1. O documento discute o princípio da legalidade criminal e suas nove dimensões de garantia, sendo a principal a reserva legal, que significa que somente o legislador pode criar crimes e penas.
2. A garantia da lex certa exige que a lei seja precisa e determinada para evitar interpretações arbitrárias, proibindo cláusulas gerais e requisitos normativos de cunho ético-social.
3. Um exemplo dado foi uma lei de 1998 que continha um parágrafo não aprovado pelo Congresso e portanto considerado
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Disciplina: Direito Penal
Tema: Princípio da Legalidade e outros
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Tema 1: Principio da Legalidade
Dimensões de garantia do princípio da legalidade criminal e penal
Nove são as dimensões de garantia do princípio da legalidade criminal. Oito delas valem também para a
legalidade penal. São elas:
1.ª) Lex scripta: considerando-se que o sistema jurídico brasileiro não está vinculado à commom law, senão à
civil law, vale, no nosso Direito penal, ao menos no que concerne ao Direito penal incriminador (o que
retrata o seu aspecto repressivo), somente o que está expressamente escrito na lei. Estão proscritas, destarte,
as fontes sub-legais (para a criação de crimes e penais). Com isso se conclui que os costumes e a tradição
não podem criar crimes nem penas. São úteis para a interpretação da lei, mas não constituem fontes formais
do ius poenale.
Não há crime sem lei anterior que o defina significa, portanto, que apenas e exclusivamente a lei é que
define crime ou pena no nosso país. Os costumes não servem para essa finalidade. Podem ser válidos para
a interpretação da lei penal, mas não criam crime ou pena. A lei para ter vigência, de outro lado, precisa
ser aprovada, promulgada, sancionada e publicada. Só pode ter valor jurídico, de qualquer maneira,
quando regularmente publicada na imprensa oficial (Diário Oficial). Publicada, por conseguinte, sem
vícios.
2.ª) Lex populi: a garantia da lei popular assegura, por força do princípio democrático, do valor dos direitos
fundamentais e do sentido liberal e garantista do Estado de Direito, o monopólio normativo, no âmbito das
escolhas criminalizantes ou penalizantes (ou seja: do Direito penal incriminador), em favor do Poder
Legislativo, porque lei (“penal”) é o que o povo manda e constitui (lex est quod populus jubet atque
constituit). É absolutamente inadmissível que dessa tarefa, ao menos no que concerne ao Direito penal
incriminador, se encarreguem o Executivo e o Judiciário (cf. infra o capítulo 3, que cuida mais
detalhadamente da garantia da lex populi).
O império da lei, destaca Muñoz Conde, “supõe que o detentor do poder estatal já não pode castigar as
pessoas arbitrariamente e que seu poder punitivo está vinculado à lei. Por lei deve-se entender a
formalmente criada pelo órgão popular representativo (Parlamento ou Assembléia Nacional), como
expressão da vontade geral [...] No âmbito do Direito penal isso quer dizer que os delitos e as penas
somente podem ser estabelecidos pelos órgãos populares representativos que espelham a vontade popular,
isto é, pelo Parlamento. Todas as leis penais que não sejam criadas por este procedimento infringem o
espírito do princípio da legalidade”. 1
A edição de “medidas provisórias” em matéria criminal e penal (ou seja: sobre o Direito penal
incriminador), na medida em que retrata “a vontade pessoal e exclusiva” do mandatário supremo da
nação, enquadra-se bem no modelo absolutista de Estado. Impõe-se, por isso mesmo, a estrita observância
da exigência da reserva de lei no campo dos direitos fundamentais, isto é, “da garantia da regulamentação
do estatuto das liberdades como matéria reservada ao legislador e subtraída à ingerência limitadora do
governo”. 2
As normas que incriminam ou penalizam têm de emanar da comunidade inteira, não de uma só
pessoa, que poderia por essa via transformar-se em um tirano (cf. abaixo o capítulo terceiro desta seção).
1
Cf. MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción al Derecho penal, cit., p. 83-84.
2
PÉREZ LUÑO, Antonio E. Los derechos fundamentales. 3. ed. Madrid: Tecnos, 1988, p. 70.
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Em suma, somente a lei aprovada pelo Parlamento , que exerce o Poder Legislativo em nome do povo – CF,
art. 1.o
, parágrafo único -, é que pode definir crime ou pena. A lei deve ser formalmente discutida e
aprovada pelo Parlamento (TFR, ED, rel. Assis Toledo, RTFR 149, p. 277). Somente os representantes
diretos do povo é que podem deliberar sobre o proibido ou sobre a sancionabilidade do fato (nisso reside a
fundamentação democrático-representantiva do Direito penal).
Legalidade e reserva legal: não se pode confundir o princípio da legalidade com o princípio da reserva legal
ou mesmo com o princípio da anterioridade. Princípio da legalidade é um gênero (“ninguém será obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” – CF, art. 5.o
, inc. II). Mas no âmbito do
Direito penal incriminador o que vale é o princípio da reserva legal, ou seja, exclusivamente o Parlamento
pode aprovar crimes e penas. Dentre as garantias que emanam do princípio da legalidade acham-se a reserva
legal (só o Parlamento pode legislar sobre o Direito penal incriminador) e a anterioridade (lex populi e lex
praevia, respectivamente).
Princípio da reserva legal significa que em matéria penal incriminadora somente o legislador (só ele e
ninguém mais) pode intervir para prever crimes e penas ou medida de segurança (garantia da lex populi,
ou seja, o legislador representa a vontade do povo). Reserva legal, em síntese, significa reserva de lei
obrigatoriamente aprovada pelo Parlamento. No Direito penal, em se tratando de normas incriminadoras,
vigora o princípio da legalidade estrita, aliás, mais que isso, vigora o (plus) da reserva legal (lei aprovada
pelo Parlamento, que é a única que vale em matéria de incriminação penal). Por força do princípio da
anterioridade, a lei penal nova deve entrar em vigor antes e só vale para fatos posteriores à vigência
(veremos esse aspecto garantista da legalidade mais abaixo).
Lei não aprovada pelo Parlamento não é válida: na Lei 9.639/98 publicou-se um parágrafo único junto ao
art. 11 que concedia anistia ampla (aos agentes políticos) nos crimes previdenciários. Descobriu-se depois
que esse parágrafo não havia sido discutido nem votado no Congresso. Sendo assim, era absolutamente
inconstitucional. Jurisprudência pacífica (do STF) passou a reconhecer essa inconstitucionalidade, não tendo
nenhum valor o citado dispositivo.
“O Tribunal, por unanimidade, indeferiu habeas corpus impetrado por paciente condenado pelo crime do
art. 95, d, da Lei 8.212/91 ("deixar de recolher, na época própria, contribuição ou outra importância
devida à seguridade social e arrecadada dos segurados ou do público"), em que se pleiteava a aplicação do
parágrafo único do art. 11 da Lei 9.639, publicada em 26.05.98, que concedia anistia a todos os
responsáveis pela prática do aludido crime, sendo que a referida Lei foi republicada no dia seguinte com
exclusão do citado parágrafo (v. Informativo 127). Considerou-se que o § único do art. 11, incluído na
publicação primitiva, não fora aprovado pelo Congresso Nacional quando da votação do projeto de lei,
existindo apenas em decorrência da inexatidão material nos autógrafos encaminhados à sanção do
Presidente da República, ficando evidente a sua invalidade por inobservância do processo legislativo.
Conseqüentemente, o Tribunal declarou, incidenter tantum, a inconstituciona lidade do § único do art. 11
da Lei 9.639, em sua publicação de 26 de maio de 1998, explicitando-se que a declaração tem efeitos ex
tunc. HC 77.724-SP, rel. Min. Marco Aurélio e HC 77.734-SC, rel. Min. Néri da Silveira, 4.11.98”.
“Penal. Crimes tributários. Anistia veiculada no parágrafo único do artigo 11 da Lei 9.639, de 26 de maio
de 1998. Decisão do Pleno do colendo Supremo Tribunal Federal declarando a inconstitucionalidade do
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dispositivo. Incidente de inconstitucionalidade dispensado no âmbito deste Tribunal, com base no parágrafo
único do artigo 481 do CPC. Recurso provido.” Fonte: TRF 3.a
Região – RC 1999.61.81.001152-6 – rel.
Theotonio Costa – DJU 10.04.2001, Seção 2, p. 243). Por ter havido vício formal, não cabe dúvida que o
referido parágrafo não podia mesmo ter validade.
3.ª) Lex certa: nessa garantia está contemplado o “princípio da precisão” ou da “certeza” ou “da
taxatividade”, isto é, o tipo penal deve ser rigorosamente delimitado pelo legislador, sob pena de se
desconhecer o limite entre o permitido e o proibido, entre o lícito e o ilícito. Lei incerta, como se sabe, não
pode criar obrigação certa (lex incerta certam obligationem imponere nequit). A descrição do preceito
incriminador da norma primária, assim como da sanção, deve ser de tal modo patente e evidente que evite
qualquer atividade “criativa” do juiz.
Essa exigência se justifica: 3
(a) em razão da separação dos poderes; (b) porque a norma penal representa
também uma garantia e uma segurança para a liberdade; (c) porque a motivação normativa individual (que
é o fundamento da culpabilidade e do juízo de reprovação pessoal) e a prevenção geral exigem
preceituações indiscutíveis; (d) porque define com clareza os limites da intervenção estatal no
desenvolvimento da persecutio criminis, assim como o exercício da defesa.
Quem bem dissertou sobre esse aspecto do princípio da legalidade criminal e penal foi Alberto Silva
Franco, 4
que destacou:
(a) a subsistência do princípio da legalidade implica em conseqüências lógicas e inafastáveis como: reserva
legal, irretroatividade da norma penal incriminadora, proibição da analogia in malam partem e hoje já
alcançou uma quarta dimensão, o denominado mandado de certeza. Para que o crime e a pena a ele
cominada possam ser considerados, não basta uma lei que lhes seja temporalmente anterior. É mister que a
lei defina o fato criminoso, ou melhor, enuncie com clareza os atributos essenciais e específicos da conduta
humana de forma a torná-la inconfundível com outra e lhe comine pena balizada dentro de limites não
exagerados;
(b) há uma vinculação direta entre o princípio da legalidade e o processo legislativo de tipificação. A
eficácia do princípio da legalidade está condicionada à técnica legislativa adotada para a descrição de
condutas proibidas ou ordenadas. Acontece que o legislador não tem condições de pormenorizar todas as
condutas humanas ensejadoras da composição típica. A realidade é mais fértil do que sua capacidade de
apreensão. A solução para isto está na montagem de estruturas típicas mais flexíveis, dotando-as de uma
linguagem menos casuística;
(c) mas o apelo a uma redação genérica não implica no emprego de expressões vagas ou ambíguas. É
preciso que se imponha um limite. A garantia desta abstração está no dever de o legislador classificar as
características diferenciais que são decisivas para delimitar os tipos penais e de destacá-las com o emprego
de conceitos específicos gerais. A generalização somada à diferenciação são as bases metódicas da
formação de tipos em Direito penal. Esta combinação evita a adoção de cláusulas gerais incompatíveis com
o Estado de Direito. Hans Welzel, a propósito, observa que “o verdadeiro perigo que ameaça o princípio
nulla poena sine lege não decorre da analogia, senão de leis penais indeterminadas”. A fixação legal é uma
exigência de segurança jurídica. Lei prévia é uma exigência formal.
3
A respeito do princípio de precisão v.: MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Corso de diritto penale,
cit., p. 57-95.
4
FRANCO, Alberto Silva. Temas de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 1-10.
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A garantia da lei certa (precisa), também conhecida como da lei determinada ou da taxatividade, ou ainda,
segundo a terminologia preferida por Luis Luisi, 5
da determinação taxativa, deve presidir a formulação da
lei penal e está a exigir qualificação e competência do legislador. Sem esse corolário, completa o citado
autor, “o princípio da legalidade não alcançaria seu objetivo, pois de nada vale a anterioridade da lei, se
esta não estiver dotada de clareza e da certeza necessária, indispensáveis para evitar formas diferenciadas
e, pois, arbitrárias na sua aplicação, ou seja, para reduzir o coeficiente de variabilidade subjetiva na
aplicação da lei”.
