1) O documento discute as teorias da promessa de Austin e Benveniste, analisando como Don Juan, de Molière, dramatiza o paradoxo da promessa através de sua linguagem sedutora e violação constante de promessas.
2) Analisa como Don Juan e seus antagonistas têm visões opostas da linguagem - enquanto os outros buscam a verdade, Don Juan vê a linguagem como performativa, focada no prazer e sucesso do ato de falar.
3) Argumenta que a retórica sedutora de Don Juan explora
Recomposiçao em matematica 1 ano 2024 - ESTUDANTE 1ª série.pdf
O escândalo da promessa violada em Don Juan
1. LE SCANDALE DU CORPS PARLANT
(O ESCÂNDALO DO CORPO FALANTE)
SHOSHANA FELMAN
JORDANA AVELINO
MAURO R. TONIOLO SILVA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA
3. Criar um animal que pode fazer promessas –
não é essa a tarefa paradoxal que a natureza
se impôs em relação ao homem? Não é esse o
problema real relacionado ao homem?
Nietzsche (Genealogia da moral, 2° ensaio, cap. I)
4. “Eu escolhi abordar a promessa em primeiro lugar porque, por
um ato ilocucionário, fica bastante claro, e mais bem analisável;
como um terreno montanhoso, ele apresenta contornos nítidos”.
(Searle) (p.9-10)
Mas o que é uma promessa?
O que se faz exatamente quando se diz “eu prometo”?
E quais são as consequências?
Felman propõe “fazer intervir [nos achados de análise linguística
e lógica] a interrogação nietzschiana: em que a promessa
constitui um paradoxo, um problema? De que forma a lógica da
promessa é a marca de uma contradição fundamental, que é
própria do ser humano ?” (p.10)
5. Análise do mito de Don Juan (de Molière). A personagem-título é
pródiga em promessas e as viola sem parar. O escândalo da
sedução parece estar essencialmente ligado ao escândalo da
promessa violada.
“Gostaria de propor, assim, a partir de uma tripla leitura – de um
texto literário, de um texto linguístico e de um texto filosófico –,
uma meditação sobre a promessa, de tal forma que o espaço
literário se tornará o espaço do reencontro, o lugar da prova e do
questionamento – mas também do transbordar – do linguístico e
do filosófico”. (p. 12)
“É no momento preciso desse transbordar da coisa literária [...]
que se abre um irredutível escândalo: o escândalo da relação
incongruente entre a linguagem e o corpo: o escândalo da
sedução do corpo humano quando fala”. (p. 12-13)
6. I
ENTRE LINGUÍSTICA E FILOSOFIA DA LINGUAGEM:
TEORIAS DA PROMESSA, PROMESSAS DA TEORIA
8. 1. A REFLEXÃO DE J. L. AUSTIN:
ENTRE VERDADE E FELICIDADE
9. Instigador das pesquisas sobre os atos do discurso e introdutor
do termo “performativo”, o filósofo J. L. Austin começou por
desmistificar – de uma forma um tanto nietzchiana – a ilusão
sustentada pela história e a filosofia, segundo a qual a única
questão da linguagem era ser “verdade” ou “inverdade”. (p.17)
Austin se põe a buscar um critério especificamente linguístico
que ajudaria a identificar e reconhecer o performativo, que
consolidaria formalmente a oposição estabelecida entre
performativo e constativo. Ora, é então que a reflexão do
filósofo, atingindo um impasse, realiza uma volta.
Se existem critérios linguísticos para formalizar essa distinção,
tais critérios não provaram nem exaustivos nem, sobretudo,
absolutos. (p.19)
10. Critério gramatical: assimetria, em alguns verbos, entre a 1º
pessoa do presente do indicativo (voz ativa) e as outras pessoas
e tempos verbais.
“Eu juro”, “eu prometo” – o enunciado que efetiva o ato;
- todos as outras formas são apenas descrições.
Esse critério é insuficiente: performativo implícito também foge
ao critério verdade/inverdade.
Se admitirmos a existência do
performativo implícito, fica
difícil encontrar uma frase que
não ceda a seu impulso.
