O documento resume as reflexões de Fernando Gabeira sobre o governo Lula e a ditadura militar em três frases. Gabeira critica o governo Lula por enfraquecer a democracia assim como a ditadura, e compara a saída dos militares com a situação atual do governo. Ele também reflete sobre como as pessoas do PT estão lidando com a nova realidade política.
2. Sempre que os fatos ganham
velocidade, costumo comprar um bloco
de notas. Anoto frases, idéias, intuições
e deixo que se decantem com o tempo.
3. Volto a elas, depois, para rejeitá-las ou
desenvolvê-las. A primeira frase que me
veio à cabeça foi a da vendedora de
flores que encerra um filme.
4. O pequeno bloco também tem idéias.
Por exemplo: comparar a ditadura com o
governo Lula. Uma neutralizou o
Congresso pelo medo; o outro, pelo
pagamento de mesada.
5. Ditadura e governo Lula compartilham o
mesmo desprezo pela democracia,
ambos violentaram-na, reduzindo o
Parlamento a uma ruína moral.
6. Os militares prepararam sua saída de
forma organizada. Nem muito devagar,
para não parecer provocação, nem
muito rápido para não parecer que
estavam com medo.
7. Já o núcleo duro do governo Lula parece
perdido, batendo cabeça, ou melhor,
enfiando-a na areia, sem perceber que a
polícia está chegando e, daqui a pouco,
alguém vai gritar na porta do Planalto:
"Se entrega, Corisco".
8. Quando era menino e vivia em Juiz de
Fora, fazíamos rodas de capoeira,
bastante rudimentares - confesso. Mas
cantávamos: "A polícia vem, que vem
brava / quem não tem canoa, cai
n'água".
9. Tudo isso jorra aos borbotões na minha
caderneta. Anotei: chamar alguém do
"Guinness", o livro dos recordes, para
saber se algum tesoureiro de qualquer
partido do mundo se desloca com
batedores de motocicleta e carros
clones para iludir perseguidores;...
10. ...se algum tesoureiro partidário se
desloca com jatos particulares,
semanalmente; se introduz no palácio
associação de empreiteiros que
receberam R$ 1,1 bilhão de dívidas.
11. Os militares batiam, davam choques e
insultavam na sessão de tortura, mas vi
muitos dizendo que me respeitavam
porque deixei um bom emprego para
combatê-los com risco de vida.
13. O PT queria que eu abrisse mão
exatamente da minha alma, e me
tornasse um deputado obediente,
votando tudo o que o Professor
Luizinho nos mandava votar.
14. Os militares jamais pediriam isso. Desde
o princípio, disseram que eu era
irrecuperável e limitaram-se à tortura de
rotina.
15. Jamais imaginei que seria grato aos
torturadores por não me pedirem a
alma. Não sabia que dias tão cinzentos
ainda viriam pela frente.
16. Que seria liderado por um homem que
achava que Maurício de Nassau era um
deputado de Pernambuco. Logo eu, que
sou admirador de um deputado
pernambucano chamado Joaquim
Nabuco.
17. Foram os anos mais duros de minha
vida. No meu caderno anoto frases e
indicações da semelhanças da luta
contra a ditadura e da luta contra este
governo, desde que comecei a criticá-lo,
com a importação de pneus usados.
18. As pessoas têm suas carreiras, seus
empregos, sua racionalizações. É preciso
respeitá-las, atravessar o deserto sem
ressentimentos.
19. Agora, sobretudo, é preciso respeitar o
sofrimento dos vencidos. Outro dia,
quando me referi a um núcleo na Casa
Civil como um bando de ladrões que
atentava contra a democracia, uma
jovem deputada do PT estremeceu.
20. Senti que não estava ainda preparada
para essas palavras cruas. E fui
percebendo pelas anotações que talvez
estejam aí, para o escritor, o mais rico
manancial de toda essa crise.
21. Como estão as pessoas do PT? Como se
ajustam a essa nova realidade? Que
destino tomaram na vida?
22. Procuro não confundir, entre os que
ainda defendem o governo, aqueles que
são cínicos, cúmplices e os outros, que
apenas obedeceram as ordens sob a
forma da aplicação do centralismo
democrático.
23. Alguns defendem porque ainda não
conseguiram negociar com sua própria
dor. Não podem suportá-la de frente.
Mas terão de fazer algum dia, porque,
por mais ingênuos que sejam, já
perceberam que a mãe está no telhado.
24. Vamos ter de encarar juntos essa
realidade. A grande experiência
eleitoral da esquerda latino-americana,
admirada por uma Europa desiludida
com Cuba e Nicarágua, a grande
novidade que verteu tintas...
25. ...atraiu sábios, produziu livros e
seminários, vai acabar na delegacia
como um triste fato policial de roubo do
dinheiro público e suborno de
parlamentares.
26. Só os que se arriscarem a ir até o fundo
dessa abjeção, compreendê-la em todos
os seus detalhes mórbidos, têm chances
de submergir para continuar o processo
histórico.
27. Por incrível que pareça, o Brasil
continua, e a vontade de mudar é mais
urgente do que em 2002 e 2006... Por
isso, proponho agora um curto e eficaz
trabalho de luto.
28. Anotação final: começaram o espetáculo
da CPI, secretárias e suas agendas, ex-
mulheres e suas mágoas, vampiros,
sanguessugas, mensaleiros, arapongas,
tesoureiros e seus charutos, Vossa
Excelência para cá, Vossa Excelência
para lá, sigilos bancários, telefônicos,
emocionais.
29. Viu, Duda, que cenas finais melancólicas
quando um mercador tenta aplicar à
complexidade da política a singeleza do
vendedor de sabonetes?
30. Texto veiculado no jornal Folha de S. Paulo,
disponível na página
http://www.gabeira.com.br.
Trilha:
“Os Cinco Companheiros”, de Pixinguinha, do disco
“Pixinguinha-100 anos”, do CCBB-RJ.
Formatação de Ren@to Fonseca,
31. FIM
MELANCÓLICO?
Não,
Lulla enganou o povo...
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