A garantia da lex certa, em suma, na medida em que exige precisão e determinação no conteúdo do que está
proibido ou determinado, não se coaduna com as chamadas “cláusulas gerais” (encontráveis com
freqüência nos preceitos penais. Exemplo: “Praticar ato obsceno”), que não indicam nem sinalizam as
hipóteses reconduzíveis ao âmbito de incidência da norma genérica, e tampouco com os requisitos
normativos de cunho ético-social (ato contra moralidade). As formulações vagas e incertas, como se vê,
violam patentemente o princípio da legalidade.
Para além da garantia penal da lex scripta (lei escrita) e da lex populi (lei formalmente aprovada pelo
legislador), Beccaria preocupou-se com outras dimensões da legalidade penal. Quanto à lex certa, por
exemplo, destacava: 6
“Quando a regra do justo e do injusto, que deve dirigir as ações tanto do cidadão
ignorante como do cidadão filósofo, é asunto de fato e não de controvérsia, então os súditos não estão
sujeitos às pequenas tiranias de muitos, tanto mais cruéis quanto é menor a distância entre o que sofre e o
que impõe o sofrimento”.
A lei penal, em suma, deve ser indiscutível em seus termos, taxativa (princípio da taxatividade ou da
certeza). Não pode descrever o crime de forma vaga, aberta ou lacunosa. A segurança jurídica (do cidadão)
exige precisão no texto legal (pois do contrário a liberdade individual submete-se a um regime jurídico de
insegurança).
São contrárias à garantia da legalidade material as leis que descrevem os delitos de forma vaga e imprecisa,
deixando nas mãos dos juízes a definição do delito (isso ocorria, por exemplo, com o crime de adultério, que
acabou sendo revogado). Ofende também o princípio da certeza ou da taxatividade a lei penal fundada em
requisitos normativos culturais (crime de ato obsceno, por exemplo). Tipo penal com essa forma aberta
resulta em verdadeira loteria (porque a tipicidade passa a ficar vinculada ao que o juiz pensa). Tal
imposição, no entanto, não impede que o legislador ordinário utilize-se, vez ou outra, após uma enumeração
casuística, uma formulação genérica que deve ser interpretada de acordo com os casos anteriormente
elencados – v.g., CP, art. 121, § 2.o
, II e IV – (interpretação analógica).
Se o artigo 1º do Código Penal exige que o crime seja “definido” pela lei, resulta claro que o legislador
não pode apenas mencionar um dado da sua definição legal, sem defini-lo. Essa lacuna está presente
atualmente na locução “organização criminosa”, que é mencionada na Lei 9.034, de 1995 (lei do crime
organizado), mas que não foi definida pelo legislador. Sua aplicabilidade, portanto, está impedida (por
ora).
5
LUISI, Luis. Princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 18-19.
6
BECCARIA. De los delitos y de las penas, cit., p. 32-33.
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4.ª) Lex clara: as leis, particularmente as penais, devem ser escritas de forma simples, inteligível, de tal
maneira que todos os cidadãos possam compreendê-las. 7
Lei clara, portanto, é a lei inteligível,
compreensível. O legislador deve utilizar expressões que possam ser entendidas pela população. De outro
lado, o melhor seria que todas as leis penais fossem inseridas num só código (reserva de código), pois, desta
forma, estariam todas elas organizadas sistêmica e racionalmente, resultando, por conseqüência, numa lei
mais clara. Quanto mais esparsas as leis, menos inteligíveis são. Isso conduz, em alguns casos, ao
reconhecimento do erro de proibição.
No que se relaciona com a garantia da lex clara Beccaria enfatizava: 8
“Querem evitar delitos? Façam com
que as leis sejam claras e simples, e que toda força da nação esteja empregada em defendê-las, nenhuma
parte em destruí-las”.
Se queremos, portanto, evitar delitos, devemos fazer com que as leis penais sejam claras. A lei penal não
cumpre sua função preventiva jamais se o seu destinatário não compreende sua mensagem. Quando a letra
da lei é ininteligível, não há como esperar que haja motivação normativa no sentido de se evitar a conduta
proibida. A falta de clareza no texto legal prejudica (e muito) o reconhecimento da culpabilidade
(entendida, no atual estágio, como capacidade de se motivar de acordo com a norma).
5.ª) Lex determinata: por força do princípio da determinabilidade, as normas criminais devem descrever, tal
como já propugnava Feuerbach, fatos passíveis de comprovação em juízo, é dizer, “uma fenomenologia
empírica verificável no curso do processo sob o império das máximas de experiência ou de leis científicas:
somente assim o juízo de conformidade do caso concreto à previsão abstrata não será abandonado ao arbítrio
do juiz”.9
Seria inválida uma lei que cominasse pena para quem contaminasse o solo do planeta Marte ou
atacasse um extraterrestre dentro de um disco voador.
A sanção penal, do mesmo modo, deve retratar uma conseqüência empiricamente realizável. O legislador
não pode, por exemplo, fixar como pena o recolhimento do réu, no final de semana, na lua.
6.ª) Lex rationabilis: nos dias atuais, quando a preocupação central do juiz deve orientar-se para a solução
justa de cada caso concreto, é absolutamente inatendível o velho brocardo que diz: lex quanvis
irrationabilis, dummodo sit clara (a lei, ainda que irracional, sendo clara, tem de ser aplicada). O que deve
imperar hoje é exatamente o contrário: a lei irracional não deve ser aplicada, 10
porque inconstitucional.
Nesse caso, aplica-se a Lei Maior, para negar validade à inválida lei ordinária.
7
Cf. TUBENCHLAK, James. Estudos penais. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 206-207, a propósito
assinalou: “Em se tratando da conceituação de ações e omissões a que se cominam as mais severas
penalidades, ora suprimindo, ora restringindo o bem supremo do homem – a liberdade –, os termos e
expressões legais hão de ser, o mais possível, claros, precisos, indúbios, a fim de possibilitarem perfeita
compreensão popular sobre o que a norma penal está a ordenar ou proibir”. Mais adiante, com propriedade,
apresentou suas críticas contra os crimes de aborto, rixa, violação de direito autoral, adultério e motim de
presos.
8
BECCARIA. De los delitos y de las penas, cit., p. 33.
9
Cf. MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Corso de diritto penale, cit., p. 101.
10
Sobre a irracionalidade da criminalização da arma de brinquedo v.: GOMES, Luiz Flávio. Estudos de
direito penal e processo penal, cit., p. 133 et seq.. É certo que esse delito desapareceu com o novo Estatuto do
Desarmamento.
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7.ª) Lex stricta: a lei penal deve ser interpretada restritivamente. Em conseqüência, para se evitar o arbítrio
judicial, por força do princípio da taxatividade, veda-se a aplicação analógica da lei contra o réu. Analogia in
bonam partem se admite; in malam partem é inaceitável. Mas a garantia da lex stricta também alcança o
legislador, que não deve jamais criminalizar uma conduta admitindo a analogia, que não se confunde com a
interpretação analógica. Esta é tolerada, desde que a situação concreta seja efetivamente reconduzível ao
significado literal do dispositivo, que deve contemplar uma série de hipóteses homogêneas, de tal modo a
possibilitar, sem nenhuma lesão à legalidade, a adequação do caso à norma (leia-se: à vontade do
legislador). Ex.: conduzir veículo automotor sob o efeito do álcool ou substâncias de efeitos análogos
(Código de Trânsito brasileiro, art. 306). As substâncias análogas estão compreendidas na vontade do
legislador. Essa interpretação analógica é admita em Direito penal.
A discussão, bastante atual, em torno da conduta denominada “cola eletrônica” bem evidencia a garantia
da lei estrita. A Corte Suprema, por maioria (6x5), afirmou que a cola eletrônica (alguém num vestibular,
com aparato no ouvido, recebe indicações externas sobre as respostas certas) não encontra adequação
típica formal em nenhum artigo de lei (STF, Inq. 1.145-PB, rel. orig. Min. Maurício Corrêa; rel. final Min.
Gilmar Mendes). Isso está correto. A lei penal é estrita. Não pode ser interpretada analogicamente contra
o réu. Por isso que não é possível utilizar, no caso, o art. 171 do Código Penal. Diga-se a mesma coisa em
relação ao crime previdenciário no que diz respeito às contribuições do empregador. O tipo penal (CP, art.
168-A) não fez referência a essas contribuições. Logo, por analogia contra réu, não se pode incriminar tal
conduta.
8.ª) Lex praevia: a lei penal primeiro precisa entrar em vigor e só vale para fatos ocorridos a partir da sua
vigência. Daí dizer o art. 1.º do CP que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia
cominação legal”.11
Na garantia de lex praevia está espelhado o princípio da anterioridade da lei penal, que
se complementa com o da irretroatividade da lei penal nova mais severa. Aliás, entre nós, há inclusive texto
constitucional: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (art. 5.º, XL).
Em suma: a garantia da lei prévia exprime o princípio da anterioridade que significa que a lei penal deve
entrar em vigor antes e só vale para fatos que ocorram a partir dela (CP, art. 1.o
). A lei penal nova
incriminadora ou que prejudique o réu de qualquer maneira não retroage, isto é, não alcança fatos
passados. Estudaremos essa garantia com detalhes mais adiante.
9ª) Nulla lex sine iniuria: as oito garantias que vimos até aqui dizem respeito tanto à legalidade criminal
como à penal. Ou seja: crime e pena sujeitam-se às garantias da lei escrita, lei popular, lei certa, lei clara, lei
determinada, lei proporcional, lei estrita e lei prévia. A nona garantia (nulla lex sine iniuria) diz respeito
exclusivamente à legalidade criminal. Na Décima segunda seção (para onde remetemos o leitor) vimos que
uma das exigências político-criminais derivadas do princípio da ofensividade do fato consiste precisamente
em compelir o legislador, no momento da criminalização, a descrever com clareza um verbo ofensivo ao
bem jurídico. Essa é a nona garantia material decorrente do princípio da legalidade criminal.
11
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC nº 8.171, do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará/CE, Rel.
Min. Vicente Leal. DJU 05 abr. 1999, p. 153, assentou-se: “O princípio do nullum crimen, nulla poena sine
praevia lege, inscrito no art. 5.º, XXXIX, da Carta Magna, e no art. 1.º do CP, consubstancia uma das colunas
centrais do Direito penal dos países democráticos, não se admitindo qualquer tolerância sob o argumento de
que o fato imputado ao denunciado pode eventualmente ser enquadrado em outra regra penal. Se ao réu
imputa-se um fato que somente em lei posterior veio a ser definido como crime, a denúncia não tem vitalidade
por ferir o princípio da anterioridade, impondo-se o trancamento da ação penal”.
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A lei penal, em outras palavras, deve utilizar sempre verbos que retratem uma ofensa ao bem jurídico
(“matar”, “subtrair”, “constranger” etc.). Deve descrever com clareza a forma de ataque a esse bem. Essa
é a garantia que emana do princípio da ofensividade.
Todas essas nove dimensões de garantia emanadas da legalidade criminal valem também para as medidas de
segurança (que estão sujeitas inclusive ao princípio da anterioridade – lex praevia). Valem ainda,
evidentemente, para as contravenções penais e, mutatis mutandis, para toda a atividade processual ou
jurisdicional (princípio da legalidade processual ou jurisdicional ou due process of law) bem como para a
execução das conseqüências jurídicas do crime (legalidade na execução). 12
A doutrina penal, embora não apresente uniformidade no momento de elencar todas as garantias emanadas
do princípio da legalidade, se acha bastante consolidada no sentido de lhe reconhecer como limite formal
absolutamente impostergável do ius puniendi.