Mesmo enunciados constativos
podem subentender elipses
que realizam “atos de
linguagem”. (p.20)
11. Segundo Austin, “se relaxarmos um pouco nossas ideias de
inverdade e verdade, veremos que as afirmações, os constativos,
quando considerados sob o aspecto de sua relação com os fatos,
não são muito diferentes de qualquer outro caso de conselho,
veredito, advertência, etc”. (p.20)
Essa afirmação não fragiliza e desarticula a distinção original
entre performativo e constativo?
Austin propõe em seu lugar uma “teoria geral do discurso como
tal”. Ato ilocucionário: palavra estudada em relação com o
contexto de interlocução, situação concreta e convencional do
discurso, no qual a palavra adquire, além de seu sentido, uma
certa força de enunciação.
Distinção entre sentido e força.
12. Ele me disse: Puxe-a. – ato locucionário.
(Enunciado em si - Produção de sentido)
Ele me pressionou a puxá-la. – ato ilocucionário.
(Condições e intenções determinadas - Jogo de força)
Ele me convenceu a puxá-la. – ato perlocucionário.
(Produção de efeito sobre o interlocutor).
Categorias de enunciação:
- Vereditos: exercícios de julgamento (condenar, avaliar);
- Ordens: asserção de autoridade (comandar, perdoar);
- Compromissos: Assumir compromisso futuro (prometer, jurar);
- Comportamentos: ligados a atitudes sociais (felicitar, saudar);
- Exposições: esclarecimento discursivo (afirmar, interrogar).
14. • Reconhecendo a importância da categoria da
performatividade da própria linguística,
Benveniste se opõe ao alargamento dessa
categoria e, consequentemente, se dissocia da
doutrina geral dos atos ilocucionários => ele não
vê razão em abandonar a distinção entre o
performativo e constativo e acredita que isso é
justificável e necessário.
• Benveniste inclui em reavaliação a teoria de
Austin: três subtrações (exclusões) e quatro
adições (especificações, elementos de definição)
15. Três princípios analíticos:
• A exclusão da teoria geral da força do ilocucionário – isso serve de
salvaguarda ou proteção na oposição formal do constativo e
performativo..
• A exclusão da teoria das falhas ou infelicidades do performativo – a
infelicidade segundo Benveniste não existe como um performativo,
logo ela está excluída. O grito: “eu decreto uma mobilização geral” não
pode ser um ato, porque a autoridade necessária estaria faltando, e
isso se reduziria a palavras. “Um enunciado performativo que não é
um ato não existe.” Se há uma infelicidade não é um performativo.
• A exclusão do clichê, desde a categoria do performativo – “[eu
perdôo∕seja bem vindo] não são dados como prova conclusiva para a
noção do performativo. Pelo menos não as de hoje, pois a vida social
se banalizou. As fórmulas simples devem ser trazidas de volta ao seu
sentido original e recuperadas a sua função performativa.”(p.10, versão em
inglês)
16. Quatro inclusões complementares para a
definição do performativo:
• O performativo sempre expressa atos de autoridade, da legitimidade
da autoridade, da certeza. São declarações feitas por aqueles a
quem o direito de pronunciá-las pertence.
• Um enunciado performativo tem a propriedade de ser único. Sendo
um ato individual e histórico, um enunciado performativo não pode
ser repetido.
• O performativo é definido por uma propriedade singular que é auto-
referencial de ser referir a uma realidade que constitui ela própria.
“É ao mesmo tempo uma manifestação e um fato real.” O ato é
assim idêntico ao enunciado do ato.
• O enunciado performativo é um ato de nomear o ato realizado e seu
agente. Um enunciado performativo deve nomear o desempenho
falado bem como o seu intérprete. O enunciado é o ato, aquele que
pronuncia realiza o ato de denominá-lo.
17. Elza Soares em show: “A carne mais barata do
mercado é a (minha) carne negra”
19. Essencialmente, o domínio do erotismo é o
domínio da violência, o domínio da violação.
Bataille (O erotismo)
O que é mais estranho, é que, se acreditamos no
ditado popular, apenas [o amante] pode jurar e, se
ele ignora seu juramento, obter o perdão dos
deuses; porque não é um juramento, dizem, aquele
em que se meteu Afrodite.
