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A ÚLTIMA CRÔNICA (Fernando Sabino) (clicar) [email_address]
A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta.   Manabu Mabe Represa de Sto. Amaro Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um.
Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida.   Mario Gruber Est. navio negreiro Visava ao circunstancial, ao episódico.
Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial.   Tarsila do Amaral Cartão Postal  Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema".
Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.   Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos.   Octávio Araújo Casal nu
A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Lívio Abramo Dança
Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome. Passo a observá-los. Antonio Bandeira Abstrato
O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. Carlos Bracher Paisagem de Ouro Preto A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom.   Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo.
A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. Juarez Machado Costurando Notas
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente.   Iberê Camargo Abstrato Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. Por que não começa a comer?
A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa.  O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera.  A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim. Emiliano Di Cavalcanti Figura Feminina
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo.  E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Cândido Portinari Retirantes
Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..."  Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. José Pancetti Figura na Praia
A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. Hector Carybé Cavalos O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração.
Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. Carlos Scliar Marinha
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso. Alfredo Volpi Carnaval
"Nasci homem, morro menino".   Fernando Sabino - 12/10/1923 - 11/10/2004.
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A Última Crônica (Fernando Sabino)

  • 1. A ÚLTIMA CRÔNICA (Fernando Sabino) (clicar) [email_address]
  • 2. A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Manabu Mabe Represa de Sto. Amaro Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um.
  • 3. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Mario Gruber Est. navio negreiro Visava ao circunstancial, ao episódico.
  • 4. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Tarsila do Amaral Cartão Postal Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema".
  • 5. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. Octávio Araújo Casal nu
  • 6. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Lívio Abramo Dança
  • 7. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome. Passo a observá-los. Antonio Bandeira Abstrato
  • 8. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. Carlos Bracher Paisagem de Ouro Preto A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo.
  • 9. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. Juarez Machado Costurando Notas
  • 10. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Iberê Camargo Abstrato Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. Por que não começa a comer?
  • 11. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim. Emiliano Di Cavalcanti Figura Feminina
  • 12. São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Cândido Portinari Retirantes
  • 13. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. José Pancetti Figura na Praia
  • 14. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. Hector Carybé Cavalos O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração.
  • 15. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. Carlos Scliar Marinha
  • 16. Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso. Alfredo Volpi Carnaval
  • 17. "Nasci homem, morro menino". Fernando Sabino - 12/10/1923 - 11/10/2004.
  • 18. “ Dreaming” - Ernesto Cortazar Formatação : PC
  • 19.