A exigência de um texto escrito (1ª garantia) é condição necessária (sine qua non) mas não suficiente para
atender o princípio da legalidade. Há que respeitar, ademais, a competência e a legitimidade exclusiva do
legislador que, por seu turno, deve observar estritamente o procedimento legislativo constitucional previsto
para as leis ordinárias. Só assim, do ponto de vista formal, a norma penal possui validez e eficácia. De
qualquer maneira, ressalte-se que as garantias inerentes ao mencionado princípio, como acabamos de ver,
não se resumem à edição de uma lei formal.
Consoante Hassemer, “em sua atual configuração, o princípio da legalidade mantém diversas exigências,
tanto frente ao legislador penal como frente ao juiz. Do legislador exige que formule as descrições do delito
do modo mais preciso possível (nullum crimen sine lege certa) e que as leis não tenham efeito retroativo
(nullum crimen sine lege praevia). Do juiz exige que suas condenações tenham por base a lei escrita e não o
direito consuetudinário (nullum crimen sine lege scripta) e que não amplie a lei escrita em prejuízo do
acusado (nullum crimen sine lege stricta: a chamada proibição da analogia)”.13
Hassemer, pelo que acaba
de proclamado, chamou atenção para quatro garantias decorrentes da legalidade. Na verdade, no total,
como vimos, são nove.
Nessa mesma linha disserta Claus Roxin, 14
enfatizando desde logo que o princípio da legalidade serve para
evitar uma punição arbitrária e não calculável ou baseada numa lei imprecisa ou retroativa. Para ele, o
princípio de que “não existe delito sem lei”, desde que Franz von Liszt chamou o Código Penal de “a Carta
Magna do delinqüente”, significa o seguinte: assim como no seu momento a Magna Charta Libertatum
britânica (1215) protegia o indivíduo de intromissões arbitrárias do poder estatal, o Código Penal põe a
coberto o cidadão (tanto o honrado como o não honrado) de todo castigo por uma conduta que não tenha
sido claramente declarada punível antes do fato. O princípio supra citado se completa com a fórmula “não
existe pena sem lei”. Quer dizer: não basta a circunstância de que uma determinada conduta seja já
punível, senão também a classe de pena e sua quantia hão de estar legalmente fixadas antes do fato.
12
COBO DEL ROSAL, Manuel; VIVES ANTÓN, Tomás S. Derecho penal: parte general, cit., p. 51.
13
HASSEMER, Winfried. Fundamentos del Derecho penal, cit., p. 313-314.
14
ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general, cit., p. 137-139.
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Coincidindo com a doutrina de Hassemer, destaca Roxin15
quatro conseqüências do princípio da legalidade
(no total, como vimos acima, são nove), plasmadas na forma de proibições, das quais as duas primeiras se
dirigem ao juiz e as duas últimas ao legislador. Tais conseqüências ou repercussões são:
(1) a proibição do analogia (nullum crimen, nulla poena sine lege stricta): deve-se distinguir entre analogia
legal e analogia jurídica. Na primeira, a regra jurídica que vai se trasladar procede de um preceito
concreto, na segunda, a regra jurídica se depreende de vários preceitos. Em caso de aplicação do direito
em prejuízo do sujeito, o poder do juiz penal ultrapassa os limites da interpretação;
(2) a proibição do direito consuetudinário para fundamentar ou agravar a pena (nullum crimen, nulla
poena sine lege scripta): esta proibição decorre da conseqüência óbvia da norma que prescreve que a
punibilidade só pode determinar-se legalmente;
(3) a proibição da retroatividade (nullum crimen, nulla poena sine lege praevia): é constitucionalmente
inadmissível a retroatividade, sem que a punibilidade (na sua classe ou quantia) não esteja declarada e
determinada legalmente antes do fato;
(4) a proibição de leis penais e penas indeterminadas (nullum crimen, nulla poena sine lege certa): é
inadmissível a punibilidade e as penas totalmente indeterminadas.
O significado supremo derivado de todas as garantias estudadas consiste na vinculação a todas elas do
legislador, do intérprete e do juiz. Dupla também, portanto, é a função do princípio da legalidade do fato: (a)
político-criminal; (b) dogmática e interpretativa.
O conteúdo constitucional do princípio da legalidade no âmbito criminal e penal (lex certa, praevia, scripta,
populi, clara, determinata, rationabilis, stricta e nulla lex sine iniuria) comporta, em primeiro lugar, um
mandamento de taxatividade frente ao legislador, que há de fazer “o máximo esforço possível” para
garantir a segurança jurídica, isto é, para que os cidadãos possam conhecer de antemão o âmbito do
proibido e prever, assim, as conseqüências das suas ações, “programando suas condutas sem temor a
possíveis condenações por atos não tipificados previamente”. Por isso, a garantia da tipicidade não é senão
“o reverso, o complemento e o pressuposto da garantia de determinação que há de preservar o legislador e,
em seu caso, a Administração, com formulações “concretas, precisas, claras e inteligíveis”. Frente ao juiz o
princípio da legalidade, que se entronca com os da segurança jurídica e legitimidade democrática, veda a
aplicação analógica in peius das normas penais, isto é, “significa uma rejeição da analogia como fonte
criadora de delitos e penas, e impede, como limite à atividade judicial, que o juiz se transforme em
legislador”.
Tema 2 Lei Penal no Tempo
Lei penal e vacatio legis: as leis penais quando se acham em período de vacância (vacatio legis) não
possuem vigência. Logo, não podem ser aplicadas, mesmo que mais benéficas ao réu. Não podem ser
aplicadas nem favoravelmente e muito menos desfavoravelmente ao réu (cf. logo abaixo nossa opinião
detalhada sobre o assunto). Fato descrito em lei nova mas ocorrido durante a vacatio não é crime (não é
15
ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general, cit., p. 139-141.
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punível). Se a lei ainda não entrou em vigor, não pode alcançar fatos passados (princípio da irretroatividade
da lei penal nova prejudicial, que se combina com o princípio da anterioridade da lei penal, ou seja, deve
antes entrar em vigor e só vale para fatos futuros).
A questão da não aplicação da lei nova favorável durante a vacatio, entretanto, não é pacífica. Há muita
polêmica em torno dela: sustentando que a lei nova benéfica deve ser aplicada mesmo na vacatio: cf. RT
667/330. Segundo nosso ponto de vista a lei penal só pode ser aplicada quando entra em vigor. Não há
dúvida que a vacatio é o tempo destinado ao conhecimento da lei. E desde que publicada o juiz já a
conhece. Mas não pode aplicá-la porque não se trata de lei vigente. Lei na vacatio ainda não faz parte do
ordenamento jurídico vigente. Formalmente essa é a solução para o problema. Essa solução formal, de
qualquer maneira, resolve a questão somente em parte. Se de todo juiz o que se espera é razoabilidade (que
é princípio constitucional fundante do Direito penal, inclusive), é preciso que se avance um pouco mais.
Vejamos:
Quando há uma lei penal nova favorável em vacatio, não pode o juiz aplicar essa lei nova, porém,
tampouco deve aplicar a lei vigente (que vai desaparecer e que é mais prejudicial). O correto é postergar a
decisão do conflito, só tomando medidas cautelares inadiáveis sobre ele, até que entre em vigor a lei nova.
Essa foi nossa sugestão em todo período de vacatio da Lei 10.259/2001 (que ampliou o conceito de infração
de menor potencial ofensivo). Atuou bem o juiz que, na vacatio, não aplicou nem a lei antiga nem tampouco
a nova (antes de sua vigência) e aguardou a vigência (14.01.2002) da citada lei. Impende sublinhar que o
adiamento da decisão não configura prevaricação (CP, art. 319), pois não é concretizado para satisfazer
interesse pessoal ou sentimento particular (sim, interesse público, de aplicação justa da lei).
E se o réu estiver preso? Tendo em vista a lei nova favorável, que está em vacatio, o correto é tomar as
medidas cautelares urgentes: liberar o réu imediatamente é uma delas. E quando a lei nova entrar em vigor
será feita a sua devida aplicação. De qualquer maneira, seria inadmissível o juiz, nesse contexto, aplicar a
lei vigente (mais dura, mais severa) ou nada fazer diante da situação processual ou prisional do acusado.
Cabe ao juiz fazer um juízo de prognóstico sobre os benefícios da nova lei e, desde logo, já tomar as
medidas cautelares imediatas. No tempo certo (opportuno tempore) fará a devida aplicação da lei em
vacatio.
Conclusão: lei que não entrou em vigor não deve ser aplicada, ainda que mais benéfica, justamente porque
ainda não faz parte do direito vigente. Mas se a lei nova é benéfica, isso significa que o direito vigente é
mais severo. Tampouco ele deve ser aplicado. Melhor solução: aguardar a vigência da lei nova, mas por
força do princípio da razoabilidade, devem ser tomadas todas as providências urgentes (exemplo: soltura
do réu preso, se o caso, etc.).
Lei penal no tempo: a lei penal rege os fatos ocorridos durante o tempo de sua vigência (tempus regit
actum). Crime ocorrido sob o império da Lei 9.613/98 (Lei de Lavagem de Capitais), v.g., é regido por essa
lei, tal como ela existe na data do crime. Crime de homicídio ocorrido na vigência do art. 121 do CP é regido
por esse dispositivo legal e assim por diante. O fato é regido, em síntese, pela lei do seu tempo (tempus regit
actum).
Tempus regit actum: essa é a regra geral. Sucede que, depois de ocorrido o fato (que foi cometido sob a
regência de uma determinada lei – lei “A”) pode ser que o legislador modifique seu conteúdo (por meio da
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lei “B”). A isso se dá o nome de conflito de leis penais no tempo, que possui como característica essencial a
plasmação de uma sucessão de leis penais. É o que estudaremos em seguida.
b) Conflito de leis penais no tempo (princípios incidentes)
Quando há uma efetiva sucessão de leis penais (no tempo do crime vigorava a lei “A” e no tempo do
processo, da sentença ou da execução passa a vigorar a lei “B”, regente da mesma situação fática) então sim
se pode falar em conflito de leis penais no tempo (ou sucessão de leis penais). Qual delas deve ter incidência
no caso concreto: a lei do tempo do crime (lei “A”) ou a lei do tempo do processo ou da sentença ou da
execução (lei “B”)?
Princípios regentes: ao conjunto de regras e princípios que regulam o conflito de leis penais no tempo dá-se
o nome de Direito penal intertemporal. Para resolver esse assunto foram desenvolvidos dois princípios
básicos e dois outros correlatos:
1’) irretroatividade da lei penal nova mais severa: nossa Constituição Federal é expressa: “a lei penal não
retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (art. 5º, inc. XL). A Lei 8.072/90 – Lei dos Crimes Hediondos –
constitui um paradigmático exemplo de lei nova mais severa. Muitos delitos (a partir dela) passaram a ser
punidos mais gravemente; a execução da pena tornou-se mais severa etc. Essa Lei, por isso mesmo, naquilo
em que era mais prejudicial ao agente, foi e é irretroativa. É irretroativa a lei penal mais severa quanto aos
crimes (JCAT 73, p. 530), às penas (RT 512/376), ao regime de cumprimento da pena (RT 722/416), à
prescrição (RT 516/292) etc. Em outras palavras: qualquer que seja o aspecto disciplinado do Direito penal
incriminador (que cuida do âmbito do proibido e do castigo), sendo a lei nova prejudicial ao agente, não
pode haver retroatividade.
Leis novas prejudiciais: em suma, toda lei penal nova que se apresenta como prejudicial não retroage.
Entram nessa categoria: (a) a lei nova incriminadora ou novatio legis incriminadora: por exemplo, Lei
9.455/97 – lei da tortura; Lei 9.613/98 – lei da lavagem de capitais etc.); e (b) a lei nova prejudicial –
novatio legis in peius (que aumenta pena, que agrava regime de execução da pena, que aumenta a pena
mínima etc.). A Lei 9.695/98 (que cuida da falsificação ou indevida manipulação dos alimentos e remédios)
tornou a lei dos crimes hediondos mais dura. Portanto, só se aplica para fatos a partir dela. E os fatos
anteriores? São regidos pelas leis anteriores (mais benéficas). A nova lei de falências (Lei 11.101, de 2005)
aumentou o prazo prescricional: logo, só vale, nesse ponto, para crimes ocorridos após a lei nova. Fatos
anteriores são regidos pela lei anterior.
