SlideShare a Scribd company logo
1 of 260
Download to read offline
Gragoatá
ISSN 1413-9073
Gragoatá Niterói n. 24 p. 1-260 1. sem. 2008
n. 24	 1o
semestre 2008
Política Editorial
A Revista Gragoatá tem como objetivo a divulgação nacional e internacional
de ensaios inéditos, de traduções de ensaios e resenhas de obras que representem
contribuições relevantes tanto para reflexão teórica mais ampla quanto para a
análise de questões, procedimentos e métodos específicos nas áreas de Língua e
Literatura.
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense
Direitos desta edição reservados à EdUFF – Editora da Universidade Federal Fluminense
Rua Miguel de Frias, 9 – anexo – sobreloja – Icaraí – Niterói – RJ – CEP 24220-008
Tel.: (21) 2629-5287 – Telefax: (21)2629-5288 – http://www.editora.uff.br– E-mail: eduff@vm.uff.br
Organização:
Projeto gráfico:
Capa:
Editoração:
Supervisão Gráfica
Coordenação editorial:
Periodicidade:
Tiragem:
Reitor:
Vice-Reitor:
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação:
Diretor da EdUFF:
Conselho Editorial:
Conselho Consultivo:
Laura Cavalcante Padilha e Lucia Helena
Estilo & Design Editoração Eletrônica Ltda. ME
rogério Martins
José Luiz Stalleiken Martins
Káthia M. P. Macedo
ricardo Borges
Semestral
500 exemplares
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Ana Pizarro (Univ. de Santiago do Chile)
Cleonice Berardinelli (UFRJ)
Célia Pedrosa (UFF)
Eurídice Figueiredo (UFF)
Evanildo Bechara (UERJ)
Hélder Macedo (King’s College)
Laura Padilha (UFF)
Lourenço de Rosário (Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa)
Lucia Teixeira (UFF)
Malcolm Coulthard (Univ. de Birmingham)
Maria Luiza Braga (UFRJ)
Marlene Correia (UFRJ)
Michel Laban (Univ. de Paris III)
Mieke Bal (Univ. de Amsterdã)
Nádia Battela Gotlib (USP)
Nélson H. Vieira (Univ. de Brown)
Ria Lemaire (Univ. de Poitiers)
Silviano Santiago (UFF)
Teun van Dijk (Univ. de Amsterdã)
Vilma Arêas (UNICAMP)
Walter Moser (Univ. de Montreal)
© 2008 by
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.
APOIO PROPP/CAPES / CNPq
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
G737 Gragoatá. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense.— n. 1 (1996) - . — Niterói : EdUFF, 2008 – 26 cm; il.
Organização: Laura Cavalcante Pàdilha e Lucia Helena
Semestral
ISSN 1413-9073.
1. Literatura. 2. Lingüística.I. Universidade Federal Fluminense. Programa de
Pós-Graduação em Letras.
CDD 800
Roberto de Souza Salles
Emannuel Paiva de andrade
Humberto Machado Fernandes
Mauro Romero Leal Passos
Mariangela Oliveira (UFF) – Presidente
Lívia de Freitas Reis (UFF)
Eneida Maria de Souza (UFMG)
Solange Vereza (UFF)
Silvio Renato Jorge (UFF)
José Luiz Fiorin (USP)
Leila Bárbara (PUC-SP)
Lucia Helena (UFF)
Vera Lúcia Soares (UFF)
Regina Zilberman (PUC-RS)
Laura Padilha (UFF)
Cláudia Roncarati (UFF)
Editora
filiada
à
Sumário
n. 24	 1º semestre 2008
Gragoatá
Apresentação...................................................................................... 5
ARTIGOS
O começo do fim...............................................................................13
Silviano Santiago
Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias
nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa......31
Benjamin Abdala Junior
Duas viagens, um destino, Moçambique....................................45
Regina Zilberman
Uma língua de viagens, transgressões e rumores.....................61
Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco
Da colonização lingüística portuguesa
à economia neoliberal: nações plurilíngües...............................71
Bethania Mariani
Outros poderes, outros conhecimentos
– Ana Paula Tavares responde a Luís de Camões......................89
Margarida Calafate Ribeiro
Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes..............101
Márcio Seligmann-Silva
Corpos grafemáticos: o silêncio do subalterno
e a história literária........................................................................119
Roberto Vecchi
Narrativas, rostos e manifestações do pós-colonialismo
moçambicano nos romances de João Paulo Borges Coelho....131
Sheila Kahn
O papel das línguas africanas na formação
do português brasileiro: (mais) pistas
para uma nova agenda de pesquisa............................................145
Charlotte Galves
Agruras da ficção contemporânea...............................................165
Silvia Regina Pinto
Narrar é resistir?.............................................................................179
Denise Brasil Alvarenga Aguiar
Os velhos “marionetes”: Quincas Berro D’Água,
versões e construção de identidade............................................191
Lúcia Bettencourt
Quando o preconceito se faz silêncio:
relações raciais na literatura brasileira contemporânea.........203
Regina Dalcastagnè
Uma conversa entre macacos: percalços
de um diálogo entre a África e o outro......................................221
Lucia Helena
ENTREVISTA
O peixe e o macaco: emblemas do subdesenvolvimento
numa entrevista com José Eduardo Agualusa
sobre o Brasil e Angola................................................................ 237
Maurício de Bragança
5Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008
Apresentação
A Revista Gragoatá, em seu vigésimo quarto exemplar, foca-
liza, comparativamente, ou mesmo em separado, os paradigmas
culturais que nosso momento histórico permite visualizar como
os mais importantes na construção das identidades matizadas
que as literaturas e artes do continente africano e brasileiro
apresentam, no cenário da globalização. Os elos entre os dois
mundos são muito evidentes, ou assim se pensa, quase como
um lugar-comum. Serão mesmo transparentes os nossos pa-
rentescos e o que também nos separa? Conhecem, os brasileiros
e os outros, o que se denomina hoje “Brasil”? É auto-evidente
esta significação? E a África, ao ser relacionada ao Brasil, é
sempre a de “expressão portuguesa”? Haveria possibilidade de
nos “encontrarmos” inscritos na África de “expressão inglesa”,
“francesa” etc, na história comum da exclusão? Estas e outras
questões se tornaram candentes, em alguns dos textos que nos
foram enviados.
Brasil e África são dois cantões do planeta que se tan-
genciaram pela ocidentalização promovida no Renascimento
e motivada pelo expansionismo europeu do século XV. Suas
inter-relações e, principalmente, as contradições políticas e os
enigmas do continente africano e da vida brasileira têm sido
objeto de análise, desde os anos de 1990, no século XX, com
a projeção dos estudos culturais e a re-leitura dos cânones de
nações concebidas, pela classificação econômica dominante,
como emergentes. Em que pese o significado desse adjetivo, as
nações ditas em emergência (no duplo sentido de que emergem
e de que estão em estado de emergência) sempre surpreendem
pelas complexas redes culturais – de origem popular ou culta
– surgidas tanto no Brasil, quanto na África e que nada ficam a
dever, em importância para o pensar, se relacionadas às matrizes
de outras paisagens.
Da África se moveu, para o então chamado Novo Mundo,
um conjunto de habitantes de localidades que hoje compõem
inúmeros países: Costa do Marfim, Congo, Angola, Moçambique
e outros, para, em nossas terras, conhecerem a dor do exílio, o
conseqüente desterro e a marca da desagregação provocada
pela prática escravagista. Ainda assim, os representantes de um
povo removido, à revelia e em circunstância adversa, para outros
rincões, produziram subsídios que, surgidos do entrechoque
de tradições, foram capazes de ultrapassar séculos e a própria
condição subalterna, para constituir elementos magníficos de
6 Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008
nossa música, dança, culinária e, até, de manifestações religiosas
aclimatadas no Brasil.
A discussão dos elos e dissensos, as descobertas em comum
dessas duas culturas, literaturas e artes, além da dívida brasi-
leira para com a contribuição dos africanos que para cá vieram
na condição desumana de escravos fazem parte das intenções
que nortearam os objetivos das coordenadoras desse número ao
pensar em seu título – “Brasil e África: trajetórias, rosto e destino”
– e em sua ementa. Esta consiste na discussão da literatura, po-
lítica e ideologia no cenário do neoliberalismo e no enfoque das
articulações entre essas nações e suas narrativas, na estrutura
pós-colonial contemporânea do Brasil e da África. Pensou-se
também em focalizar o Brasil e a África, enquanto autônomos,
em suas diferentes literaturas e formas de expressão e de lingua-
gens produtoras de paradoxos, identidades, dilemas e problemas.
Interessava à nossa ementa, também, a articulação da África e
do Brasil consigo mesmos, e entre si, ou com outros países, de
outros universos culturais na cena do mundo pós-colonial que,
necessariamente, envolve a Europa e outras expressões lingüís­
ticas. O discurso e a construção da subjetividade e das formas
estéticas foi mais um aspecto incluído no temário que sugerimos
ao leitor, bem como a comparação de suas literaturas com as
demais artes. Outra opção que se observa na ementa oferecida
é a da discussão de perspectivas da crítica e da teoria, no Brasil
e na África, seja no estudo da própria literatura e das demais
artes, seja no exame específico de textos voltados à produção do
conhecimento. No campo da lingüística e do estudo de línguas,
acentuou-se a preocupação com o tratamento das línguas em
contato e da política lingüística. Finalmente, a ementa também
deu abertura para uma reflexão histórica, antropológica e filosó-
fica da cultura brasileira e africana contemporâneas, no exame
das relações entre estas, sua literatura, suas crises e utopias, em
sua singularidade, ou em conjunto.
Se o estudo da questão brasileira, na Gragoatá 24, parece
não demandar explicação, pois se faria evidente (evidência da
qual sempre se deve, em bom termo, duvidar), a presença de sua
articulação com a África e desta com a América como um todo
e, também, com a Europa, como ocorre em mais de um artigo
publicado neste número, revela uma forma de contraposição
de olhares através da qual se busca retomar a teia de silêncios e
apagamentos tramada pelo olhar branco-ocidental, hegemônico
na cultura colonizadora letrada, apesar da heterogeneidade de
nossa formação. Um tal olhar já se antecipava na epopéia ca-
moniana, quando os navegantes portugueses, ao se depararem
com o outro, o desconhecido, perguntavam a si mesmos: “Que
gente será esta? (em si diziam) / Que costumes, que Lei, que
Rei teriam?” (I, 45).
7Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008
Se a legenda da diferença faz parte do paradigma forma-
dor de nosso encontro cultural, o leitor poderá agora conferir a
natureza desse painel, no vasto exame dos elementos que deram
sustentação ao processo colonial e à sua reversão, seja do âmbito
lingüístico, do político-cultural, seja no da literatura. Um pai-
nel foi tecido a várias mãos, pelo texto de nossos convidados e
dos que se interessaram pelo tema, e nos enviaram sua valiosa
contribuição. Neste, o espaço da reflexão crítica se espraiou por
questões como o trauma, a violência, o preconceito racial e os
intertextos de variada extração e efeito, para que pudéssemos
levar a cabo, nesta edição, compreender e pensar “Brasil e África:
trajetórias, rosto e destino”.
É com imenso prazer que passamos ao leitor os textos que
resultam do percurso trilhado pelos intelectuais que se uniram
a nós na busca de elaborar mais um número da Revista Gragoatá,
periódico que se tem caracterizado como uma das formas mais
atuantes da contribuição, ao público em geral, da Pós-graduação
em Letras da Universidade Federal Fluminense.
O texto de abertura, de Silviano Santiago, intitula-se “O
começo do fim”. Importante pensador da cultura brasileira, seu
autor busca apresentar nova e suplementar interpretação para
um conceito-chave do movimento Modernista – o de antropofa-
gia, na versão de Oswald de Andrade. Considerando relevante
para o tema deste número refletir sobre um conceito que, du-
rante oito décadas foi responsável por importante bibliografia
em que se salientaram aspectos beligerantes de culturas colo-
nizadas em relação aos colonizadores, Santiago pondera, ainda,
que essa interpretação, apesar de pertinente do ponto de vista
social e político, negligencia qualidades básicas do trabalho de
arte escrito nas margens da cultura Ocidental, em particular
aquelas que deveriam despertar no leitor a premência de um
pensamento utópico, em que a paz, a esperança e a alegria se
tornariam os valores.
O artigo de Benjamin Abdala Júnior, “Notas históricas:
solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países
africanos de língua portuguesa”, discute as redes comunitárias
que tais literaturas tecem, pelo que nelas se revela uma tendência
à supranacionalidade. Esta, para o crítico, se faz tão importante
quanto o resgate, nas produções artístico-verbais, das especifi-
cidades nacionais que nelas se resgatam. O texto reforça o fato
de que há uma forte relação entre o processo literário africano
e o brasileiro. Isso se justifica, segundo o autor, por que, desde o
século XIX, se estabeleceram redes de identificações entre o nosso
país e os africanos de colonização portuguesa. Tais identificações
vão do âmbito político (cf. o caso angolano, no século XIX) até a
busca de outras formas de modelização literária, ressaltando-se,
dentre elas, as interlocuções com o modernismo brasileiro, com o
8 Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008
romance nordestino de 1930 e com o projeto estético-ideológico
de Guimarães Rosa.
O texto “Duas viagens, um destino, Moçambique”, de
Regina Zilberman, procura analisar as visões divergentes que
europeus e africanos têm sobre a expansão do mar português,
para o que retoma O naufrágio do Sepúlveda, de Jerônimo Corte
Real (1594) e O outro pé da sereia, de Mia Couto (2006). O artigo
demonstra a existência de dois distintos modos de recuperação
da história marítima portuguesa, nas malhas da ficção literária.
De um lado, a visão européia do século XVI sobre os “cafres,
que roubar tem só por ofício” e sobre os heróis – mesmo que
fracassados – que “se vão da morte libertando”, como proclama
Camões. De outra parte, a autora analisa a leitura, a contrapelo,
do moçambicano Mia Couto para quem fica clara a “estratégia
dos portugueses para enfraquecer o reino” do Monomotapa.
Resgata-se, assim, o avesso de uma história que só muito re-
centemente começa a ser contada pelo olhar dos, até 1975, ven-
cidos. Um artigo que serve de excelente ponte para o encontro
de África e Brasil.
No texto “Uma língua de viagens, transgressões e rumo-
res”, Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco faz uma espécie de
balanço sobre a questão do uso da língua portuguesa nos países
africanos colonizados por Portugal, mostrando as diferentes
faces que a língua transplantada pelo colonizador adquiriu
nos diversos países que hoje têm o português como sua língua
oficial. Percorre, ainda, o caminho que vai da imposição ao uso
consentido e, em certa medida, revolucionário do português
que acaba por se fazer, ele mesmo, um instrumento voltado
contra o processo de colonização, no momento em que subleva
o tecido lingüístico. Para comprovar esse uso “clandestino” da
língua, repetindo José Craveirinha, a ensaísta busca exemplifi-
car seu ponto de vista com vozes literárias africanas. Estas, ao
inverterem os paradigmas colonialistas, enriquecem a língua
do colonizador, por atravessá-la com outros saberes e sabores,
alargando, com isso, o sentido das viagens que tal língua ainda
será capaz de fazer.
Em “Da colonização lingüística portuguesa à economia
neoliberal: nações plurilíngües”, Bethania Mariani reflete sobre
a atualidade lingüística do Brasil e de Moçambique, tomando,
como ponto de partida do artigo, o fato de que tanto na África
quanto em nosso país, houve uma tentativa de apagamento da
memória dos sujeitos locais, no processo de colonização portu-
guesa. Discute, a seguir, partindo da memória histórica constitu-
tiva das duas formações sociais, de um lado, a legislação referente
à política de línguas e de outro, as relações, nem sempre muito
visíveis, entre as línguas e a política econômica. Assim, analisa
a legislação portuguesa referente ao uso do português nas co-
lônias e, em seguida, tendo em vista a descolonização política
9Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008
e lingüística, enfatiza as relações entre lingüística e economia,
problematizando o valor econômico das línguas.
O artigo “Outros poderes, outros conhecimentos – Ana
Paula Tavares responde a Luís de Camões”, de Margarida Cala-
fate Ribeiro, discute o enfrentamento do poder e de suas relações
existentes nos textos de Paula Tavares, demonstrando que tal
enfrentamento tem como alvo não apenas o sistema colonial
em si, mas a língua que o sustenta e mesmo o neocolonialismo
que subsiste em tais relações, na Angola independente. O artigo
demonstra a subversão do discurso poético de Paula Tavares,
que se quer, ao mesmo tempo, um “pronunciamento” feminino
e epistemológico. Por tal “pronunciamento” a poeta põe em
xeque não apenas os conhecimentos impostos pelo colonizador,
mas a própria tradição local, que também busca perpetuar o pa-
triarcado e a sua violência contra a diferença sexual e sua lógica
opositiva. O texto afirma, em todos os sentidos, a possibilidade
teórica de se valorizarem outros conhecimentos e outros poderes,
sempre deixados à margem pela colonialidade hegemônica.
Em “Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes”,
Márcio Seligmann-Silva propõe uma reflexão sobre o gesto tes-
temunhal de sujeitos que sobreviveram a situações radicais de
violência e/ou catástrofes e para os quais a narração do trauma
se faz gesto de sobrevivência e mesmo de renascimento. Para
comprovar sua hipótese, o autor levanta uma série de aporias
que marcam o testemunho, tentando comprovar que ele “só
existe sob o signo de seu colapso e de sua impossibilidade”. Traz
à cena do artigo, ainda, a questão da política da memória e sua
importância para o gesto de narrar o trauma. Por fim, analisa
obras pontuais que resgatam, respectivamente, o genocídio dos
armênios (1915-16); o dos tutsis, em Ruanda (1994), chegando ao
Brasil e, em especial à música popular brasileira que, de distintas
e/ou camufladas formas, resgata o trauma causado pela violência
da ditadura civil-militar.
Em “Corpos grafemáticos: o silêncio do subalterno e a
história literária”, Roberto Vecchi, partindo de uma série de re-
flexões sobre a força do poder na representação literária, discute
a impossibilidade de fala do subalterno, ou o seu silenciamento,
na série histórica da literatura brasileira. Depois de reforçar seu
quadro teórico, convocando Spivak, Gramsci, Said e outros, o
autor analisa duas obras pontuais dessa mesma literatura bra-
sileira – Os sertões, de Euclides da Cunha e A menina morta, de
Cornélio Pena. Em tais criações, para ele, se projeta uma espécie
de contra-história problematizadora dos vazios e silenciamentos
da história oficial brasileira e dos lugares de força por ela criados.
O texto discute, portanto, a problemática dos subalternos que,
apesar de se localizarem na margem da história, acabam por
ganhar voz e um “corpo grafemático”, nas malhas da ficção.
10 Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008
Em “Narrativas, rostos e manifestações do pós-colonialis-
mo moçambicano nos romances de João Paulo Borges Coelho”,
Sheila Kahn começa por apresentar a questão do pós-colonialis-
mo em Moçambique. A seguir, recupera a postura adotada por
João Paulo Borges Coelho, em relação ao que se passa na nação
recém-independente, postura esta que ele evidencia não apenas
em sua obra romanesca, mas também em entrevista concedida à
ensaísta e por ela em parte transcrita no artigo. Por fim, propõe
a leitura de três romances do autor – Visitas do Dr. Valdez; Crônica
da Rua 513.2 e Campo de trânsito –, demonstrando como Borges
Coelho dá voz aos “calados”, pelo que tenta resgatar a história
igualmente barrada dos que, em silêncio, viveram as transições
por que passou o país em construção.
No texto “O papel das línguas africanas na formação do
português brasileiro: (mais) pistas para uma nova agenda de
pesquisa” de Charlotte Galves, a autora, seguindo caminho
proposto pela pesquisadora Margarida Petter, centraliza a dis-
cussão nas variedades angolanas e moçambicanas do português,
por entender que elas abrem caminho para a reflexão de como e
porquê as línguas africanas interferiram no português do Brasil.
O artigo se divide em duas grandes seções, começando por pro-
mover a releitura do debate da questão por ela proposta, para o
que resgata a série histórica desse mesmo debate. Na segunda
seção, discute os efeitos do contato entre as línguas africanas
e o português, comparando, a seguir, as vertentes africanas e
brasileiras da língua e levantando as evidências que comprovam
a consistência de sua hipótese.
O artigo “Agruras da ficção contemporânea”, de Sílvia
Regina Pinto, focaliza a literatura produzida no Brasil em sua
interface com o mundo de hoje, marcado por uma transformação
radical em que afloram crises talvez sem precedentes, revelando
que ela demonstra e questiona a mudança profunda que vem
ocorrendo em todas as áreas de atividade, em especial a cultura,
a estética, os valores éticos, as noções de tempo e espaço e as
fronteiras entre o público e o privado. O ensaio procura mostrar
como a ficção contemporânea vem tematizando e discutindo sua
própria estranheza, tentando uma articulação entre linguagem
e realidade, no esforço incansável para um confronto do eu com
o outro que, muitas vezes, é ele mesmo, e deixando claro que a
ficção se torna necessária até para que o real exista. Equipado de
instrumental teórico que lhe permite ampla reflexão, este ensaio
oferece uma possibilidade fundamental de pensar o Brasil de
hoje em sua literatura e através dela.
Em “Narrar é resistir?” Denise Brasil Alvarenga Aguiar
também focaliza a ficção contemporânea, em especial o cotejo
entre O quieto animal da esquina, de João Gilberto Noll, e A vida e
a época de Michael K., de J. M. Coetzee. Seu objetivo é compreen-
der as transformações da literatura no contexto das alterações
11Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008
sociais e culturais que marcam os tempos da chamada pós-
modernidade. Identificando importante vertente literária de
tematização do sufocamento da subjetividade no cenário hostil
da exclusão social, a autora compara a rarefação da subjetividade
nos personagens de Noll e a transformação do rarefeito em uma
passagem para uma outra forma de alteridade, no magnífico
personagem de Coetzee, Michael K., que também poderia ser
aproximado de Fabiano (o protagonista de Vidas secas, de Graci-
liano Ramos) e de Macabéa (a protagonista de A hora da estrela, de
Clarice Lispector), na cena da carência que, surpreendentemente,
faz com que o Michael K transcenda o nada a que a sociedade
o havia destinado, desencadeando, com força crítica, o exame,
pelo leitor, desse terrível impedimento.
Com Os velhos ‘marionetes’: Quincas Berro D’Água, ver-
sões e construção de identidade”, Lucia Bettencourt descortina
uma perspectiva original para focalizar um autor que já recebeu
muitas e variadas exegeses e que faz parte de nosso patrimônio
não só literário, mas também antropológico: Jorge Amado. Foca-
lizando os personagens do autor a partir de suas ligações com a
dramaturgia popular e a tradição européia da comedia dell’arte,
revela como sua ficção se mescla à arte popular regional, de forte
influência africana. Com isso, abre um diálogo entre o ato nar-
rativo e seu aspecto dramático, subvertendo a concepção usual
do protagonista Quincas, que adquire, assim, uma outra forma
de expressividade, através da manifestação popular.
O texto “Quando o preconceito se faz silêncio: relações so-
ciais na literatura brasileira”, de Regina Dalcastagnè, destaca, de
uma profunda e extensa pesquisa que a autora vem realizando
sob a chancela do CNPq, as personagens negras, francamente
minoritárias na ficção brasileira contemporânea. O artigo analisa
algumas exceções a esta regra, identificando diferentes modos
de representação literária das relações raciais em uma sociedade
marcada (embora pareça estar convencida do contrário) pela
discriminação. Com acurada atenção ao detalhe, mas sem perder
o alcance do geral, o texto de Dalcastagnè ultrapassa, e muito,
o que se produziu entre nós sobre o assunto, até o momento. O
exame dessas personagens negras talvez ajude os leitores (na
maioria brancos) a entender melhor o que é ser negro no Brasil
– e o que significa ser branco em uma sociedade racista.
Com “Uma conversa entre macacos: percalços do diálogo
africano com o outro”, Lucia Helena focaliza uma delicada e
complexa rede textual, formada pelo diálogo sutil implantado
por J. M. Coetzee entre seus dois romances A vida dos animais
e Elizabeth Costello e o conto de Kafka, “Um relatório para uma
academia”. Ao manter enlaçadas, com pistas que oscilam na
fronteira entre o falso e o verdadeiro, as marcas da autoria,
da autobiografia e da ficção, do ensaio e da vida, o intertexto
realizado por Coetzee revela-se uma irônica e produtiva forma
12 Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008
de buscar compreender, discutir e criticar as transformações
da subjetividade na sociedade contemporânea, em um mundo
globalizado. Em diálogo com a violência do mundo, a literatura
de Coetzee também homenageia a de Kafka, outro invulgar
pensador do desastre.
Fecha o volume a transcrição de uma entrevista inédita,
feita por Maurício de Bragança, em 2005, com o escritor angolano
José Eduardo Agualusa, intitulada “O peixe e o macaco: emble-
mas do subdesenvolvimento numa entrevista com José Eduardo
Agualusa sobre Brasil e Angola”. Nesta entrevista, seu autor, na
introdução que faz, estabelece os pontos em comum nos proces-
sos da formação histórica do Brasil e de Angola, tomando como
fato a colonização portuguesa e situando o contexto temporal
de sua entrevista e o local – Vila do João, no Rio de Janeiro – em
que faz um vídeodocumentário sobre os angolanos residentes no
Brasil. A entrevista do escritor Agualusa fará parte do referido
vídeo, em fase de montagem final.
Laura Padilha e
Lucia Helena
Gragoatá	 Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008
O começo do fim
Silviano Santiago
Recebido 15 mai. 2008 / Aprovado 27 mai. 2008
Resumo
O propósito de “O começo do fim” é o de apre-
sentar uma nova e suplementar interpretação do
conceito-chave do movimento Modernista – a
antropofagia de Oswald de Andrade. Durante
oito décadas o conceito foi responsável por uma
rica e precisa bibliografia, em que se salientaram
os aspectos ressentidos e beligerantes das culturas
colonizadas em relação aos colonizadores. Essa
interpretação, apesar de correta do ponto de vista
social e político, negligencia as qualidades básicas
do trabalho de arte escrito nas margens da cultura
Ocidental, em particular as relacionadas ao fato
que ele deveria despertar no leitor a premência
dum pensamento utópico, em que a paz, a espe-
rança e a alegria se tornariam os valores.
Palavras-chave: Literatura brasileira. Van-
guarda. Modernismo. Antropofagia. Pensamento
utópico.
Gragoatá	 Silviano Santiago
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200814
“Os mais bem sucedidos movimentos políticos
são os que parecem não ser ‘políticos’”
(Felix González-Torres, 1957-1996)
Marik o Mori, Beginning of the End, Gizah, Egito, 2000
No ano em que a Antropofagia oswaldiana celebra seu
octogésimo aniversário, torna-se indispensável repensá-la na
perspectiva de uma nova interpretação. Sucessivas gerações de
artistas, críticos e pesquisadores brasileiros e estrangeiros sobre-
puseram uma formidável tradição hermenêutica ao conceito-cha-
ve da vanguarda brasileira dos anos 1920. Ano após ano, década
após década, essa tradição se transformou numa muralha. Para
escalá-la o neófito tem de contar com o concurso dos milhares
de sólidos e bons recursos oferecidos pela bibliografia de res-
ponsabilidade dos artistas e dos intérpretes. Qualquer que seja a
trilha eleita para a escalada da muralha antropofágica, revisitar
ou visitar o conceito significa fazer grandes caminhadas preli-
minares por detrás do muro das interpretações canônicas e, sem
maiores ambições, terminar por repetir o já escrito e assentado.
Como nos adverte Eugène Ionesco na Cantora careca, “Tomai um
círculo, acariciai-o bastante, e ele se tornará vicioso”.
Indispensável à escalada atual da viciosa teoria antropo-
fágica, a planta baixa da muralha regulamenta medidas críticas
contraproducentes à análise e compreensão das manifestações
artísticas contemporâneas, em particular das que reivindicam
o calor utópico e o direito à esperança e à alegria, que – afirme-se
O começo do fim
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 15
desde já − não estão ausentes do programa teórico oswaldiano
em sua totalidade. Se a planta baixa canônica for tomada como
perspectiva única e correta, algo nela não permitirá que se
enxerguem − com proveito analítico − as qualidades e os sinto-
mas evidentes da arte no terceiro milênio. Aprendamos com o
aforismo do Manifesto Pau-Brasil: “Ver com olhos livres [o grifo é
do próprio OA]”.
A leitura dos últimos e influentes trabalhos críticos sobre o
tema por excelência da vanguarda histórica brasileira desperta
constantemente − na sensibilidade rebelde do leitor jovem − o
gosto de bolo ressequido ou de café requentado. Em suas novas
pesquisas, os grandes especialistas se interessam menos pelos
sucessivos constrangimentos prescritos e impostos pela tradi-
ção hermenêutica ao conceito. Interessam-se mais em alardear
as respectivas erudições individuais ou do grupo de pesquisa,
ampliando ao infinito apenas o repertório das obras que podem
ser mais bem analisadas a partir da Antropofagia tal como a
conceberam. Interessam-se, ainda, pela abertura de novas e pre-
visíveis fronteiras geográficas não-ocidentais, e finalmente pelo
já decantado exercício das inversões ideológicas nos sedimentos
estratificados pelo poder das culturas hegemônicas – ex-coloni-
zadoras ou neocolonizadoras e, por isso, ditas universais − sobre
as demais culturas das nações ou dos povos das margens.
Em resumo, tanto nos novos ensaios sobre a Antropofagia
quanto nos acréscimos feitos ao corpus original levantado pela
teoria oswaldiana, a originalidade de um novo exemplo tornou-se
o principal dado imprevisto no octogenário desenho da planta
baixa exegética. A teoria se alçou e se petrificou em muralha,
enquanto o corpus analisado ganhou o estatuto de obesidade
mórbida.
Em momento preciso do final do século 20, a Antropofagia
recebeu contribuição alvissareira na pesquisa propriamente
teórica. Ela anunciava o casamento do conceito da vanguarda
histórica brasileira com figuras da teoria pós-estruturalista.
Refiro-me aos conceitos de renversement (reversão [do platonismo],
Gilles Deleuze) e de décentrement e de déconstruction (descentra-
mento e desconstrução [da metafísica ocidental], Jacques Derrida).
Hoje, os felizes e tardios casamentos teóricos − sacramentados
sob o céu de Paris − se encontram bem assimilados pelos gourmets
europeizados do circuito e do círculo antropófago. Na busca de
uma palavra exegética que consagre o octogésimo aniversário,
não há que voltar a elas.
Não duvidemos por um segundo sequer de que o conceito
oswaldiano e a tradição crítica dele derivada não tenham sido, no
século 20, uma conquista admirável para a boa leitura da litera-
tura e da arte não-européias, ditas periféricas ou emergentes. O
conceito e a correspondente tradição exegética (a muralha a que
nos referíamos no parágrafo inicial) se tornaram também indis-
Gragoatá	 Silviano Santiago
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200816
pensáveis para a discussão justa e equilibrada do imaginário
estético e sócio-político dos artistas e dos escritores pertencentes
às antigas colônias européias no Novo Mundo.
No terceiro milênio, quando se salientam as teorias pós-
colonialistas − multiculturalistas − nos próprios países coloniza-
dores de além Mancha, de que é exemplo a obra de Stuart Hall,
ou de além Atlântico, de que é exemplo o Museu do Quai de
Branly; em Paris, no novo milênio, quando as nações da África,
