SlideShare a Scribd company logo
1 of 11
A moça tecelã
     Marina Colasanti
Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das
beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia
passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã
desenhava o horizonte. Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo
hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim
pendiam as pétalas, a moça colocava na
lançadeira grossos fios cinzentos do
algodão mais felpudo. Em breve, na
penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um
fio de prata, que em pontos longos rebordava
sobre o tecido. Leve, a chuva vinha
cumprimentá-la à janela.


Mas se durante muitos dias o vento e o frio
brigavam com as folhas e espantavam os
pássaros, bastava à moça tecer com seus
belos fios dourados, para que o sol voltasse a
acalmar a natureza. Assim, jogando a
lançadeira de um lado para outro e batendo
os grandes pentes do tear para frente e para
trás, a moça passava os seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo
peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe
estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede
vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava
o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de
escuridão, dormia tranquila.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que
queria fazer.
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o
tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira
vez pensou em como seria bom ter um marido ao
lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa
nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que
lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu
emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava
justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos,
quando bateram à porta.


Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu
de pluma, e foi entrando em sua vida. Aquela noite, deitada no ombro
dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda
mais a sua felicidade.
E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha
pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha
descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser
nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E
parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as
mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e
pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
— Para que ter casa, se podemos ter palácio? —
perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que
fosse de pedra com arremates em prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a
moça tecendo tetos e portas, e pátios e
escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e
ela não tinha tempo para chamar o sol. A
noite chegava, e ela não tinha tempo para
arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto
sem parar batiam os pentes acompanhando o
ritmo da lançadeira.


Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos
cômodos, o marido escolheu para ela e seu
tear o mais alto quarto da mais alta torre.
— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E
antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as
estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido,
enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as
salas de criados.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria
fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua
tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os
seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como
seria bom estar sozinha de novo. Só esperou
anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia
sonhando com novas exigências. E descalça, para não
fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se
ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao
contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a
desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias,
os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas
que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o
jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e,
espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o
desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as
pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o
emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi
passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na
linha do horizonte.
Marina Colasanti (1938) nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e
desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e
histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei, mas não devia e também
por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em amor, Contos de
amor rasgados, Aqui entre nós, Intimidade pública, Eu sozinha, Zoológico, A
morada do ser, A nova mulher (que vendeu mais de 100.000 exemplares), Mulher
daqui pra frente, O leopardo é um animal delicado, Esse amor de todos nós,
Gargantas abertas e os escritos para crianças Uma ideia toda azul e Doze reis e a
moça do labirinto de vento. Colabora, também, em revistas femininas e
constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil.

More Related Content

What's hot

A semente da verdade
A semente da verdadeA semente da verdade
A semente da verdadeLuciaFrana4
 
Estratégias para trabalhar com alunos com dislexia
Estratégias para trabalhar com alunos com dislexiaEstratégias para trabalhar com alunos com dislexia
Estratégias para trabalhar com alunos com dislexiaMagda Ferreira
 
1. orelhas de_borboleta_
1. orelhas de_borboleta_1. orelhas de_borboleta_
1. orelhas de_borboleta_genarui
 
1.conto, características
1.conto, características1.conto, características
1.conto, característicasHelena Coutinho
 
Era Uma Vez Uma Gotinha De áGua
Era Uma Vez Uma Gotinha De áGuaEra Uma Vez Uma Gotinha De áGua
Era Uma Vez Uma Gotinha De áGuamaria leite
 
A Princesa E A Ervilha
A Princesa E A ErvilhaA Princesa E A Ervilha
A Princesa E A Ervilhavera1979
 
A GALINHA DOS OVOS DE OURO
A GALINHA DOS OVOS DE OUROA GALINHA DOS OVOS DE OURO
A GALINHA DOS OVOS DE OUROMarisa Seara
 
Movimento da Escola Moderna
Movimento da Escola ModernaMovimento da Escola Moderna
Movimento da Escola Modernaermelinda mestre
 
Lengalengas
LengalengasLengalengas
LengalengasTC2S
 
A lagartinha comilona pps
A lagartinha comilona ppsA lagartinha comilona pps
A lagartinha comilona ppsAdriano Aires
 