2’) ultra-atividade da lei penal anterior mais benéfica: quando o assunto disciplinado na lei nova (mais
severa) já fazia parte de outra norma anterior (mais benéfica), aplica-se o princípio da irretroatividade da lei
penal nova mais severa (lei nova que aumenta pena, que endurece o regime do seu cumprimento, que
estabelece novas causas agravantes, que aumenta prescrição etc.). A lei que terá incidência, nesse caso, é a
antiga (que vai continuar regendo os fatos ocorridos em seu tempo). Esse é o princípio da ultra-atividade da
lei penal anterior mais benéfica (leia-se, a lei anterior, embora já tenha perdido sua vigência, diante da lei
nova, continua válida e aplicável para os fatos ocorridos durante o seu tempo; se a lei nova é prejudicial, ela
não retroage, não alcança os fatos passados; desse modo, eles continuam sendo regidos pela lei anterior,
mesmo tendo essa lei anterior já perdido sua vigência; aliás, justamente porque já não está vigente é que se
fala em ultra-atividade, ou seja, a lei acaba tendo atividade mesmo depois de “morta”).
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Não há que se falar no princípio da ultra-atividade de lei penal anterior quando o assunto tratado na lei nova
não tinha correspondência com nenhuma outra norma anterior do ordenamento jurídico. Quando a lei nova
cria crime novo, é irretroativa (considerando-se que o fato não era punido antes, não há que se falar em
ultra-atividade de lei antiga). Os fatos pretéritos são atípicos.
Cabe progressão de regime em latrocínio? Sabemos que pela Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990)
isso não era possível, até o advento do entendimento do STF, no HC 82.959 (que passou a admitir
progressão de regime inclusive nos crimes hediondos). Mas quando se tratava de crime ocorrido antes do
advento da lei dos crimes hediondos (em 1989, v.g.) sim. Por quê? Porque em se tratando de lei nova
desfavorável, ela não retroage. Não alcança fatos passados, que são regidos pela lei do seu tempo.
Casamento do agente com a ofendida: era causa extintiva da punibilidade de acordo com o CP, art. 107,
incisos VII e VIII. Com a Lei 11.106/2005 esses incisos foram revogados. O casamento já não possui efeito
extintivo da punibilidade no Direito penal brasileiro. Tratando-se, entretanto, de casamento (do agente com
a vítima) ocorrido antes do advento da Lei 11.106/2005, ainda é aplicável o art. 107, VII ou VIII, porque
esse diploma legal (a Lei 11.106/2005) retrata uma situação de novatio legis in pejus. O novo texto
legislativo (sendo lex gravior) não pode ter eficácia retroativa, ao contrário, é a lei anterior que tem efeito
ultra-ativo (porque se trata de lex mitior). A norma penal benéfica, nesse caso, é a antiga (não a nova). Se o
crime foi cometido antes da lei nova, a ele se aplica o direito antigo (não o atual) (STF, HC 90.140-GO, rel.
Min. Celso de Mello, j. 01.12.06). Casamento ocorrido depois da derrogação do art. 107, incisos VII e VIII
do CP, não possui eficácia para o fim da extinção da punibilidade. O que importa, nesse caso, não é a data
do fato, sim, a data do casamento.
3’) retroatividade da lei penal nova mais benéfica: a regra da retroatividade da lei penal nova mais benéfica
tem fundamento constitucional: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (art. 5º, inc. XL).
A Lei 9.714/98 constitui um exemplo de lei penal nova favorável. Ela ampliou o rol das penas substitutivas
no nosso país: cuida-se, portanto, de lei nova (em regra) mais benéfica. Logo, retroativa (CF, art. 5º, inc.
XL). A retroatividade não é facultativa, sim, obrigatória. O comando normativo derivado de uma lei penal
nova mais benéfica ao réu deve ser cumprido pelo juiz compulsoriamente. De outro lado, a lei nova mais
favorável deve ser aplicada tanto em favor do acusado (quando o processo ainda está em andamento) como
do condenado definitivo (CP, art. 2.o
, parágrafo único). Ou seja: mesmo após a sentença final (com trânsito
em julgado), incide no caso concreto a lei penal nova mais favorável.
Leis novas benéficas: toda lei penal nova que favorece o agente é retroativa. São elas: (a) lei que traz
algum benefício – lex mitior ou novatio legis in mellius (lei que diminui pena, que atenua a forma de
execução, que permite transação penal – RJDTACRIM 30, p. 241 –, que passa a exigir representação – RT
735/539 etc.). A Lei de Tortura (Lei 9.455/97) possibilitou a progressão de regime no crime de tortura. Mas
segundo jurisprudência pacífica (com a qual não concordamos, em parte) essa lei só se aplica aos crimes
de tortura e não se estende a outros delitos hediondos ou equiparados. Lei nova mais benéfica que diminuiu
o tempo da prisão favorece o réu que está preso, não há dúvida, mas não lhe permite indenização civil
(porque não estava preso ilegalmente); (b) lei penal nova que descriminaliza fato anteriormente definido
como infração penal – abolitio criminis -, que será examinada mais detalhadamente logo abaixo.
RE-QO 430105 / RJ - RIO DE JANEIRO
QUESTÃO DE ORDEM NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE
Julgamento: 13/02/2007 Órgão Julgador: Primeira Turma
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Publicação
DJ 27-04-2007 PP-00069
EMENT VOL-02273-04 PP-00729
Parte(s)
RECTE.(S) : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO RECDO.(A/S) : JUÍZO DE
DIREITO DO X JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL DA COMARCA DO RIO DE JANEIRO
RECDO.(A/S) : JUÍZO DE DIREITO DA 29ª VARA CRIMINAL DO RIO DE JANEIRO
INTDO.(A/S) : MARCELO AZEVEDO DA SILVA
Ementa
EMENTA:I. Posse de droga para consumo pessoal: (art. 28 da L. 11.343/06 - nova lei de drogas): natureza
jurídica de crime. 1. O art. 1º da LICP - que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando
se está diante de um crime ou de uma contravenção - não obsta a que lei ordinária superveniente adote
outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime - como o fez o art. 28 da L.
11.343/06 - pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções
constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). 2. Não se pode,
na interpretação da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo "rigor técnico", que
o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo
denominado "Dos Crimes e das Penas", só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts.
27/30). 3. Ao uso da expressão "reincidência", também não se pode emprestar um sentido "popular",
especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06
afastaria a regra geral do C. Penal (C.Penal, art. 12). 4. Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, ao
processo de infrações atribuídas ao usuário de drogas, do rito estabelecido para os crimes de menor potencial
ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da L.
9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do art. 107 e seguintes
do C. Penal (L. 11.343, art. 30). 6. Ocorrência, pois, de "despenalização", entendida como exclusão, para o
tipo, das penas privativas de liberdade. 7. Questão de ordem resolvida no sentido de que a L. 11.343/06 não
implicou abolitio criminis (C.Penal, art. 107). II. Prescrição: consumação, à vista do art. 30 da L. 11.343/06,
pelo decurso de mais de 2 anos dos fatos, sem qualquer causa interruptiva. III. Recurso extraordinário
julgado prejudicado.
Decisão
A Turma, resolvendo questão de ordem, julgou prejudicado o recurso extraordinário. Unânime. Não
participou, justificadamente, deste julgamento, a Ministra Cármen Lúcia. 1ª. Turma, 13.02.2007.
4’) não ultra-atividade da lei penal anterior mais severa: ao princípio da retroatividade da lei penal nova
mais benéfica correlaciona-se o da não ultra-atividade da lei penal anterior maléfica para o réu (se a lei
nova é benéfica, é ela que terá incidência, ela retroage). A lei anterior, caso existente, não é ultra-ativa, leia-
se, ela não terá aplicação. Se a lei nova vem a diminuir a pena de um determinado crime, é ela que será
aplicada, inclusive para os casos passados. Nessa situação, a lei anterior é mais severa, logo, não conta com
ultra-atividade.
5’) extra-atividade da lei penal: quando uma lei for ultra-ativa (lei anterior benéfica aplicada a um caso
concreto mesmo depois de ter sido revogada) ou retroativa (lei nova benéfica que é aplicada a um caso
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concreto ocorrido antes da sua vigência) fala-se que ela possui extra-atividade, isto é, ela passa a regular
fatos posteriores (à sua “morte”) ou anteriores (à sua vigência). Isso significa uma incidência (atividade)
extra da lei benéfica (atividade fora do seu tempo), e tudo acontece por força do princípio constitucional da
lei mais benéfica (CF, art. 5º, inc. XL).
A lei penal que disciplinava o latrocínio (CP, art. 157, § 3.o
) antes do advento da Lei dos Crimes Hediondos
continua (mesmo depois de revogada) regendo os fatos ocorridos em seu tempo (tem ultra-atividade),
porque a lei nova (Lei dos Crimes Hediondos é mais severa e, portanto, irretroativa). Uma lei penal nova
benéfica (Lei 9.714/98, que ampliou as penas substitutivas) rege fatos inclusive anteriores ao seu
nascimento (porque a lei anterior é mais severa e, portanto, nesse caso, não tem ultra-atividade).
Âmbito de incidência dos princípios examinados: todos os princípios que acabam de ser enunciados valem
para o crime, para a pena assim como para a medida de segurança. No que diz respeito ao Direito penal
incriminador a lei nova só pode retroagir quando favorável.
Leis penais e leis processuais: quanto à lei processual penal é preciso distinguir: (a) lei genuinamente
processual tem aplicação imediata (CPP, art. 2.o
); e (b) lei processual com conteúdo ou reflexos penais
imediatos é regida pelos princípios que acabam de ser tratados (se a lei nova for mais benéfica retroage, do
contrário não).
Uma lei nova que venha a proibir fiança, por exemplo, é uma lei processual, mas tem reflexos diretos no ius
libertatis. Logo, é regida pelos princípios que foram estudados. Sendo uma lei nova prejudicial, não
retroage. Ou seja: os crimes cometidos antes dela, admitem fiança (a lei antiga, nesse caso, tem ultra-
atividade). Irretroatividade da lei processual nova mais severa e ultra-atividade da lei processual anterior
benéfica. A lei processual, como se vê, às vezes tem o mesmo tratamento da lei penal. Tudo depende do seu
conteúdo.
Leis mistas (penais e processuais): quando se trata de lei nova que conta com aspectos penais e processuais
penais ao mesmo tempo, o preponderante é o primeiro (o aspecto penal). Resta saber se ele é favorável ou
desfavorável ao agente do fato. Quando favorável, a lei nova retroage. Se desfavorável, a lei a nova não
retroage. No caso do art. 366 do CPP (que prevê a suspensão do processo quando o acusado for citado por
edital e não comparecer nem constituir advogado) firmou-se jurisprudência no sentido da sua
irretroatividade (porque, na parte penal, cuida-se de lei nova desfavorável, na medida em que suspende a
contagem do prazo prescricional).
Jurisprudência nova favorável: isolada e momentânea alteração jurisprudencial não autoriza sua aplicação
retroativa em favor do agente do fato. As mutações jurisprudenciais acontecem quase que diariamente. Mas
muitas não se consolidam. Distinta é a situação quando a mudança jurisprudencial é definitiva. Se a lei nova
favorável é retroativa, por analogia (in bonam partem) a jurisprudência nova (consolidada) também o é. Por
exemplo, quando o Tribunal cancela uma súmula. Isso se deu, v.g., com o cancelamento da Súmula 174 do
STJ, que autorizava aumento de pena no roubo mesmo que a arma fosse de brinquedo. Pode-se afirmar a
mesma coisa em relação à decisão do STF, proferida no HC 82.959, que julgou inconstitucional a lei dos
crimes hediondos no ponto em que proibia a progressão de regime. Não há dúvida que essa decisão do STF
tem eficácia retroativa.