Platão (O banquete)
20. 3. O CONFLITO DONJUANESCO
E AS FORÇAS ILOCUTÓRIAS DE COMPROMISSO
21. À exceção do desenlace, a ação do Don Juan de Molière é
repleto de acontecimentos performativos: atos de linguagem
que nos quais as forças de enunciação podem ser descritos pelas
cinco classes ilocutórias de Austin:
1. Performativos de veredito: realizados pelos antagonistas de
Don Juan;
2. Performativos de ordem: Don Juan em relação a Sganarelle;
3. Performativos de compromisso: Don Juan em relação às
mulheres;
4. Performativos de comportamento: Don Juan em relação a
Monsieur Dimanche;
5. Performativos de exposição: Sganarelle em relação a Don
Juan. (p.31)
22. A ameaça como forma de promessa negativa.
Se a promessa consiste em se comprometer a fazer algo POR
alguém, a ameaça consiste em fazer algo CONTRA alguém.
Embora o sentido seja diferente, a força que as anima é a
mesma.
O conflito que opõe Don Juan a seus antagonistas opõe a
promessa e a ameaça (promessa negativa resultante da falta à
promessa positiva, mas positivamente promissora, por sua vez,
em não deixar de punir a falta à promessa).
O paradoxo da promessa se revela pelo fato de que a promessa
não apenas ocasiona o conflito, mas ainda, a estrutura. A tensão
da peça opõe forças antagonistas de mesmo tipo – forças que
emergem da categoria COMPROMISSO. (p.32)
24. • Se a semelhança essencial das forças opostas ilude os
protagonistas, é porque os vários indivíduos que
realizam atos de compromisso têm diferentes conceitos
de linguagem. O conflito real está na oposição entre
duas visões de linguagem, uma, a cognitiva ou
constativa, e a outra, a performativa. Segundo o ponto
de vista cognitivo, o que caracteriza a oposição entre
Don Juan e suas vítimas, é o fato de que a linguagem é
um instrumento para transmitir a verdade, isto é, um
instrumento de conhecimento, um meio de conhecer a
realidade.
• Neste ponto de vista, a única função reservada para a
linguagem é a função constativa: o que está em jogo em
um enunciado é a sua correspondência - ou falta de
correspondência - a seu referente real, isto é, a sua
verdade ou falsidade.
25. • Na verdade, a determinação do grau de verdade ou
falsidade das declarações de Don Juan parece ser a
principal preocupação dos personagens da peça. "Eu não
sei se você está dizendo a verdade ou não", diz Charlotte.
"É o que você diz é verdade?" Dom Louis pergunta. E as
duas mulheres insistem:
CHARLOTTE: - Não, não, nós temos que saber a verdade.
MATHURINE: - Temos de resolver isso.
• Don Juan não compartilha esse ponto de vista da
linguagem. A linguagem, para Don Juan, é performativa e
não informativa, é um campo de prazer, não de
conhecimento. Como tal, não pode ser qualificado como
verdadeira ou falsa, mas muito especificamente como feliz
ou infeliz, bem ou mal sucedidas. (p. 14, versão em inglês)
27. “[...] não se pode achar que Don Juan falha quando tenta
conquistar uma mulher falando. Ao invés do “golpe falho”, o
mito da sedução irresistivível de Don Juan não dramatiza nada
além do sucesso da linguagem, a felicidade do ato da palavra. A
ameaça como forma de promessa negativa”. (p.35)
“A questão do erotismo para o homem se coloca, através do
mito de Don Juan, como a questão do relacionamento do
erotismo e da linguagem sobre o teatro do corpo falando, onde o
destino se alegra como aquele que, através desse corpo falante,
realiza o ato. O mito de Don Juan, em outros termos, dramatiza a
noção de ato humano como a questão do relacionamento entre
o ato sexual e o ato de linguagem. (p.36)
29. “Os sentimentos são sempre recíprocos”
Lacan
“O mundo funciona apenas através do mal-entendido.
É através do equívoco universal que todos concordam.
Porque se, Deus nos livre, nós entendemos nunca
poderíamos concordar.”
Baudelaire (p. 37, versão em francês)
30. • A retórica da sedução pode assim ser resumida
pela excelência performativa: "Eu prometo", uma
declaração na qual toda a força do discurso de Don
Juan está submetido, e que se opõe, por outro
lado, ao significado do discurso de outros
personagens na peça.