do Oriente Médio e da Ásia reclamam um lugar ao sol no mun-
do ocidental para suas audaciosas, destemperadas e resistentes
manifestações culturais, é impensável que o cidadão das mar-
gens – seja o artista, seja o pensador – possa dispensar sem mais
nem menos as idéias revolucionárias apresentadas por Oswald
de Andrade em 1928, cujo equivalente na pesquisa científica foi
La religion des tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus
Tupi-Guarani (em particular o capítulo IX), publicado naquele
mesmo ano por Alfred Métraux, etnólogo de origem suíça. Ou-
tro franco-suíço, o poeta Blaise Cendrars, foi também conviva
de primeira hora no banquete antropófago, como atestam os
ensaios de A aventura brasileira de Blaise Cendrars, de Alexandre
Eulálio (hoje em segunda edição, graças ao concurso de Carlos
Augusto Kalil).
Retirar a Antropofagia, a alta Antropofagia − precisemos − 1
de detrás da muralha levantada pela hermenêutica canônica sig-
nifica entregar-se a atividade sócio-política extremamente arris-
cada, em particular neste exato momento da história planetária.
Na cena mundial, dá-se continuidade à tragédia dos conflitos
bélicos sangrentos, impostos pelos atores sociais de nações do
norte aos atores sociais das nações do sul, representantes, res-
pectivamente, do Ocidente e do Oriente, do cristianismo e do
islamismo, do status quo e do chamado terrorismo. Infelizmente,
o terceiro milênio se define, para retomar a chave-mestra de Sa-
muel Huntington, pelo choque das civilizações. Na primeira década
do novo século, os movimentos diaspóricos de ex-colonos para os
países colonizadores do Primeiro Mundo ganham as manchetes
dos principais jornais europeus e norte-americanos, e freqüen-
tam com assiduidade a agenda política dos governantes, haja
vista a situação em nada particular dos hispano-americanos e
brasileiros na Península Ibérica.2
Se a tarefa a ser enfrentada pelo
crítico de arte contemporâneo exige o risco político, arrisco-me,
e não me deixo contaminar pela atualidade que a cada novo dia
o imperioso governo federal norte-americano inventa e semeia
no Oriente Médio para melhor controlá-lo com fins em nada
pacíficos.
Em termos ainda abstratos, derivados da ancoragem dos
textos de Oswald de Andrade na utopia, na esperança e na alegria
presentes no múltiplo programa teórico, proponho aos ouvintes
e futuros leitores considerar a Antropofagia de maneira su-
1
A não ser confundida
– alerta-nos Oswald de
Andrade – com “a baixa
[grifo nosso] antropo-
fagia aglomerada nos
pecados de catecismo – a
inveja,ausura,acalúnia,
o assassinato. Peste dos
chamados povos cultos
e cristianizados”. O au-
tor conclui: “É contra ela
que estamos agindo”.
Anotemos rapidamente
que as duas formas de
antropofagia não se con-
fundem com o sentido
estrito do ritual canibal
dos Tupinambás.
2
Neste mês de maio
de 2008, maior tristeza
é constatada na África
do Sul, onde imigrantes
dospaíseslimítrofes,em
particular os moçambi-
canos, são perseguidos
e dezenas assassinados
pelos companheiros
de pan-africanismo. A
intolerância e a xenofo-
bia não existem apenas
nos países do Primeiro
Mundo.
O começo do fim
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 17
plementar e de nova perspectiva. Enuncio minha proposta. A
demanda dos artistas e pensadores não-europeus e a aspiração
profunda da produção artística das margens sobrevivem graças
à deglutição por qualquer cidadão da memória universal da cultura
e das artes, sem distinções ou balizas históricas e geográficas.
Antes de prosseguir, busco o indispensável alicerce num afo-
rismo do Manifesto Antropófago: “Contra as histórias do homem
que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não
rubricado. Sem Napoleão. Sem César”.
Se lhes parecer verdadeira a leitura não-hierárquica, pa-
cifista e transcendental para a teoria antropofágica – inspirada,
repito, no aforismo oswaldiano citado −, reganho força e lucidez
com o apoio do antigo filme documentário de Alain Resnais
sobre a Biblioteca Nacional francesa, intitulado Toute la mémoire
du monde (1956). Escutemos a voz do narrador do filme: “Aqui
[na Biblioteca Nacional] se prefigura um tempo em que todos
os enigmas serão resolvidos, um tempo em que as chaves nos
serão concedidas por esse universo e alguns outros. E isso sim-
plesmente acontecerá porque os leitores, sentados diante de sua
parcela de memória universal, terão colado pedaço por pedaço
os fragmentos de um mesmo segredo, que talvez ganhe um
belíssimo nome – a felicidade [le bonheur]”. E graças ao segredo
de nome felicidade, começo a palmilhar novo caminho, agora
com a ajuda de palavras tomadas de empréstimo ao conto “A
biblioteca de Babel”, de Jorge Luis Borges: “Quando se proclamou
que a biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão
foi de extravagante felicidade. [...] O universo estava justificado,
o universo bruscamente usurpou as dimensões ilimitadas da
esperança”. E ficaria felicíssimo se, ao final desta exposição, cada
um dos presentes pudesse por contra própria repetir a frase final
do conto de Borges: “Minha solidão alegra-se com essa elegante
esperança”.
Acrescente-se que a atividade antropofágica proposta
não se quer milagrosa em si, mesmo se busca adotar – dessa
perspectiva inusitada para a hoje canônica exegese da teoria – o
rosto utópico da esperança e da felicidade. Esse rosto, aliás, já se
espelhava na letra do manifesto original, datado de 1928. Trans-
posta a muralha hermenêutica, talvez a nota hoje dissonante
de esperança e o calor utópico da felicidade passem a compor a
disposição mais justa da Antropofagia nos dias atuais. É preciso
nunca esquecer que em 1945, por ocasião do fim da Segunda
Guerra Mundial e depois da queda da ditadura Vargas, Oswald
de Andrade tinha submetido ao plenário do Primeiro Congres-
so de Filosofia um longo ensaio intitulado A marcha das utopias.
A espinha dorsal da argumentação continuava a ser a cultura
matriarcal dos índios Tupinambás, presente nos manifestos
dos anos 1920. Tampouco não se pense que a Antropofagia tal
como a estou caracterizando contribua para uma visão otimista
Gragoatá	 Silviano Santiago
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200818
do mundo atual, ainda que, em virtude de seu enraizamento
original na religião dos primeiros habitantes do Brasil, o lance
utópico, esperançoso e feliz, tome de empréstimo dos rituais das
populações primitivas gestos alucinatórios e redentores.
Se houver otimismo na teoria antropofágica, ele é em tudo
por tudo semelhante ao par de calças, de que nos fala Samuel
Beckett em preciosa e célebre anedota. Diante da reclamação do
Freguês − “Deus fez o mundo em seis dias, e o senhor não con-
seguiu me costurar essa merda de calças em seis meses”, reage o
Alfaiate, orgulhoso de sua obra-prima: “Mas, meu senhor, olhe
o mundo, e olhe suas calças”.
Em última instância e do ponto de vista restrito do artista
não-europeu, a Antropofagia leva o escritor – o escritor brasilei-
ro, no presente caso – a desenvolver o gosto pelo lento e paciente
trabalho de arte. Sejamos mais precisos. Ela exige do artista, cuja
tradição cultural se encontra em princípio desapossada do ideal
de universalidade criado pela tradição ocidental, o gosto pelo
trabalho artístico que não é desassociado do trabalho crítico,
também de responsabilidade do próprio criador. Dessa pers-
pectiva, soa falso todo esforço por criar oposição/contradição
entre a escrita dita artística e a escrita dita crítica. Não há fissão
e incompatibilidade entre elas. Ao se confundirem num escritor,
criação e crítica se fundem e se confundem – são cofundadoras
da literatura. Lembre-se de passagem do volume Variété I. Paul
Valéry escreve que Charles Baudelaire é o poeta “que traz um
crítico em si, intimamente associado por ele a suas próprias
composições poéticas”. Baudelaire se torna figura emblemática
dos escritores para quem – continua Valéry – “a composição,
que é artifício, sucede a algum caos primitivo de intuições e de
desenvolvimentos naturais”.
A composição − de que fala Valéry nessa passagem sobre
o poeta francês oitocentista e sobre outros escritores, como La
Fontaine e Racine − decodifica a metáfora das calças, de que fala
o Alfaiate frente ao porta-voz de Deus na terra, que é o apressado
e abusado Freguês. A composição, ou seja, o lento trabalho de
arte embutido no texto poético e, metaforicamente, nas calças
beckettianas, faculta ao ser humano a possibilidade de competir
em igualdade de condições com Deus e o acaso na criação do
universo, na criação dum universo alternativo, artístico, espe-
rançoso e feliz. Depois das dores do parto, nada como o tempo
do resguardo. Em termos oswaldianos: “o trabalho humano
conduz ao ócio”. Em termos nietzchianos, “as ‘dores do parto’
são indispensáveis à alegria eterna da criação, à eterna afirmação
da vontade de vida”.3
Como diz o texto santo: “Deus abençoou
o sétimo dia e o santificou, porque neste dia Deus descansou
de toda a obra de criação”. Também o alfaiate tem sua semana
inglesa.
3
Complemente-se com
este aforismo de O cre-
púsculo dos deuses: “O
artista trágico não é um
pessimista, diz o seu
sim a tudo o que é pro-
blemático e terrível, é
dionisíaco [...]”.
O começo do fim
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 19
Na cena artística brasileira dos anos 1920, a Antropofagia
oswaldiana respirava o ar clássico e puro da teoria poética de
Paul Valéry, ao mesmo tempo em que, em evidente movimento
de contradição, acolhia e aclimatava a presença estética e sócio-
política dos principais movimentos de vanguarda europeus − o
autoritário Futurismo, de Filippo Tommaso Marinetti, e o anár-
quico Dada, de Tristan Tzara. Em comum, (repito) a deglutição.
No interior da vanguarda histórica brasileira, outra e conseqüen-
te contradição terá seu clímax dois anos depois da realização da
Semana de Arte Moderna. Em 1924, o poeta franco-suíço Blaise
Cendrars é recebido pela família Paulo Prado e viaja, juntamente
com os jovens artistas paulistas, às cidades históricas de Minas
Gerais. Durante a primeira estada de Cendrars no Brasil, é que
se acelera paradoxalmente o processo de abrasileiramento do eu-
ropeizado movimento de vanguarda nos trópicos.
Sobre os caminhos diferenciados que se cruzam na for-
mação do modernismo, Brito Broca, um dos mais importantes
historiadores da literatura brasileira, assinala: “Antes de tudo,
o que merece reparo nessa viagem [a Minas] é a atitude para-
doxal dos viajantes. São todos modernistas, homens do futuro.
E a um poeta de vanguarda que nos visita, escandalizando os
espíritos conformistas, o que vão eles mostrar? As velhas cidades
de Minas, com suas igrejas do século 18, onde tudo é evocação
do passado e, em última análise, tudo sugere ruínas. Pareceria
um contra-senso apenas aparente. Havia uma lógica interior
no caso. O divórcio [grifo meu] em que a maior parte dos nossos
escritores sempre viveu da realidade brasileira fazia com que a
paisagem de Minas barroca surgisse aos olhos dos modernis-
tas como qualquer coisa de novo e original, dentro, portanto,
do quadro de novidade e originalidade que eles procuravam”.
Retomo os primeiros parágrafos desta fala para reafirmar que
o sucesso de certa Antropofagia e da tradição hermenêutica
canônica tem suas raízes revolucionárias e belicosas na viagem
de Blaise Cendrars às cidades históricas, ou seja, no divórcio
entre intelectuais e a história nacional e no paradoxo ocasionado
pela irrupção da tradição brasileira na já adolescente importação
européia. Numa palavra, a Antropofagia bélica e ressentida tem
fundamento no imperativo categórico do abrasileiramento da
arte de vanguarda.
Num único salto, solitário e contraditório,4
o complexo con-
glomerado teórico, que compõe originalmente a Antropofagia,
se comporta como o sinal preparatório a indicar a supremacia
do construtivismo nas manifestações artísticas modernistas e
pós-modernistas. Os exemplos mais bem realizados, e radicais,
serão encontrados a partir dos anos 1940 e 1950. Em literatura,
a poesia de João Cabral de Melo Neto e os poemas visuais dos
poetas concretos, e, em artes plásticas, as Bienais de Arte de
São Paulo.5
Para julgar sobre a importância da contribuição
4
É bom lembrar esta
curta passagem do Ma-
nifeste Dada 1918: “Eu re-
dijo esse manifesto para
mostrar que é possível
fazer simultaneamente
ações opostas, numa
única fresca respiração;
sou contra a ação; pela
contínua contradição,
pela afirmação também,
eu não sou nem para
nem contra e não explico
por que odeio o bom-
senso”. Pensemos ainda
na máxima de André
Gide, muito ao gosto
dos autores e críticos
brasileiros modernistas:
“Sou um ser em diálogo;
tudo em mim combate e
se contradiz”.
5
Na França e no domí-
nio das artes plásticas,
o peso do construtivis-
mo hispano-americano
pode ser bem aquila-
tado pela história da
Galerie Denise Renée,
situada não por coin-
cidência no Boulevard
Saint-Germain, quase
em frente da Maison
de l’Amérique Latine. O
interesse praticamente
nulo da galeria pelos
trabalhos de Lygia Clark
e Hélio Oiticica será em
grande parte responsá-
vel por uma insuportá-
vel lacuna brasileira do
construtivismo brasilei-
ro na cartografia pari-
siense. Ver, por exemplo,
as cartas trocadas entre
Lygia e Hélio durante
os anos de 1969/1970
e a grande exposição
“Helio Oiticica: the body
of colour”, inaugurada
no ano passado na Tate
Modern, em Londres.
6
A conferência foi publi-
cada na Revista Brasileira
de Poesia, no mês de abril
de 1956, e transcrita na
antologia Vanguarda
Européia e Modernismo
Brasileiro, organizada
por Gilberto Mendonça
Telles. O leitor curioso
terá o maior interesse
em consultar um anti-
go e hoje desaparecido
livro de Jean Hytier, La
poétique de Valéry (1953),
em particular o capítulo
V: “Inspiration et tra-
vail”. Ali se encontram
excelentes exemplos de
“deglutição” antropofá-
gica em... Paul Valéry.
Gragoatá	 Silviano Santiago
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200820
teórica de Paul Valéry na concepção do lirismo construtivista
desenvolvido por João Cabral, basta ler a conferência “Poesia e
composição – a inspiração e o trabalho de arte”, proferida pelo
poeta pernambucano em 1952.6
Desta forma é que João Cabral explica a atitude dos es-
critores que decidiram a favor de uma escrita artística que se
apóia na pesquisa – e não na inspiração: “Nos poetas daquela
família, para quem a composição é procura, existe como que o
pudor de se referir aos momentos em que, diante do papel em
branco, exercitam sua força. Porque eles sabem de que é feita
essa força – é feita de mil fracassos, de truques de que ninguém
deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de
aceitação resignada do pouco que se é capaz de conseguir e de
renúncia ao que, de partida, se desejou conseguir”.
Sérgio Buarque de Holanda foi o primeiro crítico sensível
à aliança entre a estética e a ética, tal como proposta em língua
portuguesa pelo lirismo construtivista de João Cabral. Em artigo
sobre o poeta, intitulado “Branco sobre branco”,7
sem dúvida
homenagem indireta ao célebre quadro de Kazimir Malevitch,
Sérgio retoma a oposição entre o “desleixo”, característica prin-
cipal da colonização portuguesa nos trópicos, e o “zelo”, marca
preponderante da colonização espanhola no Novo Mundo. A
oposição fora articulada pela primeira vez em 1936 no ensaio
Raízes do Brasil, hoje um clássico.8
Ele a retoma em 1952 para
insistir sobre o mal-estar que sente diante da opção inesperada
e sistemática dum brasileiro pelo zelo na composição de seus
poemas. Julgara-o equivocadamente um equivocado.
Ao relatar o percurso de sua dúvida inicial sobre o valor
da produção poética de Cabral e o reconhecimento tardio de
sua alta qualidade, Sérgio demonstra como a opção radical do
pernambucano pelo zelo lhe parecera eleição de uma lingua-
gem poética artificial, o que comprometia a inserção natural dos
poemas na tradição lírica luso-brasileira. Passemos a palavra
ao próprio Sérgio: “confesso envergonhado que meus primeiros
contatos com sua obra e, depois, o crescente interesse que ela
pôde inspirar-me, nem sempre me deixaram totalmente livre de
hesitações ou suspeitas. Pareceu-me quase incrível, por vezes,
que essa consciência constantemente alerta e ativa, esse zelo, ao
mesmo tempo vigilante e criador [...], tão estranho aos mais inveterados
costumes da lírica luso-brasileira, chegassem a existir, entre nós,
sem fundar-se por vezes em algum malicioso artifício”.9
(grifos
nossos)
Ao ler o opúsculo de Cabral sobre o pintor catalão Joan
Miro (1952), Sérgio descobre tardiamente que o zelo cabralino
é a pedra de toque de que deve servir-se o crítico para avaliar
a originalidade de sua composição poética no interior da líri-
ca luso-brasileira. Lê-se na já citada resenha: “O que parecia
traduzir-se naquele zelo sempre atento não era apenas uma
7
Aresenhafoipublicada
em jornal em 1952 e in-
cluída em Cobra de vidro
(São Paulo: Perspectiva,
1978, p. 167-180)
8
Para maiores detalhes,
consulte-se o sétimo
capítulo de As raízes e
o labirinto da América
Latina (Rio de Janeiro:
Rocco, 2006), de minha
autoria.
9
Lembre-se que esta-
mos sempre no mesmo
circuito semântico. Para
Valéry, como vimos, a
composição é “artifício”.
Pode-se dizer que faltou
a Sérgio, na primeira
abordagem de Cabral,
o reconhecimento do
artifício (ou seja, da
composição artística)
como tal.
O começo do fim
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 21
poética, na acepção mais corrente e usual do vocábulo: era mais,
e principalmente, uma espécie de norma de ação e de vida. A
estética, em outras palavras, assentava sobre uma ética”.
Em João Cabral, como em outros escritores que o precedem
e o sucedem, o exercício da arte se confunde com uma norma
de ação e de vida estóicas, cujo norte é determinado por uma
atividade social de produção. Ao trazer para a discussão da
Antropofagia o construtivismo, cria-se outro e novo paradoxo,
cujo poder de repercussão chega a nossos dias. Sérgio Buarque
não deixa de assinalá-lo na abertura de sua resenha: “Não há
grande paradoxo em dizer que na obra tão breve e tão volunta-
riamente impessoal de João Cabral de Melo Neto o autor parece
presente de corpo inteiro”. Graças ao esforço de composição, que
é artifício, o poeta se apresenta de corpo inteiro num poema
absolutamente impessoal. O par de calças só pode ser o confec-
cionado por aquele alfaiate e por nenhum outro, para retomar
a anedota de Beckett.
Em sua aliança com o construtivismo e na qualidade de
instrumento de busca da verdade poética, a teoria antropofágica
torna-se ferramenta poderosa. Por estar assentada em sólida pla-
taforma ética, serve para questionar radicalmente as miudezas
da história contemporânea e, mais, põe em questão as teorias
de composição poética defendidas pelas estéticas românticas e
neo-românticas, de que o surrealismo é o exemplo mais notável
na época em que Oswald lança os manifestos literários. Essas
estéticas estão centradas na expressão imperiosa da subjetivi-
dade plena, que age em sujeição a − e em concordância com −
uma espécie de transe onírico ou alucinógeno. Em oposição ao
trabalho de arte, afirma-se a toda poderosa inspiração.
Em contraponto à tomada de posição de João Cabral sobre o
artifício poético e ao assentado criticamente por Sérgio Buarque
em relação à aliança entre estética e ética, leiamos uma curta
passagem de L’amour fou, de André Breton. O poeta surrealista
lamenta os retoques que ele – primeiro leitor de si mesmo − foi
levado a fazer no poema “Tournesol” (Girassol): “Parece-me
fora de dúvida haver retocado uma duas ou três coisas, na ver-
são original [do poema], no intuito – tão lamentável afinal – de
obter um todo mais homogêneo, de limitar o grau de imediata
opacidade, de arbitrariedade aparente, que me pareceu existir
no poema da primeira vez que o li”. Primeiro, informa que a
primeira leitura da versão original do poema o levou a correções
ditadas pela autocrítica, para linhas abaixo, afirmar que as la-
mentava: “A atividade crítica que, a posteriori, me veio a sugerir
certas adições ou substituições de palavras [no poema], leva-me a
encarar agora essas correções como erros básicos: nada auxiliam
o leitor, antes pelo contrário, só conseguem de uma maneira ou
de outra prejudicar gravemente a autenticidade do poema”.10
Segundo Breton, o trabalho de arte prejudica a autenticidade do
10
Salto uma curta pas-
sagem entre as duas
citações acima. Nela
está em jogo o papel da
inspiração – e não do
trabalho de arte – na
composição do poema
“Tournesol”.
Gragoatá	 Silviano Santiago
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200822
poema, sua verdade imediata. Ele não quer carregar consigo o
crítico de si mesmo.
Retomemos, onde a tínhamos deixado, a questão da me-
mória cultural comum a todos os homens. Em mãos de Alain
Resnais e Jorge Luis Borges. De maneira premonitória lemos
no conto “A biblioteca de Babel” que “a certeza de que tudo está
escrito nos anula ou nos fantasmagoriza”. O que está por detrás
do dia de hoje – dito o passado, é já o presente que se impacienta
diante da demora do futuro. O que está adiante do dia de hoje
– dito o futuro, é sempre já a gestação do presente, pressurosa
em dar à luz o que está por detrás do dia de hoje. Segundo o
Manifesto Antropófago, o solo comum a toda a humanidade
futura é o “matriarcado de Pindorama”. O matriarcado é faca
de dois gumes − “devora” e “comunga”. Escreve Oswald em
ensaio datado de 1950: “[A cultura matriarcal] compreende a
vida como devoração e a simboliza no rito antropófago, que é
comunhão”.
Na alta Antropofagia, de que Oswald de Andrade quer ser
porta-voz, o ato de devorar adquire as qualidades estratégicas
do ritual católico, em que o consumo do alimento sacrificial
pelo cliente não distingue o real do imaginário, ou seja, o trigo
do corpo e o vinho do sangue. Em resumo, a devoração é co-
munhão. A gulodice da alta Antropofagia se situa entre os dois
excessos da razão, de que fala Pascal nas Pensées (IV): “excluir a
razão, só admitir a razão”.11
Por esse viés inesperado e excessivo,
retorna o tema por excelência desse relato: “Faça isso em minha
memória”.
Ou, então, retomemos os versos iniciais e os finais do poe-
ma “Burnt Norton”, em Quatro quartetos, de T. S. Eliot, na tradução
de Ivan Junqueira. Eis os versos iniciais do poema: “O tempo
presente e o tempo passado / Estão ambos talvez presentes no
tempo futuro / E o tempo futuro contido no tempo passado. /
Se todo tempo é eternamente presente / Todo tempo é irredimí-
vel”. Saltemos agora para os versos finais do poema: “O tempo
passado e o tempo futuro, / O que poderia ter sido e o que foi,
/ Convergem para um só fim, que é sempre presente”.
Para bem apreender a riqueza da contribuição antropo-
fágica à arte e à literatura brasileiras e à arte e à literatura em
geral, é preciso negociar com os críticos que defendem o sentido
biográfico-evolutivo das histórias pessoais de vida, o sentido
único da História e o peso da economia na avaliação da produção
artística do ser humano. Como resultado da negociação, uma de-
dução (no sentido financeiro do termo) será concedida ao artista,
cujo custo benefício será a possibilidade de futuro esperançoso e
feliz para a humanidade. A thing of beauty is a joy forever. A dedução
é o sentido e o poder da arte e da literatura das margens, da arte
e da literatura como tais – na condição de composição artística,
para retomar a expressão da poética de Valéry, ou em termos de
11
Há sem dúvida um
catolicismo recalcado
na teoria antropofágica
que se torna explícito no
momento em que está
em jogo o ato de devo-
rar como comunhão. A
visão mais fascinante
da questão devoração/
comunhão é, na verda-
de, a versão calvinista,
a ser considerada como
desconstrucionista. À
época da luta entre eu-
ropeus e indígenas com
vistas à catequese, ela
se encontra no sexto
capítulo de Voyage à la
terre du Brésil, de Jean
de Léry. A luta espiri-
tual entre Villegagnon
e Jean de Cointe ganha
peso no fato de que não
há transubstanciação
ou consubstanciação
do corpo e do sangue
de Cristo.
O começo do fim
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 23
par de calças, para retomar a metáfora do Alfaiate na anedota de
Beckett. O valor da dedução concedida pelos cientistas sociais e
os economistas aos mercadores de arte é a sabedoria humana. À
semelhança da antropofagia descrita por Alfred Métraux em seu
livro pioneiro, que se elabora como conhecimento dito científico
[knowledge], a Antropofagia oswaldiana se agiganta por ter como
escatologia a sabedoria dita poética [wisdom].
Ao se afirmar a favor da expressão impessoal, descaracteri-
zando a expressão subjetiva do poeta, e ao se deixar representar
teoricamente como semelhante à casquette de Charles Baudelaire,
cuja fabricação era compósita, a Antropofagia é antípoda da me-
mória involuntária de Marcel Proust. Ela se confunde, portanto,
com a memória voluntária, segundo a definição que dela nos foi
dada por Samuel Beckett em 1931, no ensaio pioneiro sobre o
autor de Em busca do tempo perdido. Em inusitada correspondên-
cia com o futuro Borges, autor do conto “Funes, o memorioso”
(1944), Beckett afirma inicialmente: “O homem de boa memória
nunca se lembra de nada, porque nunca se esquece de nada”.12
Em oposição à memória involuntária, a memória voluntária –
rebaixada por Beckett na escala dos valores proustianos como
a má memória – é necessariamente incompleta. Nesse sentido,
ela é orgânica e não o é. É interior e não o é. É exterior e não o
é. É involuntária e não o é. Em resumo, ela transita e, por isso,
é anfíbia.
A memória voluntária é memória e, ao mesmo tempo,
hábito, para retomar outra categoria analítica de Beckett. Ela
é hábito adquirido pelo ofício de viver e pelo ofício de ler. Em
suma, uma sabedoria – uma experiência de vida que se soma a
uma pesquisa livresca; é aprendizado. Segundo as palavras sem
dúvida irônicas de Beckett, ela é “a memória que não é memória,
mas simples consulta ao índice remissivo do Velho Testamento
do indivíduo [...] É a memória uniforme da inteligência”. Portanto,
a memória voluntária não se relaciona em coisa alguma com a
boa memória, ou seja, a memória involuntária proustiana.
A memória voluntária – a má memória, insisto, bem como
a Antropofagia – é conseqüência do pensamento da diferença,
mas ela só existe plenamente para negar os valores subjetivos
e supremos, que estão na origem da sua desclassificação por
Marcel Proust. Se a reversão dos valores – na leitura de Beckett, o
mau da memória está sempre em posição inferior −, se a reversão
dos valores não foi necessária no período histórico das vanguar-
das, ela está sendo requisitada na contemporaneidade. Andréas
Huyssen, historiador de arte, situa o pós-modernismo depois de
grande divisão (“after the great divide”). Huyssen assim define a
expressão: “O que chamo de a Grande Divisão é o gênero de dis-
curso que insiste na distinção categórica entre arte erudita [high
art] e a cultura das massas”. Acrescenta: “[...] o pós-modernismo
repudia as teorias e as práticas da Grande Divisão”. Em oposição
12
Entre outras, leiamos
esta passagem de “Fu-
nes, o memorioso”: “Não
só lhe custava compre-
ender que o símbolo
genérico cão abranges-
se tantos indivíduos
díspares de diversos
tamanhos e diversa for-
ma; aborrecia-o que o
cão das três e catorze
(visto de perfil) tivesse
o mesmo nome que o
cão das três e quarto
(visto de frente). Seu
próprio rosto no espe-
lho, suas próprias mãos,
surpreendiam-no todas
as vezes”.
Gragoatá	 Silviano Santiago
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200824
às leituras equivocadas da vanguarda histórica, que insistiam
no fato de que era indispensável excluir as manifestações de
todas as formas de cultura de massa, o historiador nomeia de
maneira incontestável o principal responsável pela Grande
Divisão, o alto modernismo [the high Modernism]. Ele se explica:
“as vanguardas históricas tinham por fim o desenvolvimento
duma relação alternativa entre a arte erudita e as culturas das
massas e dessa forma deveriam continuar a existir dentro do
alto modernismo, que, no entanto, insistia majoritariamente na
hostilidade inata entre o alto e o baixo”.13
Nem alta cultura nem
cultura de massa, a Antropofagia – ou a má memória – aponta
para as duas, ao mesmo tempo.
Retornemos a Beckett e a Proust para concluir com a ajuda
do primeiro: “Democrata incondicional, [a memória voluntária]
não faz qualquer distinção entre os Pensamentos de Pascal e uma
propaganda de sabão”. A Antropofagia está no nascedouro da
produção artística que se afirma como negação das estéticas do
alto modernismo, que lutavam a favor da exclusão da cultura
das massas do reino das artes. A Antropofagia se apresenta aos
olhos pós-modernos como a negação das estéticas românticas,
fundadas na sinceridade do eu.
Durante o período áureo da vanguarda brasileira, a An-
tropofagia buscava, por um lado, apreender e avaliar para o
artista e o pensador não-europeus o peso da herança cultural
universal e, por outro lado, identificar as razões pelas quais os
indígenas – que são nossos antepassados dum ponto de vista
exclusivamente geográfico – não tinham conseguido ter acesso
ao capital cultural consensual, indispensável à produção de obra
artística ou reflexiva com peso universal. Mais importante do que
a constatação da inferioridade do colono em relação à empresa
colonizadora européia e a conseqüente rejeição das injustiças
estabelecidas pelo poder tirânico das metrópoles, a Antropofa-
gia se apresenta como estratégia artística e reflexiva que visa a
apreender o valor universal para os que estão desapossados dele
originariamente. Na busca desse valor, a Antropofagia rechaça
a dívida contraída pelo não-europeu com o universal, para então
indiciá-la duplamente − como signo de reconhecimento e, para-
doxalmente, de auto-reconhecimento. A teoria antropofágica é
o primado duma negociação, cujo resultado – isto é, a redução
ou o abatimento no preço legal e oficial do universalismo – é a
iluminação do mundo e seus habitantes pela amplidão absoluta
do conhecimento pleno das diferenças. A iluminação se dá no
exercício de ultrapassagem histórico das condições funestas do
cotidiano e da atualidade.
A produção de bens artísticos e reflexivos passa por uma
experiência pessoal que se renova, que é renovada por cada
experiência humana, indiferente de sua localização precisa na
história ocidental e na geografia do planeta. Leia-se o manifesto,
13
A reiterar a tese de
Huyssen, leia-se no ma-
nifesta de Oswald: “O
que atropelava a verda-
de era a roupa, o imper-
meável entre o mundo
interior e o mundo ex-
terior. A reação contra
o homem vestido. O
cinema americano in-
formará”.
O começo do fim
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 25
de que vimos falando: “Contra a Memória fonte do costume.
A experiência pessoal renovada”. A memória se renova pela
intervenção do sujeito na memória universal, de que falam Alain
Resnais e Jorge Luis Borges. Sua memória é involuntária e volun-
tária, é interior e exterior, é orgânica e artificial, é incompleta e
uniforme. O sujeito se renova no momento em que sua memória
involuntária se renova voluntariamente.
Em possessão duma reserva parcial de conhecimento e de-
sejoso de ter acesso ao capital artístico dito universal, os artistas
e os pensadores não-europeus inventaram não só argumentos
contraditórios e paradoxais, como também metodologias de
leitura em nada convencionais. A Antropofagia não deixa de
propor uma pedagogia para todos os cidadãos. Marca original do
colono, o conhecimento incompleto se justapõe ao conhecimento
dito universal, marca original do colonizador. É um conhecimen-
to exorbitante que deriva da combinação, da comunhão das duas
reservas de conhecimento pelo esforço antropófago. Ele rechaça,
portanto, as duas formas parciais de conhecimento − tanto a
parcial do colono quanto a dita universal do colonizador. No
domínio da Antropofagia, o único valor responsável é o exor-
bitante. Para melhor compreender a situação pedagógica a que
chegamos, aprenda-se com Emmanuel Lévinas que “a relação
intersubjetiva é uma relação não-simétrica. Nesse sentido, sou
responsável pelo outro sem esperar a recíproca, ainda que ele me
custe a vida. A recíproca é problema dele”. A recíproca ocidental
não é, nunca foi e nunca será problema do sujeito antropófago.
Os argumentos legitimados pela Antropofagia escapam
muitas vezes da lógica cartesiana e de suas metodologias de