O carteiro-chegou-janet-e-allan-ahlberg
O carteiro-chegou-janet-e-allan-ahlbergO carteiro-chegou-janet-e-allan-ahlberg
O carteiro-chegou-janet-e-allan-ahlbergCarla Ferreira
 
Histórias infantis e contos power point
Histórias infantis e contos power pointHistórias infantis e contos power point
Histórias infantis e contos power pointdione mompean fernandes
 

What's hot (20)

A semente da verdade
A semente da verdadeA semente da verdade
A semente da verdade
 
Estratégias para trabalhar com alunos com dislexia
Estratégias para trabalhar com alunos com dislexiaEstratégias para trabalhar com alunos com dislexia
Estratégias para trabalhar com alunos com dislexia
 
Fichas De Poesia
Fichas De PoesiaFichas De Poesia
Fichas De Poesia
 
1. orelhas de_borboleta_
1. orelhas de_borboleta_1. orelhas de_borboleta_
1. orelhas de_borboleta_
 
1.conto, características
1.conto, características1.conto, características
1.conto, características
 
Era Uma Vez Uma Gotinha De áGua
Era Uma Vez Uma Gotinha De áGuaEra Uma Vez Uma Gotinha De áGua
Era Uma Vez Uma Gotinha De áGua
 
A Princesa E A Ervilha
A Princesa E A ErvilhaA Princesa E A Ervilha
A Princesa E A Ervilha
 
Guiao gaivota-gato
Guiao gaivota-gatoGuiao gaivota-gato
Guiao gaivota-gato
 
Texto narrativo
Texto narrativoTexto narrativo
Texto narrativo
 
E trabalhar poesia em sala de aula
E trabalhar poesia em sala de aulaE trabalhar poesia em sala de aula
E trabalhar poesia em sala de aula
 
O caracol livro em pdf
O caracol   livro em pdfO caracol   livro em pdf
O caracol livro em pdf
 
Expressão oral rubricas
Expressão oral   rubricasExpressão oral   rubricas
Expressão oral rubricas
 
A GALINHA DOS OVOS DE OURO
A GALINHA DOS OVOS DE OUROA GALINHA DOS OVOS DE OURO
A GALINHA DOS OVOS DE OURO
 
Movimento da Escola Moderna
Movimento da Escola ModernaMovimento da Escola Moderna
Movimento da Escola Moderna
 
Romeu e Julieta Ruth Rocha
Romeu e Julieta   Ruth RochaRomeu e Julieta   Ruth Rocha
Romeu e Julieta Ruth Rocha
 
Lengalengas
LengalengasLengalengas
Lengalengas
 
A lagartinha comilona pps
A lagartinha comilona ppsA lagartinha comilona pps
A lagartinha comilona pps
 
O carteiro-chegou-janet-e-allan-ahlberg
O carteiro-chegou-janet-e-allan-ahlbergO carteiro-chegou-janet-e-allan-ahlberg
O carteiro-chegou-janet-e-allan-ahlberg
 
Histórias infantis e contos power point
Histórias infantis e contos power pointHistórias infantis e contos power point
Histórias infantis e contos power point
 
Lendas
LendasLendas
Lendas
 

Viewers also liked

Placas Engraçadas. prrsoares
Placas Engraçadas. prrsoaresPlacas Engraçadas. prrsoares
Placas Engraçadas. prrsoaresSeduc MT
 
Relatório de Atividades 2008
Relatório de Atividades 2008Relatório de Atividades 2008
Relatório de Atividades 2008lealtran
 
Leitura obra "O Grito"
Leitura obra "O Grito"Leitura obra "O Grito"
Leitura obra "O Grito"mila braga
 
Artes 3º bimestre 2014 (Ensino Fundamental)
Artes 3º bimestre 2014 (Ensino Fundamental)Artes 3º bimestre 2014 (Ensino Fundamental)
Artes 3º bimestre 2014 (Ensino Fundamental)Carlos Benjoino Bidu
 
Prova Artes 1 ano médio
Prova Artes 1 ano médioProva Artes 1 ano médio
Prova Artes 1 ano médioGeo Honório
 
Modelo relatorio
Modelo relatorioModelo relatorio
Modelo relatoriorsaloes
 

Viewers also liked (8)