• “O diálogo entre Don Juan e os outros é assim um
diálogo entre duas ordens que, na realidade, não
se comunicam: a ordem do ato e a ordem do
significado, o registro do prazer e o registro do
conhecimento. Quando ele responde ‘Eu
prometo” para “nós temos de saber a verdade’ a
estratégia de sedução é paradoxalmente criada, no
espaço da linguística que ele mesmo controla. Um
diálogo de surdos.” (p.17, versão em inglês)
31. • Assim como discurso sedutor explora a capacidade da
linguagem para refletir sobre ele mesmo, por meio da auto-
referencialidade dos verbos performativos, ele também
explora um modelo paralelo de auto-referencialidade do
desejo narcisista do interlocutor, e seu (ou sua) capacidade
para produzir, por sua vez, uma ilusão reflexiva especular.
• O sedutor estende às mulheres o espelho narcísico de seu
próprio desejo de si mesmas. Dessa forma Don Juan diz a
Charlotte:
“Você não é uma obrigação para mim (...), você deve isso
inteiramente a sua própria beleza... sua beleza é sua
segurança”.
• Isso significa que a descrição constativa da mulher também
inclui um vocabulário de compromisso; os verbos (obrigar,
assegurar) são performativos, mas eles não estão mais na
categoria de atos de linguagem eficazes.
32. • A fonte da obrigação está deslocada aqui desde a
primeira até a segunda e terceira pessoas: “Você
não uma obrigação para mim... sua beleza é sua
segurança.” O constativo, na fala de Don Juan,
parece ser a afirmação de uma promessa, de um
compromisso assumido.
• Enquanto o sedutor parece estar comprometendo-
se, sua estratégia consiste em criar a reflexiva,
dívida auto-referencial, tal como, não enfrentá-la.
Desse modo, o escândalo da sedução consiste na
exploração hábil e lúcida, por Don Juan, da
estrutura especular do significado e capacidade
reflexiva da linguagem. (p.18, versão em inglês)
34. Relação entre sedução e descrença. (p.41-46)
Don Juan não crê, pois ele faz crer. Ele sabe que a crença não é
mais que o efeito da reflexão, da reflexividade que ele explora.
Se, para Don Juan, dizer é fazer, é antes de tudo fazer crer. O ato
de sedução é antes de tudo um performativo de crença.
Assim, para Don Juan, a crença que ele manipula nos outros é
sempre uma performance da linguagem, um efeito ilusório
produzido por um significante reflexivo de auto-referenciação.
A descrença donjuanesca é antes de tudo uma descrença na
capacidade da linguagem de nomear uma verdade transitiva.
36. Promessa de casamento=> ato herético
• SGANARELLE: - Não custa nada para ele se casar,
ele não precisa usar qualquer outra armadilha
para pegar suas amigas. Ele se casa o tempo
todo.
• SGANARELLE : - Mas ver você se casando todo
mês, do jeito que você faz... jogando assim com
um mistério sagrado...
• DON JUAN: - Venha agora, isso está entre o céu e
eu, nós vamos resolver isso juntos.
37. • Se o discurso da sedução é como um discurso de
promessa, talvez não seja por acaso que a promessa
de Don Juan é sempre uma promessa de
casamento. O que o mito de Don Juan desse modo
traz a tona é que existe uma ligação necessária
entre a noção de promessa e a noção de casamento.
• A língua francesa sugere esse tipo de relação, desde
o significado etimológico do verbo ‘épouser’:
- “casar” => “prometer”;
- e na forma adjetiva ‘promis’, ‘promise’ =>
‘contratado’.
38. • Essa interação de significado entre ‘promessa’ e ‘casamento’
torna-se ainda mais impressionante quando notamos que
Austin na sua definição de ‘comissivos’ – a categoria do ato
ilocucionário de compromisso – estão especificados dois tipos
de atos de compromisso: por um lado, promessa adequada, e
por outro lado, o que ele escolhe, curiosamente, chamar de
‘desposório’ (espousals).
• “Se cada casamento é uma promessa, cada promessa é até
certo ponto uma promessa de casamento - na medida em que
cada promessa promete constância, e acima de tudo, promete
consistência, continuidade no tempo entre o ato de
compromisso e a ação futura. “Qualquer ato de fala” diz Austin
[confirma-nos], pelo menos para a consistência. Don Juan é,
naturalmente, apenas jogador, através da multiplicidade da sua
promessa de casamento, com a ilusão de constância inerente à
promessa(...).É por isso que ele é, miticamente falando, a figura
de inconstância, de infidelidade.” (p.21, versão em inglês)
39. Outra surpresa da língua francesa...
• Sobre a etimologia do termo “Constância” => ela
serve para definir a constativo.