leitura, escapa ainda ao sentido único da História. Daí a ori-
ginalidade e audácia dos aforismos levantados pelo Manifesto
Antropófago, de que é emblemático o seguinte: “Só me interessa
o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. Antes de
ser o inimigo, ainda que na realidade o possa ser, o outro é a pos-
sibilidade de união neste mundo, em que mais e mais se perde a
esperança da fraternidade universal. Essa operação responsável,
esperançosa e utópica, a felicidade na comunhão, só é possível
graças aos paradoxos da Antropofagia: “Só a Antropofagia nos
une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. / Única
lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualis-
mos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos
os tratados de paz”.
Tudo o que é de outro é meu. Tornar-se responsável do bem
que é do outro, dos bens que pertencem ao outro, é o próprio
do eu que, em lugar da sinceridade romântica, se quer fraternal
e esperançoso, vale dizer, universal. O sujeito não recua diante
dos atos e mecanismos de ataque ou de defesa manifestados
pelo outro. Voluntariamente, acumula em si o outro, o capital
e os valores do outro. Nunca será deficitário. Em negociação
Gragoatá	 Silviano Santiago
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200826
com o outro, jamais desfalca seu capital cultural, soma sempre.
A visão do sujeito antropófago perde o sentido das fronteiras
geográficas e sua audição, perde o sentido dos limites espaciais
e sua localização. A responsabilidade é a expressão mascarada
de todos os individualismos que, por sua vez, é a expressão
mascarada de todos os coletivismos – repitamos as palavras
do Manifesto. Daí o aforismo que abre o texto de Oswald: “Só a
Antropofagia nos une”.
Terminada a etapa das operações aritméticas − ou finan-
ceiras − de soma, impõe-se o desejo de verificar a exatidão dos
resultados obtidos. Aplique-se a prova dos nove. Esta negará
ou reafirmará o rigor da lei do homem e da Antropofagia. No
Manifesto Antropófago, lemos uma e muitas vezes o seguinte afo-
rismo: “A alegria é a prova dos nove”. E lemos ainda: “Antes dos
portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a
felicidade”. Uma vez mais precisemos nossa posição. Antes de ser
conseqüência das descobertas marítimas feitas pelos europeus
no século 16, a alegria foi sempre o valor do antropófago; em
uma só palavra, o valor exorbitante do homem no matriarcado
de Pindorama, um valor absoluto.
Dessa perspectiva, o estudo das diferenças espaciais no
planeta terra – e a constatação de sua composição não-simétrica
do ponto de vista histórico, social e econômico – só guarda sua
força operacional por detrás da muralha sobreposta ao con-
ceito oswaldiano pela tradição hermenêutica, cuja origem está
incontestavelmente na busca de identidade para cada nação do
subcontinente latino-americano ao final do colonialismo euro-
peu. Constate-se uma vez mais: a lei que constitui o sujeito por
seu “interesse pelo outro”, ou por sua “responsabilidade pelo
outro” não diferencia o antropófago do ser humano tout court. A
lei do homem e a lei do antropófago não são duas, são a mesma.
Melhor, a lei do mesmo rasura a diferença que tinha servido
na época colonial e depois dela para constituir o antropófago
na condição de ator latino-americano singular, descoberto pelo
europeu e inventado a partir das grandes descobertas marítimas
do século 16. Na prova dos nove, esse ator tem a identidade de
homem ressentido (Nietzsche) e navega nas águas belicosas do
saber parcial.
As questões políticas e econômicas decorrentes da longa
e fastidiosa narrativa sobre as transformações das colônias eu-
ropéias em nações latino-americanas cedem o lugar a questões
decorrentes duma nova e complexa forma de constituição do
sujeito (artístico). Tal reviravolta se dá no momento em que se
torna de importância primordial uma visão esperançosa e fe-
liz, universal, que contrastará radicalmente com as propostas
sócio-políticas defendidas pela globalização do planeta a partir
da unificação econômica das bolsas e dos mercados, ou que a
acusam pela mesma linguagem, só que em sentido inverso.
O começo do fim
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 27
O novo e complexo sujeito antropófago – semelhante ao
que está sendo encenado nas fotografias de Mariko Mori, intitu-
ladas Beginning of the end: Past, present and future (1995-2000) – 14
se caracteriza pelo dom da ubiqüidade, da simultaneidade e da
transcendência. O novo sujeito está por todos os cantos do tempo
e do espaço. É a memória do espaço fotografada pela perspecti-
va da memória do tempo. O sujeito está ali e está alhures, num
outro lugar onde os limites históricos e as fronteiras geográficas
se apresentam desprotegidas do sentido de propriedade por um
grupo ou por grupos hegemônicos. Como o Manifesto o tinha
dito em 1928, trata-se de um mundo “sem Napoleão, sem César”.
A nova certeza proposta por Mariko Mori e muitos outros ar-
tistas contemporâneos furta a diferença para melhor apreender
a sutura que as obras de arte operam pelo “totalitarismo” da
alegria, para empregar o substantivo de Clément Rosset em seu
ensaio La force majeure.
Citemos Rosset: “há na alegria [joie] um mecanismo aprova-
tivo que tende a ir além do objeto particular que a suscitou para
afetar indiferentemente todo objeto e chegar a uma afirmação
do caráter jubilante da existência em geral. Assim, a alegria
aparece como uma espécie de cega desoneração de dívida, con-
cedida a todos e a qualquer, como uma aprovação incondicional
de toda forma de existência presente, passada ou futura”. Mário
de Andrade afirmava de maneira paradoxal: “A própria dor é
uma felicidade”. Passemos por cima do Nietzsche, autor de O
crepúsculo dos ídolos, para chegar finalmente a Gilles Deleuze,
seu leitor. Deste é a definição seguinte: “Trágico designa a for-
ma estética da alegria [joie]; não se trata de fórmula medicinal,
nem de solução moral da dor, do medo ou da piedade. O que é
trágico é a alegria”.
O retorno do que foi recalcado nesta apresentação – a
muralha construída pela tradição hermenêutica – é apenas a
afirmação em negativo do poder policial das fronteiras alfandegá-
rias e da intolerância dos governantes e dos cidadãos em relação
à circulação plena dos homens pelas nações do planeta, pelos
seus múltiplos tempos e espaços. Mais: o retorno do recalcado
representa as variadas formas de transgressão artística, afirma-
das por considerações de ordem histórica, política e econômica,
cujo fim é o de explicar, não a criação estética em si, mas as cir-
cunstâncias negativas e diversas que a cercam, curto-circuitando
sua liberdade de expressão. “Mas, meu senhor, olhe o mundo,
e olhe seu par de calças”.
Leiamos um aforismo do Manifesto da Poesia Pau-Brasil
(1924). Ele nos fala da luta a favor dum caminho único que deve
englobar a antiga e uma nova concepção de poesia: “Uma única
luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação.
E a Poesia Pau-Brasil, de exportação”. Apesar de comportar um
tempo e um lugar predeterminados pelo adjetivo que a qualifica,
14
Os leitores que não
conhecem o trabalho de
Mariko Mori poderão
ler com proveito esta
curta passagem extraída
da Encyclopédie Encarta
(2006): “Mariko Mori
fotografou vistas de 360º
de onze cidades repre-
sentantes do passado
(Ankgor, Teotihuacán,
La Paz, Gizah), do pre-
sente (Times Square,
em Nova York, Shibuya,
em Tóquio, Piccadilly
Circus, em Londres,
Hong Kong) e do futuro
(o bairro da Défense, em
Paris, Xangai, Docklan-
ds em Londres, Odaiba
em Tóquio, Berlim). Ela
própria está presente na
foto, deitada, vestida de
um traje futurista numa
cápsula de plexiglas
transparente. Mariko
torna assim possível,
através da mensagem
sobre um mundo glo-
balizado, as noções de
simultaneidade, ubiqüi-
dade e transcendência.
Seu corpo torna-se um
‘instrumento de comu-
nicação com o mundo’,
seu trabalho, ‘um ato
artístico destinado a
distribuir a essência
espiritual do mundo, a
desviar os homens dos
combates políticos, re-
ligiosos ou ideológicos
que provocam a devas-
tação do planeta Terra,
nossa única moradia’”.
Gragoatá	 Silviano Santiago
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200828
a nova poesia, de que fala Oswald, luta por um caminho único,
que é o da exportação. Seu aqui está alhures. Seu alhures está
aqui. Nesse sentido, a repetição exaustiva da palavra “Roteiros”
em um de seus aforismos se afirma de importância primordial
para bem compreender os deslocamentos espácio-temporais do
sujeito artístico que se quer antropófago e construtivista.
Nas reflexões propriamente utópicas de Oswald de Andra-
de, sempre está em jogo a condição do “bárbaro tecnicizado”. No
corpus da Antropofagia, tudo exige uma pedagogia escatológica,
de óbvio sentido universal, mas é o personagem do bárbaro
tecnicizado que a reclama. Por falta de tempo para se deter nos
detalhes, retomemos algumas idéias lançadas por Jean-François
Lyotard em La condition post-moderne. As teses defendidas pelo
filósofo doublé de pedagogo se articulam a partir dum grande
eixo, ao redor do qual se desenha o questionamento do conceito
de Bildung [formação], tal como nos foi transmitido pela tradição
filosófica do século 19.
À transmissão dum saber completo pelo professor ao aluno,
cujo saber é por definição incompleto, à interiorização progres-
siva do saber completo sob a batuta áspera do maestro, segue-se
hoje – graças à informatização do conhecimento e a possibilidade
de acesso por todos à Internet – que o saber humano se apresen-
ta sob a forma dum estoque uniforme, completo e exterior ao
homem. A memória de cada um e de todos é tão anfíbia quanto
a boa memória involuntária e orgânica (Marcel Proust) e a má
memória voluntária e inorgânica (Antropofagia). Como escreve
Lyotard: “A Enciclopédia de amanhã são os bancos de dados. Eles
excedem a capacidade de cada usuário. São ‘a natureza’ para o
homem pós-moderno”.
Continuemos a leitura de Lyotard: “À medida que o jogo
está na informação incompleta, a vantagem cabe àquele que
sabe e pode obter um suplemento de informação. Este é o caso,
por definição, de um estudante em situação de aprendizado”.
É o caso também − acrescentemos − do colono que se contenta
com a condição de colonizado. A este faz sentido a retomada
das idéias guerreiras desenvolvidas pela tradição hermenêuti-
ca, de que falamos no começo desta apresentação. No jogo de
invenção com informação completa para os parceiros, o melhor
desempenho não pertence obrigatoriamente ao professor (ou ao
colonizador), que detém a priori um suplemento, ou ao estudante
(o colono), que pelo trabalho mimético busca para si a aquisição
de tal suplemento. A invenção – continua Lyotard – “resulta de
um novo arranjo dos dados que constituem propriamente um
‘lance’ [un coup]. Este novo arranjo obtém-se ordinariamente
mediante a conexão de uma série de dados tidos até então como
independentes. Pode-se chamar imaginação a capacidade de ar-
ticular em conjunto o que assim não estava”.
O começo do fim
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 29
Nos distantes anos 1920, a Antropofagia propunha uma
nova pedagogia, onde estava presente a possibilidade para os
artistas e os pensadores brasileiros de trabalhar “no jogo da
informação completa”. Todos os parceiros – ex-colonos e ex-
colonizadores − estariam em igualdade de competência na hora
da produção do pensamento e da arte. O exorbitante não era um
suplemento de mão única, mas a duas, a três mãos. O exorbitante
é a imaginação antropófaga. Terminemos por esta passagem de
Lyotard, que a sua maneira retoma a utopia esperançosa e feliz
de Borges, de Valéry e de Beckett: “Ora, é permitido representar
o mundo do saber pós-moderno como regido por um jogo de in-
formação completa, no sentido de que os dados são em princípio
accessíveis a todos os especialistas: não existe segredo científico.
Em igualdade de competência na produção do saber, e não mais
no processo de sua aquisição, o aumento de eficiência depende
apenas e finalmente da ‘imaginação’ que permite seja dado um
novo lance, sejam mudadas as regras do jogo”.
Escrito em francês em junho de 2007
Traduzido em maio de 2008
Abstract
The purpose of the “Beginning of the end” is to
present a new and supplementary interpretation
of the key concept of the Brazilian Modernist
movement – Oswald de Andrade’s antropofagia.
For eight decades the concept has been responsible
for an extremely rich and accurate bibliography
that underscores the belligerent aspects of the
colonized cultures in regard to the colonizers.
This interpretation, in spite of being correct from a
social and political point of view, neglects the basic
qualities of the work of art written in the margins
of Western culture, in especial those related to the
fact that it should arouse in the reader the need
for a utopian thought, in which peace, hope and
joy are the values.
Keywords: Brazilian literature. Avant-garde.
Modernist movement. Antropofagia. Utopian
thought.
Gragoatá	 Silviano Santiago
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200830
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Oswald de. Obras completas: ao pau-brasil à antro-
pofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
v. VI.
BECKETT, Samuel. Le monde et le pantalon. Paris: Minuit, 1990.
BORGES, Jorge Luis. Obras completas. São Paulo: Globo, 1999. v. I.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: Presses Uni-
versitaires de France, 1970.
HUYSSEN, Andreas. After the great divide. New York: Midland
Book, 1986.
LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: J. Olym-
pio, 1986.
ROSSET, Clément. A alegria: a força maior. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2000.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e Modernismo
brasileiro. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1982.
Gragoatá	 Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008
Notas históricas: solidariedade
e relações comunitárias
nas literaturas dos países africanos
de língua portuguesa
Benjamin Abdala Junior
Recebido 03 mar. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008
Resumo
Notas sobre as histórias literárias dos países afri-
canos de língua oficial portuguesa, construídas a
partir da situação colonial. São relevados traços
históricos comuns, que apontam para perspecti-
vas neo-românticas quando essas literaturas se
voltam para imaginar questões relativas a suas
nacionalidades; processos de atualização da língua
literária portuguesa, cuja plasticidade remonta
nacionalmente aos tempos medievais; e as redes
comunitárias que elas conformam com o conjunto
das literaturas de língua portuguesa..
Palavras-chave: História literária. Países afri-
canos. Língua portuguesa. Perspectivas. Neo-
romantismo.
Gragoatá	 Benjamin Abdala Junior
Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 200832
O estudo dos processos de afirmação das literaturas afri-
canas de língua portuguesa levam o crítico a relevar formas
em que os escritores, desde a facção da obra, procuram obter
sua legitimação, num campo intelectual definido por relações
comunitárias. Autor, texto e leitor situam-se nesse horizonte
lingüístico-cultural que se pauta pela tendência à supranaciona-
lidade, que se tem mostrado tão importante quanto as adesões
empáticas da nacionalidade. Nessa rede, o trabalho literário
procurará sua legitimação não apenas em termos de criação,
mas também nas esferas de circulação, por onde circulam os
principais agentes de seu reconhecimento. Estabelecem-se,
assim, a partir de cada obra, relações de solidariedade entre
esses agentes. Para tanto, a inclinação para a inovação artística
torna-se correlata ao desejo de se provocar impacto, encontrar
ressonância enquanto poder simbólico.
Impõe-se uma observação preliminar, não obstante essa
tendência a uma normatização supranacional: as literaturas
africanas de língua portuguesa apresentam especificidades na-
cionais e só um olhar distraído nivela suas diferenças. Do ponto
de vista metodológico, sua abordagem pode ser feita como em
qualquer série cultural: registros em língua portuguesa, que se
articulam supranacionalmente, como foi assinalado, seguin-
do redes e fluxos da circulação da cultura. Do ponto de vista
histórico, essas literaturas, cujos repertórios configuraram-se
plasticamente na língua literária portuguesa, trazem marcas que
vêm desde a formação de Portugal como estado nacional, mas
articulam-se em redes com outros sistemas, em cada situação
histórica. Evidentemente, esse reporte às origens das literaturas
em português pode ser alongado, pois a experiência literária
é obviamente mais ampla, acabando por se associar à própria
origem da cultura. Um patrimônio de todos os povos, que não
se reduz às apropriações e matizações politicamente associadas
a formações nacionais.
Liberalismo e projetos nacionais
Historicamente, as literaturas africanas de língua portu-
guesa são recentes e seguem – como aconteceu com o romantis-
mo em escala mundial – os influxos da tomada de consciência
nacional por parte da intelectualidade letrada. É por isso que
certos vetores encontráveis no romantismo brasileiro podem
ser associados às produções africanas, mesmo em produções de
até meados do século XX. Os países colonizados por Portugal
na África deparam-se com a necessidade de estatuir literaturas
nacionais, no quadro da modernidade, tal como ocorreu com o
Brasil no século XIX. Tivemos o romantismo propriamente dito
e, depois, a Semana de Arte Moderna, como divisora de águas,
que propiciou a literatura, dita “regional”, e a nossa poesia mo-
dernista.
Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa
Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008 33
No romantismo, a literatura brasileira veio a inventar mi-
tos da nacionalidade, buscando a “cor local” para uma sintaxe
que vinha da Europa. E tanto Portugal, como o Brasil, estavam
sob o manto liberal e artístico da França. Pensávamos nossas
formas de independência em francês, mediatizando-o por situ-
ações locais, o que, por assim dizer, neutralizava o que pudesse
ser explosivo na perspectiva hegemônica no campo intelectual
liberal. Há faces diferentes: o liberalismo torna-se dominante,
no Brasil, revestindo-se de inclinações para a afirmação nacio-
nal; liberalismo em Portugal como estratégia de modernização,
contra as formas passadiças associadas ao modo de pensar e
sentir o país dos setores conservadores.
A leitura desse processo histórico nos países africanos
de língua portuguesa revela que um primeiro momento de
fratura do imaginário do colonizador veio a ocorrer pela pre-
sença político-cultural de uma burguesia crioula africana, nos
últimos vinte anos do século XIX. Foi um período liberal, que
pode ser associado à Regeneração portuguesa, e que favoreceu
o início de uma intensa atividade jornalística nas então colônias.
A imprensa desponta, desse modo, como a força responsável
pelo surgimento dos primeiros redutos dos assim chamados
“naturais da terra”, capazes de romper o silêncio imposto pela
estrutura colonial. Seriam uma versão africana, correlata ao que
havia acontecido com a elite dos crioulos brasileiros (mestiços
descendentes de portugueses), que haviam conseguido a liber-
tação da metrópole colonial.
Muitos dos nomes mais significativos na história das
idéias em Angola, por exemplo, estão ligados a esse período de
fundação e consolidação da imprensa. No campo da literatura,
destaca-se Alfredo Troni, autor da novela Nga Muturi (1882),
que se correspondia com escritores portugueses da Geração de
70. Sua novela foi publicada em folhetins na Gazeta de Portugal,
em Lisboa. Nessa narrativa, com ironia que lembra a literatura
de Eça de Queirós, Troni já mostra a incorporação de costumes
locais e domínio do quimbundo. Se o escritor nasceu e se formou
advogado em Portugal, sua identificação maior se fez com a nova
terra, ele que era republicano e socialista. Seu ideário – mais
forte do que questões de origem – tinha suas bases na Revolução
Francesa. Foi um processo de identificação, pois, sua adesão às
reivindicações da burguesia crioulizada de Angola. Aspirou
por formas políticas liberais e, mesmo, pela independência do
país. Nos horizontes de seu grupo intelectual, estava o Brasil e
sua literatura romântica, antiga colônia que havia conseguido
se libertar da metrópole. Seu republicanismo e socialismo prou-
dhoniano o levava mais longe.
As identificações políticas das elites angolanas com o Brasil
já eram anteriores. É de se recordar que, no tratado de reco-
nhecimento da independência brasileira por parte de Portugal,
Gragoatá	 Benjamin Abdala Junior
Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 200834
feito sob mediação inglesa em 1825, o Brasil se comprometeu a
não aceitar “proposições” de quaisquer colônias portuguesas
de se reunirem a ele. Havia um movimento desencadeado em
Angola, nesse sentido, associado a interesses escravocratas, o
que contrariava os interesses ingleses, além evidentemente dos
portugueses. Nas décadas finais do século XIX, as aspirações
eram de outra natureza, de outros setores, os anti-escravocratas.
Alfredo Troni foi autor de um regulamento que declarou defi-
nitivamente extinta a escravidão em Angola. Acabou por ser
destituído de seus cargos públicos e compulsoriamente exilado
para Moçambique.
Consciência regional e consciência nacional
Traços neo-românticos, centrados na incorporação da
atmosfera cultural da terra, ultrapassariam o século XIX como
linhas de força que se projetam, no conjunto dos países afri-
canos de língua portuguesa, até meados do século XX. Essa
observação é geral e deve-se considerar também diferenças que
matizam esse romantismo que embalou tanto o Brasil como
Portugal. Há, entretanto, uma inclinação para o mapeamento
sociocultural e mesmo da ambiência natural que permitem
aproximações. Aos poucos, nas primeiras décadas do século
XX até às vésperas da Segunda Guerra Mundial, afirmaram-se
na África colonial portuguesa formas de consciência regional,
que já embutiam aspirações nacionais. Nessa nova matização, as
imagens românticas são comutadas, em especial, por uma apro-
priação de repertórios do modernismo brasileiro. Este é o dado
novo, tendo em vista que o gesto artístico de nossos escritores
procurava afastar paradigmas e mesmo uma sintaxe identificada
com dicções evocativas da situação colonial. A língua literária
possuía um repertório proveniente de experiências comuns,
mas que tinham sua especificidade nas apropriações, que eram
uma forma de ação comunitária interna, culturalmente também
híbrida. A literatura “traduz” em suas formas um conhecimento
que vinha de outras áreas: história, filosofia, política, sociologia,
antropologia, artes etc.
No período do pós-Segunda Guerra e em torno da afirma-
ção dos princípios de auto-determinação dos povos, proclamada
pela carta das Nações Unidas, radicalizaram-se formas de identi-
ficação nacional. Se Portugal era associado à Pátria (colonial) dos
discursos oficiais, os africanos buscavam a afirmação da Mátria
(a “Mamãe-África”), e, com essa perspectiva, os escritores afri-
canos olharam com ênfase para as produções literárias do Mo-
dernismo brasileiro (a Frátria – a antiga colônia que se libertou e
construiu um discurso próprio). A fraternidade supranacional se
traduz em formas de solidariedade, com simetrias entre gestos:
no Brasil, em meados do século, rediscutia-se a nossa formação
histórica, o que deu origem a obras clássicas de nossa cultura,
Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa
Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008 35
de autoria de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior e
Antonio Candido, por exemplo. Na literatura, os ecritores pro-
curavam revelar facetas psicossociais de nossa gente. Sob o jugo
colonial português, a ênfase sociológica e nacional dos escritores
africanos encontrava sua radicalidade em formulações discur-
sivas anticoloniais. Eram tempos de literatura engajada e esses
intelectuais mostram-se com facetas especificamente literárias
tão radicais como as políticas. O escritor e o cidadão, para eles,
não poderiam deixar de caminhar juntos. A grande imagem
(neo-romântica) que se firmou após a Revolução Cubana, foi a
de Che Guevara: numa mão o livro; noutra, o fuzil.
Um bom exemplo dessa problemática é Castro Soromenho.
Viveu em período anterior, onde já se desenhavam atitudes
que irão embalar as lutas de libertação nacional na África de
língua oficial portuguesa, que eclodiram depois, nos anos 60.
Soromenho situa-se no campo intelectual da intelectualidade de
esquerda (a grande frente popular antifascista dos anos 30-40),
para quem questões de independência nacional se imbricavam
com perspectivas sociais. Esse autor, nascido em Moçambique
(1910), filho de português e cabo-verdiana, foi com um ano de
idade para Angola, onde viveu de 1911 a 1937. Fez estudos primá-
rios e de liceu em Lisboa (1916-1925). Voltou a Portugal em 1937.
Em face de perseguições políticas, teve de exilar-se, vivendo na
França (1960-1965) e, depois, no Brasil (1965-1968), onde veio a
falecer. Foi um dos fundadores do Centro de Estudos Africanos
da Universidade de São Paulo, dirigido por Fernando Mourão.
O romance Terra morta teve sua primeira edição publicada no
Brasil, em 1949, quando o autor residia em Portugal. Nem po-
deria ser diferente, pois esse romance denuncia o colonialismo
português.
Por outro lado, laços de solidariedade eram compactuados
com a intelectualidade metropolitana. Os sonhos libertários,
advindos do término da Segunda Guerra Mundial e que então
embalavam os intelectuais portugueses, eram frustrados pela
atmosfera sufocante da guerra fria e pela persistência do regi-
me ditatorial. No mesmo campo, as relações de solidariedade
coexistem contrastivamente com as de desigualdade. Há hege-
monias e as mais significativas são as que se naturalizam: os
não-hegemônicos aceitam com naturalidade a dominação do
outro. E, em Portugal, entre africanos e metropolitanos, havia di-
ferenças, pois os primeiros não aceitavam a dominância histórica
dos segundos. São tensões que afloraram no campo político, com
ressonâncias na literatura. Questões ideológicas manifestam-se
também em nível inconsciente e hábitos coloniais acabam por
se manifestar para além da consciência ou intenções, inclusive
dos atores do campo intelectual.
Mesclagens culturais e olhares em contraste
Gragoatá	 Benjamin Abdala Junior
Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 200836
A literatura cabo-verdiana pode ser dividida em dois perío-
dos: antes e depois da revista Claridade (1936-1960). Os escritores
do arquipélago de Cabo Verde, ao procurarem voltar as costas
para modelos temáticos europeus, fixaram seus olhos no chão
crioulo, próprio da mesclagem étnica e cultural de seu país. A
crioulidade deve ser entendida como uma mescla cultural não
unívoca (mestiça), um conjunto híbrido onde pedaços de cultu-
ras interagem entre si, ora se aproximando, ora se distanciando.
Essa atitude dos intelectuais cabo-verdianos, de oposição aos
padrões hegemônicos provenientes da metrópole, era correlata
à obsessão de procura de origens – origens étnicas e culturais,
que sensibilizavam a intelectualidade africana do continente.
Interessante é indicar essa tomada de consciência regional.
Um bom exemplo dessa trajetória é Osvaldo Alcântara
(pseudônimo poético de Baltasar Lopes), que, a exemplo de parte
da intelectualidade de seu país, sonha à Manuel Bandeira com
uma pasárgada que existiria em outra margem do oceano. Se
o poeta brasileiro imagina um reino com um rei bonachão que
lhe permitiria todas as “libertinagens” (título da coletânea de
Bandeira), Osvaldo Alcântara tem saudade de uma pasárgada
futura que encontraria no “caminho de Viseu” ([...] indo eu, indo
eu,/a caminho de Viseu). Osvaldo Alcântara estava com os pés em
Cabo Verde, mas a cabeça inclina-se para fora, para o sonho da
imigração: o “caminho de Viseu” da cantiga de roda portuguesa.
Sua perspectiva é aquela que historicamente sempre se colocou
para povos de migrantes como os cabo-verdianos, e ele não
deixa de ter consciência de que esta saudade fina de Pasárgada/é
um veneno gostoso dentro do meu coração.
Mais tarde, já em plena luta de libertação nacional, Ovídio
Martins - identificado com os pressupostos ideológicos da Casa
dos Estudantes do Império, em Lisboa – já se coloca no pólo
oposto. Não aceita o reino de Pasárgada, para sua geração uma
forma de fuga. Em oposição ao que ocorrera no sonho de Bandei-
ra, ele não só não era amigo do rei (Vou-me embora pra Pasárgada/
Lá sou amigo do rei) como foi perseguido por sua polícia (a polícia
política de Salazar). Não conseguindo permanecer em Lisboa,
foi obrigado a imigrar para a Holanda. Ovídio Martins, como
Osvaldo Alcântara, sonha com o que não tinha: justamente sua
terra, Cabo Verde. Se Osvaldo Alcântara olha para horizontes
indefinidos do mar, Ovídio Martins adota a perspectiva inversa:
procura arremessar-se ao chão (Pedirei/Suplicarei/Chorarei/Não
vou para Pasárgada).
Discursividades supranacionais
Na prosa de ficção, a presença do romance nordestino
brasileiro se mostra bastante forte em romances como Os flage-
lados do vento leste (1960), de Manuel Lopes e Chiquinho (1947),
de Baltasar Lopes, em diálogo, respectivamente, entre outros,
Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa
Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008 37
com Graciliano Ramos (Vidas secas) e José Lins do Rego (Menino
de engenho). Importa indicar que a tomada de consciência dos
cabo-verdianos de sua terra teve como um de seus agentes o
crítico literário José Osório de Oliveira, que apontou para os
cabo-verdianos a necessidade de situarem suas produções na
ambiência física e cultural de sua terra (para ele, uma região de
Portugal). Outro desses atores foi o poeta-diplomata brasileiro
Ribeiro Couto, que fez chegar ao arquipélago os poetas mo-
dernistas brasileiros. No fundo, considerava-se idealmente, em
Cabo Verde, uma espécie de literatura em língua portuguesa,
como um todo, com matizações onde o regional e o nacional
pouco diferiam. Logo, uma aspiração comunitária para além de
diferenciações, que, não obstante, seriam necessárias por darem
veracidade às produções culturais, que deveriam estar fincadas
na terra. A perspectiva crítica de José Osório de Oliveira, que
caminhava nessa direção, tinha seus limites. Embalado pelos
estudos de Gilberto Freyre tendia a exaltar a convivência harmô-
nica, do ponto de vista étnico, social e nacional, no “mundo que
o português criou” – perspectiva que foi criticada nas décadas
seguintes pela intelectualidade africana, do arquipélago e do
continente.
Os fios supranacionais da Claridade tiveram origem no
movimento socialista francês da “Clarté”, inaugurado por Henri
Barbeuf, nos primeiros anos da década de 1920. Articula-se o
grupo da revista em Portugal, em especial, ao movimento da
Presença. Mais tarde, os fluxos da revista – que se afasta da
Presença - projetam-se, por exemplo, em Manuel Ferreira, neo-
realista português identificado com a cabo-verdianidade, cuja
obra ensaística consolidou o estudo das literaturas africanas de
língua portuguesa, apropriou-se dessa temática da evasão/anti-
evasão. O título de seu romance Hora di bai (1962) é referência a
uma conhecida morna de Eugênio Tavares. Escritas em crioulo,
a cadência dessas composições vai dar ritmo e repertório para
os poemas em português e também será referência para os fic-
cionistas originários da Claridade. Voz de prisão (1971), o principal
romance de Manuel Ferreira, situa-se em Lisboa, e problematiza
a questão da oralidade (o então denominado dialeto crioulo, hoje
língua cabo-verdiana) e o português-padrão. Orlanda Amarílis,
cabo-verdiana vivendo na diáspora lisboeta, problematizará essa
condição de migrante, revestindo-se suas produções literárias de
grande sentido de atualidade, nestes tempos de deslocamentos
da globalização (Cais-do-Sodré te Salamansa, 1974). O sentimento
de nação, para além dos espartilhos de estado.
No período do após-guerra, ao mesmo tempo em que
se desenvolviam formas de organização político-culturais em
cada um dos países africanos, como o movimento dos “Novos
Intelectuais de Angola”, constituiu-se em Portugal um impor-
tante núcleo organizativo: a Casa dos Estudantes do Império.
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web
Gragoata24web