Figuras fundos
Figuras fundosFiguras fundos
Figuras fundos
 
Placas Engraçadas. prrsoares
Placas Engraçadas. prrsoaresPlacas Engraçadas. prrsoares
Placas Engraçadas. prrsoares
 
Relatório de Atividades 2008
Relatório de Atividades 2008Relatório de Atividades 2008
Relatório de Atividades 2008
 
Vidas secas
Vidas secasVidas secas
Vidas secas
 
Leitura obra "O Grito"
Leitura obra "O Grito"Leitura obra "O Grito"
Leitura obra "O Grito"
 
Artes 3º bimestre 2014 (Ensino Fundamental)
Artes 3º bimestre 2014 (Ensino Fundamental)Artes 3º bimestre 2014 (Ensino Fundamental)
Artes 3º bimestre 2014 (Ensino Fundamental)
 
Prova Artes 1 ano médio
Prova Artes 1 ano médioProva Artes 1 ano médio
Prova Artes 1 ano médio
 
Modelo relatorio
Modelo relatorioModelo relatorio
Modelo relatorio
 

Similar to A moça tecelã

A MoçA Tecelã Form 2
A MoçA Tecelã Form 2A MoçA Tecelã Form 2
A MoçA Tecelã Form 2Tania
 
identificando-adjetivos-no-conto-a-moca-tecela4791.pptx
identificando-adjetivos-no-conto-a-moca-tecela4791.pptxidentificando-adjetivos-no-conto-a-moca-tecela4791.pptx
identificando-adjetivos-no-conto-a-moca-tecela4791.pptxMariaEneida4
 
A moça tecelã (adaptação)
A moça tecelã (adaptação)A moça tecelã (adaptação)
A moça tecelã (adaptação)Francisjor
 
Uma ideia toda azul - Marina Colasanti.pdf
Uma ideia toda azul - Marina Colasanti.pdfUma ideia toda azul - Marina Colasanti.pdf
Uma ideia toda azul - Marina Colasanti.pdfIngredMariano
 
Gato malhado e_a_andorinha_sinha_sp(1)
Gato malhado e_a_andorinha_sinha_sp(1)Gato malhado e_a_andorinha_sinha_sp(1)
Gato malhado e_a_andorinha_sinha_sp(1)Toni Gomes
 
Bram stoker -_a_casa_do_juiz
Bram stoker -_a_casa_do_juizBram stoker -_a_casa_do_juiz
Bram stoker -_a_casa_do_juizAriovaldo Cunha
 
A Garota do Dique - G. Norman Lippert
A Garota do Dique - G. Norman Lippert A Garota do Dique - G. Norman Lippert
A Garota do Dique - G. Norman Lippert Victor Ignis
 
amor impossível
amor impossívelamor impossível
amor impossívelpaml-ts
 
O senhor mago e a folha
O senhor mago e a folhaO senhor mago e a folha
O senhor mago e a folhaAline Martins
 
Cancao da rainha um conto da - victoria aveyard
Cancao da rainha   um conto da - victoria aveyardCancao da rainha   um conto da - victoria aveyard
Cancao da rainha um conto da - victoria aveyardDaniel Carloni
 
8 poemas 8 mulheres 8 imagens 8
8 poemas 8 mulheres 8 imagens 88 poemas 8 mulheres 8 imagens 8
8 poemas 8 mulheres 8 imagens 8Clara Veiga
 
C.s.lewis as crônicas de nárnia - vol. 2 - o leão, a feiticeira e o guarda-...
C.s.lewis   as crônicas de nárnia - vol. 2 - o leão, a feiticeira e o guarda-...C.s.lewis   as crônicas de nárnia - vol. 2 - o leão, a feiticeira e o guarda-...
C.s.lewis as crônicas de nárnia - vol. 2 - o leão, a feiticeira e o guarda-...Ariovaldo Cunha
 
A ratinha vaidosa
A ratinha vaidosaA ratinha vaidosa
A ratinha vaidosaLuzia Lagoa
 

Similar to A moça tecelã (20)

