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Confluências de Rios
Apontamentos sobre um primeiro ano no Piá
Diretamente das margens do ensino regular para o reino
encantado do Piá!
No meuprimeiro diano CEU Parque Bristol, pergunteiparaa artistaeducadora(AE) companheira
de CEU, Andrea (no programa há algum tempo) como nomeávamos as atividades no Piá: aulas,
oficinas, enfim... E ela respondeu: Chamamos de encontro.
Encontro: mal sabia eu a dimensão desta palavra no Piá e como ela me modificaria.
“Mas
Quem é que pode parar os
caminhos?
E os rios cantando e correndo?”
Um vôo de andorinha - Mário
Quintana
Ao procurarpelo significado dapalavra encontro, pudeobservar que elapossuiváriasdefinições,
sendo utilizada em áreas diversas:
1 Ato de encontrar ou encontrar-se. 2Choque, embate, encontrão, colisão. 3 Briga, recontro, duelo. 4 Esp Jogo entre
duas equipes. 5 Reunião de pessoas ou coisas. 6 Ponto em que uma pessoa se encontra com outra. 7 Junção de
pessoas ou coisas que se dirigem para o mesmo ponto ou se movem em sentido oposto. 8 Confluência de
rios. 9Obstáculo, contrariedade. 10 Ornit Pássaro canoro da família dos Icterídeos (Icterus cayanensis pyrropterus)
(Dicionário Michaelis)
É interessante como vários deles se aplicam a minha
experiência no Piá. Entretanto, o que mais me chamou a
atenção pormelhordefinir nossosencontros, foi o termo
confluência de rios. Obviamente, está sendo utilizado
por mim de forma não literal, mas expressa exatamente
o que experienciei neste ano com as turmas do CEU
Parque Bristol.
Todas as terças, quartas e quintas-feiras, grupos
formados por AEs e crianças, se encontravam para criar,
viver novas experiências estéticas, brincar, fluir junto...
Águas de diferentes rios que se encontravam trazendo
seus diferentes elementos. Fluxos, movimentos,
caminhos percorridos e a percorrer... Rios que se
encontram e se misturam por momentos, criando
infinitas possibilidades de cores, composições, velocidades, intensidades...
Permeados pela horizontalidade e pelo acolhimento, cada encontro era construido por AEs e
criançasconjuntamente. Nosso norte eraa criação a partir doselementosgeradorestrazidospor
todos, como o que sentíamos naquele momento, nossas necessidades, conflitos, histórias e as
relações que desenvolvíamos com os diversos materiais, com o espaço e com outros integrantes
do encontro.
Logo no início, deparei-me comumanecessidade de estar inteirae totalmente presente em cada
encontro para poder sentir e perceber as crianças e também criar junto com elas. Era necessário
a escuta e o olhar atento a fim de partir doselementosgerados naquele momento, o que muitas
vezes se dá de maneira muito sutil. Afirma Rosseto:
“Para navegarporum mar de possibilidades,se deleitarcomaviageme usufruir as descobertas
que ela pode proporcionar, é preciso ter olhos e ouvidos apurados. Saber ler tanto as estrelas
quanto quaisquer instrumentos de que se puder dispor, para não perder o sentido de direção;
mas poder observar os detalhes, as mudanças de paisagem, seus sons e silêncios, dando tempo
e lugar às explorações, transformações e devires”. (Rosseto, 2011)
Como educadora musical, minha trajetória se constituiu em escolas de educação infantil, escolas
de música e aulas particulares. Mais recentemente, também trabalhei em escolas municipais,
ministrando a disciplina Arte.
Como professora do ensino regular, o meu ritmo era muito diferente: eu levava/propunha as
atividades para as crianças e tinha muito pouco tempo para escutá-las, havia sempre muita
demanda. Emnossosencontros do Piá, percebique emminhaspráticasanteriores eugeralmente
participava sem vivenciar de fato os processos artísticos, preocupando-me mais em manter o
foco das crianças do que com a vivência artística em si. No Piá comecei a criar junto, e a me
compenetrar no que fazia, vivenciando, de fato, arte com as crianças.
E assim me depareicomapossibilidade de umeducadorque tambémsente, criajunto e expressa
os sentimentos. Acolhe e é acolhido pelo grupo.
Por mais que eu acreditasse que precisamos muito de um espaço para deixar emergir de nós
todo o repertório que trazemos, expressando a forma como o ressignificamos, muitas vezes foi
difícil entrar no tempo das crianças e aceitar o que elas tinham para trazer. O processo de escuta
e construção coletivanão é algo simplesporser permeado por conflitos, dúvidase inconstâncias.
Além disso, foi, e ainda é, um exercício relativamente novo para mim uma vez que não fui
“educada” desta maneira. Mas eu respirava fundo e tentava estar com eles, exercitando uma
escuta ativa e aberta afim de construir um diálogo. Como afirma Rossetto:
“(...) tenho observado que os cursos demandam a todo momento ser corrigidos, exigindo
decisões imediatas – pois há os ventos, as marés e os humores dos tripulantes; e, seja por acaso
ou por velada intenção, ou pelas mudanças de velocidade, provocadas tanto pelas calmarias
como pelas tempestades, acontecem os desvios. E é por eles que muitas vezes podemos
vislumbrar tesouros e novas terras a serem descobertas”(Rossetto, 2011)
Estes “desvios que nos conduzem a tesouros e novas terras” possuemum espaço especial no
Piá. Nós, artistas educadoras, procurávamos estar sempre atentas para podermos aproveitar e
criar a partir do que era gerado no momento. Nos encontros, mesmo quando levávamos algum
tema, material ou proposta, não sabíamos qual seria o seu “final” ou o(s) caminho(s) exato(s).
As possibilidades eram infinitas e estavam atreladas àquele momento, àquelas pessoas. Na
maioria das vezes, desembocávamos em novas proposições incríveis, que tampouco havíamos
imaginado.
Da mesma forma que aprendi a dar mais espaço para o que as crianças traziam e tinham a dizer,
também passei a colocar minhas vontades, sensações e sentimentos no trabalho de uma forma
mais efetiva, uma vez que eu era parte destes encontros e, portanto, também atuava
construindo-os. O foco não estava somente em mim e minhas parceiras (AEs) nem somente nas
crianças, mas nas trocas geradas entre nós.
Atualmente, é comum que as crianças participem de várias atividades, oficinas e cursos extra
curriculares, o que acredito ser muitas vezes interessante e potente. Estes espaços de
“aprendizagem”, incluindo a escola, são geralmente voltados para a “aquisição” de técnicas
e conteúdos. Entretanto, espaços para criação e expressão, exercícios de diálogo, autonomia e
escuta, como o Piá, são encontrados em menor número. Aí está, em meu entendimento, a maior
potência dos nossos encontros. Neles criamos um espaço no qual as crianças se sentem
respeitadas e acolhidas para expressarem o que sentem, da maneira como são. Com isso elas
desenvolvem confiança nas AEs e percebem que as contruções são baseadas no diálogo,
respeitando o que temos a dizer da mesma forma que nós respeitamos o que elas trazem.
Mesmo sendo um programa geralmente muito diferente das experiências de cursos extra
curriculares dos quais elas participam, elas logo compreendem o que é o Piá. Esta compreensão
se expressa na forma de agirem: propõe atividades/brincadeiras, contam suas histórias, falam o
que sentem, se apropriamdo espaço dasformasmais diversase inusitadas, desenhamenquanto
cantam, o que rapidamente pode se transformar emum movimento, umahistória, um jogo, uma
outra brincadeira... Também podemos perceber essa “compreensão” observando algumas
falas das próprias crianças, quando por exemplo, algum novo integrante chega : “ah, mais isso
não funciona no Piá”, ou, “no Piá fazemos isto ou aquilo”...
O encontro entre artistas educadores de diferentes linguagens é mais um elemento catalisador
de possibilidades estéticas e criativas. Os olhares diversos das AEs traziam não apenas
singularidades de cada pessoa mas também de uma área de conhecimento artístico, o que
ampliou a maneira de me relacionar com a criação, a brincadeira e o próprio fazer artísitico. O
trabalho em dupla é desafiador; muitas vezes os AEs não estão em sintonia ou seguem linhas de
pensamento muito diferentes. Apesar disso, possibilita a troca de observaçõessobre um mesmo
elemento ou fato observado e uma variedade de intervenções poéticas, potencializando o
encontro.
Acredito que nossosencontros gerarammuitasexperiênciassignificativas,alegrias, inseguranças,
decepções, certezas, arte, composições, afeto, carinho, confiança, muitas perguntas e desafios.
O maior destes, para mim, foi me permitir estar presente no encontro, lançando-me de fato a
suas diversas possibilidades e caminhos, encontros e desencontros... Enfrentar meus medos,
questionar minhas certezas, reafirmar e deixar fluir minha arte... O grande desafio e beleza do
Piá, para mim, foi o renascimento como artista educadora:
Eu sou meu maior experimento.
O experimento do eu-corpo que se movimenta, brinca,
para, amolece, acolhe, repele, habita e sente.
O eu-som: som que produzo quando quero e quando não quero,
som do outro, som que escuto e que escapa, som feito junto.
O eu-relação: eu-crianças, eu-Aes, nós e crianças.
O eu que oberserva às vezes distante, que se permite ou não, o eu em relação presente que conduz tudo
ou quase...
O eu-encontro: aquele que desce barranco, toca pandeiro, constroe cidades de colchonetes, faz bolhas
de sabão, pula “Um homem bateu em minha porta” e se sente acabado depois...
O eu em encontro dos outros eus-encontros, águas que se mistruram, percorrem trechos juntas e depois
mudam seus rumos....
O eu que se faz criança por estar e se fazer presente, inteiro naquilo que se propõe
Artista-pessoa, pessoa-artista que
Busca
permitir para construir
junto.
Referências
ROCHA, Ana Cristina Rossetto. Educação musical e experiência estética: entre encontros e
possibilidades. Campinas, 2011. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em
Educação, Universidade Estadual de Campinas.
Créditos das fotos
Andrea Rocha
Camila Feltre
Renata Oliveira
Artista Educadora
CEU Parque Bristol, 2015

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Confluências de Rios: Apontamentos sobre um primeiro ano no Piá

  • 1. Confluências de Rios Apontamentos sobre um primeiro ano no Piá Diretamente das margens do ensino regular para o reino encantado do Piá! No meuprimeiro diano CEU Parque Bristol, pergunteiparaa artistaeducadora(AE) companheira de CEU, Andrea (no programa há algum tempo) como nomeávamos as atividades no Piá: aulas, oficinas, enfim... E ela respondeu: Chamamos de encontro. Encontro: mal sabia eu a dimensão desta palavra no Piá e como ela me modificaria. “Mas Quem é que pode parar os caminhos? E os rios cantando e correndo?” Um vôo de andorinha - Mário Quintana
  • 2. Ao procurarpelo significado dapalavra encontro, pudeobservar que elapossuiváriasdefinições, sendo utilizada em áreas diversas: 1 Ato de encontrar ou encontrar-se. 2Choque, embate, encontrão, colisão. 3 Briga, recontro, duelo. 4 Esp Jogo entre duas equipes. 5 Reunião de pessoas ou coisas. 6 Ponto em que uma pessoa se encontra com outra. 7 Junção de pessoas ou coisas que se dirigem para o mesmo ponto ou se movem em sentido oposto. 8 Confluência de rios. 9Obstáculo, contrariedade. 10 Ornit Pássaro canoro da família dos Icterídeos (Icterus cayanensis pyrropterus) (Dicionário Michaelis) É interessante como vários deles se aplicam a minha experiência no Piá. Entretanto, o que mais me chamou a atenção pormelhordefinir nossosencontros, foi o termo confluência de rios. Obviamente, está sendo utilizado por mim de forma não literal, mas expressa exatamente o que experienciei neste ano com as turmas do CEU Parque Bristol. Todas as terças, quartas e quintas-feiras, grupos formados por AEs e crianças, se encontravam para criar, viver novas experiências estéticas, brincar, fluir junto... Águas de diferentes rios que se encontravam trazendo seus diferentes elementos. Fluxos, movimentos, caminhos percorridos e a percorrer... Rios que se encontram e se misturam por momentos, criando infinitas possibilidades de cores, composições, velocidades, intensidades... Permeados pela horizontalidade e pelo acolhimento, cada encontro era construido por AEs e criançasconjuntamente. Nosso norte eraa criação a partir doselementosgeradorestrazidospor todos, como o que sentíamos naquele momento, nossas necessidades, conflitos, histórias e as