More Related Content

What's hot

Lições Sobre a África (Tese)
Lições Sobre a África (Tese)Lições Sobre a África (Tese)
Lições Sobre a África (Tese)Historia_da_Africa
 
Boi roubado a articulação dos recursos linguisticos performáticos em uma trad...
Boi roubado a articulação dos recursos linguisticos performáticos em uma trad...Boi roubado a articulação dos recursos linguisticos performáticos em uma trad...
Boi roubado a articulação dos recursos linguisticos performáticos em uma trad...UNEB
 
Da contribuição nebrijiana à variante linguística: castelhano e espanhol uma ...
Da contribuição nebrijiana à variante linguística: castelhano e espanhol uma ...Da contribuição nebrijiana à variante linguística: castelhano e espanhol uma ...
Da contribuição nebrijiana à variante linguística: castelhano e espanhol uma ...Elaine Teixeira
 
V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea - Buenos A...
V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea - Buenos A...V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea - Buenos A...
V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea - Buenos A...Laeticia Jensen Eble
 
Vi Semana de Letras do Ifes (caderno de resumos)
Vi Semana de Letras do Ifes (caderno de resumos)Vi Semana de Letras do Ifes (caderno de resumos)
Vi Semana de Letras do Ifes (caderno de resumos)Emerson Campos
 
Metaficção historiográfica literatura, as narrações da história e o pobre lei...
Metaficção historiográfica literatura, as narrações da história e o pobre lei...Metaficção historiográfica literatura, as narrações da história e o pobre lei...
Metaficção historiográfica literatura, as narrações da história e o pobre lei...UNEB
 
O léxico regionalista de jorge amado em tereza batista cansada de guerra
O léxico regionalista de jorge amado em tereza batista cansada de guerraO léxico regionalista de jorge amado em tereza batista cansada de guerra
O léxico regionalista de jorge amado em tereza batista cansada de guerraUNEB
 
O entre lugar feminino a metáfora da identidade da mulher no espaço bélico en...
O entre lugar feminino a metáfora da identidade da mulher no espaço bélico en...O entre lugar feminino a metáfora da identidade da mulher no espaço bélico en...
O entre lugar feminino a metáfora da identidade da mulher no espaço bélico en...UNEB
 
Estratégias de relativação na fala popular de salvador uma análise sociolingu...
Estratégias de relativação na fala popular de salvador uma análise sociolingu...Estratégias de relativação na fala popular de salvador uma análise sociolingu...
Estratégias de relativação na fala popular de salvador uma análise sociolingu...UNEB
 
ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio
ENEM - Exame Nacional do Ensino MédioENEM - Exame Nacional do Ensino Médio
ENEM - Exame Nacional do Ensino MédioFabio Spanhol
 
Estudo sobre surdez - IA
Estudo sobre surdez - IAEstudo sobre surdez - IA
Estudo sobre surdez - IAasustecnologia
 
Os Arikêmes e o SPI a Luta Pela Reelaboração Cultural Sob Tutela do Estado Br...
Os Arikêmes e o SPI a Luta Pela Reelaboração Cultural Sob Tutela do Estado Br...Os Arikêmes e o SPI a Luta Pela Reelaboração Cultural Sob Tutela do Estado Br...
Os Arikêmes e o SPI a Luta Pela Reelaboração Cultural Sob Tutela do Estado Br...Washington Heleno
 
História da literatura sílvio romero
História da literatura   sílvio romeroHistória da literatura   sílvio romero
História da literatura sílvio romeroprof.aldemir2010
 
Um sertão(tão) filosoficamente jagunço uma leitura de grande sertão veredas...
Um sertão(tão) filosoficamente jagunço   uma leitura de grande sertão veredas...Um sertão(tão) filosoficamente jagunço   uma leitura de grande sertão veredas...
Um sertão(tão) filosoficamente jagunço uma leitura de grande sertão veredas...UNEB
 
Produção Textual e Metáfora Gramatical no Ensino Médio
Produção Textual e Metáfora Gramatical no Ensino MédioProdução Textual e Metáfora Gramatical no Ensino Médio
Produção Textual e Metáfora Gramatical no Ensino Médioemegonline
 
Tcc i adriana final oficial
Tcc i adriana final oficialTcc i adriana final oficial
Tcc i adriana final oficialUNEB
 
Lampião e seus cangaceiros na mira do jornal a tarde
Lampião e seus cangaceiros na mira do jornal a tardeLampião e seus cangaceiros na mira do jornal a tarde
Lampião e seus cangaceiros na mira do jornal a tardeUNEB
 

What's hot (19)

Lições Sobre a África (Tese)
Lições Sobre a África (Tese)Lições Sobre a África (Tese)
Lições Sobre a África (Tese)
 
Boi roubado a articulação dos recursos linguisticos performáticos em uma trad...
Boi roubado a articulação dos recursos linguisticos performáticos em uma trad...Boi roubado a articulação dos recursos linguisticos performáticos em uma trad...
Boi roubado a articulação dos recursos linguisticos performáticos em uma trad...
 
Da contribuição nebrijiana à variante linguística: castelhano e espanhol uma ...
Da contribuição nebrijiana à variante linguística: castelhano e espanhol uma ...Da contribuição nebrijiana à variante linguística: castelhano e espanhol uma ...
Da contribuição nebrijiana à variante linguística: castelhano e espanhol uma ...
 
V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea - Buenos A...
V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea - Buenos A...V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea - Buenos A...
V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea - Buenos A...
 
Cognição
CogniçãoCognição
Cognição
 
Vi Semana de Letras do Ifes (caderno de resumos)
Vi Semana de Letras do Ifes (caderno de resumos)Vi Semana de Letras do Ifes (caderno de resumos)
Vi Semana de Letras do Ifes (caderno de resumos)
 
Artigo tcc final
Artigo tcc finalArtigo tcc final
Artigo tcc final
 
Metaficção historiográfica literatura, as narrações da história e o pobre lei...
Metaficção historiográfica literatura, as narrações da história e o pobre lei...Metaficção historiográfica literatura, as narrações da história e o pobre lei...
Metaficção historiográfica literatura, as narrações da história e o pobre lei...
 
O léxico regionalista de jorge amado em tereza batista cansada de guerra
O léxico regionalista de jorge amado em tereza batista cansada de guerraO léxico regionalista de jorge amado em tereza batista cansada de guerra
O léxico regionalista de jorge amado em tereza batista cansada de guerra
 
O entre lugar feminino a metáfora da identidade da mulher no espaço bélico en...
O entre lugar feminino a metáfora da identidade da mulher no espaço bélico en...O entre lugar feminino a metáfora da identidade da mulher no espaço bélico en...
O entre lugar feminino a metáfora da identidade da mulher no espaço bélico en...
 
Estratégias de relativação na fala popular de salvador uma análise sociolingu...
Estratégias de relativação na fala popular de salvador uma análise sociolingu...Estratégias de relativação na fala popular de salvador uma análise sociolingu...
Estratégias de relativação na fala popular de salvador uma análise sociolingu...
 
ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio
ENEM - Exame Nacional do Ensino MédioENEM - Exame Nacional do Ensino Médio
ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio
 
Estudo sobre surdez - IA
Estudo sobre surdez - IAEstudo sobre surdez - IA
Estudo sobre surdez - IA
 
Os Arikêmes e o SPI a Luta Pela Reelaboração Cultural Sob Tutela do Estado Br...
Os Arikêmes e o SPI a Luta Pela Reelaboração Cultural Sob Tutela do Estado Br...Os Arikêmes e o SPI a Luta Pela Reelaboração Cultural Sob Tutela do Estado Br...
Os Arikêmes e o SPI a Luta Pela Reelaboração Cultural Sob Tutela do Estado Br...
 
História da literatura sílvio romero
História da literatura   sílvio romeroHistória da literatura   sílvio romero
História da literatura sílvio romero
 
Um sertão(tão) filosoficamente jagunço uma leitura de grande sertão veredas...
Um sertão(tão) filosoficamente jagunço   uma leitura de grande sertão veredas...Um sertão(tão) filosoficamente jagunço   uma leitura de grande sertão veredas...
Um sertão(tão) filosoficamente jagunço uma leitura de grande sertão veredas...
 
Produção Textual e Metáfora Gramatical no Ensino Médio
Produção Textual e Metáfora Gramatical no Ensino MédioProdução Textual e Metáfora Gramatical no Ensino Médio
Produção Textual e Metáfora Gramatical no Ensino Médio
 
Tcc i adriana final oficial
Tcc i adriana final oficialTcc i adriana final oficial
Tcc i adriana final oficial
 
Lampião e seus cangaceiros na mira do jornal a tarde
Lampião e seus cangaceiros na mira do jornal a tardeLampião e seus cangaceiros na mira do jornal a tarde
Lampião e seus cangaceiros na mira do jornal a tarde
 

Viewers also liked

Viewers also liked (20)

FMCS grant application- Ellen Druce
FMCS grant application- Ellen DruceFMCS grant application- Ellen Druce
FMCS grant application- Ellen Druce
 
Pago Electrónico en la OEPM
Pago Electrónico en la OEPMPago Electrónico en la OEPM
Pago Electrónico en la OEPM
 
X O O P S
X O O P SX O O P S
X O O P S
 
La Academia de Innovación para la Mujer de las Américas (La Academia)
La Academia de Innovación para la Mujer de las Américas (La Academia)La Academia de Innovación para la Mujer de las Américas (La Academia)
La Academia de Innovación para la Mujer de las Américas (La Academia)
 
Googlegroups
GooglegroupsGooglegroups
Googlegroups
 
Planejamento estratégico - RioJunior - 2014
Planejamento estratégico - RioJunior - 2014Planejamento estratégico - RioJunior - 2014
Planejamento estratégico - RioJunior - 2014
 
Projeto lendoetecendoscebiasi
Projeto lendoetecendoscebiasiProjeto lendoetecendoscebiasi
Projeto lendoetecendoscebiasi
 
Pdf 1
Pdf 1Pdf 1
Pdf 1
 
PolionéSi[1].
PolionéSi[1]. PolionéSi[1].
PolionéSi[1].
 
Mec
MecMec
Mec
 
Ex Fcap
Ex FcapEx Fcap
Ex Fcap
 
Gustavo Morale - Vitamina UFF 2010 - In-text Advertising
Gustavo Morale - Vitamina UFF 2010 - In-text AdvertisingGustavo Morale - Vitamina UFF 2010 - In-text Advertising
Gustavo Morale - Vitamina UFF 2010 - In-text Advertising
 
Monitoramento Eletrônico
Monitoramento EletrônicoMonitoramento Eletrônico
Monitoramento Eletrônico
 
RUDN. CAREER DAYS
RUDN. CAREER DAYSRUDN. CAREER DAYS
RUDN. CAREER DAYS
 
Proyecto de investigacion
Proyecto de investigacionProyecto de investigacion
Proyecto de investigacion
 
Librillo carreras de_grado_2011_-_2012
Librillo carreras de_grado_2011_-_2012Librillo carreras de_grado_2011_-_2012
Librillo carreras de_grado_2011_-_2012
 
SEMANARIO 6to PODER DOMINGO 27ENERO2013 Edicion 121 def
SEMANARIO 6to PODER DOMINGO 27ENERO2013 Edicion 121 defSEMANARIO 6to PODER DOMINGO 27ENERO2013 Edicion 121 def
SEMANARIO 6to PODER DOMINGO 27ENERO2013 Edicion 121 def
 
Servidor De Correo En Fedora
Servidor De Correo En FedoraServidor De Correo En Fedora
Servidor De Correo En Fedora
 
Edital DPE-RJ
Edital DPE-RJEdital DPE-RJ
Edital DPE-RJ
 
Dreamlab
DreamlabDreamlab
Dreamlab
 

Similar to Gragoata24web

Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua
Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta línguaFlor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua
Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta línguaUNEB
 
(24) 14.00 Maria Bernadette Velloso (Louvre IV, 25.04)
(24) 14.00 Maria Bernadette Velloso (Louvre IV, 25.04)(24) 14.00 Maria Bernadette Velloso (Louvre IV, 25.04)
(24) 14.00 Maria Bernadette Velloso (Louvre IV, 25.04)CAEI
 
Folhetim do Estudante Núm. XVI
Folhetim do Estudante Núm. XVIFolhetim do Estudante Núm. XVI
Folhetim do Estudante Núm. XVIValter Gomes
 
territorios, deslocamentos e hibridismos.pdf
territorios, deslocamentos e hibridismos.pdfterritorios, deslocamentos e hibridismos.pdf
territorios, deslocamentos e hibridismos.pdfJooCoelho128711
 
Literatura Popular Regional - Alessandra Favero
Literatura Popular Regional  - Alessandra FaveroLiteratura Popular Regional  - Alessandra Favero
Literatura Popular Regional - Alessandra FaveroLisvaldo Azevedo
 
Poemas brasileiros sobre trabalhadores: uma antologia de domínio público
Poemas brasileiros sobre trabalhadores: uma antologia de domínio públicoPoemas brasileiros sobre trabalhadores: uma antologia de domínio público
Poemas brasileiros sobre trabalhadores: uma antologia de domínio públicoLinTrab
 
Caderno do seminário permanente de estudos literários
Caderno do seminário permanente de estudos literáriosCaderno do seminário permanente de estudos literários
Caderno do seminário permanente de estudos literáriosMárcio Cantalicio
 
Estudos sobre Surdez - III
Estudos sobre Surdez - IIIEstudos sobre Surdez - III
Estudos sobre Surdez - IIIasustecnologia
 
Estudos3 091010061056-phpapp01 (2)
Estudos3 091010061056-phpapp01 (2)Estudos3 091010061056-phpapp01 (2)
Estudos3 091010061056-phpapp01 (2)Assis- SP
 
Apostila de arte e cultura africana
Apostila de arte e cultura africanaApostila de arte e cultura africana
Apostila de arte e cultura africanaJerlane mamedio
 
Vestígios do folhetim em dois romances de autoria feminina
Vestígios do folhetim em dois romances de autoria femininaVestígios do folhetim em dois romances de autoria feminina
Vestígios do folhetim em dois romances de autoria femininaPantanal Editoral
 
Aline Deyques_dissertacao.pdf/ dissertação
Aline Deyques_dissertacao.pdf/ dissertaçãoAline Deyques_dissertacao.pdf/ dissertação
Aline Deyques_dissertacao.pdf/ dissertaçãoEduardoEdu64
 

Similar to Gragoata24web (20)

Vol 1, 2017
Vol 1, 2017Vol 1, 2017
Vol 1, 2017
 
Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua
Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta línguaFlor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua
Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua
 
(24) 14.00 Maria Bernadette Velloso (Louvre IV, 25.04)
(24) 14.00 Maria Bernadette Velloso (Louvre IV, 25.04)(24) 14.00 Maria Bernadette Velloso (Louvre IV, 25.04)
(24) 14.00 Maria Bernadette Velloso (Louvre IV, 25.04)
 
Folhetim do Estudante Núm. XVI
Folhetim do Estudante Núm. XVIFolhetim do Estudante Núm. XVI
Folhetim do Estudante Núm. XVI
 
territorios, deslocamentos e hibridismos.pdf
territorios, deslocamentos e hibridismos.pdfterritorios, deslocamentos e hibridismos.pdf
territorios, deslocamentos e hibridismos.pdf
 
Literatura Popular Regional - Alessandra Favero
Literatura Popular Regional  - Alessandra FaveroLiteratura Popular Regional  - Alessandra Favero
Literatura Popular Regional - Alessandra Favero
 
Historia dos estudos_linguisticos
Historia dos estudos_linguisticosHistoria dos estudos_linguisticos
Historia dos estudos_linguisticos
 
Poemas brasileiros sobre trabalhadores: uma antologia de domínio público
Poemas brasileiros sobre trabalhadores: uma antologia de domínio públicoPoemas brasileiros sobre trabalhadores: uma antologia de domínio público
Poemas brasileiros sobre trabalhadores: uma antologia de domínio público
 
Florentina Souza
Florentina SouzaFlorentina Souza
Florentina Souza
 
Literaturaafrobrasileira 130902150849-phpapp01 (1)
Literaturaafrobrasileira 130902150849-phpapp01 (1)Literaturaafrobrasileira 130902150849-phpapp01 (1)
Literaturaafrobrasileira 130902150849-phpapp01 (1)
 
Literatura afrobrasileira
Literatura afrobrasileiraLiteratura afrobrasileira
Literatura afrobrasileira
 
Caderno do seminário permanente de estudos literários
Caderno do seminário permanente de estudos literáriosCaderno do seminário permanente de estudos literários
Caderno do seminário permanente de estudos literários
 
REVISTA INTERNACIONAL EM LÍNGUA PORTUGUESA
REVISTA INTERNACIONAL EM LÍNGUA PORTUGUESAREVISTA INTERNACIONAL EM LÍNGUA PORTUGUESA
REVISTA INTERNACIONAL EM LÍNGUA PORTUGUESA
 
Estudos sobre Surdez - III
Estudos sobre Surdez - IIIEstudos sobre Surdez - III
Estudos sobre Surdez - III
 
áFrica 2012
áFrica 2012áFrica 2012
áFrica 2012
 
Estudos3 091010061056-phpapp01 (2)
Estudos3 091010061056-phpapp01 (2)Estudos3 091010061056-phpapp01 (2)
Estudos3 091010061056-phpapp01 (2)
 
Apostila de arte e cultura africana
Apostila de arte e cultura africanaApostila de arte e cultura africana
Apostila de arte e cultura africana
 
Vestígios do folhetim em dois romances de autoria feminina
Vestígios do folhetim em dois romances de autoria femininaVestígios do folhetim em dois romances de autoria feminina
Vestígios do folhetim em dois romances de autoria feminina
 
Aline Deyques_dissertacao.pdf/ dissertação
Aline Deyques_dissertacao.pdf/ dissertaçãoAline Deyques_dissertacao.pdf/ dissertação
Aline Deyques_dissertacao.pdf/ dissertação
 
Revista Mujimbo vol1 n1
Revista Mujimbo vol1 n1Revista Mujimbo vol1 n1
Revista Mujimbo vol1 n1
 

Gragoata24web

  • 1. Gragoatá ISSN 1413-9073 Gragoatá Niterói n. 24 p. 1-260 1. sem. 2008 n. 24 1o semestre 2008 Política Editorial A Revista Gragoatá tem como objetivo a divulgação nacional e internacional de ensaios inéditos, de traduções de ensaios e resenhas de obras que representem contribuições relevantes tanto para reflexão teórica mais ampla quanto para a análise de questões, procedimentos e métodos específicos nas áreas de Língua e Literatura.
  • 2. Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense Direitos desta edição reservados à EdUFF – Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9 – anexo – sobreloja – Icaraí – Niterói – RJ – CEP 24220-008 Tel.: (21) 2629-5287 – Telefax: (21)2629-5288 – http://www.editora.uff.br– E-mail: eduff@vm.uff.br Organização: Projeto gráfico: Capa: Editoração: Supervisão Gráfica Coordenação editorial: Periodicidade: Tiragem: Reitor: Vice-Reitor: Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Diretor da EdUFF: Conselho Editorial: Conselho Consultivo: Laura Cavalcante Padilha e Lucia Helena Estilo & Design Editoração Eletrônica Ltda. ME rogério Martins José Luiz Stalleiken Martins Káthia M. P. Macedo ricardo Borges Semestral 500 exemplares Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Ana Pizarro (Univ. de Santiago do Chile) Cleonice Berardinelli (UFRJ) Célia Pedrosa (UFF) Eurídice Figueiredo (UFF) Evanildo Bechara (UERJ) Hélder Macedo (King’s College) Laura Padilha (UFF) Lourenço de Rosário (Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa) Lucia Teixeira (UFF) Malcolm Coulthard (Univ. de Birmingham) Maria Luiza Braga (UFRJ) Marlene Correia (UFRJ) Michel Laban (Univ. de Paris III) Mieke Bal (Univ. de Amsterdã) Nádia Battela Gotlib (USP) Nélson H. Vieira (Univ. de Brown) Ria Lemaire (Univ. de Poitiers) Silviano Santiago (UFF) Teun van Dijk (Univ. de Amsterdã) Vilma Arêas (UNICAMP) Walter Moser (Univ. de Montreal) © 2008 by É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora. APOIO PROPP/CAPES / CNPq UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE G737 Gragoatá. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense.— n. 1 (1996) - . — Niterói : EdUFF, 2008 – 26 cm; il. Organização: Laura Cavalcante Pàdilha e Lucia Helena Semestral ISSN 1413-9073. 1. Literatura. 2. Lingüística.I. Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-Graduação em Letras. CDD 800 Roberto de Souza Salles Emannuel Paiva de andrade Humberto Machado Fernandes Mauro Romero Leal Passos Mariangela Oliveira (UFF) – Presidente Lívia de Freitas Reis (UFF) Eneida Maria de Souza (UFMG) Solange Vereza (UFF) Silvio Renato Jorge (UFF) José Luiz Fiorin (USP) Leila Bárbara (PUC-SP) Lucia Helena (UFF) Vera Lúcia Soares (UFF) Regina Zilberman (PUC-RS) Laura Padilha (UFF) Cláudia Roncarati (UFF) Editora filiada à
  • 3. Sumário n. 24 1º semestre 2008 Gragoatá Apresentação...................................................................................... 5 ARTIGOS O começo do fim...............................................................................13 Silviano Santiago Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa......31 Benjamin Abdala Junior Duas viagens, um destino, Moçambique....................................45 Regina Zilberman Uma língua de viagens, transgressões e rumores.....................61 Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco Da colonização lingüística portuguesa à economia neoliberal: nações plurilíngües...............................71 Bethania Mariani Outros poderes, outros conhecimentos – Ana Paula Tavares responde a Luís de Camões......................89 Margarida Calafate Ribeiro Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes..............101 Márcio Seligmann-Silva Corpos grafemáticos: o silêncio do subalterno e a história literária........................................................................119 Roberto Vecchi Narrativas, rostos e manifestações do pós-colonialismo moçambicano nos romances de João Paulo Borges Coelho....131 Sheila Kahn O papel das línguas africanas na formação do português brasileiro: (mais) pistas para uma nova agenda de pesquisa............................................145 Charlotte Galves Agruras da ficção contemporânea...............................................165 Silvia Regina Pinto
  • 4. Narrar é resistir?.............................................................................179 Denise Brasil Alvarenga Aguiar Os velhos “marionetes”: Quincas Berro D’Água, versões e construção de identidade............................................191 Lúcia Bettencourt Quando o preconceito se faz silêncio: relações raciais na literatura brasileira contemporânea.........203 Regina Dalcastagnè Uma conversa entre macacos: percalços de um diálogo entre a África e o outro......................................221 Lucia Helena ENTREVISTA O peixe e o macaco: emblemas do subdesenvolvimento numa entrevista com José Eduardo Agualusa sobre o Brasil e Angola................................................................ 237 Maurício de Bragança
  • 5. 5Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008 Apresentação A Revista Gragoatá, em seu vigésimo quarto exemplar, foca- liza, comparativamente, ou mesmo em separado, os paradigmas culturais que nosso momento histórico permite visualizar como os mais importantes na construção das identidades matizadas que as literaturas e artes do continente africano e brasileiro apresentam, no cenário da globalização. Os elos entre os dois mundos são muito evidentes, ou assim se pensa, quase como um lugar-comum. Serão mesmo transparentes os nossos pa- rentescos e o que também nos separa? Conhecem, os brasileiros e os outros, o que se denomina hoje “Brasil”? É auto-evidente esta significação? E a África, ao ser relacionada ao Brasil, é sempre a de “expressão portuguesa”? Haveria possibilidade de nos “encontrarmos” inscritos na África de “expressão inglesa”, “francesa” etc, na história comum da exclusão? Estas e outras questões se tornaram candentes, em alguns dos textos que nos foram enviados. Brasil e África são dois cantões do planeta que se tan- genciaram pela ocidentalização promovida no Renascimento e motivada pelo expansionismo europeu do século XV. Suas inter-relações e, principalmente, as contradições políticas e os enigmas do continente africano e da vida brasileira têm sido objeto de análise, desde os anos de 1990, no século XX, com a projeção dos estudos culturais e a re-leitura dos cânones de nações concebidas, pela classificação econômica dominante, como emergentes. Em que pese o significado desse adjetivo, as nações ditas em emergência (no duplo sentido de que emergem e de que estão em estado de emergência) sempre surpreendem pelas complexas redes culturais – de origem popular ou culta – surgidas tanto no Brasil, quanto na África e que nada ficam a dever, em importância para o pensar, se relacionadas às matrizes de outras paisagens. Da África se moveu, para o então chamado Novo Mundo, um conjunto de habitantes de localidades que hoje compõem inúmeros países: Costa do Marfim, Congo, Angola, Moçambique e outros, para, em nossas terras, conhecerem a dor do exílio, o conseqüente desterro e a marca da desagregação provocada pela prática escravagista. Ainda assim, os representantes de um povo removido, à revelia e em circunstância adversa, para outros rincões, produziram subsídios que, surgidos do entrechoque de tradições, foram capazes de ultrapassar séculos e a própria condição subalterna, para constituir elementos magníficos de
  • 6. 6 Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008 nossa música, dança, culinária e, até, de manifestações religiosas aclimatadas no Brasil. A discussão dos elos e dissensos, as descobertas em comum dessas duas culturas, literaturas e artes, além da dívida brasi- leira para com a contribuição dos africanos que para cá vieram na condição desumana de escravos fazem parte das intenções que nortearam os objetivos das coordenadoras desse número ao pensar em seu título – “Brasil e África: trajetórias, rosto e destino” – e em sua ementa. Esta consiste na discussão da literatura, po- lítica e ideologia no cenário do neoliberalismo e no enfoque das articulações entre essas nações e suas narrativas, na estrutura pós-colonial contemporânea do Brasil e da África. Pensou-se também em focalizar o Brasil e a África, enquanto autônomos, em suas diferentes literaturas e formas de expressão e de lingua- gens produtoras de paradoxos, identidades, dilemas e problemas. Interessava à nossa ementa, também, a articulação da África e do Brasil consigo mesmos, e entre si, ou com outros países, de outros universos culturais na cena do mundo pós-colonial que, necessariamente, envolve a Europa e outras expressões lingüís­ ticas. O discurso e a construção da subjetividade e das formas estéticas foi mais um aspecto incluído no temário que sugerimos ao leitor, bem como a comparação de suas literaturas com as demais artes. Outra opção que se observa na ementa oferecida é a da discussão de perspectivas da crítica e da teoria, no Brasil e na África, seja no estudo da própria literatura e das demais artes, seja no exame específico de textos voltados à produção do conhecimento. No campo da lingüística e do estudo de línguas, acentuou-se a preocupação com o tratamento das línguas em contato e da política lingüística. Finalmente, a ementa também deu abertura para uma reflexão histórica, antropológica e filosó- fica da cultura brasileira e africana contemporâneas, no exame das relações entre estas, sua literatura, suas crises e utopias, em sua singularidade, ou em conjunto. Se o estudo da questão brasileira, na Gragoatá 24, parece não demandar explicação, pois se faria evidente (evidência da qual sempre se deve, em bom termo, duvidar), a presença de sua articulação com a África e desta com a América como um todo e, também, com a Europa, como ocorre em mais de um artigo publicado neste número, revela uma forma de contraposição de olhares através da qual se busca retomar a teia de silêncios e apagamentos tramada pelo olhar branco-ocidental, hegemônico na cultura colonizadora letrada, apesar da heterogeneidade de nossa formação. Um tal olhar já se antecipava na epopéia ca- moniana, quando os navegantes portugueses, ao se depararem com o outro, o desconhecido, perguntavam a si mesmos: “Que gente será esta? (em si diziam) / Que costumes, que Lei, que Rei teriam?” (I, 45).
  • 7. 7Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008 Se a legenda da diferença faz parte do paradigma forma- dor de nosso encontro cultural, o leitor poderá agora conferir a natureza desse painel, no vasto exame dos elementos que deram sustentação ao processo colonial e à sua reversão, seja do âmbito lingüístico, do político-cultural, seja no da literatura. Um pai- nel foi tecido a várias mãos, pelo texto de nossos convidados e dos que se interessaram pelo tema, e nos enviaram sua valiosa contribuição. Neste, o espaço da reflexão crítica se espraiou por questões como o trauma, a violência, o preconceito racial e os intertextos de variada extração e efeito, para que pudéssemos levar a cabo, nesta edição, compreender e pensar “Brasil e África: trajetórias, rosto e destino”. É com imenso prazer que passamos ao leitor os textos que resultam do percurso trilhado pelos intelectuais que se uniram a nós na busca de elaborar mais um número da Revista Gragoatá, periódico que se tem caracterizado como uma das formas mais atuantes da contribuição, ao público em geral, da Pós-graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense. O texto de abertura, de Silviano Santiago, intitula-se “O começo do fim”. Importante pensador da cultura brasileira, seu autor busca apresentar nova e suplementar interpretação para um conceito-chave do movimento Modernista – o de antropofa- gia, na versão de Oswald de Andrade. Considerando relevante para o tema deste número refletir sobre um conceito que, du- rante oito décadas foi responsável por importante bibliografia em que se salientaram aspectos beligerantes de culturas colo- nizadas em relação aos colonizadores, Santiago pondera, ainda, que essa interpretação, apesar de pertinente do ponto de vista social e político, negligencia qualidades básicas do trabalho de arte escrito nas margens da cultura Ocidental, em particular aquelas que deveriam despertar no leitor a premência de um pensamento utópico, em que a paz, a esperança e a alegria se tornariam os valores. O artigo de Benjamin Abdala Júnior, “Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa”, discute as redes comunitárias que tais literaturas tecem, pelo que nelas se revela uma tendência à supranacionalidade. Esta, para o crítico, se faz tão importante quanto o resgate, nas produções artístico-verbais, das especifi- cidades nacionais que nelas se resgatam. O texto reforça o fato de que há uma forte relação entre o processo literário africano e o brasileiro. Isso se justifica, segundo o autor, por que, desde o século XIX, se estabeleceram redes de identificações entre o nosso país e os africanos de colonização portuguesa. Tais identificações vão do âmbito político (cf. o caso angolano, no século XIX) até a busca de outras formas de modelização literária, ressaltando-se, dentre elas, as interlocuções com o modernismo brasileiro, com o
  • 8. 8 Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008 romance nordestino de 1930 e com o projeto estético-ideológico de Guimarães Rosa. O texto “Duas viagens, um destino, Moçambique”, de Regina Zilberman, procura analisar as visões divergentes que europeus e africanos têm sobre a expansão do mar português, para o que retoma O naufrágio do Sepúlveda, de Jerônimo Corte Real (1594) e O outro pé da sereia, de Mia Couto (2006). O artigo demonstra a existência de dois distintos modos de recuperação da história marítima portuguesa, nas malhas da ficção literária. De um lado, a visão européia do século XVI sobre os “cafres, que roubar tem só por ofício” e sobre os heróis – mesmo que fracassados – que “se vão da morte libertando”, como proclama Camões. De outra parte, a autora analisa a leitura, a contrapelo, do moçambicano Mia Couto para quem fica clara a “estratégia dos portugueses para enfraquecer o reino” do Monomotapa. Resgata-se, assim, o avesso de uma história que só muito re- centemente começa a ser contada pelo olhar dos, até 1975, ven- cidos. Um artigo que serve de excelente ponte para o encontro de África e Brasil. No texto “Uma língua de viagens, transgressões e rumo- res”, Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco faz uma espécie de balanço sobre a questão do uso da língua portuguesa nos países africanos colonizados por Portugal, mostrando as diferentes faces que a língua transplantada pelo colonizador adquiriu nos diversos países que hoje têm o português como sua língua oficial. Percorre, ainda, o caminho que vai da imposição ao uso consentido e, em certa medida, revolucionário do português que acaba por se fazer, ele mesmo, um instrumento voltado contra o processo de colonização, no momento em que subleva o tecido lingüístico. Para comprovar esse uso “clandestino” da língua, repetindo José Craveirinha, a ensaísta busca exemplifi- car seu ponto de vista com vozes literárias africanas. Estas, ao inverterem os paradigmas colonialistas, enriquecem a língua do colonizador, por atravessá-la com outros saberes e sabores, alargando, com isso, o sentido das viagens que tal língua ainda será capaz de fazer. Em “Da colonização lingüística portuguesa à economia neoliberal: nações plurilíngües”, Bethania Mariani reflete sobre a atualidade lingüística do Brasil e de Moçambique, tomando, como ponto de partida do artigo, o fato de que tanto na África quanto em nosso país, houve uma tentativa de apagamento da memória dos sujeitos locais, no processo de colonização portu- guesa. Discute, a seguir, partindo da memória histórica constitu- tiva das duas formações sociais, de um lado, a legislação referente à política de línguas e de outro, as relações, nem sempre muito visíveis, entre as línguas e a política econômica. Assim, analisa a legislação portuguesa referente ao uso do português nas co- lônias e, em seguida, tendo em vista a descolonização política
  • 9. 9Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008 e lingüística, enfatiza as relações entre lingüística e economia, problematizando o valor econômico das línguas. O artigo “Outros poderes, outros conhecimentos – Ana Paula Tavares responde a Luís de Camões”, de Margarida Cala- fate Ribeiro, discute o enfrentamento do poder e de suas relações existentes nos textos de Paula Tavares, demonstrando que tal enfrentamento tem como alvo não apenas o sistema colonial em si, mas a língua que o sustenta e mesmo o neocolonialismo que subsiste em tais relações, na Angola independente. O artigo demonstra a subversão do discurso poético de Paula Tavares, que se quer, ao mesmo tempo, um “pronunciamento” feminino e epistemológico. Por tal “pronunciamento” a poeta põe em xeque não apenas os conhecimentos impostos pelo colonizador, mas a própria tradição local, que também busca perpetuar o pa- triarcado e a sua violência contra a diferença sexual e sua lógica opositiva. O texto afirma, em todos os sentidos, a possibilidade teórica de se valorizarem outros conhecimentos e outros poderes, sempre deixados à margem pela colonialidade hegemônica. Em “Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes”, Márcio Seligmann-Silva propõe uma reflexão sobre o gesto tes- temunhal de sujeitos que sobreviveram a situações radicais de violência e/ou catástrofes e para os quais a narração do trauma se faz gesto de sobrevivência e mesmo de renascimento. Para comprovar sua hipótese, o autor levanta uma série de aporias que marcam o testemunho, tentando comprovar que ele “só existe sob o signo de seu colapso e de sua impossibilidade”. Traz à cena do artigo, ainda, a questão da política da memória e sua importância para o gesto de narrar o trauma. Por fim, analisa obras pontuais que resgatam, respectivamente, o genocídio dos armênios (1915-16); o dos tutsis, em Ruanda (1994), chegando ao Brasil e, em especial à música popular brasileira que, de distintas e/ou camufladas formas, resgata o trauma causado pela violência da ditadura civil-militar. Em “Corpos grafemáticos: o silêncio do subalterno e a história literária”, Roberto Vecchi, partindo de uma série de re- flexões sobre a força do poder na representação literária, discute a impossibilidade de fala do subalterno, ou o seu silenciamento, na série histórica da literatura brasileira. Depois de reforçar seu quadro teórico, convocando Spivak, Gramsci, Said e outros, o autor analisa duas obras pontuais dessa mesma literatura bra- sileira – Os sertões, de Euclides da Cunha e A menina morta, de Cornélio Pena. Em tais criações, para ele, se projeta uma espécie de contra-história problematizadora dos vazios e silenciamentos da história oficial brasileira e dos lugares de força por ela criados. O texto discute, portanto, a problemática dos subalternos que, apesar de se localizarem na margem da história, acabam por ganhar voz e um “corpo grafemático”, nas malhas da ficção.
  • 10. 10 Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008 Em “Narrativas, rostos e manifestações do pós-colonialis- mo moçambicano nos romances de João Paulo Borges Coelho”, Sheila Kahn começa por apresentar a questão do pós-colonialis- mo em Moçambique. A seguir, recupera a postura adotada por João Paulo Borges Coelho, em relação ao que se passa na nação recém-independente, postura esta que ele evidencia não apenas em sua obra romanesca, mas também em entrevista concedida à ensaísta e por ela em parte transcrita no artigo. Por fim, propõe a leitura de três romances do autor – Visitas do Dr. Valdez; Crônica da Rua 513.2 e Campo de trânsito –, demonstrando como Borges Coelho dá voz aos “calados”, pelo que tenta resgatar a história igualmente barrada dos que, em silêncio, viveram as transições por que passou o país em construção. No texto “O papel das línguas africanas na formação do português brasileiro: (mais) pistas para uma nova agenda de pesquisa” de Charlotte Galves, a autora, seguindo caminho proposto pela pesquisadora Margarida Petter, centraliza a dis- cussão nas variedades angolanas e moçambicanas do português, por entender que elas abrem caminho para a reflexão de como e porquê as línguas africanas interferiram no português do Brasil. O artigo se divide em duas grandes seções, começando por pro- mover a releitura do debate da questão por ela proposta, para o que resgata a série histórica desse mesmo debate. Na segunda seção, discute os efeitos do contato entre as línguas africanas e o português, comparando, a seguir, as vertentes africanas e brasileiras da língua e levantando as evidências que comprovam a consistência de sua hipótese. O artigo “Agruras da ficção contemporânea”, de Sílvia Regina Pinto, focaliza a literatura produzida no Brasil em sua interface com o mundo de hoje, marcado por uma transformação radical em que afloram crises talvez sem precedentes, revelando que ela demonstra e questiona a mudança profunda que vem ocorrendo em todas as áreas de atividade, em especial a cultura, a estética, os valores éticos, as noções de tempo e espaço e as fronteiras entre o público e o privado. O ensaio procura mostrar como a ficção contemporânea vem tematizando e discutindo sua própria estranheza, tentando uma articulação entre linguagem e realidade, no esforço incansável para um confronto do eu com o outro que, muitas vezes, é ele mesmo, e deixando claro que a ficção se torna necessária até para que o real exista. Equipado de instrumental teórico que lhe permite ampla reflexão, este ensaio oferece uma possibilidade fundamental de pensar o Brasil de hoje em sua literatura e através dela. Em “Narrar é resistir?” Denise Brasil Alvarenga Aguiar também focaliza a ficção contemporânea, em especial o cotejo entre O quieto animal da esquina, de João Gilberto Noll, e A vida e a época de Michael K., de J. M. Coetzee. Seu objetivo é compreen- der as transformações da literatura no contexto das alterações
  • 11. 11Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008 sociais e culturais que marcam os tempos da chamada pós- modernidade. Identificando importante vertente literária de tematização do sufocamento da subjetividade no cenário hostil da exclusão social, a autora compara a rarefação da subjetividade nos personagens de Noll e a transformação do rarefeito em uma passagem para uma outra forma de alteridade, no magnífico personagem de Coetzee, Michael K., que também poderia ser aproximado de Fabiano (o protagonista de Vidas secas, de Graci- liano Ramos) e de Macabéa (a protagonista de A hora da estrela, de Clarice Lispector), na cena da carência que, surpreendentemente, faz com que o Michael K transcenda o nada a que a sociedade o havia destinado, desencadeando, com força crítica, o exame, pelo leitor, desse terrível impedimento. Com Os velhos ‘marionetes’: Quincas Berro D’Água, ver- sões e construção de identidade”, Lucia Bettencourt descortina uma perspectiva original para focalizar um autor que já recebeu muitas e variadas exegeses e que faz parte de nosso patrimônio não só literário, mas também antropológico: Jorge Amado. Foca- lizando os personagens do autor a partir de suas ligações com a dramaturgia popular e a tradição européia da comedia dell’arte, revela como sua ficção se mescla à arte popular regional, de forte influência africana. Com isso, abre um diálogo entre o ato nar- rativo e seu aspecto dramático, subvertendo a concepção usual do protagonista Quincas, que adquire, assim, uma outra forma de expressividade, através da manifestação popular. O texto “Quando o preconceito se faz silêncio: relações so- ciais na literatura brasileira”, de Regina Dalcastagnè, destaca, de uma profunda e extensa pesquisa que a autora vem realizando sob a chancela do CNPq, as personagens negras, francamente minoritárias na ficção brasileira contemporânea. O artigo analisa algumas exceções a esta regra, identificando diferentes modos de representação literária das relações raciais em uma sociedade marcada (embora pareça estar convencida do contrário) pela discriminação. Com acurada atenção ao detalhe, mas sem perder o alcance do geral, o texto de Dalcastagnè ultrapassa, e muito, o que se produziu entre nós sobre o assunto, até o momento. O exame dessas personagens negras talvez ajude os leitores (na maioria brancos) a entender melhor o que é ser negro no Brasil – e o que significa ser branco em uma sociedade racista. Com “Uma conversa entre macacos: percalços do diálogo africano com o outro”, Lucia Helena focaliza uma delicada e complexa rede textual, formada pelo diálogo sutil implantado por J. M. Coetzee entre seus dois romances A vida dos animais e Elizabeth Costello e o conto de Kafka, “Um relatório para uma academia”. Ao manter enlaçadas, com pistas que oscilam na fronteira entre o falso e o verdadeiro, as marcas da autoria, da autobiografia e da ficção, do ensaio e da vida, o intertexto realizado por Coetzee revela-se uma irônica e produtiva forma
  • 12. 12 Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008 de buscar compreender, discutir e criticar as transformações da subjetividade na sociedade contemporânea, em um mundo globalizado. Em diálogo com a violência do mundo, a literatura de Coetzee também homenageia a de Kafka, outro invulgar pensador do desastre. Fecha o volume a transcrição de uma entrevista inédita, feita por Maurício de Bragança, em 2005, com o escritor angolano José Eduardo Agualusa, intitulada “O peixe e o macaco: emble- mas do subdesenvolvimento numa entrevista com José Eduardo Agualusa sobre Brasil e Angola”. Nesta entrevista, seu autor, na introdução que faz, estabelece os pontos em comum nos proces- sos da formação histórica do Brasil e de Angola, tomando como fato a colonização portuguesa e situando o contexto temporal de sua entrevista e o local – Vila do João, no Rio de Janeiro – em que faz um vídeodocumentário sobre os angolanos residentes no Brasil. A entrevista do escritor Agualusa fará parte do referido vídeo, em fase de montagem final. Laura Padilha e Lucia Helena
  • 13. Gragoatá Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 O começo do fim Silviano Santiago Recebido 15 mai. 2008 / Aprovado 27 mai. 2008 Resumo O propósito de “O começo do fim” é o de apre- sentar uma nova e suplementar interpretação do conceito-chave do movimento Modernista – a antropofagia de Oswald de Andrade. Durante oito décadas o conceito foi responsável por uma rica e precisa bibliografia, em que se salientaram os aspectos ressentidos e beligerantes das culturas colonizadas em relação aos colonizadores. Essa interpretação, apesar de correta do ponto de vista social e político, negligencia as qualidades básicas do trabalho de arte escrito nas margens da cultura Ocidental, em particular as relacionadas ao fato que ele deveria despertar no leitor a premência dum pensamento utópico, em que a paz, a espe- rança e a alegria se tornariam os valores. Palavras-chave: Literatura brasileira. Van- guarda. Modernismo. Antropofagia. Pensamento utópico.
  • 14. Gragoatá Silviano Santiago Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200814 “Os mais bem sucedidos movimentos políticos são os que parecem não ser ‘políticos’” (Felix González-Torres, 1957-1996) Marik o Mori, Beginning of the End, Gizah, Egito, 2000 No ano em que a Antropofagia oswaldiana celebra seu octogésimo aniversário, torna-se indispensável repensá-la na perspectiva de uma nova interpretação. Sucessivas gerações de artistas, críticos e pesquisadores brasileiros e estrangeiros sobre- puseram uma formidável tradição hermenêutica ao conceito-cha- ve da vanguarda brasileira dos anos 1920. Ano após ano, década após década, essa tradição se transformou numa muralha. Para escalá-la o neófito tem de contar com o concurso dos milhares de sólidos e bons recursos oferecidos pela bibliografia de res- ponsabilidade dos artistas e dos intérpretes. Qualquer que seja a trilha eleita para a escalada da muralha antropofágica, revisitar ou visitar o conceito significa fazer grandes caminhadas preli- minares por detrás do muro das interpretações canônicas e, sem maiores ambições, terminar por repetir o já escrito e assentado. Como nos adverte Eugène Ionesco na Cantora careca, “Tomai um círculo, acariciai-o bastante, e ele se tornará vicioso”. Indispensável à escalada atual da viciosa teoria antropo- fágica, a planta baixa da muralha regulamenta medidas críticas contraproducentes à análise e compreensão das manifestações artísticas contemporâneas, em particular das que reivindicam o calor utópico e o direito à esperança e à alegria, que – afirme-se
  • 15. O começo do fim Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 15 desde já − não estão ausentes do programa teórico oswaldiano em sua totalidade. Se a planta baixa canônica for tomada como perspectiva única e correta, algo nela não permitirá que se enxerguem − com proveito analítico − as qualidades e os sinto- mas evidentes da arte no terceiro milênio. Aprendamos com o aforismo do Manifesto Pau-Brasil: “Ver com olhos livres [o grifo é do próprio OA]”. A leitura dos últimos e influentes trabalhos críticos sobre o tema por excelência da vanguarda histórica brasileira desperta constantemente − na sensibilidade rebelde do leitor jovem − o gosto de bolo ressequido ou de café requentado. Em suas novas pesquisas, os grandes especialistas se interessam menos pelos sucessivos constrangimentos prescritos e impostos pela tradi- ção hermenêutica ao conceito. Interessam-se mais em alardear as respectivas erudições individuais ou do grupo de pesquisa, ampliando ao infinito apenas o repertório das obras que podem ser mais bem analisadas a partir da Antropofagia tal como a conceberam. Interessam-se, ainda, pela abertura de novas e pre- visíveis fronteiras geográficas não-ocidentais, e finalmente pelo já decantado exercício das inversões ideológicas nos sedimentos estratificados pelo poder das culturas hegemônicas – ex-coloni- zadoras ou neocolonizadoras e, por isso, ditas universais − sobre as demais culturas das nações ou dos povos das margens. Em resumo, tanto nos novos ensaios sobre a Antropofagia quanto nos acréscimos feitos ao corpus original levantado pela teoria oswaldiana, a originalidade de um novo exemplo tornou-se o principal dado imprevisto no octogenário desenho da planta baixa exegética. A teoria se alçou e se petrificou em muralha, enquanto o corpus analisado ganhou o estatuto de obesidade mórbida. Em momento preciso do final do século 20, a Antropofagia recebeu contribuição alvissareira na pesquisa propriamente teórica. Ela anunciava o casamento do conceito da vanguarda histórica brasileira com figuras da teoria pós-estruturalista. Refiro-me aos conceitos de renversement (reversão [do platonismo], Gilles Deleuze) e de décentrement e de déconstruction (descentra- mento e desconstrução [da metafísica ocidental], Jacques Derrida). Hoje, os felizes e tardios casamentos teóricos − sacramentados sob o céu de Paris − se encontram bem assimilados pelos gourmets europeizados do circuito e do círculo antropófago. Na busca de uma palavra exegética que consagre o octogésimo aniversário, não há que voltar a elas. Não duvidemos por um segundo sequer de que o conceito oswaldiano e a tradição crítica dele derivada não tenham sido, no século 20, uma conquista admirável para a boa leitura da litera- tura e da arte não-européias, ditas periféricas ou emergentes. O conceito e a correspondente tradição exegética (a muralha a que nos referíamos no parágrafo inicial) se tornaram também indis-
  • 16. Gragoatá Silviano Santiago Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200816 pensáveis para a discussão justa e equilibrada do imaginário estético e sócio-político dos artistas e dos escritores pertencentes às antigas colônias européias no Novo Mundo. No terceiro milênio, quando se salientam as teorias pós- colonialistas − multiculturalistas − nos próprios países coloniza- dores de além Mancha, de que é exemplo a obra de Stuart Hall, ou de além Atlântico, de que é exemplo o Museu do Quai de Branly; em Paris, no novo milênio, quando as nações da África, do Oriente Médio e da Ásia reclamam um lugar ao sol no mun- do ocidental para suas audaciosas, destemperadas e resistentes manifestações culturais, é impensável que o cidadão das mar- gens – seja o artista, seja o pensador – possa dispensar sem mais nem menos as idéias revolucionárias apresentadas por Oswald de Andrade em 1928, cujo equivalente na pesquisa científica foi La religion des tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani (em particular o capítulo IX), publicado naquele mesmo ano por Alfred Métraux, etnólogo de origem suíça. Ou- tro franco-suíço, o poeta Blaise Cendrars, foi também conviva de primeira hora no banquete antropófago, como atestam os ensaios de A aventura brasileira de Blaise Cendrars, de Alexandre Eulálio (hoje em segunda edição, graças ao concurso de Carlos Augusto Kalil). Retirar a Antropofagia, a alta Antropofagia − precisemos − 1 de detrás da muralha levantada pela hermenêutica canônica sig- nifica entregar-se a atividade sócio-política extremamente arris- cada, em particular neste exato momento da história planetária. Na cena mundial, dá-se continuidade à tragédia dos conflitos bélicos sangrentos, impostos pelos atores sociais de nações do norte aos atores sociais das nações do sul, representantes, res- pectivamente, do Ocidente e do Oriente, do cristianismo e do islamismo, do status quo e do chamado terrorismo. Infelizmente, o terceiro milênio se define, para retomar a chave-mestra de Sa- muel Huntington, pelo choque das civilizações. Na primeira década do novo século, os movimentos diaspóricos de ex-colonos para os países colonizadores do Primeiro Mundo ganham as manchetes dos principais jornais europeus e norte-americanos, e freqüen- tam com assiduidade a agenda política dos governantes, haja vista a situação em nada particular dos hispano-americanos e brasileiros na Península Ibérica.2 Se a tarefa a ser enfrentada pelo crítico de arte contemporâneo exige o risco político, arrisco-me, e não me deixo contaminar pela atualidade que a cada novo dia o imperioso governo federal norte-americano inventa e semeia no Oriente Médio para melhor controlá-lo com fins em nada pacíficos. Em termos ainda abstratos, derivados da ancoragem dos textos de Oswald de Andrade na utopia, na esperança e na alegria presentes no múltiplo programa teórico, proponho aos ouvintes e futuros leitores considerar a Antropofagia de maneira su- 1 A não ser confundida – alerta-nos Oswald de Andrade – com “a baixa [grifo nosso] antropo- fagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja,ausura,acalúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados”. O au- tor conclui: “É contra ela que estamos agindo”. Anotemos rapidamente que as duas formas de antropofagia não se con- fundem com o sentido estrito do ritual canibal dos Tupinambás. 2 Neste mês de maio de 2008, maior tristeza é constatada na África do Sul, onde imigrantes dospaíseslimítrofes,em particular os moçambi- canos, são perseguidos e dezenas assassinados pelos companheiros de pan-africanismo. A intolerância e a xenofo- bia não existem apenas nos países do Primeiro Mundo.
  • 17. O começo do fim Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 17 plementar e de nova perspectiva. Enuncio minha proposta. A demanda dos artistas e pensadores não-europeus e a aspiração profunda da produção artística das margens sobrevivem graças à deglutição por qualquer cidadão da memória universal da cultura e das artes, sem distinções ou balizas históricas e geográficas. Antes de prosseguir, busco o indispensável alicerce num afo- rismo do Manifesto Antropófago: “Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César”. Se lhes parecer verdadeira a leitura não-hierárquica, pa- cifista e transcendental para a teoria antropofágica – inspirada, repito, no aforismo oswaldiano citado −, reganho força e lucidez com o apoio do antigo filme documentário de Alain Resnais sobre a Biblioteca Nacional francesa, intitulado Toute la mémoire du monde (1956). Escutemos a voz do narrador do filme: “Aqui [na Biblioteca Nacional] se prefigura um tempo em que todos os enigmas serão resolvidos, um tempo em que as chaves nos serão concedidas por esse universo e alguns outros. E isso sim- plesmente acontecerá porque os leitores, sentados diante de sua parcela de memória universal, terão colado pedaço por pedaço os fragmentos de um mesmo segredo, que talvez ganhe um belíssimo nome – a felicidade [le bonheur]”. E graças ao segredo de nome felicidade, começo a palmilhar novo caminho, agora com a ajuda de palavras tomadas de empréstimo ao conto “A biblioteca de Babel”, de Jorge Luis Borges: “Quando se proclamou que a biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade. [...] O universo estava justificado, o universo bruscamente usurpou as dimensões ilimitadas da esperança”. E ficaria felicíssimo se, ao final desta exposição, cada um dos presentes pudesse por contra própria repetir a frase final do conto de Borges: “Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança”. Acrescente-se que a atividade antropofágica proposta não se quer milagrosa em si, mesmo se busca adotar – dessa perspectiva inusitada para a hoje canônica exegese da teoria – o rosto utópico da esperança e da felicidade. Esse rosto, aliás, já se espelhava na letra do manifesto original, datado de 1928. Trans- posta a muralha hermenêutica, talvez a nota hoje dissonante de esperança e o calor utópico da felicidade passem a compor a disposição mais justa da Antropofagia nos dias atuais. É preciso nunca esquecer que em 1945, por ocasião do fim da Segunda Guerra Mundial e depois da queda da ditadura Vargas, Oswald de Andrade tinha submetido ao plenário do Primeiro Congres- so de Filosofia um longo ensaio intitulado A marcha das utopias. A espinha dorsal da argumentação continuava a ser a cultura matriarcal dos índios Tupinambás, presente nos manifestos dos anos 1920. Tampouco não se pense que a Antropofagia tal como a estou caracterizando contribua para uma visão otimista
  • 18. Gragoatá Silviano Santiago Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200818 do mundo atual, ainda que, em virtude de seu enraizamento original na religião dos primeiros habitantes do Brasil, o lance utópico, esperançoso e feliz, tome de empréstimo dos rituais das populações primitivas gestos alucinatórios e redentores. Se houver otimismo na teoria antropofágica, ele é em tudo por tudo semelhante ao par de calças, de que nos fala Samuel Beckett em preciosa e célebre anedota. Diante da reclamação do Freguês − “Deus fez o mundo em seis dias, e o senhor não con- seguiu me costurar essa merda de calças em seis meses”, reage o Alfaiate, orgulhoso de sua obra-prima: “Mas, meu senhor, olhe o mundo, e olhe suas calças”. Em última instância e do ponto de vista restrito do artista não-europeu, a Antropofagia leva o escritor – o escritor brasilei- ro, no presente caso – a desenvolver o gosto pelo lento e paciente trabalho de arte. Sejamos mais precisos. Ela exige do artista, cuja tradição cultural se encontra em princípio desapossada do ideal de universalidade criado pela tradição ocidental, o gosto pelo trabalho artístico que não é desassociado do trabalho crítico, também de responsabilidade do próprio criador. Dessa pers- pectiva, soa falso todo esforço por criar oposição/contradição entre a escrita dita artística e a escrita dita crítica. Não há fissão e incompatibilidade entre elas. Ao se confundirem num escritor, criação e crítica se fundem e se confundem – são cofundadoras da literatura. Lembre-se de passagem do volume Variété I. Paul Valéry escreve que Charles Baudelaire é o poeta “que traz um crítico em si, intimamente associado por ele a suas próprias composições poéticas”. Baudelaire se torna figura emblemática dos escritores para quem – continua Valéry – “a composição, que é artifício, sucede a algum caos primitivo de intuições e de desenvolvimentos naturais”. A composição − de que fala Valéry nessa passagem sobre o poeta francês oitocentista e sobre outros escritores, como La Fontaine e Racine − decodifica a metáfora das calças, de que fala o Alfaiate frente ao porta-voz de Deus na terra, que é o apressado e abusado Freguês. A composição, ou seja, o lento trabalho de arte embutido no texto poético e, metaforicamente, nas calças beckettianas, faculta ao ser humano a possibilidade de competir em igualdade de condições com Deus e o acaso na criação do universo, na criação dum universo alternativo, artístico, espe- rançoso e feliz. Depois das dores do parto, nada como o tempo do resguardo. Em termos oswaldianos: “o trabalho humano conduz ao ócio”. Em termos nietzchianos, “as ‘dores do parto’ são indispensáveis à alegria eterna da criação, à eterna afirmação da vontade de vida”.3 Como diz o texto santo: “Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, porque neste dia Deus descansou de toda a obra de criação”. Também o alfaiate tem sua semana inglesa. 3 Complemente-se com este aforismo de O cre- púsculo dos deuses: “O artista trágico não é um pessimista, diz o seu sim a tudo o que é pro- blemático e terrível, é dionisíaco [...]”.
  • 19. O começo do fim Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 19 Na cena artística brasileira dos anos 1920, a Antropofagia oswaldiana respirava o ar clássico e puro da teoria poética de Paul Valéry, ao mesmo tempo em que, em evidente movimento de contradição, acolhia e aclimatava a presença estética e sócio- política dos principais movimentos de vanguarda europeus − o autoritário Futurismo, de Filippo Tommaso Marinetti, e o anár- quico Dada, de Tristan Tzara. Em comum, (repito) a deglutição. No interior da vanguarda histórica brasileira, outra e conseqüen- te contradição terá seu clímax dois anos depois da realização da Semana de Arte Moderna. Em 1924, o poeta franco-suíço Blaise Cendrars é recebido pela família Paulo Prado e viaja, juntamente com os jovens artistas paulistas, às cidades históricas de Minas Gerais. Durante a primeira estada de Cendrars no Brasil, é que se acelera paradoxalmente o processo de abrasileiramento do eu- ropeizado movimento de vanguarda nos trópicos. Sobre os caminhos diferenciados que se cruzam na for- mação do modernismo, Brito Broca, um dos mais importantes historiadores da literatura brasileira, assinala: “Antes de tudo, o que merece reparo nessa viagem [a Minas] é a atitude para- doxal dos viajantes. São todos modernistas, homens do futuro. E a um poeta de vanguarda que nos visita, escandalizando os espíritos conformistas, o que vão eles mostrar? As velhas cidades de Minas, com suas igrejas do século 18, onde tudo é evocação do passado e, em última análise, tudo sugere ruínas. Pareceria um contra-senso apenas aparente. Havia uma lógica interior no caso. O divórcio [grifo meu] em que a maior parte dos nossos escritores sempre viveu da realidade brasileira fazia com que a paisagem de Minas barroca surgisse aos olhos dos modernis- tas como qualquer coisa de novo e original, dentro, portanto, do quadro de novidade e originalidade que eles procuravam”. Retomo os primeiros parágrafos desta fala para reafirmar que o sucesso de certa Antropofagia e da tradição hermenêutica canônica tem suas raízes revolucionárias e belicosas na viagem de Blaise Cendrars às cidades históricas, ou seja, no divórcio entre intelectuais e a história nacional e no paradoxo ocasionado pela irrupção da tradição brasileira na já adolescente importação européia. Numa palavra, a Antropofagia bélica e ressentida tem fundamento no imperativo categórico do abrasileiramento da arte de vanguarda. Num único salto, solitário e contraditório,4 o complexo con- glomerado teórico, que compõe originalmente a Antropofagia, se comporta como o sinal preparatório a indicar a supremacia do construtivismo nas manifestações artísticas modernistas e pós-modernistas. Os exemplos mais bem realizados, e radicais, serão encontrados a partir dos anos 1940 e 1950. Em literatura, a poesia de João Cabral de Melo Neto e os poemas visuais dos poetas concretos, e, em artes plásticas, as Bienais de Arte de São Paulo.5 Para julgar sobre a importância da contribuição 4 É bom lembrar esta curta passagem do Ma- nifeste Dada 1918: “Eu re- dijo esse manifesto para mostrar que é possível fazer simultaneamente ações opostas, numa única fresca respiração; sou contra a ação; pela contínua contradição, pela afirmação também, eu não sou nem para nem contra e não explico por que odeio o bom- senso”. Pensemos ainda na máxima de André Gide, muito ao gosto dos autores e críticos brasileiros modernistas: “Sou um ser em diálogo; tudo em mim combate e se contradiz”. 5 Na França e no domí- nio das artes plásticas, o peso do construtivis- mo hispano-americano pode ser bem aquila- tado pela história da Galerie Denise Renée, situada não por coin- cidência no Boulevard Saint-Germain, quase em frente da Maison de l’Amérique Latine. O interesse praticamente nulo da galeria pelos trabalhos de Lygia Clark e Hélio Oiticica será em grande parte responsá- vel por uma insuportá- vel lacuna brasileira do construtivismo brasilei- ro na cartografia pari- siense. Ver, por exemplo, as cartas trocadas entre Lygia e Hélio durante os anos de 1969/1970 e a grande exposição “Helio Oiticica: the body of colour”, inaugurada no ano passado na Tate Modern, em Londres. 6 A conferência foi publi- cada na Revista Brasileira de Poesia, no mês de abril de 1956, e transcrita na antologia Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro, organizada por Gilberto Mendonça Telles. O leitor curioso terá o maior interesse em consultar um anti- go e hoje desaparecido livro de Jean Hytier, La poétique de Valéry (1953), em particular o capítulo V: “Inspiration et tra- vail”. Ali se encontram excelentes exemplos de “deglutição” antropofá- gica em... Paul Valéry.
  • 20. Gragoatá Silviano Santiago Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200820 teórica de Paul Valéry na concepção do lirismo construtivista desenvolvido por João Cabral, basta ler a conferência “Poesia e composição – a inspiração e o trabalho de arte”, proferida pelo poeta pernambucano em 1952.6 Desta forma é que João Cabral explica a atitude dos es- critores que decidiram a favor de uma escrita artística que se apóia na pesquisa – e não na inspiração: “Nos poetas daquela família, para quem a composição é procura, existe como que o pudor de se referir aos momentos em que, diante do papel em branco, exercitam sua força. Porque eles sabem de que é feita essa força – é feita de mil fracassos, de truques de que ninguém deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco que se é capaz de conseguir e de renúncia ao que, de partida, se desejou conseguir”. Sérgio Buarque de Holanda foi o primeiro crítico sensível à aliança entre a estética e a ética, tal como proposta em língua portuguesa pelo lirismo construtivista de João Cabral. Em artigo sobre o poeta, intitulado “Branco sobre branco”,7 sem dúvida homenagem indireta ao célebre quadro de Kazimir Malevitch, Sérgio retoma a oposição entre o “desleixo”, característica prin- cipal da colonização portuguesa nos trópicos, e o “zelo”, marca preponderante da colonização espanhola no Novo Mundo. A oposição fora articulada pela primeira vez em 1936 no ensaio Raízes do Brasil, hoje um clássico.8 Ele a retoma em 1952 para insistir sobre o mal-estar que sente diante da opção inesperada e sistemática dum brasileiro pelo zelo na composição de seus poemas. Julgara-o equivocadamente um equivocado. Ao relatar o percurso de sua dúvida inicial sobre o valor da produção poética de Cabral e o reconhecimento tardio de sua alta qualidade, Sérgio demonstra como a opção radical do pernambucano pelo zelo lhe parecera eleição de uma lingua- gem poética artificial, o que comprometia a inserção natural dos poemas na tradição lírica luso-brasileira. Passemos a palavra ao próprio Sérgio: “confesso envergonhado que meus primeiros contatos com sua obra e, depois, o crescente interesse que ela pôde inspirar-me, nem sempre me deixaram totalmente livre de hesitações ou suspeitas. Pareceu-me quase incrível, por vezes, que essa consciência constantemente alerta e ativa, esse zelo, ao mesmo tempo vigilante e criador [...], tão estranho aos mais inveterados costumes da lírica luso-brasileira, chegassem a existir, entre nós, sem fundar-se por vezes em algum malicioso artifício”.9 (grifos nossos) Ao ler o opúsculo de Cabral sobre o pintor catalão Joan Miro (1952), Sérgio descobre tardiamente que o zelo cabralino é a pedra de toque de que deve servir-se o crítico para avaliar a originalidade de sua composição poética no interior da líri- ca luso-brasileira. Lê-se na já citada resenha: “O que parecia traduzir-se naquele zelo sempre atento não era apenas uma 7 Aresenhafoipublicada em jornal em 1952 e in- cluída em Cobra de vidro (São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 167-180) 8 Para maiores detalhes, consulte-se o sétimo capítulo de As raízes e o labirinto da América Latina (Rio de Janeiro: Rocco, 2006), de minha autoria. 9 Lembre-se que esta- mos sempre no mesmo circuito semântico. Para Valéry, como vimos, a composição é “artifício”. Pode-se dizer que faltou a Sérgio, na primeira abordagem de Cabral, o reconhecimento do artifício (ou seja, da composição artística) como tal.
  • 21. O começo do fim Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 21 poética, na acepção mais corrente e usual do vocábulo: era mais, e principalmente, uma espécie de norma de ação e de vida. A estética, em outras palavras, assentava sobre uma ética”. Em João Cabral, como em outros escritores que o precedem e o sucedem, o exercício da arte se confunde com uma norma de ação e de vida estóicas, cujo norte é determinado por uma atividade social de produção. Ao trazer para a discussão da Antropofagia o construtivismo, cria-se outro e novo paradoxo, cujo poder de repercussão chega a nossos dias. Sérgio Buarque não deixa de assinalá-lo na abertura de sua resenha: “Não há grande paradoxo em dizer que na obra tão breve e tão volunta- riamente impessoal de João Cabral de Melo Neto o autor parece presente de corpo inteiro”. Graças ao esforço de composição, que é artifício, o poeta se apresenta de corpo inteiro num poema absolutamente impessoal. O par de calças só pode ser o confec- cionado por aquele alfaiate e por nenhum outro, para retomar a anedota de Beckett. Em sua aliança com o construtivismo e na qualidade de instrumento de busca da verdade poética, a teoria antropofágica torna-se ferramenta poderosa. Por estar assentada em sólida pla- taforma ética, serve para questionar radicalmente as miudezas da história contemporânea e, mais, põe em questão as teorias de composição poética defendidas pelas estéticas românticas e neo-românticas, de que o surrealismo é o exemplo mais notável na época em que Oswald lança os manifestos literários. Essas estéticas estão centradas na expressão imperiosa da subjetivi- dade plena, que age em sujeição a − e em concordância com − uma espécie de transe onírico ou alucinógeno. Em oposição ao trabalho de arte, afirma-se a toda poderosa inspiração. Em contraponto à tomada de posição de João Cabral sobre o artifício poético e ao assentado criticamente por Sérgio Buarque em relação à aliança entre estética e ética, leiamos uma curta passagem de L’amour fou, de André Breton. O poeta surrealista lamenta os retoques que ele – primeiro leitor de si mesmo − foi levado a fazer no poema “Tournesol” (Girassol): “Parece-me fora de dúvida haver retocado uma duas ou três coisas, na ver- são original [do poema], no intuito – tão lamentável afinal – de obter um todo mais homogêneo, de limitar o grau de imediata opacidade, de arbitrariedade aparente, que me pareceu existir no poema da primeira vez que o li”. Primeiro, informa que a primeira leitura da versão original do poema o levou a correções ditadas pela autocrítica, para linhas abaixo, afirmar que as la- mentava: “A atividade crítica que, a posteriori, me veio a sugerir certas adições ou substituições de palavras [no poema], leva-me a encarar agora essas correções como erros básicos: nada auxiliam o leitor, antes pelo contrário, só conseguem de uma maneira ou de outra prejudicar gravemente a autenticidade do poema”.10 Segundo Breton, o trabalho de arte prejudica a autenticidade do 10 Salto uma curta pas- sagem entre as duas citações acima. Nela está em jogo o papel da inspiração – e não do trabalho de arte – na composição do poema “Tournesol”.
  • 22. Gragoatá Silviano Santiago Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200822 poema, sua verdade imediata. Ele não quer carregar consigo o crítico de si mesmo. Retomemos, onde a tínhamos deixado, a questão da me- mória cultural comum a todos os homens. Em mãos de Alain Resnais e Jorge Luis Borges. De maneira premonitória lemos no conto “A biblioteca de Babel” que “a certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos fantasmagoriza”. O que está por detrás do dia de hoje – dito o passado, é já o presente que se impacienta diante da demora do futuro. O que está adiante do dia de hoje – dito o futuro, é sempre já a gestação do presente, pressurosa em dar à luz o que está por detrás do dia de hoje. Segundo o Manifesto Antropófago, o solo comum a toda a humanidade futura é o “matriarcado de Pindorama”. O matriarcado é faca de dois gumes − “devora” e “comunga”. Escreve Oswald em ensaio datado de 1950: “[A cultura matriarcal] compreende a vida como devoração e a simboliza no rito antropófago, que é comunhão”. Na alta Antropofagia, de que Oswald de Andrade quer ser porta-voz, o ato de devorar adquire as qualidades estratégicas do ritual católico, em que o consumo do alimento sacrificial pelo cliente não distingue o real do imaginário, ou seja, o trigo do corpo e o vinho do sangue. Em resumo, a devoração é co- munhão. A gulodice da alta Antropofagia se situa entre os dois excessos da razão, de que fala Pascal nas Pensées (IV): “excluir a razão, só admitir a razão”.11 Por esse viés inesperado e excessivo, retorna o tema por excelência desse relato: “Faça isso em minha memória”. Ou, então, retomemos os versos iniciais e os finais do poe- ma “Burnt Norton”, em Quatro quartetos, de T. S. Eliot, na tradução de Ivan Junqueira. Eis os versos iniciais do poema: “O tempo presente e o tempo passado / Estão ambos talvez presentes no tempo futuro / E o tempo futuro contido no tempo passado. / Se todo tempo é eternamente presente / Todo tempo é irredimí- vel”. Saltemos agora para os versos finais do poema: “O tempo passado e o tempo futuro, / O que poderia ter sido e o que foi, / Convergem para um só fim, que é sempre presente”. Para bem apreender a riqueza da contribuição antropo- fágica à arte e à literatura brasileiras e à arte e à literatura em geral, é preciso negociar com os críticos que defendem o sentido biográfico-evolutivo das histórias pessoais de vida, o sentido único da História e o peso da economia na avaliação da produção artística do ser humano. Como resultado da negociação, uma de- dução (no sentido financeiro do termo) será concedida ao artista, cujo custo benefício será a possibilidade de futuro esperançoso e feliz para a humanidade. A thing of beauty is a joy forever. A dedução é o sentido e o poder da arte e da literatura das margens, da arte e da literatura como tais – na condição de composição artística, para retomar a expressão da poética de Valéry, ou em termos de 11 Há sem dúvida um catolicismo recalcado na teoria antropofágica que se torna explícito no momento em que está em jogo o ato de devo- rar como comunhão. A visão mais fascinante da questão devoração/ comunhão é, na verda- de, a versão calvinista, a ser considerada como desconstrucionista. À época da luta entre eu- ropeus e indígenas com vistas à catequese, ela se encontra no sexto capítulo de Voyage à la terre du Brésil, de Jean de Léry. A luta espiri- tual entre Villegagnon e Jean de Cointe ganha peso no fato de que não há transubstanciação ou consubstanciação do corpo e do sangue de Cristo.
  • 23. O começo do fim Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 23 par de calças, para retomar a metáfora do Alfaiate na anedota de Beckett. O valor da dedução concedida pelos cientistas sociais e os economistas aos mercadores de arte é a sabedoria humana. À semelhança da antropofagia descrita por Alfred Métraux em seu livro pioneiro, que se elabora como conhecimento dito científico [knowledge], a Antropofagia oswaldiana se agiganta por ter como escatologia a sabedoria dita poética [wisdom]. Ao se afirmar a favor da expressão impessoal, descaracteri- zando a expressão subjetiva do poeta, e ao se deixar representar teoricamente como semelhante à casquette de Charles Baudelaire, cuja fabricação era compósita, a Antropofagia é antípoda da me- mória involuntária de Marcel Proust. Ela se confunde, portanto, com a memória voluntária, segundo a definição que dela nos foi dada por Samuel Beckett em 1931, no ensaio pioneiro sobre o autor de Em busca do tempo perdido. Em inusitada correspondên- cia com o futuro Borges, autor do conto “Funes, o memorioso” (1944), Beckett afirma inicialmente: “O homem de boa memória nunca se lembra de nada, porque nunca se esquece de nada”.12 Em oposição à memória involuntária, a memória voluntária – rebaixada por Beckett na escala dos valores proustianos como a má memória – é necessariamente incompleta. Nesse sentido, ela é orgânica e não o é. É interior e não o é. É exterior e não o é. É involuntária e não o é. Em resumo, ela transita e, por isso, é anfíbia. A memória voluntária é memória e, ao mesmo tempo, hábito, para retomar outra categoria analítica de Beckett. Ela é hábito adquirido pelo ofício de viver e pelo ofício de ler. Em suma, uma sabedoria – uma experiência de vida que se soma a uma pesquisa livresca; é aprendizado. Segundo as palavras sem dúvida irônicas de Beckett, ela é “a memória que não é memória, mas simples consulta ao índice remissivo do Velho Testamento do indivíduo [...] É a memória uniforme da inteligência”. Portanto, a memória voluntária não se relaciona em coisa alguma com a boa memória, ou seja, a memória involuntária proustiana. A memória voluntária – a má memória, insisto, bem como a Antropofagia – é conseqüência do pensamento da diferença, mas ela só existe plenamente para negar os valores subjetivos e supremos, que estão na origem da sua desclassificação por Marcel Proust. Se a reversão dos valores – na leitura de Beckett, o mau da memória está sempre em posição inferior −, se a reversão dos valores não foi necessária no período histórico das vanguar- das, ela está sendo requisitada na contemporaneidade. Andréas Huyssen, historiador de arte, situa o pós-modernismo depois de grande divisão (“after the great divide”). Huyssen assim define a expressão: “O que chamo de a Grande Divisão é o gênero de dis- curso que insiste na distinção categórica entre arte erudita [high art] e a cultura das massas”. Acrescenta: “[...] o pós-modernismo repudia as teorias e as práticas da Grande Divisão”. Em oposição 12 Entre outras, leiamos esta passagem de “Fu- nes, o memorioso”: “Não só lhe custava compre- ender que o símbolo genérico cão abranges- se tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa for- ma; aborrecia-o que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quarto (visto de frente). Seu próprio rosto no espe- lho, suas próprias mãos, surpreendiam-no todas as vezes”.
  • 24. Gragoatá Silviano Santiago Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200824 às leituras equivocadas da vanguarda histórica, que insistiam no fato de que era indispensável excluir as manifestações de todas as formas de cultura de massa, o historiador nomeia de maneira incontestável o principal responsável pela Grande Divisão, o alto modernismo [the high Modernism]. Ele se explica: “as vanguardas históricas tinham por fim o desenvolvimento duma relação alternativa entre a arte erudita e as culturas das massas e dessa forma deveriam continuar a existir dentro do alto modernismo, que, no entanto, insistia majoritariamente na hostilidade inata entre o alto e o baixo”.13 Nem alta cultura nem cultura de massa, a Antropofagia – ou a má memória – aponta para as duas, ao mesmo tempo. Retornemos a Beckett e a Proust para concluir com a ajuda do primeiro: “Democrata incondicional, [a memória voluntária] não faz qualquer distinção entre os Pensamentos de Pascal e uma propaganda de sabão”. A Antropofagia está no nascedouro da produção artística que se afirma como negação das estéticas do alto modernismo, que lutavam a favor da exclusão da cultura das massas do reino das artes. A Antropofagia se apresenta aos olhos pós-modernos como a negação das estéticas românticas, fundadas na sinceridade do eu. Durante o período áureo da vanguarda brasileira, a An- tropofagia buscava, por um lado, apreender e avaliar para o artista e o pensador não-europeus o peso da herança cultural universal e, por outro lado, identificar as razões pelas quais os indígenas – que são nossos antepassados dum ponto de vista exclusivamente geográfico – não tinham conseguido ter acesso ao capital cultural consensual, indispensável à produção de obra artística ou reflexiva com peso universal. Mais importante do que a constatação da inferioridade do colono em relação à empresa colonizadora européia e a conseqüente rejeição das injustiças estabelecidas pelo poder tirânico das metrópoles, a Antropofa- gia se apresenta como estratégia artística e reflexiva que visa a apreender o valor universal para os que estão desapossados dele originariamente. Na busca desse valor, a Antropofagia rechaça a dívida contraída pelo não-europeu com o universal, para então indiciá-la duplamente − como signo de reconhecimento e, para- doxalmente, de auto-reconhecimento. A teoria antropofágica é o primado duma negociação, cujo resultado – isto é, a redução ou o abatimento no preço legal e oficial do universalismo – é a iluminação do mundo e seus habitantes pela amplidão absoluta do conhecimento pleno das diferenças. A iluminação se dá no exercício de ultrapassagem histórico das condições funestas do cotidiano e da atualidade. A produção de bens artísticos e reflexivos passa por uma experiência pessoal que se renova, que é renovada por cada experiência humana, indiferente de sua localização precisa na história ocidental e na geografia do planeta. Leia-se o manifesto, 13 A reiterar a tese de Huyssen, leia-se no ma- nifesta de Oswald: “O que atropelava a verda- de era a roupa, o imper- meável entre o mundo interior e o mundo ex- terior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano in- formará”.
  • 25. O começo do fim Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 25 de que vimos falando: “Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada”. A memória se renova pela intervenção do sujeito na memória universal, de que falam Alain Resnais e Jorge Luis Borges. Sua memória é involuntária e volun- tária, é interior e exterior, é orgânica e artificial, é incompleta e uniforme. O sujeito se renova no momento em que sua memória involuntária se renova voluntariamente. Em possessão duma reserva parcial de conhecimento e de- sejoso de ter acesso ao capital artístico dito universal, os artistas e os pensadores não-europeus inventaram não só argumentos contraditórios e paradoxais, como também metodologias de leitura em nada convencionais. A Antropofagia não deixa de propor uma pedagogia para todos os cidadãos. Marca original do colono, o conhecimento incompleto se justapõe ao conhecimento dito universal, marca original do colonizador. É um conhecimen- to exorbitante que deriva da combinação, da comunhão das duas reservas de conhecimento pelo esforço antropófago. Ele rechaça, portanto, as duas formas parciais de conhecimento − tanto a parcial do colono quanto a dita universal do colonizador. No domínio da Antropofagia, o único valor responsável é o exor- bitante. Para melhor compreender a situação pedagógica a que chegamos, aprenda-se com Emmanuel Lévinas que “a relação intersubjetiva é uma relação não-simétrica. Nesse sentido, sou responsável pelo outro sem esperar a recíproca, ainda que ele me custe a vida. A recíproca é problema dele”. A recíproca ocidental não é, nunca foi e nunca será problema do sujeito antropófago. Os argumentos legitimados pela Antropofagia escapam muitas vezes da lógica cartesiana e de suas metodologias de leitura, escapa ainda ao sentido único da História. Daí a ori- ginalidade e audácia dos aforismos levantados pelo Manifesto Antropófago, de que é emblemático o seguinte: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. Antes de ser o inimigo, ainda que na realidade o possa ser, o outro é a pos- sibilidade de união neste mundo, em que mais e mais se perde a esperança da fraternidade universal. Essa operação responsável, esperançosa e utópica, a felicidade na comunhão, só é possível graças aos paradoxos da Antropofagia: “Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. / Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualis- mos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz”. Tudo o que é de outro é meu. Tornar-se responsável do bem que é do outro, dos bens que pertencem ao outro, é o próprio do eu que, em lugar da sinceridade romântica, se quer fraternal e esperançoso, vale dizer, universal. O sujeito não recua diante dos atos e mecanismos de ataque ou de defesa manifestados pelo outro. Voluntariamente, acumula em si o outro, o capital e os valores do outro. Nunca será deficitário. Em negociação
  • 26. Gragoatá Silviano Santiago Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200826 com o outro, jamais desfalca seu capital cultural, soma sempre. A visão do sujeito antropófago perde o sentido das fronteiras geográficas e sua audição, perde o sentido dos limites espaciais e sua localização. A responsabilidade é a expressão mascarada de todos os individualismos que, por sua vez, é a expressão mascarada de todos os coletivismos – repitamos as palavras do Manifesto. Daí o aforismo que abre o texto de Oswald: “Só a Antropofagia nos une”. Terminada a etapa das operações aritméticas − ou finan- ceiras − de soma, impõe-se o desejo de verificar a exatidão dos resultados obtidos. Aplique-se a prova dos nove. Esta negará ou reafirmará o rigor da lei do homem e da Antropofagia. No Manifesto Antropófago, lemos uma e muitas vezes o seguinte afo- rismo: “A alegria é a prova dos nove”. E lemos ainda: “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”. Uma vez mais precisemos nossa posição. Antes de ser conseqüência das descobertas marítimas feitas pelos europeus no século 16, a alegria foi sempre o valor do antropófago; em uma só palavra, o valor exorbitante do homem no matriarcado de Pindorama, um valor absoluto. Dessa perspectiva, o estudo das diferenças espaciais no planeta terra – e a constatação de sua composição não-simétrica do ponto de vista histórico, social e econômico – só guarda sua força operacional por detrás da muralha sobreposta ao con- ceito oswaldiano pela tradição hermenêutica, cuja origem está incontestavelmente na busca de identidade para cada nação do subcontinente latino-americano ao final do colonialismo euro- peu. Constate-se uma vez mais: a lei que constitui o sujeito por seu “interesse pelo outro”, ou por sua “responsabilidade pelo outro” não diferencia o antropófago do ser humano tout court. A lei do homem e a lei do antropófago não são duas, são a mesma. Melhor, a lei do mesmo rasura a diferença que tinha servido na época colonial e depois dela para constituir o antropófago na condição de ator latino-americano singular, descoberto pelo europeu e inventado a partir das grandes descobertas marítimas do século 16. Na prova dos nove, esse ator tem a identidade de homem ressentido (Nietzsche) e navega nas águas belicosas do saber parcial. As questões políticas e econômicas decorrentes da longa e fastidiosa narrativa sobre as transformações das colônias eu- ropéias em nações latino-americanas cedem o lugar a questões decorrentes duma nova e complexa forma de constituição do sujeito (artístico). Tal reviravolta se dá no momento em que se torna de importância primordial uma visão esperançosa e fe- liz, universal, que contrastará radicalmente com as propostas sócio-políticas defendidas pela globalização do planeta a partir da unificação econômica das bolsas e dos mercados, ou que a acusam pela mesma linguagem, só que em sentido inverso.
  • 27. O começo do fim Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 27 O novo e complexo sujeito antropófago – semelhante ao que está sendo encenado nas fotografias de Mariko Mori, intitu- ladas Beginning of the end: Past, present and future (1995-2000) – 14 se caracteriza pelo dom da ubiqüidade, da simultaneidade e da transcendência. O novo sujeito está por todos os cantos do tempo e do espaço. É a memória do espaço fotografada pela perspecti- va da memória do tempo. O sujeito está ali e está alhures, num outro lugar onde os limites históricos e as fronteiras geográficas se apresentam desprotegidas do sentido de propriedade por um grupo ou por grupos hegemônicos. Como o Manifesto o tinha dito em 1928, trata-se de um mundo “sem Napoleão, sem César”. A nova certeza proposta por Mariko Mori e muitos outros ar- tistas contemporâneos furta a diferença para melhor apreender a sutura que as obras de arte operam pelo “totalitarismo” da alegria, para empregar o substantivo de Clément Rosset em seu ensaio La force majeure. Citemos Rosset: “há na alegria [joie] um mecanismo aprova- tivo que tende a ir além do objeto particular que a suscitou para afetar indiferentemente todo objeto e chegar a uma afirmação do caráter jubilante da existência em geral. Assim, a alegria aparece como uma espécie de cega desoneração de dívida, con- cedida a todos e a qualquer, como uma aprovação incondicional de toda forma de existência presente, passada ou futura”. Mário de Andrade afirmava de maneira paradoxal: “A própria dor é uma felicidade”. Passemos por cima do Nietzsche, autor de O crepúsculo dos ídolos, para chegar finalmente a Gilles Deleuze, seu leitor. Deste é a definição seguinte: “Trágico designa a for- ma estética da alegria [joie]; não se trata de fórmula medicinal, nem de solução moral da dor, do medo ou da piedade. O que é trágico é a alegria”. O retorno do que foi recalcado nesta apresentação – a muralha construída pela tradição hermenêutica – é apenas a afirmação em negativo do poder policial das fronteiras alfandegá- rias e da intolerância dos governantes e dos cidadãos em relação à circulação plena dos homens pelas nações do planeta, pelos seus múltiplos tempos e espaços. Mais: o retorno do recalcado representa as variadas formas de transgressão artística, afirma- das por considerações de ordem histórica, política e econômica, cujo fim é o de explicar, não a criação estética em si, mas as cir- cunstâncias negativas e diversas que a cercam, curto-circuitando sua liberdade de expressão. “Mas, meu senhor, olhe o mundo, e olhe seu par de calças”. Leiamos um aforismo do Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924). Ele nos fala da luta a favor dum caminho único que deve englobar a antiga e uma nova concepção de poesia: “Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação”. Apesar de comportar um tempo e um lugar predeterminados pelo adjetivo que a qualifica, 14 Os leitores que não conhecem o trabalho de Mariko Mori poderão ler com proveito esta curta passagem extraída da Encyclopédie Encarta (2006): “Mariko Mori fotografou vistas de 360º de onze cidades repre- sentantes do passado (Ankgor, Teotihuacán, La Paz, Gizah), do pre- sente (Times Square, em Nova York, Shibuya, em Tóquio, Piccadilly Circus, em Londres, Hong Kong) e do futuro (o bairro da Défense, em Paris, Xangai, Docklan- ds em Londres, Odaiba em Tóquio, Berlim). Ela própria está presente na foto, deitada, vestida de um traje futurista numa cápsula de plexiglas transparente. Mariko torna assim possível, através da mensagem sobre um mundo glo- balizado, as noções de simultaneidade, ubiqüi- dade e transcendência. Seu corpo torna-se um ‘instrumento de comu- nicação com o mundo’, seu trabalho, ‘um ato artístico destinado a distribuir a essência espiritual do mundo, a desviar os homens dos combates políticos, re- ligiosos ou ideológicos que provocam a devas- tação do planeta Terra, nossa única moradia’”.
  • 28. Gragoatá Silviano Santiago Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200828 a nova poesia, de que fala Oswald, luta por um caminho único, que é o da exportação. Seu aqui está alhures. Seu alhures está aqui. Nesse sentido, a repetição exaustiva da palavra “Roteiros” em um de seus aforismos se afirma de importância primordial para bem compreender os deslocamentos espácio-temporais do sujeito artístico que se quer antropófago e construtivista. Nas reflexões propriamente utópicas de Oswald de Andra- de, sempre está em jogo a condição do “bárbaro tecnicizado”. No corpus da Antropofagia, tudo exige uma pedagogia escatológica, de óbvio sentido universal, mas é o personagem do bárbaro tecnicizado que a reclama. Por falta de tempo para se deter nos detalhes, retomemos algumas idéias lançadas por Jean-François Lyotard em La condition post-moderne. As teses defendidas pelo filósofo doublé de pedagogo se articulam a partir dum grande eixo, ao redor do qual se desenha o questionamento do conceito de Bildung [formação], tal como nos foi transmitido pela tradição filosófica do século 19. À transmissão dum saber completo pelo professor ao aluno, cujo saber é por definição incompleto, à interiorização progres- siva do saber completo sob a batuta áspera do maestro, segue-se hoje – graças à informatização do conhecimento e a possibilidade de acesso por todos à Internet – que o saber humano se apresen- ta sob a forma dum estoque uniforme, completo e exterior ao homem. A memória de cada um e de todos é tão anfíbia quanto a boa memória involuntária e orgânica (Marcel Proust) e a má memória voluntária e inorgânica (Antropofagia). Como escreve Lyotard: “A Enciclopédia de amanhã são os bancos de dados. Eles excedem a capacidade de cada usuário. São ‘a natureza’ para o homem pós-moderno”. Continuemos a leitura de Lyotard: “À medida que o jogo está na informação incompleta, a vantagem cabe àquele que sabe e pode obter um suplemento de informação. Este é o caso, por definição, de um estudante em situação de aprendizado”. É o caso também − acrescentemos − do colono que se contenta com a condição de colonizado. A este faz sentido a retomada das idéias guerreiras desenvolvidas pela tradição hermenêuti- ca, de que falamos no começo desta apresentação. No jogo de invenção com informação completa para os parceiros, o melhor desempenho não pertence obrigatoriamente ao professor (ou ao colonizador), que detém a priori um suplemento, ou ao estudante (o colono), que pelo trabalho mimético busca para si a aquisição de tal suplemento. A invenção – continua Lyotard – “resulta de um novo arranjo dos dados que constituem propriamente um ‘lance’ [un coup]. Este novo arranjo obtém-se ordinariamente mediante a conexão de uma série de dados tidos até então como independentes. Pode-se chamar imaginação a capacidade de ar- ticular em conjunto o que assim não estava”.
  • 29. O começo do fim Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 29 Nos distantes anos 1920, a Antropofagia propunha uma nova pedagogia, onde estava presente a possibilidade para os artistas e os pensadores brasileiros de trabalhar “no jogo da informação completa”. Todos os parceiros – ex-colonos e ex- colonizadores − estariam em igualdade de competência na hora da produção do pensamento e da arte. O exorbitante não era um suplemento de mão única, mas a duas, a três mãos. O exorbitante é a imaginação antropófaga. Terminemos por esta passagem de Lyotard, que a sua maneira retoma a utopia esperançosa e feliz de Borges, de Valéry e de Beckett: “Ora, é permitido representar o mundo do saber pós-moderno como regido por um jogo de in- formação completa, no sentido de que os dados são em princípio accessíveis a todos os especialistas: não existe segredo científico. Em igualdade de competência na produção do saber, e não mais no processo de sua aquisição, o aumento de eficiência depende apenas e finalmente da ‘imaginação’ que permite seja dado um novo lance, sejam mudadas as regras do jogo”. Escrito em francês em junho de 2007 Traduzido em maio de 2008 Abstract The purpose of the “Beginning of the end” is to present a new and supplementary interpretation of the key concept of the Brazilian Modernist movement – Oswald de Andrade’s antropofagia. For eight decades the concept has been responsible for an extremely rich and accurate bibliography that underscores the belligerent aspects of the colonized cultures in regard to the colonizers. This interpretation, in spite of being correct from a social and political point of view, neglects the basic qualities of the work of art written in the margins of Western culture, in especial those related to the fact that it should arouse in the reader the need for a utopian thought, in which peace, hope and joy are the values. Keywords: Brazilian literature. Avant-garde. Modernist movement. Antropofagia. Utopian thought.
  • 30. Gragoatá Silviano Santiago Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200830 REFERÊNCIAS ANDRADE, Oswald de. Obras completas: ao pau-brasil à antro- pofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. v. VI. BECKETT, Samuel. Le monde et le pantalon. Paris: Minuit, 1990. BORGES, Jorge Luis. Obras completas. São Paulo: Globo, 1999. v. I. DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: Presses Uni- versitaires de France, 1970. HUYSSEN, Andreas. After the great divide. New York: Midland Book, 1986. LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: J. Olym- pio, 1986. ROSSET, Clément. A alegria: a força maior. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e Modernismo brasileiro. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1982.
  • 31. Gragoatá Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008 Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa Benjamin Abdala Junior Recebido 03 mar. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008 Resumo Notas sobre as histórias literárias dos países afri- canos de língua oficial portuguesa, construídas a partir da situação colonial. São relevados traços históricos comuns, que apontam para perspecti- vas neo-românticas quando essas literaturas se voltam para imaginar questões relativas a suas nacionalidades; processos de atualização da língua literária portuguesa, cuja plasticidade remonta nacionalmente aos tempos medievais; e as redes comunitárias que elas conformam com o conjunto das literaturas de língua portuguesa.. Palavras-chave: História literária. Países afri- canos. Língua portuguesa. Perspectivas. Neo- romantismo.
  • 32. Gragoatá Benjamin Abdala Junior Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 200832 O estudo dos processos de afirmação das literaturas afri- canas de língua portuguesa levam o crítico a relevar formas em que os escritores, desde a facção da obra, procuram obter sua legitimação, num campo intelectual definido por relações comunitárias. Autor, texto e leitor situam-se nesse horizonte lingüístico-cultural que se pauta pela tendência à supranaciona- lidade, que se tem mostrado tão importante quanto as adesões empáticas da nacionalidade. Nessa rede, o trabalho literário procurará sua legitimação não apenas em termos de criação, mas também nas esferas de circulação, por onde circulam os principais agentes de seu reconhecimento. Estabelecem-se, assim, a partir de cada obra, relações de solidariedade entre esses agentes. Para tanto, a inclinação para a inovação artística torna-se correlata ao desejo de se provocar impacto, encontrar ressonância enquanto poder simbólico. Impõe-se uma observação preliminar, não obstante essa tendência a uma normatização supranacional: as literaturas africanas de língua portuguesa apresentam especificidades na- cionais e só um olhar distraído nivela suas diferenças. Do ponto de vista metodológico, sua abordagem pode ser feita como em qualquer série cultural: registros em língua portuguesa, que se articulam supranacionalmente, como foi assinalado, seguin- do redes e fluxos da circulação da cultura. Do ponto de vista histórico, essas literaturas, cujos repertórios configuraram-se plasticamente na língua literária portuguesa, trazem marcas que vêm desde a formação de Portugal como estado nacional, mas articulam-se em redes com outros sistemas, em cada situação histórica. Evidentemente, esse reporte às origens das literaturas em português pode ser alongado, pois a experiência literária é obviamente mais ampla, acabando por se associar à própria origem da cultura. Um patrimônio de todos os povos, que não se reduz às apropriações e matizações politicamente associadas a formações nacionais. Liberalismo e projetos nacionais Historicamente, as literaturas africanas de língua portu- guesa são recentes e seguem – como aconteceu com o romantis- mo em escala mundial – os influxos da tomada de consciência nacional por parte da intelectualidade letrada. É por isso que certos vetores encontráveis no romantismo brasileiro podem ser associados às produções africanas, mesmo em produções de até meados do século XX. Os países colonizados por Portugal na África deparam-se com a necessidade de estatuir literaturas nacionais, no quadro da modernidade, tal como ocorreu com o Brasil no século XIX. Tivemos o romantismo propriamente dito e, depois, a Semana de Arte Moderna, como divisora de águas, que propiciou a literatura, dita “regional”, e a nossa poesia mo- dernista.
  • 33. Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008 33 No romantismo, a literatura brasileira veio a inventar mi- tos da nacionalidade, buscando a “cor local” para uma sintaxe que vinha da Europa. E tanto Portugal, como o Brasil, estavam sob o manto liberal e artístico da França. Pensávamos nossas formas de independência em francês, mediatizando-o por situ- ações locais, o que, por assim dizer, neutralizava o que pudesse ser explosivo na perspectiva hegemônica no campo intelectual liberal. Há faces diferentes: o liberalismo torna-se dominante, no Brasil, revestindo-se de inclinações para a afirmação nacio- nal; liberalismo em Portugal como estratégia de modernização, contra as formas passadiças associadas ao modo de pensar e sentir o país dos setores conservadores. A leitura desse processo histórico nos países africanos de língua portuguesa revela que um primeiro momento de fratura do imaginário do colonizador veio a ocorrer pela pre- sença político-cultural de uma burguesia crioula africana, nos últimos vinte anos do século XIX. Foi um período liberal, que pode ser associado à Regeneração portuguesa, e que favoreceu o início de uma intensa atividade jornalística nas então colônias. A imprensa desponta, desse modo, como a força responsável pelo surgimento dos primeiros redutos dos assim chamados “naturais da terra”, capazes de romper o silêncio imposto pela estrutura colonial. Seriam uma versão africana, correlata ao que havia acontecido com a elite dos crioulos brasileiros (mestiços descendentes de portugueses), que haviam conseguido a liber- tação da metrópole colonial. Muitos dos nomes mais significativos na história das idéias em Angola, por exemplo, estão ligados a esse período de fundação e consolidação da imprensa. No campo da literatura, destaca-se Alfredo Troni, autor da novela Nga Muturi (1882), que se correspondia com escritores portugueses da Geração de 70. Sua novela foi publicada em folhetins na Gazeta de Portugal, em Lisboa. Nessa narrativa, com ironia que lembra a literatura de Eça de Queirós, Troni já mostra a incorporação de costumes locais e domínio do quimbundo. Se o escritor nasceu e se formou advogado em Portugal, sua identificação maior se fez com a nova terra, ele que era republicano e socialista. Seu ideário – mais forte do que questões de origem – tinha suas bases na Revolução Francesa. Foi um processo de identificação, pois, sua adesão às reivindicações da burguesia crioulizada de Angola. Aspirou por formas políticas liberais e, mesmo, pela independência do país. Nos horizontes de seu grupo intelectual, estava o Brasil e sua literatura romântica, antiga colônia que havia conseguido se libertar da metrópole. Seu republicanismo e socialismo prou- dhoniano o levava mais longe. As identificações políticas das elites angolanas com o Brasil já eram anteriores. É de se recordar que, no tratado de reco- nhecimento da independência brasileira por parte de Portugal,
  • 34. Gragoatá Benjamin Abdala Junior Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 200834 feito sob mediação inglesa em 1825, o Brasil se comprometeu a não aceitar “proposições” de quaisquer colônias portuguesas de se reunirem a ele. Havia um movimento desencadeado em Angola, nesse sentido, associado a interesses escravocratas, o que contrariava os interesses ingleses, além evidentemente dos portugueses. Nas décadas finais do século XIX, as aspirações eram de outra natureza, de outros setores, os anti-escravocratas. Alfredo Troni foi autor de um regulamento que declarou defi- nitivamente extinta a escravidão em Angola. Acabou por ser destituído de seus cargos públicos e compulsoriamente exilado para Moçambique. Consciência regional e consciência nacional Traços neo-românticos, centrados na incorporação da atmosfera cultural da terra, ultrapassariam o século XIX como linhas de força que se projetam, no conjunto dos países afri- canos de língua portuguesa, até meados do século XX. Essa observação é geral e deve-se considerar também diferenças que matizam esse romantismo que embalou tanto o Brasil como Portugal. Há, entretanto, uma inclinação para o mapeamento sociocultural e mesmo da ambiência natural que permitem aproximações. Aos poucos, nas primeiras décadas do século XX até às vésperas da Segunda Guerra Mundial, afirmaram-se na África colonial portuguesa formas de consciência regional, que já embutiam aspirações nacionais. Nessa nova matização, as imagens românticas são comutadas, em especial, por uma apro- priação de repertórios do modernismo brasileiro. Este é o dado novo, tendo em vista que o gesto artístico de nossos escritores procurava afastar paradigmas e mesmo uma sintaxe identificada com dicções evocativas da situação colonial. A língua literária possuía um repertório proveniente de experiências comuns, mas que tinham sua especificidade nas apropriações, que eram uma forma de ação comunitária interna, culturalmente também híbrida. A literatura “traduz” em suas formas um conhecimento que vinha de outras áreas: história, filosofia, política, sociologia, antropologia, artes etc. No período do pós-Segunda Guerra e em torno da afirma- ção dos princípios de auto-determinação dos povos, proclamada pela carta das Nações Unidas, radicalizaram-se formas de identi- ficação nacional. Se Portugal era associado à Pátria (colonial) dos discursos oficiais, os africanos buscavam a afirmação da Mátria (a “Mamãe-África”), e, com essa perspectiva, os escritores afri- canos olharam com ênfase para as produções literárias do Mo- dernismo brasileiro (a Frátria – a antiga colônia que se libertou e construiu um discurso próprio). A fraternidade supranacional se traduz em formas de solidariedade, com simetrias entre gestos: no Brasil, em meados do século, rediscutia-se a nossa formação histórica, o que deu origem a obras clássicas de nossa cultura,
  • 35. Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008 35 de autoria de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior e Antonio Candido, por exemplo. Na literatura, os ecritores pro- curavam revelar facetas psicossociais de nossa gente. Sob o jugo colonial português, a ênfase sociológica e nacional dos escritores africanos encontrava sua radicalidade em formulações discur- sivas anticoloniais. Eram tempos de literatura engajada e esses intelectuais mostram-se com facetas especificamente literárias tão radicais como as políticas. O escritor e o cidadão, para eles, não poderiam deixar de caminhar juntos. A grande imagem (neo-romântica) que se firmou após a Revolução Cubana, foi a de Che Guevara: numa mão o livro; noutra, o fuzil. Um bom exemplo dessa problemática é Castro Soromenho. Viveu em período anterior, onde já se desenhavam atitudes que irão embalar as lutas de libertação nacional na África de língua oficial portuguesa, que eclodiram depois, nos anos 60. Soromenho situa-se no campo intelectual da intelectualidade de esquerda (a grande frente popular antifascista dos anos 30-40), para quem questões de independência nacional se imbricavam com perspectivas sociais. Esse autor, nascido em Moçambique (1910), filho de português e cabo-verdiana, foi com um ano de idade para Angola, onde viveu de 1911 a 1937. Fez estudos primá- rios e de liceu em Lisboa (1916-1925). Voltou a Portugal em 1937. Em face de perseguições políticas, teve de exilar-se, vivendo na França (1960-1965) e, depois, no Brasil (1965-1968), onde veio a falecer. Foi um dos fundadores do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo, dirigido por Fernando Mourão. O romance Terra morta teve sua primeira edição publicada no Brasil, em 1949, quando o autor residia em Portugal. Nem po- deria ser diferente, pois esse romance denuncia o colonialismo português. Por outro lado, laços de solidariedade eram compactuados com a intelectualidade metropolitana. Os sonhos libertários, advindos do término da Segunda Guerra Mundial e que então embalavam os intelectuais portugueses, eram frustrados pela atmosfera sufocante da guerra fria e pela persistência do regi- me ditatorial. No mesmo campo, as relações de solidariedade coexistem contrastivamente com as de desigualdade. Há hege- monias e as mais significativas são as que se naturalizam: os não-hegemônicos aceitam com naturalidade a dominação do outro. E, em Portugal, entre africanos e metropolitanos, havia di- ferenças, pois os primeiros não aceitavam a dominância histórica dos segundos. São tensões que afloraram no campo político, com ressonâncias na literatura. Questões ideológicas manifestam-se também em nível inconsciente e hábitos coloniais acabam por se manifestar para além da consciência ou intenções, inclusive dos atores do campo intelectual. Mesclagens culturais e olhares em contraste
  • 36. Gragoatá Benjamin Abdala Junior Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 200836 A literatura cabo-verdiana pode ser dividida em dois perío- dos: antes e depois da revista Claridade (1936-1960). Os escritores do arquipélago de Cabo Verde, ao procurarem voltar as costas para modelos temáticos europeus, fixaram seus olhos no chão crioulo, próprio da mesclagem étnica e cultural de seu país. A crioulidade deve ser entendida como uma mescla cultural não unívoca (mestiça), um conjunto híbrido onde pedaços de cultu- ras interagem entre si, ora se aproximando, ora se distanciando. Essa atitude dos intelectuais cabo-verdianos, de oposição aos padrões hegemônicos provenientes da metrópole, era correlata à obsessão de procura de origens – origens étnicas e culturais, que sensibilizavam a intelectualidade africana do continente. Interessante é indicar essa tomada de consciência regional. Um bom exemplo dessa trajetória é Osvaldo Alcântara (pseudônimo poético de Baltasar Lopes), que, a exemplo de parte da intelectualidade de seu país, sonha à Manuel Bandeira com uma pasárgada que existiria em outra margem do oceano. Se o poeta brasileiro imagina um reino com um rei bonachão que lhe permitiria todas as “libertinagens” (título da coletânea de Bandeira), Osvaldo Alcântara tem saudade de uma pasárgada futura que encontraria no “caminho de Viseu” ([...] indo eu, indo eu,/a caminho de Viseu). Osvaldo Alcântara estava com os pés em Cabo Verde, mas a cabeça inclina-se para fora, para o sonho da imigração: o “caminho de Viseu” da cantiga de roda portuguesa. Sua perspectiva é aquela que historicamente sempre se colocou para povos de migrantes como os cabo-verdianos, e ele não deixa de ter consciência de que esta saudade fina de Pasárgada/é um veneno gostoso dentro do meu coração. Mais tarde, já em plena luta de libertação nacional, Ovídio Martins - identificado com os pressupostos ideológicos da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa – já se coloca no pólo oposto. Não aceita o reino de Pasárgada, para sua geração uma forma de fuga. Em oposição ao que ocorrera no sonho de Bandei- ra, ele não só não era amigo do rei (Vou-me embora pra Pasárgada/ Lá sou amigo do rei) como foi perseguido por sua polícia (a polícia política de Salazar). Não conseguindo permanecer em Lisboa, foi obrigado a imigrar para a Holanda. Ovídio Martins, como Osvaldo Alcântara, sonha com o que não tinha: justamente sua terra, Cabo Verde. Se Osvaldo Alcântara olha para horizontes indefinidos do mar, Ovídio Martins adota a perspectiva inversa: procura arremessar-se ao chão (Pedirei/Suplicarei/Chorarei/Não vou para Pasárgada). Discursividades supranacionais Na prosa de ficção, a presença do romance nordestino brasileiro se mostra bastante forte em romances como Os flage- lados do vento leste (1960), de Manuel Lopes e Chiquinho (1947), de Baltasar Lopes, em diálogo, respectivamente, entre outros,
  • 37. Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008 37 com Graciliano Ramos (Vidas secas) e José Lins do Rego (Menino de engenho). Importa indicar que a tomada de consciência dos cabo-verdianos de sua terra teve como um de seus agentes o crítico literário José Osório de Oliveira, que apontou para os cabo-verdianos a necessidade de situarem suas produções na ambiência física e cultural de sua terra (para ele, uma região de Portugal). Outro desses atores foi o poeta-diplomata brasileiro Ribeiro Couto, que fez chegar ao arquipélago os poetas mo- dernistas brasileiros. No fundo, considerava-se idealmente, em Cabo Verde, uma espécie de literatura em língua portuguesa, como um todo, com matizações onde o regional e o nacional pouco diferiam. Logo, uma aspiração comunitária para além de diferenciações, que, não obstante, seriam necessárias por darem veracidade às produções culturais, que deveriam estar fincadas na terra. A perspectiva crítica de José Osório de Oliveira, que caminhava nessa direção, tinha seus limites. Embalado pelos estudos de Gilberto Freyre tendia a exaltar a convivência harmô- nica, do ponto de vista étnico, social e nacional, no “mundo que o português criou” – perspectiva que foi criticada nas décadas seguintes pela intelectualidade africana, do arquipélago e do continente. Os fios supranacionais da Claridade tiveram origem no movimento socialista francês da “Clarté”, inaugurado por Henri Barbeuf, nos primeiros anos da década de 1920. Articula-se o grupo da revista em Portugal, em especial, ao movimento da Presença. Mais tarde, os fluxos da revista – que se afasta da Presença - projetam-se, por exemplo, em Manuel Ferreira, neo- realista português identificado com a cabo-verdianidade, cuja obra ensaística consolidou o estudo das literaturas africanas de língua portuguesa, apropriou-se dessa temática da evasão/anti- evasão. O título de seu romance Hora di bai (1962) é referência a uma conhecida morna de Eugênio Tavares. Escritas em crioulo, a cadência dessas composições vai dar ritmo e repertório para os poemas em português e também será referência para os fic- cionistas originários da Claridade. Voz de prisão (1971), o principal romance de Manuel Ferreira, situa-se em Lisboa, e problematiza a questão da oralidade (o então denominado dialeto crioulo, hoje língua cabo-verdiana) e o português-padrão. Orlanda Amarílis, cabo-verdiana vivendo na diáspora lisboeta, problematizará essa condição de migrante, revestindo-se suas produções literárias de grande sentido de atualidade, nestes tempos de deslocamentos da globalização (Cais-do-Sodré te Salamansa, 1974). O sentimento de nação, para além dos espartilhos de estado. No período do após-guerra, ao mesmo tempo em que se desenvolviam formas de organização político-culturais em cada um dos países africanos, como o movimento dos “Novos Intelectuais de Angola”, constituiu-se em Portugal um impor- tante núcleo organizativo: a Casa dos Estudantes do Império.