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Cancelada a Súmula 174, pela Terceira seção do STJ, mesmo em se tratando de coisa julgada, não há
dúvida que essa consolidada alteração jurisprudencial favorável ao réu deve retroagir. Aliás, como não
demanda instrução probatória, o próprio juiz da causa ou das execuções tem competência para fazer incidir
a nova jurisprudência.
Juízo competente para aplicar a lei penal nova mais favorável: para aplicar a lei penal nova mais favorável
é competente o juiz que conta com jurisdição sobre o caso. Se o processo está em primeiro grau, é o juízo de
primeiro grau; se está no Tribunal, é o Tribunal (recordando que ele tem o poder de remeter o caso para a
primeira instância, para se observar o contraditório e o duplo grau de jurisdição); se já existe coisa julgada
ou execução provisória, é o juízo das execuções (LEP – Lei 7.210/84, art. 66, I, e Súmula 611 do STF).
Recorde-se que a execução provisória do julgado (Súmulas 716 e 717 do STF) é da competência do juízo
das execuções. Se a lei nova surge justamente quando ainda não solucionado um eventual conflito negativo
de competência, não resta outro caminho senão impetrar habeas corpus para o Tribunal competente (para
dirimir o conflito). De outro lado, se a aplicação da lei nova exige a produção de provas, não resta outra
solução que não a revisão criminal.
Totalmente improcedente é a afirmação no sentido de que o juiz de primeiro grau não poderia aplicar a lei
penal nova mais favorável (mesmo estando o processo em primeira instância) porque já teria esgotado sua
jurisdição. Depois de publicada a sentença, o juiz esgota sua jurisdição em relação ao mérito da decisão
(não pode reexaminar o mérito da sua decisão. Se condenou o réu, não pode agora absolvê-lo). Mas se
surge lei nova favorável, não há dúvida que readquire jurisdição (para a aplicação dessa lei nova). Para
esse efeito (fazer incidir a lei nova, única e exclusivamente) o juiz conta com jurisdição, mesmo após ter
sido prolatada a sentença.
Em regra, portanto, o próprio juízo sentenciante dá aplicação (imediata) à lei nova favorável. Sem
necessidade de revisão criminal. A revisão criminal só se torna necessária quando a lei penal nova mais
favorável venha a implicar na necessidade de instrução probatória ou de exame comparativo de provas. Até
onde for possível, entretanto, cabe ao próprio juízo sentenciante aplicar a lei nova.
Tema 3: Principio da Legalidade
a) Princípio da territorialidade relativa
Lei penal no espaço e Direito penal internacional: o estudo da lei penal no espaço visa a descobrir qual é o
âmbito territorial de aplicação da lei penal brasileira bem como de que forma o Brasil se relaciona com
outros países em matéria penal.
Denomina-se Direito penal internacional o conjunto de regras que disciplina o ius puniendi de um
determinado Estado em suas relações com outros Estados (no nosso caso, cf. arts. 5.º a 9.º do CP).
Direito penal internacional e Direito internacional penal: o Direito penal internacional faz parte do Direito
público interno e não se confunde com o Direito internacional penal, que integra o Direito internacional e é
voltado para a disciplina do ius puniendi aplicado por órgãos internacionais.
O Tribunal Penal Internacional é o órgão jurisdicional supranacional máximo do Direito internacional
penal. Está regido pelo Estatuto de Roma, que o criou. O TPI integra o Direito internacional penal. Já a
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regra do art. 7.º do CP que manda aplicar a lei penal brasileira para crimes ocorridos fora do Brasil é uma
regra de Direito penal internacional.
Princípio da territorialidade relativa ou temperada: ao crime ocorrido no território nacional aplica-se a lei
penal brasileira (CP, art. 5.º: “Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de
direito internacional, ao crime cometido no território nacional”). Todo crime ocorrido no Brasil deve, em
princípio, ser processado e punido no Brasil, independentemente da nacionalidade do agente ou da vítima ou
do bem jurídico afetado. Em princípio, para crime ocorrido no Brasil, por força do princípio da
territorialidade, aplica-se a lei penal brasileira.
Mas essa regra não é absoluta. Foram ressalvadas (pelo art. 5º) as convenções, tratados e regras de Direito
internacional. Como exceções (que derivam dos tratados e regras de Direito internacional) temos as
imunidades diplomáticas e o TPI. Não adotamos, como se vê, o princípio da territorialidade absoluta, senão
o da territorialidade relativa (ou temperada).
A todo crime ocorrido no Brasil aplicamos a lei penal brasileira? Em princípio sim, ressalvadas as
imunidades contempladas em tratados ou convenções. Exemplo: estrangeiro que goza de imunidade
diplomática não responde pelo crime no Brasil, senão no seu país de origem. Um embaixador estrangeiro
que venha a cometer crime no Brasil responderá por ele no seu país de origem, não aqui no nosso país. Não
importa contra quem praticou o crime, não importa o motivo etc. Responderá por ele no seu país de origem
(e o Brasil, nesse caso, não pode substituir o país natural para o conhecimento e julgamento do caso).
Também é possível que um crime ocorrido no Brasil seja processado e julgado pelo TPI. Recorde-se, de
qualquer modo, que a jurisdição do TPI é subsidiária: se o Brasil não processar um crime contra a
humanidade, de genocídio etc., ou não puni-lo, pode o TPI julgá-lo.
Os autores de genocídio, crimes contra a humanidade etc., desde primeiro de julho de 2002, já podem ser
julgados pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), desde que tenham cometido o delito após essa data. Isso
parecia (até o final do século XX) uma meta jamais alcançável. Mesmo após o Tratado de Roma (1998),
tendo em conta a equivocada resistência norteamericana, imaginava-se que não seria tão fácil a ratificação
do Tratado por pelo menos 60 países (que era o número mínimo para a criação do Tribunal).
A história humana (separada da história animal) começou há cerca de 7 milhões de anos na África; há 4
milhões de anos o homem alcançou a postura vertical (Homo erectus); há 2,5 milhões de anos começou a
aumentar o tamanho do seu corpo e do seu crânio; há 1 milhão de anos chegou na Eurásia; há 500 mil
anos chegou na Europa, já com crânio e altura semelhante à atual (Homo sapiens); há 20 mil anos chegou
na Sibéria; cruzou o estreito de Bering e alcançou o Alasca; há 12 mil anos habitou a América do Norte; há
10 mil anos tocou a Patagônia. Mas somente 2 mil anos depois de Cristo é que constituiu seu primeiro
Tribunal Penal Internacional.
O Tribunal entrou em funcionamento efetivo em 2003. Constitui uma das mais evidentes características do
chamado Direito penal "da" globalização (cf. supra Oitava seção).
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Referido Tribunal conta com competência para julgar os chamados crimes de lesa humanidade, incluindo-
se o genocídio e os crimes de guerra. Foi aprovado em Roma, em julho de 199816
e não pode julgar crimes
anteriores ao seu surgimento.
Tem sede em Haia (Holanda) e é composto de dezoito (18) juízes. É um Tribunal integrado por juristas
(especialmente penalistas) com o propósito de garantir julgamentos justos, com todo respeito ao devido
processo legal. Aliás, desde 1215, com a Carta de João Sem Terra (art. 39), ninguém pode ser privado da
vida, liberdade ou de seus bens sem o due process of law. O TPI tem uma grande vantagem em relação aos
Tribunais (ad hoc) criados pelo Conselho de Segurança da ONU, que é constituído de quinze membros (15
países). Conta com legitimidade, força moral e poder jurídico, o que não ocorre com os Tribunais da ONU
em funcionamento que ainda estão julgando crimes ocorridos na antiga Iugoslávia, Ruanda etc..
Esses Tribunais satisfazem o senso de justiça, sinalizam oposição clara às arbitrariedades e atrocidades
cometidas em praticamente todo planeta, porém, não são Cortes pré-determinadas em lei nem constituídas
previamente (viola-se, assim, o princípio do juiz natural).
A criação do TPI, dessa forma, significou respeito à garantia do princípio do juiz natural, que consiste no
juiz previamente previsto em lei ou constituição ou tratado (juiz competente). Do princípio são extraídas
duas garantias: (a) irrecusabilidade do juiz, salvo motivo justificado; (b) proibição de juízos ou tribunais
de exceção, isto é, ad hoc (cfr. CF, art. 5º, inc. XXXVII e LIII).
A competência do TPI não é retroativa (só vale para fatos posteriores à sua criação) e observa-se ademais
o princípio da complementariedade (isto é, o TPI só atua se o país se omitir no julgamento dos seus
nacionais envolvidos em guerras, crimes contra a humanidade ou genocídio).
Sua criação só foi possível em razão da violação sistemática dos direitos humanos, particularmente por
sistemas ou regimes repressivos de todas as índoles (de direita, de esquerda, religioso etc.). Mais de 130
milhões de pessoas foram vítimas desse tipo de violência desde a Segunda Guerra Mundial.
Um dos maiores entraves à criação do TPI foram (e vêm sendo) os EUA (assim como China e Rússia). EUA
dizem que não darão apoio financeiro para o funcionamento do Tribunal.
De todos os países presentes em Roma (em 07/98) apenas sete (naquele momento) recusaram o TPI: EUA,
Israel, China, Iraque, Iêmen, Líbia e Catar.
Pode-se prognosticar que a importância do TPI será cada vez maior. Será cada vez mais imprescindível a
instituição de uma Justiça penal internacional para julgar (no futuro) não somente criminosos genocidas ou
ditadores (que são muitos ainda hoje, principalmente na América Latina, Ásia, África etc.), senão sobretudo
outros crimes que provocam conseqüências danosas para muitos países em razão da sua
transnacionalidade, como por exemplo algumas modalidades de crime organizado (tráfico de seres
humanos, de órgãos humanos, de animais, de armas etc.), o crime informático e o ecológico.
A controvertida era da globalização conta com aspectos negativos (exclusão social, por exemplo), mas
também existem os positivos. A mobilização internacional, agora, é muito mais rápida. Em razão da
16
Cf. seu Estatuto/Tratato de Roma. Disponível em: <www.derechos.net/doc/tpi.html>.
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Disciplina: Direito Penal
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evolução da informática, as pessoas se comunicam mais (e com maior facilidade). Como se vê, apesar das
dificuldades estamos evoluindo a cada dia em busca do senso do justo e do razoável.
A conservadora posição dos Estados Unidos frente ao TPI: os Estados Unidos oficialmente se retiraram
do Tratado Internacional de Roma (1998), que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI). Pela primeira
vez na história temos um Tribunal Penal permanente, com competência para julgar crimes de guerra,
genocídio e crimes contra a humanidade.
O TPI, com sede em Haya, funciona com independência de todos os Tribunais e supriu uma lacuna no
Direito internacional, que se valia de Tribunais excepcionais, criados pela ONU.
Bill Clinton chegou a assinar mensagem de adesão ao Tratado (no seu último dia de mandato, dezembro de
2000). Mas nunca o Senado o ratificou. Em seguida (já na era Bush) o Governo norte-americano
formalmente se retirou dessa iniciativa pioneira. Os EUA estão na contramão da história! A primeira
potência mundial, em lugar de dar o exemplo (de civilidade, respeito aos direitos humanos e democracia),
está se distanciando de praticamente todos os Tratados Internacionais (de Kyoto sobre o meio ambiente,
dos Mísseis Antibalísticos, das Armas Biológicas). Não aceitam regras externas, ainda que dotadas de bom
senso, equilíbrio e proporcionalidade.
Em outras palavras, em muitos momentos o império reina unilateralmente, assina e depois retira sua
assinatura dos Tratados (unsigns). Sendo a máxima potência mundial (na economia, nos armamentos, nas
finanças etc.), sua ausência no TPI é motivo de preocupação (mesmo porque, também China e Índia por ora
dele não participam). Os EUA têm milhares de soldados fora do seu território, em atividades bélicas ou
prontos para isso. Dizem que não vão se submeter a um Tribunal não confiável, apesar de terem imposto
uma série de restrições e cláusulas durante os trabalhos de construção do Tratado.