  • 3. relações que desenvolvíamos com os diversos materiais, com o espaço e com outros integrantes do encontro. Logo no início, deparei-me comumanecessidade de estar inteirae totalmente presente em cada encontro para poder sentir e perceber as crianças e também criar junto com elas. Era necessário a escuta e o olhar atento a fim de partir doselementosgerados naquele momento, o que muitas vezes se dá de maneira muito sutil. Afirma Rosseto: “Para navegarporum mar de possibilidades,se deleitarcomaviageme usufruir as descobertas que ela pode proporcionar, é preciso ter olhos e ouvidos apurados. Saber ler tanto as estrelas quanto quaisquer instrumentos de que se puder dispor, para não perder o sentido de direção; mas poder observar os detalhes, as mudanças de paisagem, seus sons e silêncios, dando tempo e lugar às explorações, transformações e devires”. (Rosseto, 2011) Como educadora musical, minha trajetória se constituiu em escolas de educação infantil, escolas de música e aulas particulares. Mais recentemente, também trabalhei em escolas municipais, ministrando a disciplina Arte. Como professora do ensino regular, o meu ritmo era muito diferente: eu levava/propunha as atividades para as crianças e tinha muito pouco tempo para escutá-las, havia sempre muita
  • 4. demanda. Emnossosencontros do Piá, percebique emminhaspráticasanteriores eugeralmente participava sem vivenciar de fato os processos artísticos, preocupando-me mais em manter o foco das crianças do que com a vivência artística em si. No Piá comecei a criar junto, e a me compenetrar no que fazia, vivenciando, de fato, arte com as crianças. E assim me depareicomapossibilidade de umeducadorque tambémsente, criajunto e expressa os sentimentos. Acolhe e é acolhido pelo grupo. Por mais que eu acreditasse que precisamos muito de um espaço para deixar emergir de nós todo o repertório que trazemos, expressando a forma como o ressignificamos, muitas vezes foi difícil entrar no tempo das crianças e aceitar o que elas tinham para trazer. O processo de escuta e construção coletivanão é algo simplesporser permeado por conflitos, dúvidase inconstâncias. Além disso, foi, e ainda é, um exercício relativamente novo para mim uma vez que não fui “educada” desta maneira. Mas eu respirava fundo e tentava estar com eles, exercitando uma escuta ativa e aberta afim de construir um diálogo. Como afirma Rossetto: “(...) tenho observado que os cursos demandam a todo momento ser corrigidos, exigindo decisões imediatas – pois há os ventos, as marés e os humores dos tripulantes; e, seja por acaso ou por velada intenção, ou pelas mudanças de velocidade, provocadas tanto pelas calmarias como pelas tempestades, acontecem os desvios. E é por eles que muitas vezes podemos vislumbrar tesouros e novas terras a serem descobertas”(Rossetto, 2011) Estes “desvios que nos conduzem a tesouros e novas terras” possuemum espaço especial no Piá. Nós, artistas educadoras, procurávamos estar sempre atentas para podermos aproveitar e criar a partir do que era gerado no momento. Nos encontros, mesmo quando levávamos algum tema, material ou proposta, não sabíamos qual seria o seu “final” ou o(s) caminho(s) exato(s). As possibilidades eram infinitas e estavam atreladas àquele momento, àquelas pessoas. Na maioria das vezes, desembocávamos em novas proposições incríveis, que tampouco havíamos imaginado. Da mesma forma que aprendi a dar mais espaço para o que as crianças traziam e tinham a dizer, também passei a colocar minhas vontades, sensações e sentimentos no trabalho de uma forma mais efetiva, uma vez que eu era parte destes encontros e, portanto, também atuava
  • 5. construindo-os. O foco não estava somente em mim e minhas parceiras (AEs) nem somente nas crianças, mas nas trocas geradas entre nós. Atualmente, é comum que as crianças participem de várias atividades, oficinas e cursos extra curriculares, o que acredito ser muitas vezes interessante e potente. Estes espaços de “aprendizagem”, incluindo a escola, são geralmente voltados para a “aquisição” de técnicas e conteúdos. Entretanto, espaços para criação e expressão, exercícios de diálogo, autonomia e escuta, como o Piá, são encontrados em menor número. Aí está, em meu entendimento, a maior potência dos nossos encontros. Neles criamos um espaço no qual as crianças se sentem respeitadas e acolhidas para expressarem o que sentem, da maneira como são. Com isso elas desenvolvem confiança nas AEs e percebem que as contruções são baseadas no diálogo, respeitando o que temos a dizer da mesma forma que nós respeitamos o que elas trazem. Mesmo sendo um programa geralmente muito diferente das experiências de cursos extra curriculares dos quais elas participam, elas logo compreendem o que é o Piá. Esta compreensão se expressa na forma de agirem: propõe atividades/brincadeiras, contam suas histórias, falam o que sentem, se apropriamdo espaço dasformasmais diversase inusitadas, desenhamenquanto cantam, o que rapidamente pode se transformar emum movimento, umahistória, um jogo, uma outra brincadeira... Também podemos perceber essa “compreensão” observando algumas falas das próprias crianças, quando por exemplo, algum novo integrante chega : “ah, mais isso não funciona no Piá”, ou, “no Piá fazemos isto ou aquilo”...
  • 6. O encontro entre artistas educadores de diferentes linguagens é mais um elemento catalisador de possibilidades estéticas e criativas. Os olhares diversos das AEs traziam não apenas singularidades de cada pessoa mas também de uma área de conhecimento artístico, o que ampliou a maneira de me relacionar com a criação, a brincadeira e o próprio fazer artísitico. O trabalho em dupla é desafiador; muitas vezes os AEs não estão em sintonia ou seguem linhas de pensamento muito diferentes. Apesar disso, possibilita a troca de observaçõessobre um mesmo elemento ou fato observado e uma variedade de intervenções poéticas, potencializando o encontro. Acredito que nossosencontros gerarammuitasexperiênciassignificativas,alegrias, inseguranças, decepções, certezas, arte, composições, afeto, carinho, confiança, muitas perguntas e desafios. O maior destes, para mim, foi me permitir estar presente no encontro, lançando-me de fato a suas diversas possibilidades e caminhos, encontros e desencontros... Enfrentar meus medos,
  • 7. questionar minhas certezas, reafirmar e deixar fluir minha arte... O grande desafio e beleza do Piá, para mim, foi o renascimento como artista educadora: Eu sou meu maior experimento. O experimento do eu-corpo que se movimenta, brinca, para, amolece, acolhe, repele, habita e sente. O eu-som: som que produzo quando quero e quando não quero, som do outro, som que escuto e que escapa, som feito junto. O eu-relação: eu-crianças, eu-Aes, nós e crianças. O eu que oberserva às vezes distante, que se permite ou não, o eu em relação presente que conduz tudo ou quase... O eu-encontro: aquele que desce barranco, toca pandeiro, constroe cidades de colchonetes, faz bolhas de sabão, pula “Um homem bateu em minha porta” e se sente acabado depois... O eu em encontro dos outros eus-encontros, águas que se mistruram, percorrem trechos juntas e depois mudam seus rumos.... O eu que se faz criança por estar e se fazer presente, inteiro naquilo que se propõe Artista-pessoa, pessoa-artista que Busca permitir para construir junto.
  • 8. Referências ROCHA, Ana Cristina Rossetto. Educação musical e experiência estética: entre encontros e possibilidades. Campinas, 2011. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas. Créditos das fotos Andrea Rocha Camila Feltre Renata Oliveira Artista Educadora CEU Parque Bristol, 2015