Análise de "Vermelho amargo", de Bartolomeu Campos de Queirós
1. EM
NOME
DA
MÃE;
a
narrativa
memorialista
em
Vermelho
amargo,
de
Bartolomeu
Campos
de
Queirós
por
Manoel
Neves
INTRODUÇÃO
Publicado
em
2011,
Vermelho
amargo
é
uma
novela
declaradamente
autobiográfica,
em
que
o
premiado
escritor
mineiro
fala
sobre
sua
infância.
Sabidamente,
a
novela
é
uma
narrativa
longa
que
apresenta
apenas
um
eixo
de
ação.
A
obra
articula-‐se
por
intermédio
de
um
eixo
narrativo
desenvolvido
em
detalhes
[o
discurso
elegíaco
do
narrador-‐protagonista
em
homenagem
à
Mãe
morta]
e
pode
ser
considerada
uma
narrativa
relativamente
longa,
pois
apresenta
aproximadamente
60
páginas.
Merecem
destaque
o
projeto
gráfico,
cujo
objetivo
é
dialogar
com
o
tema
central
do
livro,
a
grande
elaboração
linguística
–
prosa
que
resvala
para
a
poesia
–,
o
gosto
pela
metáfora,
a
aproximação
da
literatura
fantástica
[infantil],
a
reflexão
metalinguística
e
a
profunda
melancolia
do
narrador-‐protagonista.
A
capa,
a
extremidade
das
folhas,
bem
como
a
cor
da
fonte
em
que
se
imprimiu
o
livro
[em
tons
de
vermelho]
dialogam
com
o
título
e
com
a
metáfora
[dos
tomates]
em
torno
da
qual
gira
a
obra
de
Queirós.
A
crítica
literária
especializada
aponta
como
relevantes,
na
obra,
os
temas
da
memória,
da
infância
e
das
relações
familiares.
A
eles,
acrescento
a
reflexão
metafísica
acerca
do
homem,
do
tempo
e
da
perda/morte
[talvez
o
grande
tema
do
livro].
O
livro
não
é
dividido
em
capítulos,
mas
sim
em
parágrafos
–
blocos
de
prosa
poética,
que
podem
ser
lidos
de
forma
independente
como
se
fossem
poemas.
O
ENREDO
No
pórtico
do
livro,
três
imagens
se
apresentam
ao
leitor
–
a
da
Mãe,
a
da
dor
e
a
da
perda.
Tais
elementos
irão
mover
o
discurso
elegíaco
do
narrador.
A
Mãe
morre
em
uma
manhã
fria
de
maio.
A
solidão
do
pai
traz
para
casa
a
madrasta,
cuja
figura
irá
se
contrapor
à
da
mãe
ao
longo
da
narrativa.
Além
do
narrador-‐protagonista,
do
pai
e
da
madrasta,
há
mais
cinco
irmãos.
O
grande
volume
de
lirismo
presente
da
narrativa
acaba
tornando-‐a
um
pouco
truncada:
o
exercício
poético
acaba
por
se
sobrepor
à
narração.
Desse
modo,
os
fatos
serão
referidos
indireta
e
sutilmente
–
é
assim,
por
exemplo,
que
ficamos
sabendo
da
partida
dos
irmãos
e
da
ida
do
protagonista
para
a
escola.
1
2. A
narrativa,
assim
como
a
memória,
é
excessivamente
fragmentária.
O
que
dela
emerge
são
pequenos
fulgores
que
resvalam
mais
para
a
poesia
do
que
para
a
prosa
propriamente
dita.
Sabemos,
por
exemplo,
que,
no
tempo
do
enunciado,
o
narrador
tem
menos
de
sete
anos;
que
o
pai
é
meio
rude
e
toma
bebida
alcoólica;
que
a
Mãe
era
lírica
e
doce,
enquanto
a
madrasta
é
prática
e
econômica;
que,
progressivamente,
os
filhos
abandonam
a
casa,
por
motivos
diversos,
até
ficar
apenas
o
pai
e
a
madrasta.
O
VERMELHO
E
O
AMARGO
A
imagem
do
tomate
sendo
fatiado
pela
madrasta
é
o
mote
do
livro.
Na
verdade,
o
modo
de
cortar
o
tomate
permite
contrapor
a
mãe
à
madrasta.
A
madrasta
é
apresentada
como
a
bruxa
que
despeja
todo
seu
veneno
em
gestos
parcimoniosos,
econômicos.
Oito.
A
madrasta
retalhava
um
tomate
em
fatias,
assim
finas
capaz
de
envenenar
a
todos.
Era
possível
entrever
o
arroz
branco
do
outro
lado
do
tomate,
tamanha
a
sua
transparência.
