O documento discute a diferença entre "estória" e "história". O autor argumenta que "estória" refere-se a ficções e invenções que não aconteceram de fato, ao contrário de "história" que se refere a eventos do passado. Ele defende que "estórias" vivem dentro de nós quando as lemos, ao contrário de "histórias" que são informações arquivadas na memória. O autor pede que seus textos não sejam corrigidos de "estória" para "história".
2. “ A REVISORA informou delicadamente que era norma do jornal que todas as "estórias" deveriam ser grafadas como "histórias". É assim que os gramáticos decidiram e escreveram nos dicionários. Respondi também delicadamente: "Comigo não. Quando escrevo "estória" eu quero dizer " estória". Quando escrevo " história" eu quero dizer "história". Estória e história são tão diferentes quanto camelos e beija-flores..."
3. Escrevi um livro baseado na diferença entre "história" e "estória". O revisor, obediente ao dicionário, corrigiu minhas "estórias" para "histórias". Confiando no rigor do revisor, não li o texto corrigido. Aí, um livro que era para falar de camelos e beija-flores só falou de camelos. Foram-se os beija-flores, engolidos pelo camelo...
4. Escoro-me no Guimarães Rosa. Ele começa o Tutaméia com esta afirmação: "A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a história". Qual é a diferença? É simples. Quando minha filha era pequena eu lhe inventava estórias. Ela, ao final, me perguntava: "Papai, isso aconteceu de verdade?" E eu ficava sem lhe poder responder porque a resposta seria de difícil compreensão para ela.
5. A resposta que lhe daria seria: "Essa estória não aconteceu nunca para que aconteça sempre...“ A história é o reino das coisas que aconteceram de verdade, no tempo, e que estão definitivamente enterradas no passado. Mortas para sempre. Ler a história é caminhar por um cemitério. Ali os mortos nos contam suas lições. É importante ouvir os relatos dos mortos para aprender dos seus equívocos e não repeti-los no futuro.
6. Mas as estórias não aconteceram nunca. São invenções, mentiras. O mito de Narciso é uma invenção. O jovem que se apaixonou por sua própria imagem nunca existiu. Aí, ao ler o mito que nunca existiu eu me vejo hoje debruçado sobre a fonte que me reflete nos olhos dos outros. Toda estória é um espelho.
7. A estória da Bela Adormecida nunca aconteceu. Mas aí eu leio o poema do Fernando Pessoa Eros e Psique. E quando eu o faço a estória sai do espaço imaginário e entra dentro do meu corpo. E essa é a razão porque as estórias pedem para serem repetidas. Nem sei quantas vezes já li o poema Eros e Psique.
8. E toda vez que o leio é como se fosse a primeira vez, como se eu já não o soubesse de cor. A estória de Romeu e Julieta nunca aconteceu. Mas toda vez que é lida ela ressuscita dos mortos e toma posse do corpo da pessoa que o lê. Os relatos históricos são informações que levamos num embornal pendurado no ombro da memória. As estórias, ao contrário, nós as levamos dentro da nossa própria carne. Reinterpreto o evangelho: "E as estórias se fazem carne..."
9. Não é outra a razão por que as crianças desejam que as estórias sejam sempre repetidas, do exato jeito como são conhecidas. As estórias fazem acontecer... A história nos leva para o tempo do "nunca mais", tempo da morte. As estórias nos levam para o tempo da ressurreição. Se elas sempre começam como o "era uma vez, há muito tempo" é só para nos arrancar da banalidade do presente e nos levar para o tempo mágico da alma.
10. Assim, por favor, revisora: quando eu escrever "estória" não corrija para "história". Não quero confundir camelos e beija-flores... “ Rubem Alves
11. Quando comecei a escrever estórias para minhas netas, todo mundo me corrigia: “Mima, não é estória... É história...” Aí, muito contrariada... Mudava para história ... Mas, como Rubem Alves, o que eu invento não são histórias , mas estórias ... Nelas uma estrela chora porque está triste, um girassol tem suas vontades, seus sonhos e até a ratinha é intelectual... E, como isso tudo pode ser história ??? Faço a vocês o mesmo pedido de Rubem Alves: por favor, amigos: quando eu escrever "estória" não corrijam para "história". Vovó Mima agradece...
12. FORMATAÇÃO: Mima (Wilma) Badan [email_address] MÚSICA: Yellow bird (Repasse com os devidos créditos)