Apóiam os Tribunais ad hoc (de exceção) que ainda são criados pelo Conselho de Segurança da ONU e
estão fora do TPI. Em suma, o império não aceita leis exteriores nem critérios de justiça universal. Querem
continuar com as mãos livres, submetidos única e exclusivamente à sua própria Justiça.
A idéia que todos temos de que os EUA são o país da democracia e do respeito aos direitos humanos
continua válida, mas está em crise. Que seja momentânea essa visão (weltanschaung) unilateral.
Princípio da intraterritorialidade: há crimes que ocorrem no Brasil e a eles não podemos (ou não iremos)
aplicar a lei penal brasileira. Incide, nesse caso, ou o Direito de um país estrangeiro (é o caso dos
embaixadores, v.g., ou do crime ocorrido dentro de embarcação ou aeronave pública estrangeira) ou o
Direito internacional penal (TPI). A isso se dá o nome de intraterritorialidade, que significa que a um crime
ocorrido no Brasil vai ter incidência um Direito penal que não é nosso, que será aplicado por juiz estrangeiro
de acordo com o devido processo do respectivo país.
Sintetizando: quando o crime ocorre no Brasil mas a ele se aplica o Direito estrangeiro ou internacional (por
autoridade estrangeira, no país estrangeiro) fala-se em intraterritorialidade (que é fenômeno oposto à
extraterritorialidade, que ocorre quando a um crime ocorrido no estrangeiro aplica-se a lei penal brasileira).
Tema 4: Hipótese de Não Incidência do Direito Penal
18. RETA FINAL AGU
Disciplina: Direito Penal
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NAVIO ABORTADOR: HIPÓTESE DE NÃO INCIDÊNCIA DO DIREITO PENAL. O denominado
“barco ou navio do aborto”, que pertence a uma organização não-governamental holandesa (Women On
Waves), continua navegando pelo mundo todo. Em 29 de agosto de 2004 foi impedido de se aproximar de
Portugal. Cuidando-se de embarcação privada e estando em alto-mar (fora das 12 milhas marítimas que
integram o território dos países), todo aborto que nele é realizado deveria ser punido, por força do
princípio da bandeira ou do pavilhão, pelo país da bandeira do barco (Holanda, no caso). Ocorre que a
Holanda não pune o aborto em várias situações e a gestante conta, naquele país, com grande liberdade de
atuação (no sentido de se praticar o aborto).
Conclusão: nem no Brasil nem em Portugal (aliás, em nenhum país) pode-se punir o aborto feito no interior
desse navio, quando ele se encontra em alto-mar (leia-se: além das 12 milhas). Isso é o que decorre das
normas do chamado Direito penal internacional (que é o conjunto de regras que disciplinam o direito de
punir de um Estado frente aos outros Estados). Também não é o caso de incidência do Direito Internacional
Penal (porque a situação foge da competência do T.P.I.).
O famoso navio abortador já esteve próximo da costa brasileira e aqui foram realizados (conforme se
noticiou) muitos abortos. Mas nada foi feito (nem seria mesmo possível) em termos de repressão penal. Tal
fato não é punível no Brasil. Examinadas as regras de Direito penal internacional vigentes no Brasil (CP,
arts. 5º a 9º), verifica-se que quando o crime ocorre a bordo de avião ou navio privado estrangeiro, só se
aplica a lei penal brasileira se ele se encontra dentro do território brasileiro. Estando em alto-mar, deve-se
respeitar a lei do pavilhão ou da bandeira (leia-se: a lei do país onde o avião ou navio está registrado). E
se a lei desse país não pune o fato praticado, só resta concluir que não se trata de fato punível.
Não há que se falar, ademais, em extraterritorialidade da lei penal brasileira: primeiro porque ela exige
fato ocorrido no estrangeiro (e alto-mar não é território estrangeiro); segundo porque o fato não é punível
no país onde o navio está registrado (no caso, Holanda).
Restaria examinar o convite público que sempre é feito para que gestantes se submetam ao aborto. Mas
isso tampouco é punível. Incitação só existe quando se trata de incitar à prática de crime (leia-se de fato
punível). Apologia somente existe quando se trata de crime (isto é, de fato punível). Se o aborto realizado
em alto-mar, em navio estrangeiro privado, não é punível no seu país de origem, não há que se falar em
fato punível. Logo, não há incitação ao crime nem apologia de crime. Salvo melhor juízo, é uma hipótese de
impunidade absoluta em razão da não incidência de nenhuma norma do Direito penal.
Tema 5: Fases da Evolução da Teoria Do Tipo Penal
CAPÍTULO 2
FASES DA EVOLUÇÃO DA TEORIA DO TIPO PENAL
a) Primeira etapa: causalismo: o tipo penal, no tempo do causalismo de von Liszt e de Beling (final do
século XIX e começo do século XX), era puramente objetivo (leia-se: era só causalidade). A tipicidade,
enfocada como requisito neutro pelo seu criador (Beling, 1906), exigia: (a) conduta; (b) resultado
naturalístico (nos crimes materiais); (c) nexo de causalidade (nesses crimes materiais) e (d) adequação típica
(subsunção do fato à letra da lei).
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O tipo penal, nessa época, era puramente objetivo. O “matar alguém” significava (só) “causar a morte de
alguém”. O eixo do tipo penal residia na mera causação. Provocar o aborto significava “causar o aborto”.
Bastava o nexo de causalidade (entre a conduta e o resultado) para se concluir pela tipicidade da conduta.
Nessa perspectiva puramente causalista e formalista não havia dúvida que, por exemplo, “causar qualquer
tipo de aborto” era um fato típico.
Preponderava, ademais, a teoria da equivalência dos antecedentes causais (teoria da conditio sine qua non).
Tudo que concorre para o resultado é causa do resultado. Essa teoria, entretanto, é muito ampla. Ela permite
o chamado regressus ad infinitum. O vendedor que vendeu a faca com a qual a vítima foi morta seria causa
do resultado. Logo, deveria também responder pelo delito. Mas isso constitui um absurdo no âmbito do
Direito penal, que está regido pelo princípio da responsabilidade pessoal (cf. supra Décima terceira seção).
Para não se chegar a esse absurdo, argumentava-se com a ausência de dolo ou culpa na conduta do
comerciante. Como o dolo e a culpa pertenciam à culpabilidade (no tempo da teoria causalista), esta ficava
afastada. O comerciante não respondia pelo crime por falta de culpabilidade (que, nesse tempo, integrava o
conceito de crime). Aliás, a culpabilidade só foi admitida como categoria do delito para cumprir essa
função de garantia (para se concluir pela inexistência de crime quando o agente atuava sem dolo ou culpa).
b) Segunda etapa: neokantismo. O neokantismo (Frank, Mayer, Radbruch, Sauer, Mezger etc.) criticou
duramente a concepção neutra da tipicidade, sublinhando o aspecto valorativo do tipo legal. O tipo não
descreve uma conduta neutra, sim, uma conduta valorada negativamente pelo legislador (o matar alguém
não é neutro, é algo valorativamente negativo). O tipo penal não é objetivo e neutro, é objetivo e valorativo,
ao mesmo tempo. Apesar de toda ênfase dada ao aspecto valorativo do Direito penal (que não é uma ciência
naturalista, sim, valorativa), no que concerne à estrutura formal da tipicidade pouco se alterou: continuou
sendo concebida preponderantemente como objetiva. A tipicidade penal, para o neokantismo, é tipicidade
objetiva e valorativa. O lado subjetivo da tipicidade só viria a ser admitido (alguns anos depois) com o
finalismo de Welzel.
c) Terceira etapa: finalismo: com o finalismo de Welzel (cujo apogeu, na doutrina européia, se deu entre
1945 e a década de sessenta do século passado) o tipo penal passou a ser composto de duas dimensões: a
objetiva e a subjetiva. Esta última era integrada pelo dolo ou culpa (que foram deslocados da culpabilidade
para a tipicidade). No tempo do causalismo (e do neokantismo) o dolo e a culpa constituíam formas de
culpabilidade. Pertenciam à culpabilidade. O deslocamento para a tipicidade veio a acontecer com o
finalismo de Welzel.
Passou a ter grande relevância o desvalor da conduta (finalista). O comerciante que vendeu a faca (com a
qual cometeu-se o homicídio) não responde pelo delito por falta de dolo ou culpa, isto é, por falta de
tipicidade. Já não é preciso chegar à culpabilidade para se afastar a sua responsabilidade. No próprio
âmbito da tipicidade a questão é resolvida satisfatoriamente. Mas relevante para o crime (leia-se: para a
própria tipicidade) não é o desvalor do resultado, sim, o desvalor da conduta.
A colocação do dolo e da culpa dentro da tipicidade foi extremamente acertada. Resolveu problemas
importantes na esfera da tentativa, da participação etc. Aliás, na tentativa, jamais saberemos qual é o delito
(tentado) sem ter ciência da parte subjetiva do agente. Era, de qualquer modo, equivocado conceber a
culpa (imprudência, negligência ou imperícia) como requisito subjetivo do delito. A culpa é normativa
(porque depende de juízo de valor do juiz), não subjetiva (leia-se: ela não está na cabeça do agente). Foi
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um erro de Welzel admitir a culpa como aspecto subjetivo do tipo, porque a culpa não é psicológica
(causalismo) ou subjetiva (Welzel), sim, normativa (depende de juízo de valor do juiz).
d) Quarta etapa: funcionalismo moderado de Roxin: o tipo penal passou a ter configuração bem distinta a
partir do conceito normativo do funcionalismo (todas as categorias do delito acham-se em função da
finalidade da pena ou da norma), sobretudo o teleológico-racional de Roxin. A propósito, foi com o
funcionalismo de Roxin (1970) (teleológico ou teleológico-racional) que o tipo penal passou a ganhar uma
tríplice dimensão: (a) objetiva; (b) normativa e (c) subjetiva.
O que o funcionalismo agregou como novidade na teoria do tipo penal foi a imputação objetiva, que faz
parte da segunda dimensão (normativa ou valorativa) do tipo penal (sobre a teoria da imputação objetiva cf.
abaixo o Capítulo 8).
Não se pode negar que a segunda etapa (normativa) tem também cunho objetivo, porque também ela não
pertence ao mundo anímico do agente. Mas pela sua relevância acabou ganhando status diferenciado dentro
da tipicidade. Nós a denominados de dimensão material. A primeira, destarte, passa a ser formal. Ambas, na
verdade, são objetivas (não pertencem ao mundo anímico do agente). Mas doravante bem definidas como
formal e material.
Não basta para a adequação típica o “causar a morte de alguém” (posição do causalismo de von Liszt-
Beling) ou mesmo “causar dolosamente ou culposamente a morte de alguém” (posição do finalismo de
Welzel). O tipo penal, depois do advento do funcionalismo, não conta só com duas dimensões (a formal e
subjetiva), sim, com três (formal, normativa e subjetiva). Tipicidade penal, portanto, passou a significar
(depois de Roxin e depois dos ajustes lingüísticos que estamos propondo) tipicidade formal + tipicidade
material ou normativa (desvaloração da conduta e imputação objetiva do resultado) + tipicidade subjetiva
(nos crimes dolosos).
Do tipo penal passou a fazer parte a imputação objetiva (dimensão normativa do tipo), que se expressa
numa dupla exigência:
(a) só é penalmente imputável a conduta que cria ou incrementa um risco proibido (juridicamente
desaprovado);
(b) só é imputável ao agente o resultado que é decorrência direta desse risco. O comerciante que vendeu a
faca não pratica fato típico nenhum porque sua conduta é criadora de risco permitido. Quem cria risco
permitido não realiza nenhum fato típico. Falta a tipicidade normativa.
e) Quinta etapa: teoria constitucionalista do delito (nossa posição): a mais recente etapa evolutiva da teoria
do tipo penal deriva da concepção que estamos chamando de constitucionalista, fundada na inevitável
aproximação e integração entre o Direito penal e a Constituição (cf. supra Primeira seção).
A teoria constitucionalista do delito defendida neste livro:
(a) refuta a velha concepção (puramente) formal da tipicidade. A tipicidade penal, doravante, passa a ser
entendida como tipicidade formal + material.