• Como Benveniste afirma, "uma declaração
constativa é realmente uma declaração de uma
observação [fato estabelecido].
• Assim, não é por acaso que, no mito de Don Juan,
esta figura de excessiva inconstância é o que
subverte o constativo. Assim como o casamento, o
constativo também passa a ser uma promessa de
constância: uma promessa de que o significado vai
durar.
41. SGANARELLE: Você tem a alma bem descrente [...]. Como é possível que você não
acredite no Céu ? [...] Mas é preciso crer em algo neste mundo. Em que você crê,
afinal?
DON JUAN: Eu creio que dois e dois são quatro, Sganarelle, e que quatro e quatro
são oito.
SGANARELLE: A bela crença [...] até parece! Sua religião, pelo que vejo, é a
aritmética?
O que significa essa crença no número, na aritmética? Em que a
aritmética se opõe à religião? Quais as implicações filosóficas da
asserção “Eu creio que 2 + 2 = 4?
[...] creio no sistema aritmético na medida em que ele não tem,
estritamente, sentido, na medida em que é um sistema
inteiramente auto-referencial, determinado por seus próprios
axiomas, e que não depende nem da linguagem nem da
realidade para sua validade. (p.47-48)
43. • “A desconstrução de Don Juan para o valor do
‘primeiro’, do principio de uma série ordinal,
implica ao mesmo tempo em uma desconstrução
geral do próprio conceito como base inicial para
identidade. Desta forma, Don Juan subverte o
principal raciocínio genético e a instituição de
paternidade.” (p.23, versão em inglês)
• Sua paternidade aparece aqui como um ato de
linguagem, e a filiação como uma promessa do céu.
Agora Don Juan, no seu papel como filho, como um
amante, mais uma vez faz a figura concreta de uma
promessa não mantida - uma subversão da crença
ligada à promessa do Céu: "este filho... é a tristeza...
da própria vida, cuja alegria... Eu acreditava que ele
seria. "
44. • Don Louis faz referência à promessa: “nós
compartilhamos a glória de nossos ancestrais
apenas na medida em que tentamos assemelhar-los,
e o renome de suas ações que eles deixam sobre
nós exige que nos comprometamos a seguir o
caminho que eles traçaram".
• “A promessa paternal é, em outras palavras, a
promessa da metáfora: da metáfora como uma base
para o princípio da identidade, que é como uma
promessa de um sentido próprio e de um nome
próprio. ‘O que você fez no mundo?’ Don Louis
pergunta a Don Juan, ‘para ser um cavalheiro? Você
pensa que isso é o suficiente para levar o
nome...?’”(p. 24, versão em inglês)
46. Don Juan, a partir daí, desconstrói essa lógica paternal de
identidade, essa promessas da metáfora, pela própria figura de
sua vida que é aquela da anáfora, da incessante retomada do
começo pela repetição das promessas não cumpridas, não
realizadas. (p.52-54)
[...] a anáfora não repete, assim, nada mais que a
inconsequência ou a não-consecução. Paradoxalmente, o
próprio não cumprimento da promessa possibilita seu recomeço:
é porque a promessa amorosa não se realizou que ela pode
recomeçar.
48. “Dormir ou morrer, você promete nada, você mantém tudo.”
Kierkegaard
• “Se o erotismo de Don Juan se apresenta, estruturalmente e
simbolicamente, com uma relação com a morte, a passagem
de uma mulher para outra, que é, a promessa da quebra de si,
acaba por ser uma violação da memória (uma violação na
memória do desejo), na medida em que constitui um ato de
esquecer a morte.”
• Para Nietzsche:
“Se a felicidade e a perseguição da nova felicidade mantêm
viva em qualquer sentido a vontade de viver, nenhuma
filosofia tem a verdade, talvez mais do que a do cínico... Na
sua menor e maior felicidade há sempre uma coisa que torna a
felicidade: o poder do esquecimento, ou, em mais uma frase
aprendida, uma capacidade de sentir “não historicamente”
toda a sua duração... o esquecimento é a propriedade de toda
a ação.”(p.26, versão em inglês)
49. • Para Don Juan: ordem do finito=> constitui a ordem do
infinito. Assim, paradoxalmente, é porque tem um
número limite que é, como tal, infinito.