A moça tecelã
A moça tecelãA moça tecelã
A moça tecelã
 
A mo ca tecela pdf
A mo ca tecela pdfA mo ca tecela pdf
A mo ca tecela pdf
 
A moça tecelã
A moça tecelãA moça tecelã
A moça tecelã
 
A MoçA Tecelã Form 2
A MoçA Tecelã Form 2A MoçA Tecelã Form 2
A MoçA Tecelã Form 2
 
identificando-adjetivos-no-conto-a-moca-tecela4791.pptx
identificando-adjetivos-no-conto-a-moca-tecela4791.pptxidentificando-adjetivos-no-conto-a-moca-tecela4791.pptx
identificando-adjetivos-no-conto-a-moca-tecela4791.pptx
 
A moça tecelã (adaptação)
A moça tecelã (adaptação)A moça tecelã (adaptação)
A moça tecelã (adaptação)
 
Prova 7_ano
 Prova 7_ano Prova 7_ano
Prova 7_ano
 
Xico Braga
Xico BragaXico Braga
Xico Braga
 
Uma ideia toda azul - Marina Colasanti.pdf
Uma ideia toda azul - Marina Colasanti.pdfUma ideia toda azul - Marina Colasanti.pdf
Uma ideia toda azul - Marina Colasanti.pdf
 
Gato malhado e_a_andorinha_sinha_sp(1)
Gato malhado e_a_andorinha_sinha_sp(1)Gato malhado e_a_andorinha_sinha_sp(1)
Gato malhado e_a_andorinha_sinha_sp(1)
 
Bram stoker -_a_casa_do_juiz
Bram stoker -_a_casa_do_juizBram stoker -_a_casa_do_juiz
Bram stoker -_a_casa_do_juiz
 
A Garota do Dique - G. Norman Lippert
A Garota do Dique - G. Norman Lippert A Garota do Dique - G. Norman Lippert
A Garota do Dique - G. Norman Lippert
 
amor impossível
amor impossívelamor impossível
amor impossível
 
O senhor mago e a folha
O senhor mago e a folhaO senhor mago e a folha
O senhor mago e a folha
 
Telha de vidro
Telha de vidroTelha de vidro
Telha de vidro
 
Sombra
SombraSombra
Sombra
 
Cancao da rainha um conto da - victoria aveyard
Cancao da rainha   um conto da - victoria aveyardCancao da rainha   um conto da - victoria aveyard
Cancao da rainha um conto da - victoria aveyard
 
8 poemas 8 mulheres 8 imagens 8
8 poemas 8 mulheres 8 imagens 88 poemas 8 mulheres 8 imagens 8
8 poemas 8 mulheres 8 imagens 8
 
C.s.lewis as crônicas de nárnia - vol. 2 - o leão, a feiticeira e o guarda-...
C.s.lewis   as crônicas de nárnia - vol. 2 - o leão, a feiticeira e o guarda-...C.s.lewis   as crônicas de nárnia - vol. 2 - o leão, a feiticeira e o guarda-...
C.s.lewis as crônicas de nárnia - vol. 2 - o leão, a feiticeira e o guarda-...
 
A ratinha vaidosa
A ratinha vaidosaA ratinha vaidosa
A ratinha vaidosa
 

More from Patrícia Fernanda da Costa Santos

Culminância da Semana de Alimentação Saudável _ Profª Jéssica (Ciências) e Pr...
Culminância da Semana de Alimentação Saudável _ Profª Jéssica (Ciências) e Pr...Culminância da Semana de Alimentação Saudável _ Profª Jéssica (Ciências) e Pr...
Culminância da Semana de Alimentação Saudável _ Profª Jéssica (Ciências) e Pr...Patrícia Fernanda da Costa Santos
 

More from Patrícia Fernanda da Costa Santos (20)

V Cesta de Leitura _ Exposição de Painéis
V Cesta de Leitura _ Exposição de PainéisV Cesta de Leitura _ Exposição de Painéis
V Cesta de Leitura _ Exposição de Painéis
 
Acolhida - Educação de Jovens e Adultos
Acolhida - Educação de Jovens e AdultosAcolhida - Educação de Jovens e Adultos
Acolhida - Educação de Jovens e Adultos
 
Convite Festa de São João _ 2013
Convite Festa de São João _ 2013Convite Festa de São João _ 2013
Convite Festa de São João _ 2013
 