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(b) enfoca o delito como ofensa (desvaliosa) ao bem jurídico protegido (lesão ou perigo concreto de lesão ao
bem jurídico) (cf. supra Décima primeira e Décima segunda seções e GOMES, Luiz Flávio, Princípio da
ofensividade em Direito penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002). Não há crime sem lesão ou perigo
concreto de lesão ao bem jurídico (nullum crimen sine iniuria). Esse lado material do delito (ofensa
desvaliosa ao bem jurídico), que antigamente recebia tratamento dentro da antijuridicidade (material), com a
teoria constitucionalista passou a ganhar relevância singular dentro da tipicidade;
(c) concebe o juízo de desaprovação da conduta (fundado no critério da criação ou incremento de risco
proibido relevante - Roxin-Frisch), o resultado jurídico desvalioso (Zaffaroni, Luiz Flávio Gomes no livro
acima citado etc.) e a imputação objetiva do resultado (Roxin) como o lado material da tipicidade.
(d) aceita a crítica corretiva de Frisch contra a doutrina da imputação objetiva de Roxin, isto é, a criação de
riscos permitidos ou proibidos não se reveste da roupagem da imputação objetiva (não pertence
propriamente à teoria da imputação objetiva do resultado), sim, faz parte do que Frisch denomina de juízo de
desaprovação da conduta (veja esse tema com detalhes no Capítulo 8 abaixo).
(e) propõe uma nova nomenclatura para as partes integrantes da tipicidade: no lugar da divisão finalista
dualista (parte objetiva e parte subjetiva) sugere-se agora uma tripartição: parte formal, material e subjetiva.
Não se pode negar que a segunda etapa (normativa) tem também cunho objetivo, porque também ela não
pertence ao mundo anímico do agente. Mas pela sua relevância acabou ganhando status diferenciado dentro
da tipicidade. Nós a denominados de dimensão material. A primeira, destarte, passa a ser formal. Ambas, na
verdade, são objetivas (não pertencem ao mundo anímico do agente). Mas doravante bem definidas como
formal e material.
A partir dessas premissas cabe concluir que a tipicidade penal é composta de: (a) tipicidade formal + (b)
tipicidade material ou normativa (que implica três juízos valorativos diversos) + (c) tipicidade subjetiva (nos
crimes dolosos) (cf. abaixo os Capítulos 6, 7 e 8).
Os três juízos valorativos que compõem a tipicidade material são: 1º) juízo de desaprovação da conduta
(cabe ao juiz verificar o desvalor da conduta, ou seja, se o agente, com sua conduta, criou ou incrementou
um risco proibido relevante); 2º) juízo de desaprovação do resultado jurídico (isto é, desvalor do resultado
que consiste na ofensa desvaliosa ao bem jurídico) e 3º) juízo de imputação objetiva do resultado (o
resultado deve ser a realização do risco criado ou incrementado).
O resultado jurídico, por seu turno, é desvalioso (há desvalor do resultado) quando (a ofensa é): (a) real ou
concreta; (b) transcendental; (c) grave; (d) intolerável.
No tempo do funcionalismo (Roxin), para a tipicidade não tinha grande relevância a dimensão do resultado
jurídico desvalioso. Com a teoria constitucionalista (que se deve à construção de muitos autores,
destacando-se dentre eles Zaffaroni) o tipo penal passou a contar de modo inequívoco com mais essa
exigência.
Nada impede (aliás, tudo aconselha) que as dimensões da tipicidade normativa (funcionalismo) e do
resultado jurídico desvalioso (teoria constitucionalista) sejam enfocadas conjuntamente, como o aspecto
material da tipicidade penal. Por isso é que a dimensão material da tipicidade, doravante, deve ser
enfocada sob tríplice aspecto, como vimos acima.
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A tipicidade penal, desse modo, nos crimes dolosos, a partir da teoria constitucionalista, passa a ser
composta da: tipicidade formal + tipicidade material (ou material-normativa) + tipicidade subjetiva. Em
suma: tipicidade penal = tipicidade formal + tipicidade material ou normativa + tipicidade subjetiva.
O marco central da teoria constitucionalista do delito, como se vê, consiste em concebê-lo como ofensa a
um bem jurídico assim como a inserção dessa ofensa dentro da tipicidade, mas isso não significa
abandonar o desvalor da conduta nem a imputação objetiva do resultado. A dimensão material da
tipicidade, portanto, consiste na exigência de três juízos distintos: desvalor da conduta + desvalor do
resultado + imputação objetiva do resultado.
Tanto o bem jurídico quanto a sua ofensa, que antes andavam perambulando pela teoria do delito como
estrelas perdidas, passaram a ter relevância ímpar a partir da configuração constitucionalista do delito.
Ao lado dos clássicos princípios do Direito penal (legalidade, culpabilidade, responsabilidade subjetiva
etc.) dois novos passaram a ocupar relevante espaço: princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos e
princípio da ofensividade (que é chamado por Zaffaroni e Ferrajoli, dentre outros, de princípio da
lesividade) (cf. supra Décima primeira e Décima segunda seções).
Sintetizando:
(a) da primeira dimensão (formal) fazem parte: (a) conduta; (b) resultado naturalístico (nos crimes
materiais); (c) nexo de causalidade e (d) adequação típica formal (subsunção do fato à letra da lei);
(b) da segunda dimensão (material) fazem parte: (a) o juízo de desaprovação da conduta; (b) o juízo de
desaprovação do resultado jurídico (desvalor do resultado) e (c) o juízo de imputação objetiva do resultado.
Resultado jurídico desvalioso (desvalor do resultado) significa: (a) uma ofensa real ou concreta; (b)
transcendental; (c) grave; (d) intolerável.
(c) a terceira dimensão (subjetiva), que só é exigida nos crimes dolosos, é composta (a) do dolo e,
eventualmente, (b) de outros requisitos subjetivos específicos.
Sistematizando: do ponto de vista sistemático, a ordem de todos esses requisitos é a seguinte: (a) conduta;
(b) resultado naturalístico (nos crimes materiais); (c) nexo de causalidade; (d) adequação típica formal
(tipicidade formal). Constatados os requisitos formais, deve-se em seguida iniciar a investigação da parte
normativa (valorativa), que consiste na análise do desvalor da conduta, desvalor do resultado e na
imputação objetiva do resultado. Nos crimes dolosos, ainda se faz necessária a dimensão subjetiva
(tipicidade subjetiva).
Enfatizando: depois de constatada a tipicidade formal (primeira dimensão), fundamental é também verificar
a tipicidade material (segunda dimensão), que é composta de requisitos puramente normativos. Essa
dimensão da tipicidade constitui o seu lado material ou material-normativo. Nos crimes dolosos ainda se
requer a dimensão subjetiva (terceira dimensão, constituída do dolo e eventualmente outros requisitos
subjetivos específicos).
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Exemplificando: no caso do homicídio ou do aborto, por exemplo, não basta (para a tipicidade penal)
constatar a causação de uma morte ou de um fato abortivo (a parte formal) ou mesmo a sua causação
dolosa (dimensão formal mais subjetiva). Mais que isso (e, aliás, antes da verificação da tipicidade
subjetiva): fundamental agora é perguntar se a conduta causadora da morte foi praticada no contexto de
um risco permitido ou proibido, se desse risco derivou um resultado jurídico e se esse resultado jurídico tem
direta conexão com o risco criado. Além disso, o resultado ainda necessita ser real ou concreto (não há
espaço para o perigo abstrato), transcendental (afetação de terceiros), grave (significativo) e intolerável.
Causação, desvaloração e imputação: para que haja responsabilidade penal, como se vê, já não basta a
simples causação objetiva de um resultado naturalístico. Isso é necessário, mas não é suficiente. A tipicidade
penal, de outro lado, já não é tão-somente formal ou fático-legal. É também material ou material-normativa.
Causar não é a mesma coisa que imputar. Imputar não é a mesma coisa de desvalorar. Causação é distinta da
imputação, assim como da desaprovação ou desvaloração. Causar, desvalorar (ou desaprovar) e imputar são
três conceitos distintos e muito relevantes em Direito penal.
O art. 13 do nosso Código Penal diz: “O resultado, de que depende a existência do crime, só é imputável a
quem lhe deu causa”. A partir desse dispositivo legal fica clara a distinção entre causar e imputar. Causar
está no mundo fático (mundo da causalidade). A imputação pertence ao mundo axiológico (ou valorativo ou
normativo). O causar é objetivo (pertence ao mundo da causalidade, ao mundo fático). A imputação é
normativa (depende de juízo de valor do juiz). O causar é formal. A imputação é normativa e o resultado é
requisito material (de garantia).
Causação e imputação, em suma, são conceitos complementares, porém, distintos. Depois de comprovada a
causação de um resultado (naturalístico), impõe-se examinar, numa segunda etapa, o desvalor da conduta,
o desvalor do resultado assim como a imputação objetiva desse resultado).
Do exposto se extrai a seguinte conclusão: nem tudo que foi mecanicamente causado pode ser imputado ao
agente, como fato pertencente a ele (como obra dele pela qual deva ser responsabilizado). Aquilo que se
causa no contexto de um risco permitido (autorizado, razoável) não é juridicamente desaprovado, logo, não
é juridicamente imputável ao agente. Na lesão esportiva (dentro das regras do esporte) há a causação de
um resultado, mas isso não pode ser objetivamente imputado ao agente (porque se trata de risco permitido).
Diga-se a mesma coisa em relação à intervenção cirúrgica, à colocação de ofendículos, ao exercício de um
direito etc.. Tudo que se produz no contexto de riscos permitidos não é juridicamente desaprovado (não é
fato típico, ou melhor, não é um fato materialmente típico).
CAPÍTULO 3
NOVA ESTRUTURA DA TIPICIDADE PENAL: TIPICIDADE PENAL = TIPICIDADE FORMAL
+ TIPICIDADE MATERIAL OU NORMATIVA + TIPICIDADE SUBJETIVA
a) Recapitulando a evolução dos requisitos da tipicidade penal
A doutrina penal clássica sempre concebeu a tipicidade (o fato típico) como categoria do crime (a primeira,
aliás), porém, dando-lhe enfoque preponderantemente formal. O fato típico, antes do advento da moderna
teoria da imputação objetiva (1970, Roxin), possuía (em razão do finalismo de Welzel) apenas duas
dimensões: objetiva (ou formal) e subjetiva. Vejamos:
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(a) para a doutrina causalista clássica (von Liszt-Beling) o fato típico requeria: 1. conduta voluntária
(neutra: sem qualquer tipo de valoração e sem dolo ou culpa); 2. resultado naturalístico (nos crimes
materiais); 3. nexo de causalidade (entre a conduta e o resultado); 4. relação de tipicidade (adequação do
fato à letra da lei). O tipo penal, como se vê, de acordo com a corrente causalista, contava com uma única
dimensão: a objetiva (ou formal). Dolo ou culpa, nesse tempo, pertenciam à culpabilidade (eram as formas
da culpabilidade). Logo, não se falava nessa época (nem sequer) na dimensão subjetiva da tipicidade.
(b) para a doutrina finalista de Welzel o fato típico requeria: 1. conduta dolosa ou culposa (o tipo não é
neutro, é um tipo de injusto e o dolo e culpa passam a fazer parte da conduta); 2. resultado naturalístico (nos
crimes materiais); 3. nexo de causalidade (entre a conduta e o resultado); 4. adequação do fato à letra da lei
(relação de tipicidade). O tipo penal, a partir do finalismo, passou a ser complexo e contava com duas
dimensões: a objetiva (ou formal) e a subjetiva (esta última integrada pelo dolo ou pela culpa).
A maior crítica que se pode formular contra essas duas concepções do fato típico consiste no seu
(exagerado) formalismo. O juízo de tipicidade penal contentava-se com a mera subsunção do fato à letra da
lei. Confundia-se tipicidade legal com tipicidade penal. Tanto o causalismo como o finalismo não conseguiu
superar o positivismo jurídico formalista (de Binding e de Rocco). Ignoraram (quase que) por completo o
bem jurídico protegido, assim como sua dimensão ofensiva. A questão da imputação do resultado à conduta
foi cuidada pelo finalismo de forma muito vaga. Confundiam violação da norma primária imperativa com
violação da norma primária valorativa. Aliás, abandonaram quase que inteiramente esse último aspecto da
norma penal. Nem cuidaram (ou não cuidaram com a devida diligência) da necessária ofensa ao bem
jurídico nem tampouco da imputação objetiva desse resultado ao seu agente. Centralizaram suas atenções
na causação ou na ação finalista. Pouca relevância deram para a desvaloração da conduta como novo
filtro da tipicidade. Ignoraram também a questão da imputação (ou atribuição) do fato ao seu agente (como
obra dele).
Moderna teoria da imputação objetiva (Roxin) e tipicidade penal: a tipicidade penal, a partir da moderna
teoria da imputação objetiva de Roxin (1970), que será enfocada detalhadamente logo abaixo, foi
enriquecida por uma nova exigência consistente na atribuição do fato ao seu agente (como obra dele). Dois,
basicamente, são os pressupostos materiais (ou requisitos) da imputação objetiva: 1) criação ou incremento
de um risco proibido relevante (que exige um juízo de desaprovação da conduta); 2) que o resultado seja
objetivamente imputável ao risco criado ou incrementado (e desde que esteja no âmbito de proteção da
norma).
O fato típico, nos crimes dolosos, depois do advento da moderna teoria da imputação objetiva (e do ajuste
lingüístico que sugerimos), passou (então) a contar com três dimensões:
1ª) formal;
2ª) normativa (ou material) e
3ª) subjetiva (dolo).
Antes de Roxin o fato típico era composto de duas dimensões: objetiva (conduta, resultado naturalístico,
nexo de causalidade e adequação típica) e subjetiva (dolo ou culpa). A partir dele passou a ter três
dimensões: formal, normativa e subjetiva.
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Como conseqüência do que foi exposto, nota-se como foi corrigida a dimensão subjetiva da tipicidade. Para
Welzel ela compreendia o dolo e a culpa. A partir da teoria funcionalista do delito de Roxin (e da moderna
teoria da imputação objetiva do resultado) ficou claro que apenas o dolo e outros eventuais requisitos
subjetivos do injusto é que dela fazem parte. A culpa se resolve integralmente com os critérios da criação
(ou incremento) do risco proibido (que faz parte da segunda dimensão da tipicidade: a normativa).
b) Teoria constitucionalista do delito e tipicidade penal
De acordo com a teoria constitucionalista do delito que estamos adotando (que aceita a crítica corretiva de
Frisch contra a teoria da imputação objetiva de Roxin – tal como veremos logo abaixo - e que agrega à teoria
da tipicidade a exigência de uma ofensa ao bem jurídico, nos termos do que proclamam Zaffaroni, L. F.
Gomes e tantos outros autores – cf. supra Décima primeira seção) a tipicidade penal tem que ser
compreendida (necessariamente) também em sentido material. Ela é fruto de todas as contribuições
orientadas a conferir ao tipo penal uma clara relevância selecionadora do que é penalmente importante.
Além de aceitar os pressupostos materiais da moderna teoria da imputação objetiva (de Roxin), ela sustenta
a imperiosa necessidade de também se considerar (dentro do âmbito da dimensão material da tipicidade) a
ofensa ao bem jurídico (ou seja: o resultado jurídico, que é o desvalor do resultado). Mesmo porque, por
força do princípio da ofensividade, não há crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico (cf.
supra Décima primeira seção).
O tipo penal, portanto, nos crimes dolosos, a partir da teoria constitucionalista do delito, continua contando
com três dimensões [ 1ª) formal; 2ª) a material ou normativa; 3ª) a subjetiva ], porém, a segunda delas (a
material ou normativa) passa a contemplar três – não apenas dois - juízos valorativos:
1º) juízo de desaprovação da conduta (cabe ao juiz verificar o desvalor da conduta, ou seja, se o agente, com
sua conduta, criou ou incrementou um risco proibido relevante; essa criação ou incremento de risco proibido
relevante era enfocada por Roxin como parte integrante da teoria da imputação objetiva; para Frisch a
criação ou incremento de risco proibido não é uma questão de imputação objetiva, sim, de desaprovação da
conduta; cf. abaixo detalhes sobre esse ponto);
2º) juízo de desaprovação do resultado jurídico (isto é, desvalor do resultado que é a ofensa ao bem
jurídico) e
3º) juízo de imputação objetiva do resultado (o resultado deve ser a realização do risco criado ou
incrementado).
Há muita polêmica sobre qual seria a correta localização do juízo de desaprovação da conduta, que nada
mais significa que a constatação do “desvalor da conduta”. Para Roxin ele faz parte da teoria da
imputação objetiva do resultado. Para Frisch esse juízo é autônomo e não se confunde com a imputação
objetiva do resultado. Veremos logo abaixo essa polêmica.
Antes da teoria constitucionalista do delito (que está agregando ao fato típico a ofensa ao bem jurídico), o
fato típico contava com três dimensões: formal + normativa + subjetiva. A segunda dimensão, normativa,
era constituída exclusivamente da imputação objetiva, que se desdobra em duas exigências: criação ou
incremento de riscos proibidos e imputação objetiva do resultado. Depois da teoria constitucionalista do
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delito o fato típico continua com três dimensões (formal + material ou normativa + subjetiva), porém, a
segunda (material ou normativa) passa a exigir três (não dois) juízos valorativos: juízo de desaprovação da
conduta (desvalor da conduta) + juízo de desaprovação do resultado (desvalor do resultado) + dimensão
subjetiva.
O fato típico, assim, nos crimes dolosos, depois da moderna teoria da imputação objetiva bem como da
teoria constitucionalista do delito que subscrevemos significa tipicidade formal + tipicidade material ou
normativa (com três momentos valorativos distintos, como vimos) + tipicidade subjetiva (verificação do
dolo e outros eventuais requisitos subjetivos do injusto).17
A ausência de qualquer um desses requisitos
implica naturalmente na atipicidade do fato, que pode ser formal ou material ou subjetiva (tudo conforme a
natureza do requisito faltante).
Vejamos, em sua globalidade, cada uma das exigências da tipicidade penal, na atualidade.
1ª) Exigência de um fato formalmente típico: o fato típico (em sentido material ou constitucional) é
composto, desde logo e antes de tudo, por um fato, que compreende todos os requisitos objetivos que
concorrem para a configuração de uma específica forma de ofensa ao bem jurídico. São eles: conduta, o
resultado naturalístico (nos crimes materiais), o nexo de causalidade (entre a conduta e o resultado
naturalístico), assim como outros requisitos formais exigidos pelo tipo legal (requisitos temporais,
espaciais, maneira de execução etc.).
A conduta faz parte do fato: a conduta, por seu turno, requer o estudo dos seus pressupostos (a gravidez é
pressuposto do crime de aborto, v.,g.), do seu objeto material (coisa ou ente sobre o qual recai fisicamente
a conduta do agente) bem como dos seus sujeitos (ativo e passivo). Ela faz parte do fato (ou seja: integra o
fato típico). Em nosso juízo, não deve a conduta ser estudada separadamente (isto é, ela não conta com
autonomia dogmática dentro da teoria do delito). Não há crime sem conduta (nullum crimen sine actio). De
qualquer modo, sistematicamente, ela não deve ser estudada separadamente do fato típico.
Em suma, fato típico (ou fato formalmente típico) é o fato concreto (da vida real) que realiza (que preenche)
todos os requisitos objetivos contidos na lei penal, que são, ao mesmo tempo, os requisitos
individualizadores de uma determinada forma de ofensa ao bem jurídico.
2ª) Exigência de um fato materialmente típico: em segundo lugar o fato precisa ser materialmente típico. O
conceito de fato materialmente típico é complexo. Exige três níveis de valoração, ou seja, juízo de
desaprovação da conduta (criação ou incremento de riscos proibidos relevantes), juízo de desaprovação do
resultado jurídico (ofensa desvaliosa ao bem jurídico, que significa lesão ou perigo concreto de lesão ao
bem jurídico) e juízo de imputação objetiva do resultado (o resultado deve ter conexão direta com o risco
criado ou incrementado – “nexo de imputação”).
17
Em sentido quase inteiramente coincidente cf. GRECO, Rogério, Curso de direito penal-PG, 2ª ed., Rio de Janeiro:
Impetus, 2002, p. 176. Mescla o autor critérios de tipicidade material com a tipicidade conglobante de Zaffaroni. Tudo isso
pode ser estudado separadamente (como veremos mais abaixo na teoria da imputação objetiva).
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O fato materialmente típico, portanto, no sentido que estamos aqui utilizando, envolve tanto a questão da
criação ou incremento de risco proibido (juízo de desaprovação da conduta) como da ofensa ao bem
jurídico (juízo de ofensividade), além da imputação objetiva do resultado (ao risco ou incremento do risco).
Ofensa desvaliosa (= desvalor do resultado): o fato materialmente típico, como acabamos de ver, requer,
além de outros requisitos, um fato ofensivo desvalioso ao bem jurídico protegido. Essa ofensa será
desvaliosa quando for: (a) concreta ou real (perigo abstrato ou presunção de perigo não encontra espaço
no Direito penal da ofensividade), (b) transcendental, ou seja, dirigida a bens jurídicos de terceiros (nunca
o sacrifício de bens jurídicos próprios pode justificar a imposição de um castigo penal), (c) grave ou
significativa (relevante) e (d) intolerável. Preenchidos esses quatro requisitos, pode-se falar em desvalor do
resultado.
Resultado jurídico desvalioso e tipicidade material: somente quando reunidas todas essas características é
que o resultado jurídico (a ofensa) está em condições de ser admitido como expressão do sentido material
da tipicidade.
3ª) Exigência de um fato subjetivamente típico: nos crimes dolosos, além de o fato ser formal e
materialmente típico, ainda se requer a dimensão subjetiva (ou seja, a constatação do dolo e outros
eventuais requisitos subjetivos do injusto).
Sintetizando: fato típico ou tipicidade penal = tipicidade formal + tipicidade material ou normativa +
tipicidade subjetiva: é a soma da tipicidade formal + tipicidade material ou normativa + tipicidade
subjetiva que esgota, na atualidade, nos crimes dolosos, o conceito de fato típico ou de tipicidade penal.
Nisso reside a grande diferença entre a teoria constitucionalista do delito e as demais teorias até aqui
desenvolvidas (causalista, neokantista, finalista, funcionalista moderada etc.). Nenhuma das teorias
anteriores havia dado a devida importância para a questão da ofensa ao bem jurídico (ou seja: para o
desvalor do resultado), que surge doravante como requisito absolutamente imperioso da tipicidade
material.
CAPÍTULO 4
TIPICIDADE MATERIAL E TIPICIDADE CONGLOBANTE DE ZAFFARONI
A tipicidade penal (sendo um conceito muito mais amplo e abrangente que o de tipicidade legal, como
vimos), de acordo com a teoria constitucionalista do delito que estamos adotando, compreende três
dimensões:
(a) a formal (ou fática/legal ou lingüística), que envolve a conduta (mais o sujeito ativo dela, o sujeito
passivo, o objeto material, seus pressupostos), o resultado naturalístico (nos crimes materiais), o nexo de
causalidade (entre a conduta e o resultado naturalístico) bem como as exigências temporais, espaciais, modo
de execução da conduta etc., ou seja, a adequação do fato à letra da lei;
(b) a material (ou normativa), que exige três juízos valorativos distintos: 1º) juízo de desaprovação da
conduta (criação ou incremento de riscos proibidos relevantes); 2º) juízo de desaprovação do resultado
jurídico (ofensa desvaliosa ao bem jurídico ou desvalor do resultado, que significa lesão ou perigo concreto
de lesão ao bem jurídico) e 3º) juízo de imputação objetiva do resultado (o resultado deve ter conexão direta
com o risco criado ou incrementado – “nexo de imputação”);