• Da mesma forma, a série de mulheres que Don Juan
deseja é infinita porque procede, de fato, a partir do
final (FIN), da passagem incessante do finito, do
funcionamento recorrente da morte na figura do novo
começo em si, a partir do ritmo anafórico repetitivo:
morte∕renascimento.
51. [...] Don Juan não é simplesmente um mestre da ruptura, ele é o
professor. Ao fazer suas promessas, ele ensina aos outros, pela
ironia de seu próprio comportamento e pela necessidade de sua
carne, que a promessa é capaz, como tal, de não ser realizada.
(p.58)
A perversão donjuanesca é, assim, antes de tudo uma forma de
lucidez superior: uma crueldade no sentido de Artaud.
[...] a peça dramatiza a própria crueldade do performativo: a
crueldade do ato de linguagem – ato por excelência do corpo
falante – na medida que ele comporta em si mesmo uma
inelutável necessidade de ruptura ou de corte.
52. 14. O CORTE DONJUANESCO ou ARESTA DE CORTE
DE DON JUAN (inglês)
53. A luta de Don Juan contra um fantasma
• “Em uma brilhante imagem, Molière mostra de modo
emblemático a essência do ato de Don Juan como luta ou
confronto dramático entre dois instrumentos cortantes: a
foice do tempo e a espada de Don Juan. Ao fazer cortes,
na performance de Don Juan se busca, acima de tudo,
cortar o avanço da morte, para escapar do tempo (...) ele
se esforça para cortar o corte do tempo. Se Don Juan
perde o fantasma - de mulher ou de tempo-, se a sua
espada ou seu desempenho são apenas resultados aqui,
(...) é porque a possibilidade de falta - como é
representado pelo corte de foice do tempo - está do
domínio do performativo. O mito de Don Juan, assim, lida
com o performativo de tal forma a trazer à luz esta
violação inerente a ele.”(p. 29, versão em inglês)
54. 15. O MAIOR CORREDOR
OU
O ESPAÇO DE UM MOVIMENTO
55. A partir do começo da peça, de fato, Don Juan é caracterizado
como aquele que, por definição, está sempre em movimento,
não para jamais. Don Juan é aquele que não permanece, no
duplo sentido da palavra permanecer, espacial (ficar em um
lugar, viver em um lugar seu, próprio) e temporal (durar). (p. 62)
Modelada sobre os paradoxos de sentido do movimento de Don
Juan e dramatizando-as, a estrutura movimentada e
descontinuada da peça de Molière problematiza a relação do
erotismo no tempo como uma subversão do tempo literário e
como uma desconstrução da dicotomia antes/depois e da
oposição atrás/diante. (p. 65)
56. 16. A FUNÇÃO DA PRESSA:
TEMPORALIDADE DA PROMESSA
57. “Este amor é bastante precipitado, sem dúvida, mas, que diabos...!
Um deles ama tanto em quinze minutos, como o outro faria em seis
meses.”
• Corrida contra o tempo: Se Don Juan é de fato um
"corredor“, sua raça - governado por urgência- é na
realidade uma corrida contra o tempo. “
-“Eu sei que o seu coração é o maior corredor do
mundo", diz Sganarelle a ele.
• “Este paradoxo temporal igualmente habita a
promessa, cuja relação com o tempo é
particularmente perverso.(...) . De fato, a promessa
de Don Juan, engendrada pela estrutura anafórica
morte∕renascimento, é definida por sua vez, ao
final,em dois significados: pela morte, ou pelo fim da
vida, que a vida está buscando.”
58. • A promessa, também, é um vôo a diante, na
medida em que ela se origina a partir da função
pressa(...). Constituído pelo ato de antecipar o
ato de concluir, a promessa é sintomática da
(não) coincidência de desejo com o presente.