Convite ii
Convite iiConvite ii
Convite ii
 
Decreto nº 7.823 de 21 de março de 2013
Decreto nº 7.823 de 21 de março de  2013Decreto nº 7.823 de 21 de março de  2013
Decreto nº 7.823 de 21 de março de 2013
 
Culminância da Semana de Alimentação Saudável _ Profª Jéssica (Ciências) e Pr...
Culminância da Semana de Alimentação Saudável _ Profª Jéssica (Ciências) e Pr...Culminância da Semana de Alimentação Saudável _ Profª Jéssica (Ciências) e Pr...
Culminância da Semana de Alimentação Saudável _ Profª Jéssica (Ciências) e Pr...
 
Apresentação iii cesta de leitura
Apresentação iii cesta de leituraApresentação iii cesta de leitura
Apresentação iii cesta de leitura
 
Ler é bom demais ....
Ler é bom demais ....Ler é bom demais ....
Ler é bom demais ....
 
Folder Cesta de Leitura
Folder Cesta de LeituraFolder Cesta de Leitura
Folder Cesta de Leitura
 
Apresentação _ Ler é bom demais!!!
Apresentação _ Ler é bom demais!!!Apresentação _ Ler é bom demais!!!
Apresentação _ Ler é bom demais!!!
 
Folder III Cesta de Leitura
Folder III Cesta de LeituraFolder III Cesta de Leitura
Folder III Cesta de Leitura
 
Atividades propostas - Projeto gêneros textuais na EJA
Atividades propostas - Projeto gêneros textuais na EJAAtividades propostas - Projeto gêneros textuais na EJA
Atividades propostas - Projeto gêneros textuais na EJA
 
Projeto - Os gêneros textuais na EJA
Projeto - Os gêneros textuais na EJAProjeto - Os gêneros textuais na EJA
Projeto - Os gêneros textuais na EJA
 
Apresentação _ 2ª Cesta de Leitura
Apresentação _ 2ª Cesta de LeituraApresentação _ 2ª Cesta de Leitura
Apresentação _ 2ª Cesta de Leitura
 
Ruth Rocha _ Marcelo, Marmelo, Martelo
Ruth Rocha _ Marcelo, Marmelo, MarteloRuth Rocha _ Marcelo, Marmelo, Martelo
Ruth Rocha _ Marcelo, Marmelo, Martelo
 
Sistematização Dia Internacional da Mulher
Sistematização Dia Internacional da MulherSistematização Dia Internacional da Mulher
Sistematização Dia Internacional da Mulher
 
Homenagem ao dia internacional da mulher apresentação
Homenagem ao dia internacional da mulher   apresentaçãoHomenagem ao dia internacional da mulher   apresentação
Homenagem ao dia internacional da mulher apresentação
 
Ruth rocha marcelo marmelo martelo
Ruth rocha   marcelo marmelo marteloRuth rocha   marcelo marmelo martelo
Ruth rocha marcelo marmelo martelo
 
O homem que calculava _ Capítulo III
O homem que calculava _ Capítulo IIIO homem que calculava _ Capítulo III
O homem que calculava _ Capítulo III
 
Projeto Tangram _ Professor Inaldo Lopes
Projeto Tangram  _ Professor Inaldo Lopes Projeto Tangram  _ Professor Inaldo Lopes
Projeto Tangram _ Professor Inaldo Lopes
 

A moça tecelã

  • 1. A moça tecelã Marina Colasanti
  • 2. Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear. Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte. Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.
  • 3. Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela. Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava à moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza. Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.
  • 4. Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.
  • 5. Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta. Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida. Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.
  • 6. E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar. — Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer. Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. — Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.
  • 7. Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira. Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
  • 8. — É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos! Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
  • 9. Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
  • 10. A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu. Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.
  • 11. Marina Colasanti (1938) nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei, mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em amor, Contos de amor rasgados, Aqui entre nós, Intimidade pública, Eu sozinha, Zoológico, A morada do ser, A nova mulher (que vendeu mais de 100.000 exemplares), Mulher daqui pra frente, O leopardo é um animal delicado, Esse amor de todos nós, Gargantas abertas e os escritos para crianças Uma ideia toda azul e Doze reis e a moça do labirinto de vento. Colabora, também, em revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil.