagante alegação de
ser contrário à "decência e asseio público") e mais tarde reconstruído, ao
que parece segundo gravuras românticas de fidelidade contestável. Assi-
nale-se todavia que se crê que o pelourinho que em 1854 foi derribado
seria já o manuelino, erguido aquando da renovação dos forais, neste
caso em 1514.


                                                                               19
De novo está o obervador no centro da vila. O percurso, que agora se
fará, dirigir-se-á para outro lado, para sul. seguindo pelas ruas que levam
até artérias consideravelmente movimentadas da vila. Talvez mesmo as
mais movimentadas. Dirigir-se-á então o observador para a actual Rua
das Padarias. Logo à sua entrada verá, do lado direito, à esquina, o lugar
onde o mercado medieval - e posterior - se fazia, sob um alpendre.
Subindo, não serão uma dezena de passos dados sem observar, à
esquerda, uma beco onde se situava a judiaria sintrense. Aí se recolhiam
obrigatoriamente os seguidores da Lei de Moisés - e só esses - num
beco que por norma fechava as portas pelas Avé-Marias (ou Vésperas,
sensivelmente pelas 18 horas). impedindo os seus moradores de sair,              Vila Hospital e Pelourinho
salvo motivo especial. Medindo não mais que oitenta metros de compri-
mento, não deveria a judiaria ultrapassar a vintena de casas, o que signi-
ficaria (de acordo com o que a demografia histórica projecta para este
período) cerca de oitenta pessoas - números em todo o caso algo especu-
lativos e que talvez até peque por excesso, confessemo-lo.
     Esta judiaria sintrense, a exemplo do que sucedia por todo o reino,
tinha a sua própria gestão e funcionários, de que são exemplo o seu pró-
prio tabelião, porteiro (funcionário com tarefas judiciais auxiliares) e rabi.
A sinagoga era o ponto central desta pequena comunidade, e situava-se
no terceiro prédio após transpormos os portais da judiaria, já que de
acordo com uma carta de aforamento de dois prédios urbanos datada de
1407,afirma-se que os dois prédios aforados se situam entre a sinagoga e
a entrada da judiaria. Infelizmente, não sabemos em que lado da rua. Na
judiaria, os judeus sintrenses exerciam as suas actividades, sobretudo
artes e ofícios liberais bem como o tradicional comércio, que tinham por
uso exercer - entre outros pontos - nos portais do seu bairro. Também
as habituais actividades monetárias - usura ou arrendamento de impos-
tos - eram por eles praticadas, o que de resto potenciava algumas alter-
cações com os cristãos. Ainda assim, e tirando as queixas habituais e as
desinteligências pontuais e pessoais, não há notícia de grandes distúr-
bios entre as duas comunidades. Tal como no resto do país, o assalto a
judiarias ou o ataque directo a judeus - ocasionalmente verificado em
cidades maiores - não era regra. Altercações pontuais, e que num ou
noutro caso isolado chegariam a vias de facto, mais não são que ques-
tiúnculas pessoais, comuns em qualquer comunidade humana.
     Quanto à própria localização da judiaria, ela não era tão acidental
como se poderia pensar num primeiro instante. A norma impunha que as
sinagogas estivessem perto de igrejas, como se o regular tanger dos
sinos, a proximidade da eucaristia ou a presença vizinha das paredes
cristãs pudessem de algum modo impelir os seguidores da "Lei Velha"
para as mensagens do Nazareno. Ora, a igreja de S. Martinho era (e é) ali
a dois passos.
     Saindo da judiaria e subindo um pouco mais a actual Rua das Pada-
rias, desembocará o observador na chamada Fonte da Pipa, um dos prin-
cipais locais de abastecimento de água aos habitantes da vila medieva e
posterior. Claro que fácil é notar que a actual fonte nada tem de medie-
val. já que enquadra num arranjo claramente barroco. Ainda assim, é
sabido que esta fonte existia já, pelo menos, desde meados do século XIV,
pois dela há notícia com esse mesmo nome: "Fonte da Pipa". Tal parece
sugerir que já então poderia ter o seu formato de pequena pipa. Seja
como for, era um dos locais que - como se disse - melhor abastecia os
sintrenses, aproveitando uma das muitas nascentes naturais que da serra
trazem água.
     Descendo mais uma vez ao centro da vila, iniciará agora o observador
outro percurso que o levará, desta vez, às ruelas que para norte se esten-
dem. Em primeiro lugar, passará pela Rua do Forno, como actualmente é
chamada, e que se situa debaixo do patamar que sustenta a esplanada
do Café Paris. A primitiva ruela medieval não era, ao contrário da actual.
coberta, fenómeno que só ocorreu já neste século. Estamos comprovada-
mente diante de uma das mais antigas ruas de Sintra devidamente des-
pistadas. Na documentação medieval. as primeiras referências surgem
sob a designação de Rua do Açougue, mais tarde denominada Rua do
Forno do Açougue, e mais tarde enfim como Huc do Forno. Esta etimolo-
gia permite-nos uma pequena especulação. E sabido que nas urbes de
assentamento e influência hispano-muçulmana, era comum existirem as
ruas do "zoco" (mercado), situadas na proximidade dos mercados e onde
geralmente se procedia ao abate das reses consoante as determinações
religiosas (não se olvide que, como povo semita, também os árabes têm
restrições no tocante ao consumo de certos tipos de carne). Ora, a palavra


20
árabe "zoco" (cs-sôq) deu em português "açougue", o que nos pode levar a
supor a filiação entre a rua do zoco árabe e a actual Rua do Forno, tam-
bém ela situada perto do suposto mercado medieval que fronteiro lhe
ficava. Sem dúvida uma suposição que comporta os seus riscos e que per-
filhamos com prudência e - por que não confessá-lo? - com hesitações.
Mas é uma hipótese que fica em aberto.
     A Rua do Forno reserva-nos       mais algumas considerações.     De
acordo com o historiador sintrense Francisco Costa parece compro-
var-se a existência     de túneis que uniriam a antiga alcáçova dos
"wc lis" mouros com as casas que sobre a Rua do Forno se situam, e
que foram doadas, aquando da Reconquista,            à Ordem do Templo.
Tais túneis, de acordo com informações entretanto recolhidas, ainda
existiriam, e seriam parcialmente      vislumbráveis   através de peque-
nas aberturas existentes na parede do lado direito (de quem desce)
da Rua do Forno.
     Prosseguindo pela Rua do Forno deverá o observador sair perto
de uma outra rua também referenciada profusamente para a medie-
validade e que ainda hoje mantém a designação: a Rua da Pêndoa.
Nos dicionários etimológicos, o termo "pêridocr" vem sie "peridoor" ou
"cpendoor". que designa "declive" ou "inclinação". E lícito supor tal
filiação etimológica devido à evidente inclinação da rua. Note-se que
não possuímos referências claras, na documentação coeva, a outras
ruelas e becos a esta circundantes. Porém, não será abusivo conside-
rar que várias ruas e becos que perto se situam (Beco do Briamante,
por exemplo) respeitam o traçado medieval e eventualmente          a sua    Vila: Judiaria
designação. Mas nada de mais concreto podemos referir a esse res-
peito.
     Retornando de novo ao largo da vila, mais uma vez como ponto de
referência tomado, poderá o observador iniciar outra deambulação por
mais algumas ruas sintrenses. Poderá agora caminhar em direcção ao
Hospital e descer pela rua fronteira. Chegará a um lugar conhecido pelo
Rio do Porto, designação também medieval e onde se iniciava na altura o
trajecto que a Cheleiros (então reguengo), Mafra e Ericeira conduzia. O
caminho actual só séculos mais tarde foi aberto, e algumas zonas dos
arredores então, como hoje, conhecidas por Lourel ou Portela (que na eti-
mologia mais não era que "lugar onde situam as portas" de alguma vila)
seriam apenas áreas de escassas casas e poucos moradores, não tendo a
função de locais de passagem que hoje ainda conservam. Também o Rio
do Porto servia comummente para o abastecimento de água aos habitan-
tes da Sintra medieval.
     Do largo da vila, para onde de novo voltamos, parte-se para o der-
radeiro trajecto pela vila medieva. Dirigir-se-á o observador para
oeste, como se para Colares fosse. Defronte do antigo mercado verá
aquele que é hoje o edifício dos Correios. Nos finais da Idade Média
talvez comportasse - em torre junta - o relógio de torre que a vila
inaugurou em meados da década de 1460. Tratava-se de vulgar reló-
gio de pêndulos, bem ao estilo medieval e sem ponteiros. Era mais
sinal de prestígio urbano próprio de uma vila de corte que desejo de
regularização    de um tempo "exacto" e mecânico, tempo esse ainda
desconhecido     da vivência medieva, que se regia mais pelo tempo
cíclico da natureza que pelo tempo linear dos relojoeiros. Dois apon-
tamentos, entretanto: a localização do relógio medieval é duvidosa,
sendo este um local possível entre outros que haver possa; o actual
relógio é setecentista, nada tendo a ver com o primitivo.
     O edifício dos actuais correios comportou, até à pouco tempo
{leia-se, até ao século passado), a prisão da vila. Ignoramos se seria
aí a prisão medieval. Sabemos, isso sim, que existiria uma prisão na
vila, devido a referências fugazes e esparsas que na documentação
surgem, mas é impossível, no actual estado dos nossos conhecimen-
tos, afirmar o local exacto. De novo, a filiação entre esta cadeia e a
medieval mais não é que uma hipótese.
     Mais adiante, fica a igreja paroquial de S. Martinho de Sintra.
Das suas características    medievais pouco, muito pouco, há já a des-
cobrir. Remodelações posteriores, sobretudo a sofrida após o terra-
moto de 1755, alteraram-lhe      a traça e as características.  Apenas a
estrutura ainda gótica da ábside, no seu exterior visível com panos
cegos de contrafortes,     se manteve após todos estes séculos. Mais
interessante,   contudo, é o arcossólio (túmulo disposto na espessura
de uma parede) de uma tal Margarida Fernandes datado de 1307, e
que pode ser observado na parede exterior do lado sul {lado que dá


                                                                                     21
para o antigo mercado) da igreja. O epitáfio está escrito em letras ini-
ciais maiúsculas e contém o seguinte:

           "AQUI: JAZ: MARGARIDA: FERNANDI/Z :
           FILHA: D : FNÃ : MEEDIZ: D : SIT : E :
           MOLHR:Q/ FOE: D : W : AFÕSO : : ESCUDIRO :
           Q: PASOU: UES/PA: D: SÃ: MI: D: SETEBRO:
           TRES : DIAS: POR :/ ÃDAR : DAQL : SElA: ASA:
           ALMA: ALVGN DA : NOREINO : CELESTIAL: E : M :
           CCC:XLV:

    Feita a respectiva leitura epigráfica, temos a seguinte inscrição actua-
lizada:

    "Aqui jaz Margarida Fernandes, filha de Fernão Mendes de Sintra e
mulher que foi de Rodrigo Afonso escudeiro, que passou véspera de
                                                                                            l.
S. Miguel de Setembro, três dias por andar daquele, seja sua alma alojada
no reino celestial, Era milésima tricentésima quadragésima quinta."

     Genericamente, tal significa que a dita Margarida Fernandes faleceu
                                                                                            '"
                                                                                            ~


("passou") nas vésperas de S. Miguel de Setembro (fim desse mês).
quando para tal data faltavam três dias ("três dias por andar daquele"
                                                                               Vila: Torre do Relógio
dia), na era de César de 1345,ou seja, no ano de Cristo de 1307.
     Mais adiante, deixando esta memória de trezentos, seguia o já refe-
rido caminho para Seteais e Colares. Por aí se saía da vila. Este deambu-
lar pela vila não dispensa      de forma alguma uma visita ao Museu
Regional de Sintra onde vários testemunhos medievais na vila encontra-
dos estão visíveis, nomeadamente fotografias de silos (e respectivo espó-
lio) descobertos na Rua das Padarias e na Rua Gil Vicente.



4.10. O Paço Real de Sintra

     Não foi por acaso que deixámos para alíena própria o paço real da
vila, em vez de o integrarmos nestas deambulações pela malha urbana
da vila. De facto, o paço domina a vila, quer pela área ocupada quer pelo
peso de uma presença cortesã sempre marcante a partir de D. João r. O
paço atrqvessa toda a História de Sintra, sugerindo não um mas vários
roteiros. E agora a vez de o percorrermos com olhos mais para a medieva-
lidade virados.
     Uma vez esclarecida anteriormente a origem do paço, convém salien-
tar que ele permanece numa relativa penumbra até ao princípio da dinas-
tia de Avis, como o atestam quer o facto de estar necessitado de obras com
D. Dinis que, para tanto, se serviu dos seus mouros forros de Colares; quer      Paço Real de Sintra
o privilégio que alguns monarcas - como D. Pedro - visivelmente dão ao
paço de Belas. Mais tarde, aquando da crise de 1383-85,o mesmo paço irá
servir ao mestre para cativar nobres influentes para a sua causa, como
sucedeu - relembre-se - com o conde Henrique Manuel de Vilhena, que
recebeu o paço como doação de um Mestre de Avis em busca de apoios.
Registe-se, já agora, como curiosidade, que tal não impediu o conde Henri-
que Manuel de se declarar - e, com ele, a vila - por Castela.
     Este conjunto de factos - estado de dano, subalternização     perante
outros palácios, doação a terceiros - sugerem claramente que o tempo
do paço não tinha ainda chegado. Chegaria, após o findar da crise do
Interregno e o afirmar da dinastia de Avis. Na verdade, com D. João r. irão
começar as obras de beneficiação (as primeiras de muitas) que a velha
alcáçova sofreu. Supostamente sob a orientação do mestre João Garcia de
Toledo, artista mudejar de renome para a época, o velho paço veria a
ampliação do seu corpo central num estilo gótico-islâmico. Também as
suas características   chaminés cónicas datarão dessa altura, filiando o
paço em alguma arquitectura senhorial transpirenaica (a abadia de Fon-
tainebleau ou a arquitectura dos Plantageneta). Obras de vulto, portanto.
Obras de vulto como o atesta o facto de, em 1423,o empreiteiro Diego Gil
gastar anualmente para cima de 7000 libras nas suas reparações, que
incluem sobretudo canalizações, portas, janelas e chafarizes.
     Tanto quanto as fontes nos revelam, ter-se-ão realizado obras de vulto
no paço sintrense em 1423, 1434, 1459 e 1460, para já não falar nas obras
realizadas na primeira década do século XVI, o que sai já da nossa medie-


22
vcl alçada. Por outras palavras, parece claro uma continuidade de obras
que, sem dúvida, seria para os naturais largo motivo de incómodos. Não é
em vão que o referimos: os documentos afirmam-no taxativamente. Os
monarcas, quando, em 1459 e 1460,concedem privilégios especiais aos
sintrenses (1459- isenção dos "pedidos especiais régios" para os sintren-
ses cristãos com bens de raiz; 1460- extinção da coudelaria de Sintrc),
alegam que tal é a recompensa pelos muitos trabalhos e grandes cansei-
ras que as obras traziam à vila e seus habitantes.
     Assim ampliado, constantemente melhorado num crescendo de obras
que só pararão com D. Manuel, o paço passará então a ser o palco de
alguns factos importantes da História nacional (planeamento da jornada
de Ceuta, a visita da embaixada borgonhesa que, em 1429, tratou do
casamento de D. Isabel com Filipe o Bom e na qual vinha Van Eyck, nasci-
mento e morte de Afonso v, aclamação de D. João II, para já não falar das
constantes estadias régias e cortesãs onde pontificavam figuras como
Nuno Gonçalves, Bernardim Ribeiro, Gil Vicente e outros).
     Modificção qualitativa, sem dúvida. Mas quantitativa também. O
antigo paço surge agora remodelado, como o sugere o "Livros dos Conse-
lhos dei-rei D. Duarte" ("Livro da Ccrtuxo"), que nos fornece o seguinte rol
de aposentos: cerca de 27 aposentos dedicados a quartos, câmaras, ante-
câmaras e salas com funções várias (escrivães, tesouraria e secretaria,
etc.), com uma área total de aproximadamente 1250m2; 3 eirados com uma
área aproximada de 140 m2; 6 espaços reservados a funções religiosas
numa área aproximada de 120 m; uma salinha reservada a funções de
higiene ("uma casinha de mijar"), com a exígua área de 2,5 m2• O total
ultrapassava os 1500 m2• Note-se que a esta área não estão somados os
jardins e o espaço dedicado a serviços de apoio (estábulos, cavalariças,
cozinhas, etc.), o que dá conta da grandeza deste paço que, sozinho, era
parte substancial de uma vila que em seu torno parecia começar a orien-
tar-se.
     Desta época de reconstrução joanina pode sobretudo ser observado o
corpo central do paço, onde ainda se observa do exterior as cinco janelas
geminadas em estilo mourisco e os quatro arcos ogivais que encimam a
larga escadaria da entrada.



4.11. De Seteais a Colares

    Saindo por fim do paço, poderá o observador sair também da vila.
Agora já não em direcção aos arrabaldes urbanos - em direcção ao
Ramalhão e aos caminhos que para Lisboa e Cascais se dirigiam -, mas
em direcção àquela que era a segunda povoação mais importante da
região na medievalidade: Colares. Para tal, deve deslocar-se até às ime-
diações da igreja de S. Martinho - onde ainda há pouco esteve - e pros-
seguir pela Estrada Nova da Rainha, na Idade Média a principal via que
a Colares levava.
    Ao longo do trajecto poderão ser observados alguns traços da pre-
sença e vivência medievais, logo começando por Seteais. Na Idade Média,
o campo de Seteais era um vasto rossio onde os sintrenses podiam fazer
as suas "revistas" militarizantes e "alardos" - como os que efectuava
periodicamente o adaíl (chefe da cavalaria-vilã do lugar) -, os seus exer-
cícios de soldadesca popular - caso dos besteiros - ou, mais pacifica-
mente, podiam fazer de Seteais o seu "passeio público" avant la lettre. Na
época, a área de Seteais era ocupada por ginjais e centeio, daí aliás lhe
provindo o nome (Centeias-Seteais). As várias lendas sobre o nome de
Seteais, com mouras encantadas e suspiros em série, por poéticas que
sejam, têm de ceder o passo à realidade dos factos.
    Logo após Seteais avançava de novo o caminho, pouco habitado de
casas e de gentes, pois só no princípio da centúria de quinhentos se vão
começar a erguer as áulicas quintas de que Penha Verde é o mais subs-
tancial exemplo. Até Colares, era (e é ainda) um passeio marcado pela
exuberância da vegetação e do arvoredo, quebrado apenas por pequenos
povoados (como a Eugaria) e pelas primeiras casas colarejas que ao
longe se divisam. Colares não tem infelizmente substanciais monumen-
tos medievais dignos de nota. O pelourinho é quinhentista, a igreja paro-
quial passa também ao lado da medieval idade, e de entre o casario não
se encontram vestígios dignos de menção. Recorde-se, de resto, que a vila
de Colares não se encontrava abrangi da pela jurisdição dos juízes e ve-


                                                                               23
readores sintrenses, já que, como território reguengo que era, estava sob
a directa alçada doís) reils).
    Não se creia, todavia, que a tal ausência de vestígios assinaláveis
para a Idade Média local corresponde um apagamento da vila na época.
Se bem que mais pequena que Sintra (Colares fornecia dez besteiros do
conto, contra os vinte de Sintra, o que desde logo sugere a correlação
entre ornbus), a vila parece ter atingido alguma projecção na vida da
região, por força sobretudo dos seus terrenos circundantes de boa aptidão
agrícola, vinícola e frutícola. A fruta da região fazia já o espanto dos
muçulmanos, que dirão, pela boca de AI-Himiari:

     "Estes frutos (as maçãs) atingem tal espessura, que alguns chegam a
ter quatro palmos de circunferência. Acontece o mesmo com as pêras."

     E se bem que duvidemos de tal prodigalidade, não deixa por isso de
ser menos interessante o testemunho. As férteis terras da Várzea de Cola-
res (a designação atraiçoa-lhe a fertilidade) situavam-se próximo, trans-
formando esta zona na mais fértil de todo o concelho.
     A presença muçulmana na região colareja parece, de resto, ter sido de
algum peso. Dados esparsos na documentação sugerem que talvez ela
fosse mesmo mais forte aqui do que na própria vila de Sintra. Registe-se
desde já que não conhecemos mouraria em Sintra ou em Colares. Tal pode-
ria ser sinal de que a comunidade moura se encontrava mais dispersa que
a judaica, não obrigando por tal à instalação de um bairro exclusivo para
esta minoria étnico-religiosa, já que, como se sabe, a edificação de tais
bairros só era obrigatória se numa localidade fosse ultrapassado um certo
limiar mínimo de mouros e/ou judeus. Dois testemunhos parecem confirmar
a ideia segundo a qual a minoria muçulmana seria de alguma relevância
na região de Colares. O primeiro remonta ao reinado de Dinis quando este
monarca estabelece um protocolo com os "meus mouros forros de Colares",
que vinculava estes à manutenção do "palácio real da Oliva" -leia-se        "o
paço real da vila sito no Chão da Olivc" - e à reparação das almedinas
velhas do castelo e suas torres. O facto de tal acordo ter sido efectuado com
os mouros colarejos e não com os mouros sintrenses, pode sugerir que eles
só existissem em número significativo para efectuar tais tarefas em Cola-
res e arredores. Tal ideia parece ser confirmada pelo segundo testemunho,
que dá conta do facto de que o cemitério muçulmano (o almocavar) se si-
tuava em Colares, tendo sido apenas desactivado após a expulsão das
minorias étnico-religiosas efectuada nos finais do século xv.
     Segundo Pedro de Azevedo ("Os reguengos da estremadura"), Colares
seria "terra de mouros". Os factos não parecem desmenti-lo.



4.12. Odrinhas

     Já o havíamos referido antes; repetimo-lo agora: Odrinhas e o respec-
tivo Museu são um manancial de testemunhos que o tempo permitirá que
se alarguem ainda mais, à medida que novos trabalhos forem revelando
mais espólio e maiores certezas. Sobretudo romanos, mas também pré-
-históricos e medievais. Da Idade Média salientamos um interessante
túmulo situado no exterior da capela de S. Miguel. na parede do lado sul
e a esta adossado, túmulo que pertencia a um tal Fernão Reganha. O
túmulo situa-se dentro de um arcossólio e está encimado por uma lápide
onde é visível uma inscrição com caracteres góticos dizendo:

   "SEPULTURADE FERNÃ REGANHAO UELHO E DE SEUS ERDEYROS
FERNÃ DE ANS SEU BYSNETO E PESADÔ DA CIDADE DE LXBOA A
MÃDOUFAZ"

     A leitura actualizada   permite ler:

    "Sepultura de Fernão Reganha o Velho e de seus herdeiros. Fernão
anes, seu bisneto. e pesador da cidade de Lisboa. a mandou fazer" (Pesa-
dor = almotacé).

    Juntamente com o chamado "Dos dois irmãos", este túmulo é dos mais
bem conservados no concelho referentes à medievalidade, e merece que
sobre ele nos debrucemos com particular atenção ao visitar Odrinhas.


24

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Roteiro histórico a idade média

  • 1. CONCELHO DE SINTRA - ROTEIRO MEDIEVAL - N s.•.•. o ~ i<I v " O Escala 1/100.000 Caminhos-de·Ferro Estradas Nacionais Estradas Municipais Limites de Freguesia I - Castelo e Igreja de S.la Maria. 2 - Vila: Urbe (ver quadro). 3 - S. Pedro: Capela de S. Lázaro e Túmulo dos 2 irmãos. 4 - Paço de Belas.
  • 2. VILA DE SINTRA Roteiro Medieval (URBE) N 1 .- --~----~~ ---- 25 O'-L _--'-_--'-_-'-_....-<-1 -----.1125 M. l-Paço 14- Alpendre do Mercado 2 - Rio do Porto 15-Praça 3 - Caminho para Mafra-Ericeira 16- Pelourinho 4 - Caminho para a Ponte 17- Hospital da Redonda 18- Judiaria 5-Pisões 19- Sinagoga 6 - Paço do Alconde 20 - Casa da Vereação (?) 7 - Caminho de Colares 21- Poço do Romão 8 - Chão da Oliva 22- Pedras Ajorradiças 9 - Rua do Açougue 23- Fonte da Pipa la - Rua da Pendõa 24- Rua da Ferraria 11- Igreja de S. Martinho 25- Caminho para arredores 12- Cadeia (7) - Lisboa e Cascais 13- Torre do Relógio (7) 2
  • 3. 1. OS VISIGODOS E OS MUÇULMANOS A presença visigótica na região sintrense apresenta-se parca de ves- tígios, sobretudo se comparados com os que foram encontrados em locais limítrofes aos do concelho, como Lisboa, por exemplo. Será tal consequên- cia do carácter pouco urbano e tecnicamente pobre da civilização visigó- tica, sobretudo se comparada com os seus predecessores romanos e com os seus sucessores árabes? Será tal consequência do menor povoamento da zona, que tinha relativamente perto uma localidade de maior valia e fama (Lisboa)? Apenas hipóteses podem por nós ser formuladas e pouco mais. Dos suevos sabemos que por Sintra teriam andado, pelo menos no século v, quando Réquila (441-448)unifica todo o ocidente peninsular - da Galécia à Lusitânia ocidental. Lisboa e arredores são ocupados por volta de 458 e em 469, se bem que pouco depois reocupadas pelos visigo- dos. Prenúncio do que mais tarde sucederia ao próprio reino suevo, ane- xado pelos godos em 624. Em todo o caso, de entre os escassos testemunhos da sua presença, podemos e devemos referir o espólio funerário encontrado no Museu de Odrinhas, composto por vários túmulos em bom estado de conservação, e que constituem umcç.visitcr profícua. Também no Museu Regional de Sin- tra merece realce um anel de ouro aí exposto, se bem que - por fazer parte de uma colecção particular - sob a forma de fotografia. Quando, em 71 L as hostes do Islão entram na Península Ibérica ini- cia-se uma nova era para o território de um modo geraL e para a região de Sintra em particular. Desde cedo fixados nesta área, os muçulmanos vão marcar com o seu cunho muito particular a vila nascente, deixando marcas que o tempo diluiu mas que podem ainda ser vistas, se atentos soubermos entender os sinais que aqui e ali se dispõem. A forte fixação muçulmana neste local (entenda-se Sintra e arredores) não é fruto do acaso. Possuidores de uma cultura e de uma civilização que a tornavam das mais avançadas do seu tempo, apreciadores da vida campestre e do contacto com a natureza verdejante, não é difícil de enten- der de que forma foram os seguidores de Maomé cativados por uma região onde a natureza parecia corresponder às suas expectativas. O célebre poema de Alcabideche, escrito em meados do século XI por Ibne Mucana Alisbuni - um antigo cortesão reformado -, é bem a prova de tal atracção: "Ó tu que habitas Alcabideche! Oxalá nunca te faltem/cereais para semear nem cebolas nem abóboras!l( ...) Deixei os reis cobertos com os seus mantos/e renunciei a acompanhá-los nos cortejos ...!Eis-meem Alcabide- che colhendo silvas com uma podoa/ágil e cortante.!Se te disserem: gostas deste trabalho?, responde: sim.!O amor da liberdade é o timbre de um carácter nobre.!Tão bem me governaram o amor e os benefícios de Abú Bacre Almodafar/que parti para um campo primaveril." Se bem que este poema se refira a uma área que não exactamente a sintrense, poderia ele ser, porém, igualmente - e até mais justamente- aplicado à região de Sintra, cuja fertilidade, exuberância natural e riqueza paisagística não é, de modo algum, menor. A instalação dos muçulmanos na região sintrense - onde irão fundar a vila que hoje conhecemos como Sintra e então apenas vagamente esboçada por uma ocupação humana antiga mas ainda não estruturada numa urbe como tal - enquadra-se, pois, nessa lógica de atracção por áreas verdejantes e de natureza fértil, que os leva a semear, um pouco por toda a parte e com particular incidência na região que vai da vila até à Várzea, as suas famosas "clmoínhos". que mais não eram que quintas dedicadas à explo- ração frutícola mas também com vastas áreas ajardinadas, animadas ainda por pequenos riachos e contendo uma casa de habitação. Durante 3
  • 4. toda a Idade Média encontramos inúmeras referências a tais almoínhas, mesmo muito depois de o domínio islâmico ter sido substituído pelo domínio cristão. Também na documentação e nas narrativas árabes a região de Sintra nos surge documentada. Se bem que a função de um roteiro seja guiar o visitante mais pelos vestígios monumentais que pelas linhas de poemas e anais, consideramos útil- sobretudo enquanto introdução - uma bre- víssima resenha de tais referências. Assim, vários são os autores que gabam a fertilidade da região: "(Sintra é) uma das vilas que dependem de Lisboa no Andaluz, nas Museu de Odrinhas: Sepulturas proximidades do mar. Está permanentemente mergulhada numa bruma que se não dissipa. O seu clima é são e os habitantes vivem longo tempo. Tem dois castelos que são de extrema solidez. A vila está a cerca de uma milha do mar. Há aí um curso de água que se lança no mar e serve para a rega das hortas. A região de Sintra é uma das regiões onde as maçãs são mais abundantes. Esses frutos atingem tal espessura, que alguns chegam a ter quatro palmos de circunferência. Acontece o mesmo com as pêras. Na serra de Sintra crescem violetas selvagens. Da costa vizinha extrai-se âmbar excelente." (Ibne Abde AI-Mumine Al-Himiuri) "(...) na região entre Lisboa e Sintra, encontram-se numa montanha, utilizada outrora como reduto fortificado, pedras judaicas que têm exacta- mente a forma de glandes. Estas pedras têm, entre outras propriedades, a de dissolver os cálculos da vesícula e do rim. Fazem-nas também entrar na composição de eolitios." (Idem) "E o termo (arredores) de Lisboa é comprido de muitos bens porque aí há mui saborosas frutas. E juntou em si as bondades do mar e da terra. E em todo o tempo, em seu termo criam muito bons açores (...) que usam mais caça e são melhores que os outros e são muito formosos. E há aí muito mel e muito bom; e é tão branco que não parece senão açúcar e sabe melhor que o açúcar. E é tão bom por natureza que, mesmo sendo posto num pano de linho, não ficaria molhado, nem faria aí sinal tanto como se fosse pedra." (Ahmede Arrazí) A instalação muçulmana no termo de Lisboa em geral, e na região sintrense em particular, enquadra-se, portanto, nessa lógica de aproxi- mação a uma natureza apreciada e fértil. Se é certo que, como atrás referimos, a ocupação humana da região sintrense remonta a épocas bem mais antigas - como já vimos; se é igualmente certo que as mais recentes campanhas arqueológicas pare- cem provar que a área onde hoje se instala a vila possuía alguma pre- sença humana, o que nos parece igualmente certo é que não andaremos muito longe da verdade se afirmarmos que a vila de Sintra, enquanto tal, é genericamente de assentamento muçulmano. E a partir da ocupação árabe que a vila pode ser estudada como uma realidade estruturada, pos- suindo uma coerência urbanística e características próprias que a fazem merecer o título de "vila". Para esse efeito, serão sobretudo objecto do nosso estudo o castelo, o casario e o traçado das ruas, o paço (alcáçova) da vila e a toponímia do concelho, vestígios mais vivos da presença muçulmana em Sintra. Um último dado assaz curioso. Não obstante a importância da permanência muçulmana na região, escassos são os ves- tígios materiais (em termos de objectos, entenda-se) que foram até hoje descobertos. Escassa cerâmica, algumas lucernas e ainda menos moedas estão visíveis no Museu Regional de Sintra. A razão de tão "pobre" espó- lio em clara desproporção com tão rica presença, dever-se-á ao facto - de acordo com os especialistas - de a ocupação muçulmana ter sido par- ticularmente tolerante para com a população autóctone/moçárabe, permi- tindo a permanência de formas artísticas próprias e o uso de objectos que se inserem na tradição local. Deste modo, só muito esporadicamente se poderá falar de formas de expressão tipicamente árabes na região sin- trense, tanto mais que se crê que o árabe ocuparia mcis os núcleos urba- nos, deixando o aro rural para a população local (isto partindo do princípio que se pode traçar uma fronteira clara entre a população dita "local" e os muçulmanos considerados como "forasteiros", o que é, a nosso ver, duvi- doso e incorrecto). Mais uma vez se depreende que a ocupação árabe no concelho, como no país, não terá sido a ruptura que antigos textos - quiçá mais eivados de ideologia que de rigor factual - sugeriam, ruptura que hoje a historiografia tende a pôr em causa. 4
  • 5. 2. OS MUÇULMANOS 2.1. O Castelo de Sintra A esquerda: Castelo visto da vila. A direita: Vila vista do castelo. Se bem que se desconheça em absoluto a data da sua fundação, é hoje pacífico que a sua origem é muçulmana. Tome-se em conta todavia que - como acontece com quase todos os vestígios monumentais sintren- ses mais remotos - pouco é já o que pode ser observado que seja de ori- gem. Na verdade, devido a extensas obras levadas a cabo no século XIX por D. Fernando Il. apenas as bases das torres e as muralhas remontarão à fundação inicial. Serpenteando pelos acidentes naturais da serra, essas muralhas assumem características únicas que as tornam inconfundíveis. , Outro provável testemunho árabe no castelo é a cisterna. Situado bem dentro do recinto muralhado, se bem que hoje encerrada ao público que apenas a pode ver do exterior - o que tira substancialmente uma visão clara da construção -, a cisterna é composta por um vasto tanque abaixo do nível do solo e de planta rectangular. Mede de comprimento dezoito metros por seis de largura. Mede seis metros de altura da soleira da porta ao pàvimento e três metros até ao fecho da obóbcdu.i O pavi- mento é constituído por lajes de granito. A abóbada da cisterna possui ainda duas clarabóias. A água que a abastece é pluvial, entrando pela parte de cima através de quatro manilhas situadas nos cantos. ·Até há alguns anos, esta água estava disponível ao público que a podia tirar, ser- vindo-se de uma bomba apropriada para o efeito. Parece assim evidente que esta cisterna constituiu, ao longo dos séculos, mais um ponto abaste- cedor de água para as gentes de Sintra, sobretudo para aquelas que moravam nas imediações do castelo, como o retratam antigas gravuras românticas, onde se pode observar alguns sintrenses abastecendo-se. Uma análise mais detalhada do castelo de Sintra faz ressaltar, em primeiro lugar, a sua quase aparente invulnerabilidade. De facto, as ver- tentes que o circundam não permitem a qualquer intruso uma aproxima- ção, já que de tão escarpadas e rochosas tornam-se inacessíveis. De imediato, parece ao observador como quase impossível a sua conquista. Sensação reforçada pelo facto de nunca se ter combatido no castelo; de nunca se ter pelejado pela sua posse nem nenhum cerco lhe ter sido alguma vez montado. A história surge assim a confirmar a suspeição. Contudo, a surpresa poderá tomar o observador se se lhe disser que nunca houve lutas pela posse do castelo pelo simples facto de sempre ele se ter rendido sem luta, sobretudo se Lisboa era tomada. E isto não obs- tante a sua invulnerabilidade. A resposta para esta aparente contradição poderá passar pela própria função do castelo durante quer a ocupação muçulmana, quer depois. De facto, parece-nos perfeitamente crível que o castelo fosse mais um ponto de vigia dos campos em redor que um ba- luarte unicamente defensivo. Vigia da região e sobretudo de Lisboa, inte- 5
  • 6. grava-se assim a vila numa gargantilha defensiva - de que outras terras faziam igualmente parte - que protegia a cidade maior. Esta hipótese radica em três premissas: 1 - A boa localização do castelo e suas torres, de onde podem ser observados os campos em redor. Ainda que integrado numa terra que considerava já como sua - de nascimento e residência -, o muçulmano ibérico sabia também que das terras do norte se aproximavam as hostes cristãs. Alardos e pilhagens, correrias e fossados, ataques súbitos e expe- dições punitivas eram frequentes em ambos os campos, afirmando-se deste modo a necessidade de se possuir uma boa rede de atalaias, que prevenissem ataques, que vislumbrassem os inimigos ao longe e que pre- cavessem a defesa. Vigilante, o muçulmano ibérico podia assim divisar ao longe as patrulhas e os cavaleiros inimigos -, coisa que não poderia fazer no vale onde a vila se dispõe - e assim tomar as providências necessárias, que poderiam passar por recolher dentro das muralhas os habitantes dispersos, enquanto os inimigos rondavam as cercanias. 2 - Em rigor, muito pouco protege o castelo. Se é perfeitamente plau- sível que o recinto muralhado encerrasse algum casario inicial. cedo a vila transbordou os estreitos muros e se dispôs de S. Pedro até ao vale. No cimo, o castelo ficou isolado, muito pouco guardando, pouco protegendo. Tal é visível. mais tarde, durante a crise de 1383-85,quando os homens do Mestre se abastecem em Sintra perante o olhar do conde-alcaide - que se declarara por Castela - que, contudo, não sai dos seus muros. Diz Fer- não Lopes: "(...) estando então em Sintra o conde e gentes com que o bem o podia defender, que tinha voz por Castela. E correu Nuno Álvares a terra em redor, sem ter achado nenhum que o torvasse. (...) E teve o (Mestre) fala com alguns de Sintra (...) para que lhe dessem o castelo daquele lugar que é uma grande fortaleza em um alto e !ragoso monte, e a vila ao pé dele, sem nenhuma cerca que a defender possa." (Fernão Lopes, "Crónica de D. João I", caps. LxxIlcLXIV) Como se verifica, a função de vigilância prossegue após a Recon- quista. 3 - A evolução dos acontecimentos parece, aliás, confirmar esta ideia. Logo após a conquista de Lisboa, o castelo rende-se sem luta, o que parece reafirmar claramente que a sua função de atalaia é feita sobre- tudo em função de Lisboa, da qual Síntra mais não é que um posto avan- çado e de apoio. Perdida Lisboa, perdia Sintra a sua função. O foral de 1154reforça esta ideia, ao estipular, numa série de artigos, que a função da cavalaria-vilã sintrense seria a de defender Lisboa, para esta se diri- gindo quando avistasse inimigos del-rei nas imediações de Sintra. A fun- ção de vigilância - como se vê mais até de Lisboa do que da própria vila - só se esbate com a definitiva pacificação do território, após a crise do Interregno. Mas a este assunto voltaremos mais tarde, quando analisar- mos o estatuto da vila após a Reconquista. 2.2. O Casario Um outro vestígio - ainda que remoto - da presença muçulmana na região sintrense parece-nos ser o casario. Mais exactamente, a malha urbana e a disposição das ruas da vila. O observador que percorra a vila, nas imediações do paço e da igreja de S. Martinho, facilmente nota a estreiteza de algumas ruas e becos, a forma como elas serpenteiam entre o casario, a existência de becos e de ruas sem saída, as curvas súbitas que mudam, por vezes, o sentido de uma ruela. Na verdade, o casario parece ter sido disposto e orientado sem um plano claro que o definisse, deambulando as ruas de acordo com dita- mes que passam mais pelo capricho ou pela necessidade momentânea que pela planificação prévia. A chamada "lei da permanência do plano" - que afirma que salvo cataclismos monumentais o plano e o traçado de um povoado tendem a manter-se mais ou menos constantes ao longo dos tempos - permite -nos de algum modo filiar este traçado, naquele que os 6
  • 7. muçulmanos terão forjado em Sintra, à medida que a vila ia crescendo sob as suas mãos. Edificada primeiro em torno do castelo, instalada ini- cialmente nas casas que se erguiam fronteiras ao castelo, cedo a popula- ção desce o vale e se instala nos arrabaldes de S." Maria, S. Miguel e sobretudo S. Martinho, bairros esses que, a breve trecho (sobretudo o último), ultrapassam o casario do castelo como núcleo principal da vila. Aí instalarão os muçulmanos o seu paço acastelado onde os governado- res regionais (os walis) habitavam, aí passou a residir a casta mais aris- tocrática dos islâmicos do local, que entre Sintra e Lisboa repartia o seu tempo, como reconhece o suposto Osberno em 1147: "Ali (Lisboa) se tinham fixado como hóspedes (...) todos os nobres (ára- bes) de Sintra." o casario e as ruelas do que é hoje comum chamar-se a "Vila Velha" são assim dispostos de acordo com o que eram os princípios Ruela da vila velha gerais da urbanística árabe e hispano-muçulmana, que se caracteri- zava pela ausência de regras e de princípios normativos para esse assentamento urbano. Na verdade, se percorrermos, ainda hoje, as ruas das cidades islâmicas do Magrebe, notamos que as características que atrás apontámos para o casario velho sintrense são aí elevados ao paroxismo. As ruas estreitam-se, os becos surgem inesperadamente, o labiríntico das ruelas torna difícil a visita sem guia. Em Sintra, salva- guardadas as devidas distâncias, é possível ver tais tendências esbo- çadas, o que nos leva a afirmar - com a devida prudência que o tempo já passado e que a escassa dimensão da vila aconselham - que o tra- çado urbano sintrense é subsidiário do modelo islâmico de edificação urbana. Refira-se, já agora, que este modelo árabe de uma certa "desorgani- Vila: Poço Rosto e Pedras Ajorradiças zação" urbana radica em três ordens de factores: . - Razões de mentalidade: para o muçulmano, a casa sobrepõe-se à rua. E lá que o fiel reza, que vive, que passa o tempo, sobretudo quando as mui- tas horas de calor não lhe permitem uma saída confortável. A casa é um espaço de sociabilidade maior do que a rua, tanto mais que as mulheres, por exemplo, centram a sua actividade muito mais lá que no exterior, onde os seus movimentos sofrem restrições. Assim sendo, é lícito que um morador prolongue a sua casa, que cerceie o espaço da rua ou mesmo que a feche num beco sem saída. A ausência de regulamentação urbana entre os muçul- manos (e, por extensão, os hispano-muçulmanos) favorece tal tendência; - Razões climáticas: as ruas estreitas e apertadas permitem uma menor exposição ao sol e favorecem a sombra, caracteristícas bem apre- ciadas para quem à força do calor está acostumado; - Razões defensivas: becos e curvas apertadas, espaços labirínticos e uma disposição irregular das ruelas favorecem quem defende, quem melhor conhece o espaço onde se move e pode assim enfrentar com mais armas o invasor. Ora, ainda que integrado no mundo ibérico que há muito conquistara, não raro ainda se sentia o muçulmano ameaçado. Não só as armas cristãs ameaçavam, como podiam suceder revoltas moçárabes, como as que efectivamente sucederam em meados do século IX, quando duas rebeliões moçárabes eclodiram em Sintra, secundando igual movi- mento em Lisboa (e terminando, claro, quando em Lisboa terminaram). Deste modo, parece-nos perfeitamente credível afirmar que o traçado urbano sintrense é subsidiário da influência hispano-muçulmana, mesmo levando em conta que as ruas possam, com o tempo, ter sofrido algumas modificações que impeçam uma correspondência plena. Mas a matriz está lá. 2.3. O Paço Até há alguns anos, a problemática respeitante à fundação do paço de Sintra era objecto de polémica. Vários autores - como Reinaldo dos Santos ou Mário Chicó - eram claros na sua asserção de que os paços de Sintra eram de edificação joanina ou até manuelina, fazendo assim tábua rasa de anteriores vestígios e notícias, no que foi interpretado por outros 7
  • 8. autores - como Borges Coelho e com alguma lógica - como fruto de um determinado preconceito histórico antimouro. Na actualidade, a fundação árabe do paço de Sintra parece já pouco questionáveL se bem que seja perfeitamente pacífico que o que resta dessa fundação muçulmana se restringe a uma mão-cheia de pormeno- res, fruto de várias reconstruções e alterações posteriores. Os argumentos a favor da fundação árabe do paço - em contraponto à tese da fundação joanina, tão cara a alguns autores - são vários. Em primeiro lugar, os documentos, os testemunhos. Ouçamos de novo AI-Himiari: "Sintxa tem dois castelos e são ambos de extrema solidez." Se é óbvio que um dos castelos é o da vila, no cimo da serra edificado, o outro só pode corresponder ao paço de Sintra, acastelado como uma alcáçova ou alcazar, tal como era usual entre os hispano-muçulmanos e mais tarde entre os cristãos da reconquista. Depois, os factos. D. Dinis estabelece com os mouros forros de Colares um protocolo no qual lhes concede algumas benesses fiscais, desde que eles garantam a manutenção das muralhas do castelo e do seu "palácio real da Olivc" (leia-se "o palácio real do Chão da Olivc" , como na Idade Média se chamava ao local que é hoje o largo fronteiro ao paço). Não é necessário muito esforço para depreender de que palácio se trataria. Mais tarde, em 1385,é o recém-aclamado D. João I que doa a D. Henri- que Manuel de Vilhena, alcaide de Sintra, "todos os nossos paços que nós havemos na vila de Sintra com todas as suas entradas e saídas". Isto décadas antes das obras ordenadas pelo monarca que, como adiante veremos, o reconstruíram e alteraram, obras que estão, de resto, na base da argumentação favorável à fundação joanina. Actualmente, os vestígios da fundação muçulmana diluem-se no emaranhado de um palácio que cresceu sem uma grande regularidade - o que mais o torna original, diga-se. Mas em todo o caso podem ainda ser observados do primitivo paço acastelado mourisco alguns revestimentos de azulejaria existentes em pavimentos, como o tapete de azulejos alica- tados da capela real, ou o pavimento também de azulejos - verdes, cas- tanhos, manganés e amarelo - com desenho de laçaria, existente na chamada sala Afonso VI. Também alguns apontamentos patentes um pouco por toda a parte, se bem que de construção posterior (a disposição dos jardins suspensos, a decoração de portas e janelas, o desnivela- menmto das várias alas e corpos construtivos ou até alguma toponímia - "Terreiro de Meca", por exemplo - traem essa anciana influência que o tempo manteve. Para todos os efeitos, ainda que os vestígios sejam hoje vagos e difu- sos, o paço assume-se como herança muçulmana em Sintra, e seria injusto como talo não considerar. 2.4. A Toponímia Um facto evidente e por de mais sabido: uma das principais heranças muçulmanas no nosso país deixadas foi a linguística. No domínio da toponímia, os exemplos encontram-se um pouco espalhados por todo o território nacional, se bem que com maior incidência no centro/sul, e Sin- tra não foge à regra. Pelo concelho fora, várias localidades deixam entre- ver, no seu nome, uma remota influência árabe, e se bem que os especialistas nem sempre estejam de acordo sobre a etimologia de várias dessas localidades, o elevado número encontrado não permite que se olvide tal herança. E se tais testemunhos não se enquadram necessaria- mente no campo dos vestígios mais monumentais, certo é também que cabem dentro de uma outra herança que não passa tanto pelas pedras e pelos muros: a da memória colectiva que se fixa na língua que usamos e nos nomes das terras onde nascemos, vivemos e morremos. Não é total o acordo entre os linguístas acerca da toponímia sintrense e suas etimologias árabes. Um dos mais conceituados linguístas portu- gueses - José Pedro Machado - divide os topónimos locais de origem árabe em três grupos: os árabes, os híbridos e os arábico-modernos. De cada grupo forneceremos uma lista, acómpanhada da raiz e do signifi- cado em anexo. Esta lista é ainda complementada com apontamentos de outros autores que a este assunto se dedicaram igualmente, nomeada- 8
  • 9. I mente Mário Guedes Real e Oliveira Boléo, se bem que demonstrassem estes menor profundidade que o linguista anteriormente citado. Assim temos: - Topónimos de origem árabe (aqueles que possuem raiz árabe e que permaneceram com pequenas alterações desse radical): Albarraque (al- -barrak. isto é, "o brilhante", se bem que Guedes Real sugira um étimo em al-barraque, ou seja, plural de aI-barca - "solo duro"); Alcainça (al- -kaniça, isto é, "a igreja"); Alcoruim ou Alcorvim (al-cairuáne, isto é, "o caimão"); Alfaquiques (alfaqueques, cargo muçulmano que designava o indivíduo que resgatava prisioneiros); Alfouvar (al-fauwara, isto é, "o bolhão"): Algueirão (al-guerane, isto é, "a gruta"); Almargem (al-marge, isto é, "o prado"); Arrabalde (arabáde, isto é, "os subúrbios"); Azenha (cç- -çania, isto é, "a nora"); Azoia (az-zavia, isto é, "o mosteiro"); Cacém (qácine, que mais não parece ser que um antroponómico, apesar de Guedes Real sugerir raiz em cacéme, ou seja "o que divide"); Moçaravia (muçtarabe, isto é, "aquele que se tornou árabe"); Queluz (qá-luz, isto é, "vale da amendoeira"). Guedes Real apresenta também: Mucifal (moçícl. isto é, "o lugar que está em baixo"); Massamá (maçama, isto é, "o que está alto"); Meleças (meliça, isto é, "o vazio"); Almoçageme (al-mesjide, isto é, "a mesquita"), entre outros mais improváveis. - Topónimos híbridos (aqueles que resultariam da associação de dois topónímos, um árabe e um latino): Alcolombal (da junção do artigo árabe "ol" com a palavra latina "columbcre", que significa pombal), Alco- bela (do árabe "al-quibba" mais o sufixo "ela"), Almoster (mescla do artigo "al" mais o termo latino "monosteriurn". que designa mosteiro). - Topónimos arábicos modernos (aqueles onde, apesar de se reco- nhecer uma etimologia árabe mais ou menos comprovada, não se conhece claramente a raiz, devido a influências posteriores): Abonemar, Açafora, Aljabafaria, Almoçageme (note-se o que Guedes Real propõe para este topónimo), Almornos, Almosquer, AlparreL Alpoletim, Alvegas, AsfamiL Boqcrlho. Calaferrim (o mesmo que Canaferrim, que daria mais tarde Penaferrim, termo que designa também o bairro de S. Pedro - S. Pedro de Penaferrim), Galamares, Mafarros (ou Nafarros), Magoito, Mele- ças (ver tese de Guedes Real), Massamá (idem). Esta lista não é, por certo, nem definitiva nem isenta de bastas diver- gências. Não nos competindo arrogar o papel de árbitro - até porque nos carece a competência linguística para tanto -, resta-nos esperar que futuros estudos esclareçam questões em aberto. Entretanto, registe-se uma curiosidade (e uma prova, afinaL de que este é um dossier em aberto): nenhum dos linguistas citou o topónimo Tercena, que se sabe ter o étimo em "dor-cs-sincr'c". isto é, "tulha" ou "armazém". 9
  • 10. 3. DA RECONQUISTA AO DEALBAR DA EXPANSÃO Após a queda de Lisboa. em 1147.Sintra rende-se sem luta. Esta ren- dição de tão inacessível castelo não surpreende. se se relembrar que a sua função não era tanto defender a vila - que visivelmente não defen- dia - mas mais a de se integrar na cintura defensiva que protegia Lis- boa. Cintura essa que se estendia por várias vilas do termo de Lisboa. e que visava fornecer à capital a vigilância e os homens necessários para a sua segurança. Perdida Lisboa. perdia-se o sentido de Sintra. Daí a sua rendição sem luta. Este estatuto de subordinação de Sintra em relação a Lisboa man- teve-se durante toda a Baixa Idade Média - quase nos atrevemos a dizer que é uma constante da sua história. Subordinação. antes do mais. mili- tar. Até à crise de 1383-85. enquanto a independência nacional corria perigo (primeiro mais às mãos dos muçulmanos; depois de Afonso III. somente de Castela). Sintra assumiu-se como um bastião militar de apoio a Lisboa. O castelo - vimo-lo já - erigia-se como ponto de vigia. como núcleo aglutinador de hostes que para a capital se deviam dirigir se fos- sem avistados inimigos deI-rei (recorde-se o articulado do foral que subordinava a cavalaria-vilã às necessidades lisboetas); os sintrenses assumiam-se - ou eram levados a ... - como mão-de-obra útil ao poder central. como sucedeu aquando da construção da muralha fernandina de Lisboa em 1373.na qual colaboraram habitantes de Sintra (e mais dezoito terras. de Setúbal a Benavente. de Cascais a Torres Vedras. de Lourinhã a Sesimbra. o que define o aro defensivo que resguardava a cidade maior); os guerreiros da vila auxiliavam-na com armas e homens. como aquando da crise de 1383-85.após a rendição de Henrique Manuel de Vilhena - que declarara a vila por Castela -. quando de Sintra seguiram "lanças" para Lisboa. Com a estabilização política e com a acalmia das fronteiras ocorridas após o triunfo da dinastia de Avis. o estatuto de Sintra muda quase radi- calmente. De bastião militar passa a vila cortesã. habitada sazonalmente por uma corte em busca de ares frescos e sombras calmas. que percorre Sintra como em casa sua. Nesse sentido se integram as constantes obras no paço da vila - que pela primeira vez se assume inequivocamente como residência real - e a extinção da coudelaria de Sintra em 1460- dispositivo militar inútil. numa vila que perdeu a sua função militari- zante. Agora. neste virar da centúria de trezentos para a de quatrocentos. que representa a mudança da vila militarizante para a vila áulica. o dis- curso do poder é já outro. Se no século XII o articulado do fora 1 ordenava aos cavaleiros-vilãos que acorressem a Lisboa para a ajudar belica- mente. agora. em 1436.D. Duarte diz de Sintra: ..... vimos a esta vila de Sintra muitas vezes ter alguns verãos (...); (a terra é) de muitos bons ares e águas e de comarcas. em que há grande abundância de mantimentos de mar e de terra. e por a nossa mui nobre e leal cidade de Lisboa ser tão acerca; e por havermos nela assaz de fol- ganças e desenfadamentos de montes e caças. e por termos nela nobres paços de mui espaçadas vistas .:" Este palavreado serve de preâmbulo ao conjunto de privilégios que o monarca concede aos sintrenses por motivo dos incómodos que eles sen- tem ao colaborar na reconstrução e obras do paço. Simbólico: se antes colaboravam na edificação da muralha fernandina de Lisboa. trabalha- vam,agora os sintrenses no paço da sua própria vila. E à luz desta subordinação de Sintra em relação a Lisboa que deve- mos interpretar a vila medieval e mesmo moderna. A subordinação não assume apenas aspectos militares ou áulicos; é também económica e ins- titucional. Para Lisboa vão alguns dos melhores produtos da terra. vendi- 10 ta
  • 11. dos pelos almocreves e pelos campónios; para Lisboa vão os jovens inte- lectualmente mais promissores, os artesãos mais dotados, as gentes mais ambiciosas. A proximidade da capital e a respectiva força centrípeta potenciavam uma constante sangria de gentes mais habilitadas e dos produtos mais procurados, que os documentos aqui e ali revelam. De Lis- boa, por seu turno, vinha o poder e a corte, os fidalgos que em Sintra e arredores arrendavam e compravam vastas terras, instalavam quintas e influenciavam vereações. A consagração máxima desta subordinação é constatada logo após 1385,quando Sintra (entre outras terras) é doada a Lisboa como seu termo, o que, na prática, acarreta uma subalternização concelhia em relação ao município sintrense e seus edis. O facto de tal doação ter sido anulada, cerca de um século depois, não lhe retira o impacte. Em todo o caso, a subordinação em relação a Lisboa, e os incómodos que daí decorrem, tem as suas contrapartidas. A presença da corte acar- reta a doação de regalias aos sintrenses (como se viu com D. Duorte), a presença dos nobres e da corte conduz a uma subida dos preços pelos mercadores sintrenses, a presença ofuscante de Lisboa permite, enfim, que Sintra possua um estatuto no todo nacional que a sua pequena dimensão e escassa população (nunca ultrapassará o milhor de habitan- tes, de acordo com os nossos cálculos) não pressuporiam. E por isso que Sintra tem uma posição de destaque em Cortes, onde se senta em lugar privilegiado a par com terras de maior tamanho e mais população. Recorde-se que, de acordo com o protocolo, os concelhos sentavam-se tanto mais à frente quanto mais importantes eram. Por outras palavras, o preço de tal subordinação é um estatuto de algum modo superior. Como veremos a seguir, o percurso dos monumentos segue bastante essa evolução de estatuto. 11
  • 12. 4. IDADE MÉDIA 4.1. O Paço de Belas o hoje olvidado Paço de Belas foi, contudo, até ao século xv, um pala- cete bastante frequentado pelos monarcas portugueses, pela família real :f e por várias famílias da alta nobreza, concorrendo e suplantando mesmo episodicamente - com D. Pedro, por exemplo - o Paço de Sintra, então J numa penumbra que só o interesse joanino iria romper. Situado na actual vila de Belas, o Palácio do Senhor da Serra como também é conhecido, encontra-se fronteiro ao jardim central da locali- dade, inserindo-se numa vasta propriedade, de resto também interes- sante para outras épocas. O paço parece ter tido a sua origem numa herdade construí da em torno de alguns casais, herdade que tinha, em princípios do século XIV, o cavaleiro Gonçalo Anes Correia como proprie- Paço de Belas tário. Em 1318,a herdade passa para o Convento de Santos por cláusula testamentária, para ser trocado pelas freiras dez anos depois, indo então parar às mãos do meirinho-mor, Lopo Fernandes Pacheco. Em 1357,a her- dade sai da posse desta família confiscada pelo monarca D. Pedro, já que o seu dono - ao tempo Diogo Lopes Pacheco - fora um dos executores da Castro. É então que o rei ordena a construção do paço nos terrenos dessa her- dade, paço que ainda hoje existe, e onde pousava frequentemente. Ouça- mos, a tal propósito, Fernão Lopes: "Assim sucedeu que pousando (D. Pedro) nos Paços de Belas, que ele fizera, dois dos seus escudeiros, que há muito com ele viviam ..." (Fernão Lopes, "Crónica de D. Pedra", Capo VI, adapt.) Após a subida ao trono de D. Fernando, a quinta e o paço são devolvi- dos aos Pacheco em 1367.Em 1389,João Fernandes Pacheco é confirmado no morgadio de Belas. A deserção deste para Castela leva a novo con- fisco e posterior doação régia a Gonçalo Peres Malafaia. Por fim, em 1424, a coroa volta a comprar a propriedade à viúva de Gonçalo Peres, retor- nando assim para a Casa Real. A partir de 1499,o paço é aforado pela casa real a particulares. Um facto importante com este paço relacionado é a sua ligação às Minas do Suímo (a "Ossumo" referida na "Crónica Geral de Espanha" e durante tanto tempo motivo de dúvidas) que ficavam próximo, na Serra da Carregueira. Durante largo tempo uma fonte de pedras semipreciosas, tiveram estas minas no paço um ponto de apoio importante, já que as minas estavam, tal como o paço, sob a directa posse da Coroa. Mesmo após o aforamento a particulares do palacete, a Coroa salvaguardou sempre a sua directa exploração do complexo mineiro. Sobre o Paço, e dum ponto de vista monumental. não há, infelizmente, muito a dizer. Pertença de particulares, não é tão fácil a sua visita como se fosse propriedade pública; para além disso, durante muito tempo alvo r- de depradações constantes e num estado pouco menos que ruinoso, só recentemente tem vindo a ser alvo de uma recuperação que parece (na altura em que este roteiro é escrito) augurar melhores dias. I 4.2. O Ramalhão Entendamo-nos. Quando paramos no Largo do Ramalhão, que hoje como ontem marcava a entrada para a vila de Sintra, estamo-nos a referir mais ao espaço propriamente dito que a qualquer vestígio monumental aí existente. Uma paragem no lugar do Ramalhão não representa, contudo, uma mera pausa. Mais do que isso, estamos perante um ponto fulcral da rede viária da vila medieva. 12
  • 13. Aí se separavam. ou para aí confluíam. três das mais importantes vias da Sintra medieval. Aí começava o caminho que para Cascais levava. caminho esse que passava pelo convento jerónimo de Penha Longa. fundado nos finais da centúria de trezentos. Penha Longa ficava. aliás. na extrema que separava os concelhos de Sintra e de Cascais. exis- tente este desde 1364resultante precisamente de uma cisão no município sintrense. Voltando ao Ramalhão. temos ainda a segunda grande via. aquela que levava de Sintra a Lisboa. Daí partia. seguindo depois para Ranho- las. Rio de Mouro (hoje mais conhecido como Rio de Mouro Velho). Agualva-Cacém. Belas. Pendão. Carenque. Falagueira (Amadora) e Ben- fica. num trajecto que demorava três a quatro horas em cavalo ou carrua- gem. Grande eixo viário. decisivo - ontem como hoje - para a vila de Sintra. por ele se escoavam gentes e mercadorias. constituindo-se como o cordão umbilical que associava a nossa vila à capital. Mas do Ramalhão partia um outro caminho. aquele que vamos tam- bém nós agora retomar e que nos irá conduzir ao cerne da vila medieval. Seguindo do Ramalhão para S. Pedro, encontramos. logo à direita da estrada que do Ramalhão sai (Av. Conde de Suceno). um curioso túmulo medieval que merece nova pausa e uma atenção muito particular. 4.3. O Chamado "Túmulo dos Dois Irmãos" Perpendicular à estrada está o que se designa tradicionalmente por Túmulo dos Dois Irmãos. Na realidade. trata-se de um túmulo do cemité- rio da gafaria de Sintra que em S. Pedro se situava. e neste ponto reside parte do seu interesse. O cemitério da gafaria ficava no outro lado da estrada. hoje em dia parcialmente ocupado por um campo de futebol. e era também aí que até alguns anos atrás se situava igualmente o túmulo. De facto. até 1976. e amputado da cruz que o encima. mudou ele várias vezes de poiso. até ser definitavamente instalado e restaurado no ponto onde agora se encontra. A designação do túmulo, e o seu maior ponto de curiosidade monu- mental. reside no facto de possuir duas estelas discóides em cada uma das extremidades da arca sepulcral. fenómeno pouco frequente e - necessaria- mente - gerador tanto de lendas como de especulações de índole vária. De acordo com a lenda - passada para texto por D. João da Câmara. por exemplo -. aí estariam sepultados dois irmãos que se teriam apaixonado pela mesma dama. Numa escura noite. um deles. ao aproximar-se para cortejar a dama. terá visto um vulto que se lhe antecipara em tais intentos. Movido pelo ciúme. prestes o assalta e prestes duelam ambos. sem que a escassa luz permita que se reconheçam. Num golpe mais forte. um deles sucumbe nos braços do outro. até que um raio de luz faz com que. enfim. o sobrevivente reconheça no moribundo o próprio irmão. Desvairado de dor. o sobrevivente volta contra si a espada e mata-se. De acordo com esta lenda. o túmulo encerra os dois irmãos. Se o carácter lendário do episódio seria já de si suficiente para nos pôr de sobreaviso. o facto de estar apenas um esqueleto guardado no túmulo desmente de vez esta versão. De facto. aberto em 1830por ordem expressa de D. Miguel. o túmulo apenas revelou a existência de um só corpo. A lenda revela-se - como sempre sucede com as lendas - sem fundamento histórico. Também algumas especulações históricas não dão melhor solução. A tese de que aí estaria enterrado algum grande cavaleiro. em Sintra tombado após lutas com mouros, mais não merece que a brevidade de uma contradita: nunca se combateu a moirama em Sintrc, pois esta ren- deu-se sem luta após a tomada de Lisboa. Finalmente. a tese mais propa- la da é aquela que afirma estar aí sepultado o bispo D. Luís Coutinho, bispo de Viseu (1439-1444).de Coimbra (1444-1452)e - se bem que com dúvidas - de Lisboa (1452-1454).De acordo com a tese citada. o bispo teria vindo falecer de lepra em Sintra. e em Sintra estaria sepultado. pre- cisamente no túmulo que temos vindo a estudar. de arquitectura tão pecu- liar apenas para albergar personalidade do seu quilate. Esta teoria não tem porém mais fundamento que a simples suposição. já que na reali- dade nada liga. factual e objectivamente. o bispo ao túmulo sintrense, a não ser o facto de um estar em Sintro; e o outro por lá ter (segundo se crê) passado. Não é sequer claro que D. Luís Coutinho tenha falecido em Sin- trcr, o que transforma esta teoria em pouco mais que nada. 13
  • 14. Observando o túmulo mais em pormenor, verificamos que as cabecei- ras têm ambas o emblema da cruz voltado para lados opostos; a tampa tem três faces sendo aproximadamente rectangular, possuindo na face plana - a central- uma cruz esculpida a todo o comprimento. De cabe- ceira a cabeceira, mede o túmulo 1.70m. As cabeceiras têm de diâmetro 0,35 m e de espessura 0,20 m. O fuste e a cruz que o encima são recentes, devido aos originais terem sido há muito depradados. 4.4. A Gafaria de Sintra e a Capela de S. Lázaro Se do antigo cemitério dos gafos nada mais existe que uma memória documental poeirenta e o túmulo denominado "dos Dois Irmãos", da antiga gafaria sintrense não é a fortuna mais pródiga. O seu antigo recinto é hoje ocupado pelo largo D. Fernando Il, mais conhecido por ser actualmente o sítio da feira de S. Pedro que pelas lembranças de antigos gafos. E contudo, é impossível falar da vila medieval sem referir essa ins- tituição central da assistência sintrense que era a gafaria. Pertencente ao Hospital da vila - gerido pelo próprio concelho sob a supervisão última doís) rainha(s) de Portugal (donatárias da vila desde D. Dinis) -, a Gafaria atingiu uma dimensão regional bem patente nos documentos esparsos que subsistiram. Desconhece-se a data da sua fundação, mas tudo indica que a sua antiguidade radica nos primeiros tempos da nacionalidade. Se bem que a sua gestão levantasse problemas frequentes - as eter- nas questões do equilíbrio receitas/despesas e da gestão do património, parecem ter sido problemáticas, exemplo aliás do que sucedia por todo o país em instituições afins -, o que parece igualmente certo é que, quer pela área sob a sua jurisdição (correspondente a todo o oeste de Lisboa, de Cascais a Mofrcr). quer pelas verbas movimentadas (de que há registos num tombo de finais do século xv, depositado no Arquivo da Misericórdia de Sintro), quer pelas próprias dimensões da gafaria e anexos (que, como Interior da Capela de S. Lázaro vimos e segundo parece, abrangeria uma vasta zona que ia desde as ime- (Desenho de José Alfredo C. Azevedo) diações da Igreja de S. Pedro até ao Ramalhão), se bem que a sua gestão apresentasse problemas, dizíamos, o que é certo é que a sua fama ultra- passou as fronteiras municipais e a sua eficácia assistencial parece nunca ter sido muito posta em causa. Tal como era comum suceder na Idade Média, a gafaria situava-se nas imediações de uma via de algum movimento, já que tal lhe permitia o acumular das esmolas e dos donativos dos viandantes, o que constituía mais uma receita não negligenciável. Não olvidemos que a assistência medieval gira essencialmente em torno do princípio da caridade cristã, e não tanto da responsabilidade do Estado, o que transforma a "esmola", o "donctivo". numa das principais fontes de receita deste tipo de institui- ções. Outras fontes de receita, bem importantes de resto, resultavam da gestão do respectivo património imobiliário, sobretudo prédios rústicos e urbanos. As normas da gafaria, entretanto, eram decalcadas das da Casa de S. Lázaro de Lisboa, tida ao tempo como a instituição modelar ao nível do apoio e internamento de leprosos. Refira-se, aliás, que o maior vestígio que ainda hoje resta da gafaria, remete precisamente para o teor religioso/piedoso que rodeava o acto assistencial medievo: a capela de S. Lázaro. Feita para prestar amparo moral aos internados - recorde-se que, salvo certas condições e certos casos, os gafos estavam compulsivamente circunscritos e encerrados na gafaria -, a capela tinha como orago um dos santos mais venerados pelos leprosos - S. Lázaro - ele próprio um padecente do mal "ardente". A capela situa-se num beco junto à actual Rua Serpa Pinto, e destaca-se pela simplicidade de formas e singeleza de proporções monumentais. Contudo, pode-se referir o pequeno portal manuelino; o altar, simples, mas ainda assim revestido de azulejos hispano-árabes; o tecto da capela- mor, composto por uma abóbada artesonada e com mísulas manuelinas, e onde se vêem ainda um camaroeiro em pedra (emblema da rainha D. Leonor), além de três florões como fecho das nervuras; o tecto da nave, composto, por seu turno, por três nervuras na sua abóbada, fechadas por um escudo representando um pelicano (as armas de D. João n). pelo citado camaroeiro e pelas armas nacionais. A única nave existente mede 5 metros de comprimento por 3,85metros Porta da Capela de S. Lázaro de largura. No exterior da capela, duas pequenas janelas serviriam em S. Pedro de Sintra - segundo se pensa - para que os leprosos pudessem assistir à Euca- (Desenho de José Alfredo C. Azevedo) 14
  • 15. Capela de S. Lázaro (Desenho de José Alfredo C. Azevedo) ristia sem contactarem com as pessoas sãs que no seu interior estives- sem. Tal como sucedeu um pouco por todo o país e por toda a Europa, o decréscimo da lepra, verificado nos finais do século XV,acarretou a deca- dência - ou, pelo menos, a diminuição - das gafarias. A de Sintra parece não ter escapado à regra, já que temos notícia da gradual diminu- ição do número de internados (um apenas, no princípio do século XVI), e da correspondente diminuição dos rendimentos. Não se esqueça que as gafarias também viviam, em grande medida, de parte dos bens dos inter- nados, que à gafaria eram obrigatoriamente doados como contrapartida pelo internamento e respectivo apoio. No século XVI. m 1545,a Gafaria- e bem como o Hospital, a que pertencia - foi anexada à Misericórdia de Sintra, por determinação de D. João m. 4.5. A Igreja Paroquial de S. Pedro A igreja paroquial de S. Pedro (de Penaferrim ou, como por vezes surge nos mais antigos documentos, de Canaferrim) era uma das quatro que aos fregueses da vila davam amparo religioso. As outras eram as de S." Maria, S. Miguel e S. Martinho, que em devido tempo abordaremos. Todas elas - excepto a de S. Martinho, no coração da vila medieval - estavam situadas no que se chamava genericamente o "Arrcbcrlde", isto é, as áreas periféricas do burgo medievo. As origens desta igreja não são claramente conhecidas. Uma tese plausível é que a sua edificação viria substituir a capela existente no Castelo e que teria sido o mais antigo templo cristão aberto ao culto na zona. Seja como for, o certo é que a actual igreja de S. Pedro remonta pelo menos ao século XIV. De medieval, porém, não terá já muito, que as sucessivas reconstru- ções alteraram-lhe a traça original. Em meados do século XVI. oi o primi- f tivo templo reconstruído - ~u pelo menos ampliado - por D. Alvaro de Castro, filho do vice-rei da India, D. João de Castro, possivelmente na Igreja de S. Pedro - Ábside 15
  • 16. sequência do terramoto que assolou a vila em 1531;e em 1755.na sequên- cia de outro (e mais célebre) terramoto que muito danificou a vila. foi de novo reconstruída. Actualmente. podemos ainda ver de medieval. no templo. a ábside gótica amparada por quatro contrafortes e. já no interior. uma estátua de S. Pedro em pedra de Ançõ, situado numa peanha por cima do púlpito. Se bem que não seja completamente clara a medievalidade desta estátua. parece ser essa a hipótese mais provável. pelo menos de acordo com especialistas - como Félix Alves Pereira - que o estudaram. A pequena estátua. que mede 75 em de altura. representa S. Pedro sentado. com a mão direita ergui da à altura do tronco. e abençoando à latina - polegar. indicador e médio levantados - e vestido com uma casula ponteaguda que lhe desce até aos pés. A roupa é talar e fechada à frente. caindo em pregas; Félix Alves Pereira sugere a existência de uma pequena túnica sobreposta. talvez a indicação de uma dalmática. Um aspecto interes- sante é o facto do assento (sella) onde o pontífice repousa apresentar lavores ogivais que decoram os seus dois lados. 4.6. O Convento da Trindade Se da igreja paroquial de S. Pedro se seguir pela Calçada do Penalva e pela Rua da Trindade. chegaremos ao local onde se situa o Convento da Santíssima Trindade. Fundado em finais do século XIV. inícios do século xv. pertencia à Ordem dos Frades Trinitários. uma ordem mendicante que se dedicava. sobretudo. à remissão de cristãos cativos. tarefa que cum- priam fazendo peditórios pela vila e arredores. A notícia mais antiga que deste convento temos remonta a 1408.quando os clérigos da colegiada de S." Maria - que fica(va) fronteira - trazem a lume uma série de reclama- ções sobre pretensas irregularidades dos trinitários (erecção de altar. campanário e.sino indevidamente). Parece portanto claro que o convento é anterior àquela data. O edifício actual - fácil é supô-lo pelo simples estudo da sua fachada - nada tem já de medieval. sendo antes o fruto de várias altera- ções. Essa alteração da traça original atingiu igualmente. ao longo dos séculos. o seu interior. que de resto só na década de 1980começou a bene- ficiar de obras de restauro dignas desse nome por parte dos actuais pro- prietários. No primeiro andar do convento situa(va)m-se as celas dos frades tri- nos. hoje casa de habitação; no piso térreo é ainda visível a cozinha do convento. com o refeitório artesonado em arco abatido e um conjunto de azulejos. O claustro é pequeno. com quatro arcos dóricos e com uma gale- ria aberta com colunas em estilo similar. O convento é delimitado por uma cerca de extensão razoável. subindo Convento da Trindade em encosta para o castelo. 4.7. As Igrejas Paroquiais de s.ta Maria e de S. Miguel Um pouco adiante do convento da Trindade fica a igreja paroquial de S." Maria. Talvez a proximidade com os trinos propiciasse as contendas. como vimos a propósito das queixas de 1408.Em todo 9 caso. é este tem- plo aquele que - dentro das igrejas paroquiais da vila - melhor con- serva algumas das características medievais da sua fundação. Fundado no século XII. foi reformulado nos finais do século XIII segundo os canônes dominantes do gótico. São ainda visíveis na fachada - não obstante a reconstrução pombalina subsequente ao terramoto - o pórtico inscrito em gablete (remate triangular sobre as arquivoltas dos portais) e com três arcos ogivais que assentam em capitéis encimando estreitos colunelos. A geminação da porta com a construção do colunelo Igreja de s.- Maria - Portal com figu- central é já renacentista. No exterior. encontramos duas portas. também ras antropomórficas góticas. sendo uma delas decorada nos umbrais com curiosos elementos antropomórficos. como rostos vigiando os que passam. O interior. por seu turno. possui três naves divididas por tramos de arcaria ogival. sendo ainda visíveis alguns traços da decoração medieva que os séculos seguintes - sobretudo as alterações setecentistas - não 16
  • 17. conseguiram apagar, como os capitéis com seus motivos naturalistas ou a abóbada artesonada da capela-mor. Se bem que os aspectos da vivência religiosa deste tempo não façam propriamente parte dos objectivos deste roteiro, merece aqui menção especial a Confraria dos Fiéis de Deus da Igreja de S.la Maria, conside- rada como uma das principais (senão a principal) confrarias da Sintra medieva, e que chegou a ter, em 1346, 141 confrades (85 homens e 56 mulheres), número tanto mais significativo se se levar em conta que a vila nunca ultrapassou - se é que perto andou - o milhar de almas. E mais acima, na íngreme ladeira que conduz a uma das entradas para o Castelo, encontramos os vestígios - escassos estes - da outra igreja paroquial do núcleo urbano: a igreja paroquial de S. Miguel. Se de início formava, com as três restantes (recorde-se: S. Pedro, S." Maria, S. Martinho) o quarteto das igrejas paroquiais da vila, veio contudo a per- der importância com o tempo, até ser integrada, já mais tarde, na paró- quia de S.la Maria que perto lhe ficava (a extinção da paróquia ocorreu depois de 1755).Actualmente é apenas visível a ábside gótica quatrocen- tista, integrada num edifício de laivos neogóticos revivalistas e que é a sede dos Serviços Florestais. 4.8. A Capela Românica do Castelo Igreja de s.'a Maria: Porta Perto da entrada principal do castelo de Sintra, mas já dentro do troço muralhado, encontra-se uma pequena igreja românica que deve merecer, mesmo que por breve, a nossa atenção. O estado ruinoso em que se encontra não permite que possamos uma observação mais cuidada, mas conseguimos ocasionalmente vislumbrar algumas características que tor- nam este templo - há muito já abandonado - merecedor de atenção. A capela do castelo foi o primeiro templo cristão e a primeira sede de freguesia sintrense. Não é claro, porém, se a fundação desta capela data forçosamente da reconquista afonsina, se se está perante um antigo tem- plo islâmico reconvertido após aquela data - hipótese também muito divulgada e nada improvável-, ou até mesmo se a capela não foi, antes da Reconquista, uma igreja moçárabe. Decerto, apenas o facto de ter sido a primeira sede de freguesia e paróquia, como se disse. Esclareça-se que o burgo original se sedimentou em torno do castelo, espalhando-se lenta- mente para o ..:.-agora - bairro de S. Pedro, onde mais tarde se viria a erguer o templo que já vimos com tal orago. Mas por esse tempo, aquando da fundação da nova igreja, já há muito que o centro da vila se deslocara mais para baixo, para o vale onde outro bairro e outra freguesia e outra paróquia - S. Martinho - se tornara o eixo principal do núcleo urbano. A Portal Manuelino da Igreja de s.'a Maria igreja - e freguesia e paróquia - de S. Martinho tomava a vez a S. Pedro, tal como esta o havia já tomado à capela do castelo. Do abandono - a capela foi fechada ao culto no princípio do século XVI - cedo se passou à ruína que o caracteriza, ruína que chegou aos nos- sos dias sem se ter em conta que se está na presença do potencialmente melhor vestígio românico do concelho. A capela é de uma só nave e podem ainda ser vistos no interior da ábside e junto ao que era o altar-mor, um revestimento de pintura a fresco quatrocentista, com uma decoração geometrizante envolvendo a figura do padroeiro - S. Pedro. Este fresco, porém, encontra-se hoje totalmente e irremediavelmente danificado, sendo apenas visíveis alguns troços de pintura, já muito diluídos. Outros vestígios entretanto descobertos no local são visíveis no Museu Regional de Sintra. Refira-se entretanto que o S. Pedro gótico que tivemos possibilidade de observar na igreja paroquial de S. Pedro, terá vindo desta capela. Passagem de testemunho simbólica, decerto, mas também a constatação de uma evidência: os tempos áureos da pequena capela haviam cessado. 4.9. A Vila: Trajectos, Ruas e Lugares Após termos andado - de algum modo - em círculos pelos arrabal- des urbanos, tempo é que nos dispúnhamos a visitar e percorrer o núcleo urbano principal da vila de Sintra. Este núcleo é constituído pelo casario 17
  • 18. Vila: Poço do Porto e Pedras Ajorrádicas envolvente do Paço da vila e igreja paroquial de S. Mortinho, estendendo- -se numa área que rondaria grosso modo os 17000mZ• Area pouco extensa, caracterizando uma vila medieval de dimensões algo modestas, sobre- tudo se se levar em conta que o paço e anexos ocupariam entre um quarto a um terço desse espaço. Mesmo assim esta área não muito impressio- nante era suficiente para albergar os cerca de duzentos fogos e os menos de mil habitantes que a vila possuiu durante os séculos da Idade Média portuguesa. Ressalve-se que tempos houve - sobretudo a seguir à peste negra de 1348- em que sobrava área e fogos e faltavam habitantes. Esta área estendia-se de acordo com um eixo viário que atravessava a vila aproximadamente no sentido este-oeste. Para leste iam os cami- nhos para Lisboa e Cascais e que desembocavam no Largo do Ramalhão, como vimos. Para oeste seguia o caminho que a Colares - ao tempo reguengo - conduzia. Ponto central desta via, e ponto central desta vila era a praça da vila. E daí que o observador deverá começar o seu trajecto urbano, já que as principais ruas medievais - e modernas, pois a regra da per- manência do plano parece ter-se mantido com mais ou menos coerên- cia - daí partiam e para aí convergiam. No centro da vila teremos junto a nós o Paço Real. lugar habitual da permanência dos monarcas e da família real. sobretudo após D. João I, quando o paço começou a fazer parte de forma decisiva dos percursos áulicos da corte. Murado durante toda a Idade Média - só no início da I República foi a muralha derribada -, ele representava, mesmo quando vazio dos seus detento- res, o poder central que tudo dominava e a que a vila se submetia como serventuária de Lisboa que era. Iniciemos o trajecto e percorramos as ruas mais concorridas, que ao paço retornaremos em breve para uma análise mais detalhada. Situado no centro da vila - na Praça, como ao tempo se chamava - o observador tem junto a si o recinto então conhecido pelo Chão da Oliva, terreiro imediatamente fronteiro à entrada do paço. Mas deixando o cen- tro, observe-se melhor o primeiro percurso, aquele que conduz à própria vila todos quantos vêm de Lisboa, de Cascais, e de grande parte dos arra- baldes urbanos de S. Pedro, S.laMaria e S. Miguel. Desloquemo-nos então para leste. Perto está a então chamada Rua da Ferraria, que permitia também o acesso à vila mas por outro ponto menos concorrido. A maioria dos que vinham de Lisboa, Cascais e arrabaldes entrava na vila por um outro caminho que mais acima se cindia da Rua da Ferraria, e que entrava no casario urbano mais junto ao Hospital. Descendo por essa rua e entrando na vila, veria o observador logo à sua direita o local chamado Pedras Ajorradiças, assim designado pelo facto de a água - frequente na serra e oriunda das várias nascentes naturais - jorrar abundantemente de entre as pedras e rochas. Hoje existe aí um fontanário, como que para não desmentir essa realidade lon- gínqua. Defronte seria o sítio provável da Casa da Vereação, num lugar 18
  • 19. Vila: Praça e Chão da Oliva até há pouco ocupado pelos Bombeiros Voluntários. A não existência de provas documentais sobre a localização da Casa da Vereação para a Idade Média leva-nos a ter sérias reservas sobre esta possibilidade. Apenas o facto de sabermos ser aí o antigo edifício da Câmara, cuja instalação se perde na memória, nos leva a concluir da possibilidade de ser esse o local da primitiva Casa da Vereação. Perto - e mais certo - ficava o Poço do Romão. Este triângulo - Pedras Ajorradiças, Poço do Romão, Casa da Vereação (?) ~ constituíam a entrada para o casario, para o centro urbano. Entrando na vila, o visitante era recebido pelo edifício do Hospital. O local onde o primitivo edifício se instalava é o mesmo, se bem que o prédio - fácil é supô-lo - seja já outro. No antigo hospital, a fachada principal media cerca de 12,10m, a parede posterior de cerca de 12,65m, a parede do lado norte (lado esquerdo de quem entre no edifício) media cerca de 9,7 m e a parede do lado sul (lado direito de quem entra) media cerca de 9,16 m. Estas medidas - já de si aproximadas porque resultam da conversão de "passos" medievais para os actuais metros - faziam com que a área ocu- pada pelo hospital medievo rondasse aproximadamente os 115 m", área considerável se se levar em conta a habitual exiguidade dos hospitais do tempo, a maioria dos quais não comportava mais do quatro/cinco leitos. Recorde-se que o conceito de hospital moderno, de grande área e de múlti- plos serviços assistenciais, resultante da acção do poder central e não tanto da iniciativa de particulares imbuídos do espírito de caridade cristã, só data de finais do século XV, com a fundação, em Lisboa, do Hospital Real de Todos os Santos, levada a cabo por D. João 11. Este hospital assumia-se como o centro da estrutura assistencial da Sintra medieval. A ele pertencia a gafaria de S. Pedro, com sua capela de S. Lázaro e cemitério anexo, a ele pertenciam vários prédios rústicos e urbanos, cujo arrendamento constituía a principal fonte de receitas da instituição (era o Hospital um dos maiores proprietários do concelho), a ele pertencia ainda o cemitério do próprio hospital, situado nos terrenos anexos. Dirigido por um provedor e escrivão e ainda coadjuvados por um "medidor de pão" (espécie de dispenseiro), e administrado pela Câmara sob a alçada última das Rainhas (donatárias da vila), o hospital assumia ainda a tarefa de ilustrar os "moços da vila", sustentando um mestre de gramática, se bem que não tenhamos a certeza de ter tal intento passado das intenções declaradas em alguns documentos coevos. No pequeno largo fronteiro ao Hospital e simultaneamente perto do Paço e da praça, ficava o pelourinho da vila. Infelizmente, o pelourinho actual que aí pode ser observado não corresponde ao primitivo, que foi destruído em 1854por ordem camarária (sob a extravagante alegação de ser contrário à "decência e asseio público") e mais tarde reconstruído, ao que parece segundo gravuras românticas de fidelidade contestável. Assi- nale-se todavia que se crê que o pelourinho que em 1854 foi derribado seria já o manuelino, erguido aquando da renovação dos forais, neste caso em 1514. 19
  • 20. De novo está o obervador no centro da vila. O percurso, que agora se fará, dirigir-se-á para outro lado, para sul. seguindo pelas ruas que levam até artérias consideravelmente movimentadas da vila. Talvez mesmo as mais movimentadas. Dirigir-se-á então o observador para a actual Rua das Padarias. Logo à sua entrada verá, do lado direito, à esquina, o lugar onde o mercado medieval - e posterior - se fazia, sob um alpendre. Subindo, não serão uma dezena de passos dados sem observar, à esquerda, uma beco onde se situava a judiaria sintrense. Aí se recolhiam obrigatoriamente os seguidores da Lei de Moisés - e só esses - num beco que por norma fechava as portas pelas Avé-Marias (ou Vésperas, sensivelmente pelas 18 horas). impedindo os seus moradores de sair, Vila Hospital e Pelourinho salvo motivo especial. Medindo não mais que oitenta metros de compri- mento, não deveria a judiaria ultrapassar a vintena de casas, o que signi- ficaria (de acordo com o que a demografia histórica projecta para este período) cerca de oitenta pessoas - números em todo o caso algo especu- lativos e que talvez até peque por excesso, confessemo-lo. Esta judiaria sintrense, a exemplo do que sucedia por todo o reino, tinha a sua própria gestão e funcionários, de que são exemplo o seu pró- prio tabelião, porteiro (funcionário com tarefas judiciais auxiliares) e rabi. A sinagoga era o ponto central desta pequena comunidade, e situava-se no terceiro prédio após transpormos os portais da judiaria, já que de acordo com uma carta de aforamento de dois prédios urbanos datada de 1407,afirma-se que os dois prédios aforados se situam entre a sinagoga e a entrada da judiaria. Infelizmente, não sabemos em que lado da rua. Na judiaria, os judeus sintrenses exerciam as suas actividades, sobretudo artes e ofícios liberais bem como o tradicional comércio, que tinham por uso exercer - entre outros pontos - nos portais do seu bairro. Também as habituais actividades monetárias - usura ou arrendamento de impos- tos - eram por eles praticadas, o que de resto potenciava algumas alter- cações com os cristãos. Ainda assim, e tirando as queixas habituais e as desinteligências pontuais e pessoais, não há notícia de grandes distúr- bios entre as duas comunidades. Tal como no resto do país, o assalto a judiarias ou o ataque directo a judeus - ocasionalmente verificado em cidades maiores - não era regra. Altercações pontuais, e que num ou noutro caso isolado chegariam a vias de facto, mais não são que ques- tiúnculas pessoais, comuns em qualquer comunidade humana. Quanto à própria localização da judiaria, ela não era tão acidental como se poderia pensar num primeiro instante. A norma impunha que as sinagogas estivessem perto de igrejas, como se o regular tanger dos sinos, a proximidade da eucaristia ou a presença vizinha das paredes cristãs pudessem de algum modo impelir os seguidores da "Lei Velha" para as mensagens do Nazareno. Ora, a igreja de S. Martinho era (e é) ali a dois passos. Saindo da judiaria e subindo um pouco mais a actual Rua das Pada- rias, desembocará o observador na chamada Fonte da Pipa, um dos prin- cipais locais de abastecimento de água aos habitantes da vila medieva e posterior. Claro que fácil é notar que a actual fonte nada tem de medie- val. já que enquadra num arranjo claramente barroco. Ainda assim, é sabido que esta fonte existia já, pelo menos, desde meados do século XIV, pois dela há notícia com esse mesmo nome: "Fonte da Pipa". Tal parece sugerir que já então poderia ter o seu formato de pequena pipa. Seja como for, era um dos locais que - como se disse - melhor abastecia os sintrenses, aproveitando uma das muitas nascentes naturais que da serra trazem água. Descendo mais uma vez ao centro da vila, iniciará agora o observador outro percurso que o levará, desta vez, às ruelas que para norte se esten- dem. Em primeiro lugar, passará pela Rua do Forno, como actualmente é chamada, e que se situa debaixo do patamar que sustenta a esplanada do Café Paris. A primitiva ruela medieval não era, ao contrário da actual. coberta, fenómeno que só ocorreu já neste século. Estamos comprovada- mente diante de uma das mais antigas ruas de Sintra devidamente des- pistadas. Na documentação medieval. as primeiras referências surgem sob a designação de Rua do Açougue, mais tarde denominada Rua do Forno do Açougue, e mais tarde enfim como Huc do Forno. Esta etimolo- gia permite-nos uma pequena especulação. E sabido que nas urbes de assentamento e influência hispano-muçulmana, era comum existirem as ruas do "zoco" (mercado), situadas na proximidade dos mercados e onde geralmente se procedia ao abate das reses consoante as determinações religiosas (não se olvide que, como povo semita, também os árabes têm restrições no tocante ao consumo de certos tipos de carne). Ora, a palavra 20
  • 21. árabe "zoco" (cs-sôq) deu em português "açougue", o que nos pode levar a supor a filiação entre a rua do zoco árabe e a actual Rua do Forno, tam- bém ela situada perto do suposto mercado medieval que fronteiro lhe ficava. Sem dúvida uma suposição que comporta os seus riscos e que per- filhamos com prudência e - por que não confessá-lo? - com hesitações. Mas é uma hipótese que fica em aberto. A Rua do Forno reserva-nos mais algumas considerações. De acordo com o historiador sintrense Francisco Costa parece compro- var-se a existência de túneis que uniriam a antiga alcáçova dos "wc lis" mouros com as casas que sobre a Rua do Forno se situam, e que foram doadas, aquando da Reconquista, à Ordem do Templo. Tais túneis, de acordo com informações entretanto recolhidas, ainda existiriam, e seriam parcialmente vislumbráveis através de peque- nas aberturas existentes na parede do lado direito (de quem desce) da Rua do Forno. Prosseguindo pela Rua do Forno deverá o observador sair perto de uma outra rua também referenciada profusamente para a medie- validade e que ainda hoje mantém a designação: a Rua da Pêndoa. Nos dicionários etimológicos, o termo "pêridocr" vem sie "peridoor" ou "cpendoor". que designa "declive" ou "inclinação". E lícito supor tal filiação etimológica devido à evidente inclinação da rua. Note-se que não possuímos referências claras, na documentação coeva, a outras ruelas e becos a esta circundantes. Porém, não será abusivo conside- rar que várias ruas e becos que perto se situam (Beco do Briamante, por exemplo) respeitam o traçado medieval e eventualmente a sua Vila: Judiaria designação. Mas nada de mais concreto podemos referir a esse res- peito. Retornando de novo ao largo da vila, mais uma vez como ponto de referência tomado, poderá o observador iniciar outra deambulação por mais algumas ruas sintrenses. Poderá agora caminhar em direcção ao Hospital e descer pela rua fronteira. Chegará a um lugar conhecido pelo Rio do Porto, designação também medieval e onde se iniciava na altura o trajecto que a Cheleiros (então reguengo), Mafra e Ericeira conduzia. O caminho actual só séculos mais tarde foi aberto, e algumas zonas dos arredores então, como hoje, conhecidas por Lourel ou Portela (que na eti- mologia mais não era que "lugar onde situam as portas" de alguma vila) seriam apenas áreas de escassas casas e poucos moradores, não tendo a função de locais de passagem que hoje ainda conservam. Também o Rio do Porto servia comummente para o abastecimento de água aos habitan- tes da Sintra medieval. Do largo da vila, para onde de novo voltamos, parte-se para o der- radeiro trajecto pela vila medieva. Dirigir-se-á o observador para oeste, como se para Colares fosse. Defronte do antigo mercado verá aquele que é hoje o edifício dos Correios. Nos finais da Idade Média talvez comportasse - em torre junta - o relógio de torre que a vila inaugurou em meados da década de 1460. Tratava-se de vulgar reló- gio de pêndulos, bem ao estilo medieval e sem ponteiros. Era mais sinal de prestígio urbano próprio de uma vila de corte que desejo de regularização de um tempo "exacto" e mecânico, tempo esse ainda desconhecido da vivência medieva, que se regia mais pelo tempo cíclico da natureza que pelo tempo linear dos relojoeiros. Dois apon- tamentos, entretanto: a localização do relógio medieval é duvidosa, sendo este um local possível entre outros que haver possa; o actual relógio é setecentista, nada tendo a ver com o primitivo. O edifício dos actuais correios comportou, até à pouco tempo {leia-se, até ao século passado), a prisão da vila. Ignoramos se seria aí a prisão medieval. Sabemos, isso sim, que existiria uma prisão na vila, devido a referências fugazes e esparsas que na documentação surgem, mas é impossível, no actual estado dos nossos conhecimen- tos, afirmar o local exacto. De novo, a filiação entre esta cadeia e a medieval mais não é que uma hipótese. Mais adiante, fica a igreja paroquial de S. Martinho de Sintra. Das suas características medievais pouco, muito pouco, há já a des- cobrir. Remodelações posteriores, sobretudo a sofrida após o terra- moto de 1755, alteraram-lhe a traça e as características. Apenas a estrutura ainda gótica da ábside, no seu exterior visível com panos cegos de contrafortes, se manteve após todos estes séculos. Mais interessante, contudo, é o arcossólio (túmulo disposto na espessura de uma parede) de uma tal Margarida Fernandes datado de 1307, e que pode ser observado na parede exterior do lado sul {lado que dá 21
  • 22. para o antigo mercado) da igreja. O epitáfio está escrito em letras ini- ciais maiúsculas e contém o seguinte: "AQUI: JAZ: MARGARIDA: FERNANDI/Z : FILHA: D : FNÃ : MEEDIZ: D : SIT : E : MOLHR:Q/ FOE: D : W : AFÕSO : : ESCUDIRO : Q: PASOU: UES/PA: D: SÃ: MI: D: SETEBRO: TRES : DIAS: POR :/ ÃDAR : DAQL : SElA: ASA: ALMA: ALVGN DA : NOREINO : CELESTIAL: E : M : CCC:XLV: Feita a respectiva leitura epigráfica, temos a seguinte inscrição actua- lizada: "Aqui jaz Margarida Fernandes, filha de Fernão Mendes de Sintra e mulher que foi de Rodrigo Afonso escudeiro, que passou véspera de l. S. Miguel de Setembro, três dias por andar daquele, seja sua alma alojada no reino celestial, Era milésima tricentésima quadragésima quinta." Genericamente, tal significa que a dita Margarida Fernandes faleceu '" ~ ("passou") nas vésperas de S. Miguel de Setembro (fim desse mês). quando para tal data faltavam três dias ("três dias por andar daquele" Vila: Torre do Relógio dia), na era de César de 1345,ou seja, no ano de Cristo de 1307. Mais adiante, deixando esta memória de trezentos, seguia o já refe- rido caminho para Seteais e Colares. Por aí se saía da vila. Este deambu- lar pela vila não dispensa de forma alguma uma visita ao Museu Regional de Sintra onde vários testemunhos medievais na vila encontra- dos estão visíveis, nomeadamente fotografias de silos (e respectivo espó- lio) descobertos na Rua das Padarias e na Rua Gil Vicente. 4.10. O Paço Real de Sintra Não foi por acaso que deixámos para alíena própria o paço real da vila, em vez de o integrarmos nestas deambulações pela malha urbana da vila. De facto, o paço domina a vila, quer pela área ocupada quer pelo peso de uma presença cortesã sempre marcante a partir de D. João r. O paço atrqvessa toda a História de Sintra, sugerindo não um mas vários roteiros. E agora a vez de o percorrermos com olhos mais para a medieva- lidade virados. Uma vez esclarecida anteriormente a origem do paço, convém salien- tar que ele permanece numa relativa penumbra até ao princípio da dinas- tia de Avis, como o atestam quer o facto de estar necessitado de obras com D. Dinis que, para tanto, se serviu dos seus mouros forros de Colares; quer Paço Real de Sintra o privilégio que alguns monarcas - como D. Pedro - visivelmente dão ao paço de Belas. Mais tarde, aquando da crise de 1383-85,o mesmo paço irá servir ao mestre para cativar nobres influentes para a sua causa, como sucedeu - relembre-se - com o conde Henrique Manuel de Vilhena, que recebeu o paço como doação de um Mestre de Avis em busca de apoios. Registe-se, já agora, como curiosidade, que tal não impediu o conde Henri- que Manuel de se declarar - e, com ele, a vila - por Castela. Este conjunto de factos - estado de dano, subalternização perante outros palácios, doação a terceiros - sugerem claramente que o tempo do paço não tinha ainda chegado. Chegaria, após o findar da crise do Interregno e o afirmar da dinastia de Avis. Na verdade, com D. João r. irão começar as obras de beneficiação (as primeiras de muitas) que a velha alcáçova sofreu. Supostamente sob a orientação do mestre João Garcia de Toledo, artista mudejar de renome para a época, o velho paço veria a ampliação do seu corpo central num estilo gótico-islâmico. Também as suas características chaminés cónicas datarão dessa altura, filiando o paço em alguma arquitectura senhorial transpirenaica (a abadia de Fon- tainebleau ou a arquitectura dos Plantageneta). Obras de vulto, portanto. Obras de vulto como o atesta o facto de, em 1423,o empreiteiro Diego Gil gastar anualmente para cima de 7000 libras nas suas reparações, que incluem sobretudo canalizações, portas, janelas e chafarizes. Tanto quanto as fontes nos revelam, ter-se-ão realizado obras de vulto no paço sintrense em 1423, 1434, 1459 e 1460, para já não falar nas obras realizadas na primeira década do século XVI, o que sai já da nossa medie- 22
  • 23. vcl alçada. Por outras palavras, parece claro uma continuidade de obras que, sem dúvida, seria para os naturais largo motivo de incómodos. Não é em vão que o referimos: os documentos afirmam-no taxativamente. Os monarcas, quando, em 1459 e 1460,concedem privilégios especiais aos sintrenses (1459- isenção dos "pedidos especiais régios" para os sintren- ses cristãos com bens de raiz; 1460- extinção da coudelaria de Sintrc), alegam que tal é a recompensa pelos muitos trabalhos e grandes cansei- ras que as obras traziam à vila e seus habitantes. Assim ampliado, constantemente melhorado num crescendo de obras que só pararão com D. Manuel, o paço passará então a ser o palco de alguns factos importantes da História nacional (planeamento da jornada de Ceuta, a visita da embaixada borgonhesa que, em 1429, tratou do casamento de D. Isabel com Filipe o Bom e na qual vinha Van Eyck, nasci- mento e morte de Afonso v, aclamação de D. João II, para já não falar das constantes estadias régias e cortesãs onde pontificavam figuras como Nuno Gonçalves, Bernardim Ribeiro, Gil Vicente e outros). Modificção qualitativa, sem dúvida. Mas quantitativa também. O antigo paço surge agora remodelado, como o sugere o "Livros dos Conse- lhos dei-rei D. Duarte" ("Livro da Ccrtuxo"), que nos fornece o seguinte rol de aposentos: cerca de 27 aposentos dedicados a quartos, câmaras, ante- câmaras e salas com funções várias (escrivães, tesouraria e secretaria, etc.), com uma área total de aproximadamente 1250m2; 3 eirados com uma área aproximada de 140 m2; 6 espaços reservados a funções religiosas numa área aproximada de 120 m; uma salinha reservada a funções de higiene ("uma casinha de mijar"), com a exígua área de 2,5 m2• O total ultrapassava os 1500 m2• Note-se que a esta área não estão somados os jardins e o espaço dedicado a serviços de apoio (estábulos, cavalariças, cozinhas, etc.), o que dá conta da grandeza deste paço que, sozinho, era parte substancial de uma vila que em seu torno parecia começar a orien- tar-se. Desta época de reconstrução joanina pode sobretudo ser observado o corpo central do paço, onde ainda se observa do exterior as cinco janelas geminadas em estilo mourisco e os quatro arcos ogivais que encimam a larga escadaria da entrada. 4.11. De Seteais a Colares Saindo por fim do paço, poderá o observador sair também da vila. Agora já não em direcção aos arrabaldes urbanos - em direcção ao Ramalhão e aos caminhos que para Lisboa e Cascais se dirigiam -, mas em direcção àquela que era a segunda povoação mais importante da região na medievalidade: Colares. Para tal, deve deslocar-se até às ime- diações da igreja de S. Martinho - onde ainda há pouco esteve - e pros- seguir pela Estrada Nova da Rainha, na Idade Média a principal via que a Colares levava. Ao longo do trajecto poderão ser observados alguns traços da pre- sença e vivência medievais, logo começando por Seteais. Na Idade Média, o campo de Seteais era um vasto rossio onde os sintrenses podiam fazer as suas "revistas" militarizantes e "alardos" - como os que efectuava periodicamente o adaíl (chefe da cavalaria-vilã do lugar) -, os seus exer- cícios de soldadesca popular - caso dos besteiros - ou, mais pacifica- mente, podiam fazer de Seteais o seu "passeio público" avant la lettre. Na época, a área de Seteais era ocupada por ginjais e centeio, daí aliás lhe provindo o nome (Centeias-Seteais). As várias lendas sobre o nome de Seteais, com mouras encantadas e suspiros em série, por poéticas que sejam, têm de ceder o passo à realidade dos factos. Logo após Seteais avançava de novo o caminho, pouco habitado de casas e de gentes, pois só no princípio da centúria de quinhentos se vão começar a erguer as áulicas quintas de que Penha Verde é o mais subs- tancial exemplo. Até Colares, era (e é ainda) um passeio marcado pela exuberância da vegetação e do arvoredo, quebrado apenas por pequenos povoados (como a Eugaria) e pelas primeiras casas colarejas que ao longe se divisam. Colares não tem infelizmente substanciais monumen- tos medievais dignos de nota. O pelourinho é quinhentista, a igreja paro- quial passa também ao lado da medieval idade, e de entre o casario não se encontram vestígios dignos de menção. Recorde-se, de resto, que a vila de Colares não se encontrava abrangi da pela jurisdição dos juízes e ve- 23
  • 24. readores sintrenses, já que, como território reguengo que era, estava sob a directa alçada doís) reils). Não se creia, todavia, que a tal ausência de vestígios assinaláveis para a Idade Média local corresponde um apagamento da vila na época. Se bem que mais pequena que Sintra (Colares fornecia dez besteiros do conto, contra os vinte de Sintra, o que desde logo sugere a correlação entre ornbus), a vila parece ter atingido alguma projecção na vida da região, por força sobretudo dos seus terrenos circundantes de boa aptidão agrícola, vinícola e frutícola. A fruta da região fazia já o espanto dos muçulmanos, que dirão, pela boca de AI-Himiari: "Estes frutos (as maçãs) atingem tal espessura, que alguns chegam a ter quatro palmos de circunferência. Acontece o mesmo com as pêras." E se bem que duvidemos de tal prodigalidade, não deixa por isso de ser menos interessante o testemunho. As férteis terras da Várzea de Cola- res (a designação atraiçoa-lhe a fertilidade) situavam-se próximo, trans- formando esta zona na mais fértil de todo o concelho. A presença muçulmana na região colareja parece, de resto, ter sido de algum peso. Dados esparsos na documentação sugerem que talvez ela fosse mesmo mais forte aqui do que na própria vila de Sintra. Registe-se desde já que não conhecemos mouraria em Sintra ou em Colares. Tal pode- ria ser sinal de que a comunidade moura se encontrava mais dispersa que a judaica, não obrigando por tal à instalação de um bairro exclusivo para esta minoria étnico-religiosa, já que, como se sabe, a edificação de tais bairros só era obrigatória se numa localidade fosse ultrapassado um certo limiar mínimo de mouros e/ou judeus. Dois testemunhos parecem confirmar a ideia segundo a qual a minoria muçulmana seria de alguma relevância na região de Colares. O primeiro remonta ao reinado de Dinis quando este monarca estabelece um protocolo com os "meus mouros forros de Colares", que vinculava estes à manutenção do "palácio real da Oliva" -leia-se "o paço real da vila sito no Chão da Olivc" - e à reparação das almedinas velhas do castelo e suas torres. O facto de tal acordo ter sido efectuado com os mouros colarejos e não com os mouros sintrenses, pode sugerir que eles só existissem em número significativo para efectuar tais tarefas em Cola- res e arredores. Tal ideia parece ser confirmada pelo segundo testemunho, que dá conta do facto de que o cemitério muçulmano (o almocavar) se si- tuava em Colares, tendo sido apenas desactivado após a expulsão das minorias étnico-religiosas efectuada nos finais do século xv. Segundo Pedro de Azevedo ("Os reguengos da estremadura"), Colares seria "terra de mouros". Os factos não parecem desmenti-lo. 4.12. Odrinhas Já o havíamos referido antes; repetimo-lo agora: Odrinhas e o respec- tivo Museu são um manancial de testemunhos que o tempo permitirá que se alarguem ainda mais, à medida que novos trabalhos forem revelando mais espólio e maiores certezas. Sobretudo romanos, mas também pré- -históricos e medievais. Da Idade Média salientamos um interessante túmulo situado no exterior da capela de S. Miguel. na parede do lado sul e a esta adossado, túmulo que pertencia a um tal Fernão Reganha. O túmulo situa-se dentro de um arcossólio e está encimado por uma lápide onde é visível uma inscrição com caracteres góticos dizendo: "SEPULTURADE FERNÃ REGANHAO UELHO E DE SEUS ERDEYROS FERNÃ DE ANS SEU BYSNETO E PESADÔ DA CIDADE DE LXBOA A MÃDOUFAZ" A leitura actualizada permite ler: "Sepultura de Fernão Reganha o Velho e de seus herdeiros. Fernão anes, seu bisneto. e pesador da cidade de Lisboa. a mandou fazer" (Pesa- dor = almotacé). Juntamente com o chamado "Dos dois irmãos", este túmulo é dos mais bem conservados no concelho referentes à medievalidade, e merece que sobre ele nos debrucemos com particular atenção ao visitar Odrinhas. 24