• “Se Don Juan ‘falha em manter sua palavra,’ é
porque a sua palavra, a sua promessa, está no
início constituído pelo ato da falha. Don Juan é,
portanto, apenas o sintoma de uma perversidade
inerente à promessa.” (p.32, versão em inglês)
60. [...] o ato de falhar aparece, na peça, não apenas como a causa,
como a condição de engendramento da promessa, mas também
como o princípio de repetição infinita, pois é a falha donjuanesca
à promessa que dá nascimento a uma série de ameaças e
advertências, aos atos de envolvimento de seus perseguidores
que evocam, para se fundamentar, a autoridade do Céu como
promessa de justiça. (p.67)
Se a promessa consiste na produção de uma espera (de
sentido?) , a decepção dessa espera não faz mais que perpetuá-
la, fazendo ricochetear os atos de compromisso. A peça inteira é
feita de uma cadeia significante de promessas que se engendram
reciprocamente, e no qual o princípio de encadeamento é sua
própria falha.
61. Don Juan subverte a unicidade da promessa ao repetir a própria
promessa de unicidade – o casamento, ato por excelência único
– é para arruinar não a performance da linguagem, mas sua
autoridade. “Um ato performativo não tem existência senão
como ato de autoridade”. (p.68)
[...] a primeira pessoa não tira sua autoridade senão da
hierarquia ordinal, do valor fundador do primeiro no qual –
lembremos – Don Juan não crê. A multiplicação de promessas
destaca a divisão inerente à primeira pessoa. (p.69)
63. • “Don Juan se coloca em uma relação parasitária
com a promessa (...) trazendo para fora, através da
repetição, a violação que é inerente a [ela].”
• “(...) cada promessa promete a conclusão de
incompletude, cada promessa é, acima de tudo, a
promessa da consciência, na medida em que
postula uma não interrupção da continuidade,
entre intenção e ato.”
• “Na verdade, o mito de Don Juan é o mito do
performativo somente no performativo, empurrado
para as suas extremas consequências lógicas,
decreta a sua própria subversão. O que o mito do
corpo falante, em outras palavras, realiza, é a
subversão da consciência.” (p. 34, versão em inglês)
64. • O mito de Don Juan é em efeito o mito da
promessa da consciência caindo em seu rosto.
Agora, a promessa da consciência é nada, mas a
promessa do céu, é a promessa do constativo.
• A morte de Don Juan => traz à fruição dos avisos
que o Céu invocado como uma promessa de
justiça cumpre o compromisso celeste.
• Será que promessa do Céu sobre Don Juan está
mais bem mantida por sua morte do que tem
sido através de seu nascimento?
66. Os três desfechos de Don Juan: a conversão de Don Juan ao
código social da religião; a morte de Don Juan pela estátua; a
aparição de Sganarelle cobrando suas garantias perdidas. (p.71)
Desfecho fantástico: a intervenção da estátua – a perda de Don
Juan;
Desfecho realista: a falsa conversão de Don Juan – salvamento e
sobrevida de Don Juan;
Desaparecimento do escândalo de Don Juan (Don Juan não
escandalizará mais o mundo).
68. A morte mítica de Don Juan => o
convite para um jantar
• A comida aparece no mito de Don Juan, como o gozo, pois
não serve para nada, é pura despesa.
• O ato de comer nos remete a função pressa=> transmite
uma angústia.
• A morte de Don Juan se aproxima através das ameaças de
seus perseguidores, por isso ele tem pressa ao comer.
• A estátua do comandante ‘perturba a refeição’ de Don
Juan. “O termo ‘festa da pedra’ - o subtítulo hermético da
peça de Molière - pode, portanto, ser entendida como
uma referência à pedra da estátua em si: a pedra da
estátua, na medida em que é uma imagem concreta da
morte, não só como a que quebra a refeição, mas como a
que, por definição, não podem ser digeridas, assimilada,
ou compreendida - o que a boca não pode incorporar ou
apropriar.” (p. 37, versão em inglês)
70. Não é indiferente que a morte de Don Juan esteja associada à
BOCA enquanto órgão do prazer. (p.76)
DE certa forma, pode-se dizer que o mito de Don Juan é o mito
da boca, na medida em que a boca é precisamente o lugar
mediador entre a linguagem e o corpo. A boca de Don Juan não
é simplesmente o órgão da felicidade e da apropriação, é
também o órgão por excelência da palavra, mesmo da sedução.
Simbolismo do desfecho fantástico:
Se Don Juan morre, simbolicamente, por não ter cumprido suas
promessas, não ter respeitado suas dívidas, por ter se recusado a
entregar, ele não morre senão pelo que ele dá: Don Juan que dá
de comer, que dá sua mão, que dá sua palavra, morre dando de
comer, dando sua mão, dando sua palavra à estátua da morte.
72. A morte de Don Juan: um final em terceiro
lugar, uma finalidade complementar.
• Sganarelle: “Eis, com sua morte, todos aliviados; o céu ofendido, as leis
violadas, donzelas seduzidas, famílias desonradas, pais ultrajados, esposas
conspurcadas, maridos humilhados todos satisfeitos. Quanto a mim, que só tenho
a mim mesmo, pergunto modestamente a quem me ouve; e o meu salário? E o
meu salário? E o meu salário?
• A morte de Don Juan é tão injusto como a sua vida=>ela
impede o pagamento da dívida e quebra-se a promessa
mais uma vez. “O compromisso do Céu não é mantido. Os
salários não são pagos.”
• A promessa do próprio fim: de criar o significado, de
trazer a satisfação para o desejo, de eliminar o escândalo.
• “Mesmo com a morte de Don Juan, o escândalo não é
eliminado, já que a morte é o maior escândalo de todos.
O escândalo se mostra irredutível.” (p.39, versão em inglês)
74. Se a economia conceitual do performativo havia governado o
mito de Don Juan na interpretação de Molière, o texto de
Molière poderia esclarecer as questões teóricas, linguísticas e
filosóficas das pesquisas sobre o performativo?
O problema donjuanesco por excelência, a questão do
relacionamento entre o erótico e o linguístico, tomado pela
linguística e filosofia analítica, poderia de alguma maneira
informar a teoria dos atos de linguagem? (p.83)
76. [...] a análise austiniana, se é um ato, não é mais que o ato de
falhar o constativo do performativo. Como encontrar a verdade
disso que, como tal, desconstrói o próprio critério de verdade? A
distinção de Austin acaba por subverter a si mesma; Austin
abandona a oposição constativo/performativo
(statement/performance) em proveito de uma teoria do
performativo generalizada: a doutrina geral dos atos
ilocucionários . Como Don Juan, usa o potencial subversivo e
auto-subversivo do performativo. (p.88)
78. • É essa auto-subversão, este caráter de auto-
transgressivo Austiniano que Benveniste não pode
aceitar;
• Oposição entre Austin e Benveniste: pode o
performativo, como tal, servir de base ou
fundamento para a teoria?
• “Para Benveniste, a resposta é sim, e o interesse do
performativo reside precisamente na sua capacidade
de servir como base para a análise linguística.”
• A relação Austiniana ao instrumento performativo
não é, como para Benveniste, uma relação de um
fundamento, mas sim, uma relação de uma perda de
solo ou de base.
79. • Benveniste se recusa a concordar que o performativo
pode falhar na sua própria declaração, e de subverter a
própria consciência.
• Ele exclui, dessa forma, não só a doutrina dos atos
ilocucionários, mas também, especificamente a teoria das
infelicidades, das falhas.
• A teoria da exclusão das falhas é mais que uma
conveniência técnica, mais que um viés metodológico.
• “Agora, para Austin, a capacidade para o fracasso está
situado não fora, mas dentro do performativo, tanto como
o ato de fala e como instrumento teórico. Infelicidade, ou
fracasso, não é para Austin um acidente do performativo,
é inerente a ela, é essencial. Em outras palavras, assim
como Don Juan, Austin concebe o fracasso não como
externa, mas como interna à promessa, como o que
realmente a constitui. ” (p. 45, versão em inglês)
81. Como o fim do mito de Don Juan, o fim da pesquisa austiniana
não conseguiu nem eliminar o escândalo do ato falhado, nem fez
desaparecer a insatisfação. Mas Benveniste, enquanto linguísta,
enquanto portador do projeto de uma ciência constativa,
cognitiva, da linguagem, recusa admitir um tal fim não-rentável.
Como Sganarelle ele reclama, precisamente, pelas garantias
perdidas. (p.93)
Benveniste, enquanto linguista, põe um limite para respeitá-lo,
quer dizer para de-terminar; para classificar, opor, construir. Ao
contrário, Austin, como Don Juan, não põe limite senão para
transgredi-lo, quer dizer para in-determinar: des-clasificar, des-
articular, des-contruir.
Enquanto promessa de ciência, a linguística é uma promessa
respeitada e segura. Enquanto promessa de consciência, a
filosofia é uma promessa que não pode ser segura. (p.94)