Com
a
saudade
evaporando
pelos
olhos,
eu
insistia
em
justificar
a
economia
que
administrava
seus
gestos.
Afiando
a
faca
no
cimento
frio
da
pia,
ela
cortava
o
tomate
vermelho,
sanguíneo,
maduro
como
se
degolasse
um
de
nós.
Seis.1
A
Mãe,
por
sua
vez,
é
apresentada
com
gestos
delicados,
amorosos,
poéticos,
num
discurso
claramente
amoroso:
Engolia
o
tomate
imaginando
ser
ambrosia
ou
claras
em
neve,
batidas
com
açúcar
e
nadando
num
de
leite,
como
praticava
minha
mãe
(Ilha
flutuante)
com
as
mãos
do
amor.2
O
título
do
livro
ancora-‐se
na
imagem
do
tomate
e
no
modo
como
as
figuras
femininas
manipulam-‐no.
Novamente,
é
bastante
evidente
a
estrutura
antitética
da
obra.
Enquanto
o
gesto
da
mãe
é
associado
ao
lirismo
e
ao
amor,
as
ações
da
madrasta
são
pautadas
pelo
senso
de
real
e
de
economia.
Vejam-‐se,
a
propósito,
os
fragmentos
a
seguir.
Antes,
minha
mãe,
com
muito
afago,
fatiava
o
tomate
em
cruz,
adivinhando
os
gomos
que
os
olhos
não
desvendavam,
mas
a
imaginação
alcançava.
Isso,
depois
de
banhá-‐los
em
água
pura
e
enxugá-‐los
em
pano
de
prato
alvejado,
puxando
se
brilho
para
o
lado
do
sol.
Cortados
em
cruzes
eles
se
transfiguravam
em
pequenas
1
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Vermelho amargo. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 09.
2
QUEIRÓS, 10.
2
3. embarcações
ancoradas
na
baía
da
travessa.3
Ela
decapitava
um
tomate
para
cada
refeição.
Isso
depois
de
tomar
do
martelo
e
espancar,
com
a
força
de
seus
músculos,
os
bifes.
Batia
forte
tornando
possível
escutar
o
ruído
na
rua.
O
martelar
violento
avisava
aos
vizinhos
que
comeríamos
carne
no
almoço.
Eu
padecia
pelo
medo
do
martelo
e
a
violência
da
mulher
ao
açoitar
a
carne.4
No
título
do
livro,
percebe-‐se
que
o
vermelho
[amargo]
aparece
associado
ao
sofrimento,
à
melancolia,
à
separação
e
à
perda:
É
da
índole
do
tomate
manifestar-‐se
apenas
em
cor
e
cólera.5
É
impossível
dissociar
a
imagem
do
tomate
sendo
fatiado
da
imagem
da
madrasta.
A
ela
se
sobrepõem
a
falta
de
amor,
a
incomunicabilidade,
a
solidão
e
a
austeridade
da
família
Apesar
da
conotação
positiva
normalmente
relacionada
ao
vermelho
[amor,
paixão],
tais
sentimentos
estão
ausentes
da
grande
metáfora
em
torno
da
qual
se
articula
a
narrativa
do
último
livro
de
Queirós.
Na
novela,
o
vermelho
aparece
associado
aos
sentimentos
negativos,
como
raiva,
ódio,
separação
e
dor.
A
cor
vermelha
acopla-‐se,
pois,
à
imagem
do
tomate
e
da
madrasta
–
três
símbolos
da
dor,
do
abandono,
do
desamor
e
do
desamparo
vivido
pelo
protagonista.
Desde
sempre
imaginei
a
raiva
vestida
de
vermelho,
empunhando
uma
faca.6
O
EU
NARRADOR
A
narrativa
de
Bartolomeu
Campos
de
Queirós
se
aproxima
muito
da
de
Angústia,
de
Graciliano
Ramos,
texto
em
que
um
menino
cresce
sem
o
amor
dos
pais
e
articula
suas
memórias
por
intermédio
de
um
discurso
altamente
dolorido
e
melancólico.
Menino
miúdo,
menor
que
a
vida,
debilitado
pelo
amor,
eu
repetia
que
a
dor
do
parto
é
também
de
quem
nasce.
Doía.
Doía
na
pele
inteira,
e
profundamente.
Minha
toda
fragilidade,
suportava
toneladas
de
desassossegos.
Impossível
deitar-‐me
em
meu
próprio
colo
e
acalentar-‐
me.
Não
suportaria
o
peso
de
minha
carga.7
No
enunciado,
o
narrador
encontra-‐se
com
menos
de
sete
anos.
Sofre
muito
com
a
3
Idem, Ibidem. 14-15.
4
Idem, 23.
5
Idem, 25.
6
Idem, 27.
7
Idem, 29.
3
4. perda
do
amor
da
mãe
e
constrói
sua
narrativa
como
uma
tentativa
de
compreender
o
estar-‐no-‐mundo.
Seu
relato
é
pontuado
por
profunda
melancolia,
pela
morte
[da
Mãe]
e
pela
separação.
Por
isso,
pode
ser
considerado
elegíaco:
A
mãe
partiu
cedo
–
manhã
seca
e
fria
de
maio
–
sem
levar
o
amor
que
diziam
eu
ter
por
ela.
Daí,
veio
me
sobrar
amor
e
sem
ter
a
quem
amar.8
Depreende-‐se,
de
seu
relato,
que
o
narrador
é
tímido,
centrado
e
introspectivo,
na
medida
em
que,
num
primeiro
momento,
parece
se
relacionar
mais
com
um
dos
irmãos
e,
depois
que
ele
parte,
substitui
a
amizade
dele
pela
de
um
agregado
que
gosta
de
passarinhos
–
única
personagem
referida
com
um
nome
próprio,
Pintassilgo.
É
pela
percepção
sensível
e
subjetiva
do
narrador
que
nos
chegam
os
detalhes
do
mundo:
a
ida
ao
circo
com
a
mãe;
a
música
desafinada
da
violoncelista
que
foi
abandonada
pelo
marido;
o
tempo
marcado
pelas
festas,
pelos
feriados
e
pelas
férias;
o
gosto
da
mãe
pela
música
e
o
modo
como
a
leitura
transfigura
positivamente
a
Mãe.
O
único
contato
do
narrador
com
o
amor
se
deu
por
intermédio
da
Mãe.
A
falta
dela
é
um
dos
leitmotiv
da
narrativa:
Sem
o
colo
da
mãe
eu
me
fartava
em
falta
de
amor.9
O
pai
é
uma
figura
ausente,
austera,
associada
ao
trabalho,
ao
desprazer
e
ao
álcool.
Se
a
Mãe
pode
ser
comparada
a
uma
fada-‐madrinha,
a
madrasta
é
a
bruxa.
Seu
forte
senso
de
real
manifesto
na
precisão
com
que
corta
as
fatias,
no
cuidado
com
a
casa
e
com
o
pai
é
desdenhado
pelo
narrador.
Isso
ocorre
porque
ela
tenta
ocupar
o
lugar
da
Mãe
–
da
Mãe
que
era
perfeita,
que,
quando
sentia
dor,
cantava,
trazendo
beleza
para
a
casa,
para
os
meninos,
para
os
vizinhos.
BIOGRAFEMAS
Ficamos
conhecendo
as
personagens
pela
ótica
estrábica
do
narrador
–
que
só
tem
olhos
para
a
Mãe.
Sabemos
que
as
personagens
são
oito:
pai,
madrasta,
mais
seis
irmãos.
Com
exceção
da
Mãe,
do
narrador
e
da
madrasta,
pode-‐se
afirmar
que
as
demais
personagens
são
vultos
que
aparecem
muito
sutilmente
na
narrativa.
Apropriando-‐me
de
um
conceito
apresentado
por
Roland
Barthes
em
Câmara
clara,10
diria
que
a
apresentação
muito
sutil
de
dados
a
respeito
das
personagens
se
aproxima
do
conceito
de
“biografema”:
são
pequenos
fragmentos
tocantes,
irrisórios,
antibiográficos
das
personagens.
8
Idem, 11.
9
Idem, 10.
10
BARTHES, Roland. Câmara clara; notas sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Record, 1990.
4
5. O
Pai,
motorista
de
caminhão
é
um
homem
com
forte
senso
de
real.
Quando
não
está
na
estrada,
exige,
em
casa,
seriedade
dos
filhos.
Dele,
o
que
resta
é
o
cheiro
–
de
álcool
e
de
loção
pós-‐barba.
Meu
pai
destemia
o
corpo.
Seus
olhos
nos
confirmavam
isso.
Ele
derramava
um
olhar
bêbado
sobre
nossa
alegria.
Tudo
vencia
como
os
ponteiros
do
relógio
assaltam
o
tempo,
continuamente.
Media
tudo,
minuto
a
minuto
e
segundo
a
si
mesmo.
Cheguei
a
desejar
meu
pai
um
relojoeiro,
interrompendo
as
horas
de
todos
os
relógios.
Quem
sabe,
uma
dia,
cheio
de
medo
do
sempre,
ele
nos
outorgaria
viver
sem
culpa
por
sermos
felizes?
Meu
pensamento
desdobrava
a
lona
cinza
do
caminhão
–
sempre
encostada
num
canto
da
sala
–
e
cobria
meu
pai
por
inteiro.11
A
Mãe
é
apresentada
por
um
filtro
especial
(é
a
personificação
do
Amor
–
perfeição,
encantamento,
enlevo):
beija
os
machucados
dos
filhos
para
que
sarem
rápido,
usa
o
regador
como
se
benzesse
as
plantas,
canta
para
aliviar
a
dor,
corta
generosamente
os
tomates
em
cruz.
Apesar
de
ela
já
estar
morta
na
enunciação,
sua
figura
(onipresente)
encerra
a
ideia
de
bem-‐querer
e
de
aconchego
de
que
sente
falta
o
protagonista.
A
mãe
morta
ressuscitava
das
louças,
das
flores,
dos
armários,
das
cadeiras,
das
panelas,
das
manchas
dos
retratos
retirados
das
paredes,
das
gargantas
das
galinhas.
E
ressurgia
encarnada
em
nós,
sua
prolongada
herança.
Impossível
para
a
madrasta
assassinar
o
fantasma,
que
inaugurava
o
ciúme,
sem
passar
por
nós,
engolidores
do
seu
ódio.12
A
Madrasta
é
a
bruxa.
A
mulher
incapaz
de
amar
os
filhos
da
Outra.
Tanto
o
narrador
quanto
as
outras
crianças
parecem
sentir
muito
a
falta
da
Mãe.
Sem
a
mãe,
a
casa
veio
a
ser
um
lugar
provisório.
Uma
estação
com
indecifrável
plataforma,
onde
espreitávamos
um
cargueiro
para
ignorado
destino.
Não
se
desata
com
delicadeza
o
nó
que
nos
amarra
à
mãe.
Impossível
adivinhar,
ao
certo,
a
direção
do
nosso
bilhete
de
partida.
Sem
poder
recuar,
os
trilhos
corriam
exatos
diante
de
nossos
corações
imprecisos.
Os
cômodos
sombrios
da
casa
–
antes
bem-‐
aventurança
primavera
–
abrigavam
passageiros
sem
linha
do
horizonte.
Se
for
a
o
lugar
da
mãe,
hoje
ventilava
obstinado
exílio.13
11
QUEIRÓS, 34.
12
Idem, ibidem, 15-16.
13
Idem, 09.
5
6. O
narrador
constrói
um
discurso
elegíaco
em
homenagem
à
Mãe
morta.
À
sua
maneira,
as
outras
crianças
demonstram
a
falta
que
ela
faz:
A
mãe
nos
contava
sobre
nossos
bens:
uma
casa
com
um
quintal,
uma
horta
sob
mangueira,
um
pé
de
jabuticabas
–
que
nos
espiava
com
muitos
olhos
pretos.
No
mais,
um
regador
para
dar
de
beber
às
plantas.
Nas
tardes,
quando
o
tempo
se
faz
humano
por
parecer
duvidar,
minha
mãe,
sustentando
o
regador
pela
asa,
benzia
as
flores.
Exalava
um
perfume
de
terra
molhada
e
a
alma
se
fazia
definitivamente
telúrica.
Viver
tinha
sabor
de
chão
encharcado.
Mas
isso
não
leva
importância.14
Os
irmãos
do
narrador
são
apresentados
por
intermédio
de
traços
metonímicos:
um
come
vidro;
outra
mia
em
lugar
do
gato
mudo;
outra
borda;
a
mais
nova
não
conheceu
a
Mãe.
Os
traços
que
os
unem
são
a
ausência
do
amor
da
Mãe
e
o
austero
distanciamento
do
Pai.
A
consequência
disso
é
o
esfacelamento
da
família:
os
seis
irmãos
partem.
Ao
fim,
apenas
o
Pai
e
a
Madrasta
ficam
na
casa.
Entreveem-‐se
outros
perfis
que
se
insinuam
nas
memórias
do
narrador:
a
vizinha
da
rua
Direita
que
envolvia
o
violoncelo
com
as
pernas,
o
vigário
da
cidade,
a
mulher
da
sombrinha
vermelha,
o
homem
do
guarda-‐chuva
preto
e
a
mulher
com
duas
almas.
MEMÓRIA
E
HISTÓRIA
O
tempo
que
se
destaca
na
narrativa
é
o
da
memória.
Segundo
Márcio
Ferri,
Mesmo
que
já
venham
"ficcionalizadas"
pela
passagem
do
tempo,
as
lembranças
dos
primeiros
anos
de
vida
trazem
uma
espécie
de
certificado
de
autenticidade
impresso
nos
sentidos:
sabores,
cheiros,
temperaturas,
cores,
dores
físicas.15
Em
entrevista
ao
“Projeto
memórias
da
literatura
infantil
e
juvenil”, 16
Bartolomeu
Campos
de
Queirós
fala
caráter
autobiográfico
de
Vermelho
amargo.
Segundo
o
autor,
algumas
eventos
[como
a
prematura
morte
da
Mãe,
o
câncer,
e
o
canto
da
Mãe
para
aplacar
a
dor]
narrados
são
reconstruções
de
fatos
vivenciados
na
infância.
Para
a
professora
Eliane
Fonseca,
a
recuperação
da
infância
promovida
pela
literatura
14
Idem, 31-32.
15
FERRARI, Márcio. Memórias sensoriais da infância. Disponível em: http://editora.cocacnaify.com. Acesso em: 11/11/2012.
16
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Projeto memorias da literatura infantil. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=1-
z-8O31_qc. Acesso em: 11/11/2012.
6
7. apresenta
um
caráter
paradoxal,
na
medida
em
que
“a
criança
que
o
adulto
imagina
reflete
o
drama
de
um
sujeito
que
se
vê
dividido
entre
o
tempo
perdido,
com
suas
memórias,
e
o
tempo
presente,
de
difícil
história”.17
Sabidamente,
é
impossível
apreender
o
Real
tal
qual
ele
é.
Posto
isso,
toda
escrita
memorialística
terá
um
pouco
de
ficção,
na
medida
em
que,
impossibilitado
de
transpor
para
o
papel
o
Real
do
jeito
que
ele
foi,
o
máximo
que
se
pode
fazer,
é
escrever
aquilo
de
que
se
recorda
e
preencher
as
lacunas
com
a
imaginação.
É
preciso
muito
bem
esquecer
para
experimentar
a
alegria
de
novamente
lembrar-‐se.18
Paradoxalmente,
entretanto,
se
se
considerar
que
só
se
escreve
a
partir
do
sonhado
ou
do
vivido
pelo
autor,
pode-‐se
afirmar,
também,
que
o
texto
ficcional
nasce
de
experiências
do
autor.
Sendo
assim,
é
possível
afirmar
que
o
texto
de
Queirós
apresenta
traços
biográficos
–
evidenciados
nas
coincidências
entre
o
que
viveu
o
autor
e
o
que
narra
o
protagonista.
Tantos
pedaços
de
nós
dormem
num
canto
da
memória,
que
a
memória
chega
a
esquecer-‐se
deles.
E
a
palavra
–
basta
uma
só
palavra
–
é
flecha
para
sangrar
o
abstrato
morto.
Há,
contudo,
dores
que
a
palavra
não
esgota
ao
dizê-‐las.19
Não
há
cronologia
nos
eventos
apresentados.
Ficamos
sabendo,
por
exemplo,
na
página
09,
da
morte
da
Mãe.
Há,
entretanto,
referências
ao
estilo
de
vida
dela
em
inúmeros
momentos,
como,
por
exemplo,
no
momento
em
que
locutor
fala
sobre
como
ela
dividia
os
tomates,
ou
em
como
cantava,
para
aliviar
a
dor,
ou
mesmo,
como
beijava
os
machucados
dos
meninos,
como
“benzia”
as
plantas.
Apesar
da
ausência
de
cronologia,
é
possível
ver
que
os
numerais
apresentados
em
ordem
decrescente
[de
oito
a
dois]
indicam
a
partida
dos
filhos
–
até
só
restarem
pai
e
mãe
[madrasta]
em
casa.
ESPAÇO:
UM
LUGAR
FORA
DO
LUGAR
A
cidade
sustentava-‐se
por
seus
ares
de
domingo.
Aparentemente
lerda,
se
alicerçava
sobre
secretos
sussurros.
As
casas
dormiam
no
colo
de
um
mentiroso
silêncio.
Havia,
contudo,
as
frestas
das
janelas
por
onde
se
perscrutava
o
vizinho.
Atrás
das
portas
se
escutavam
assombros
que
se
supunham
segredos.
E
todas
as
vidas
se
viam
17
FONSECA, Eliane. Análise de “Vermelho amargo”. S.n.t.
18
QUEIRÓS, 2011. p.16.
19
Idem, 16-17.
7
8. apregoadas
em
tom
de
confidências.
As
intimidades
eram
sopradas
de
ouvido
em
ouvido
e
alteradas
de
boca
em
boca.
Mentiras
sobre
mentiras.
O
orvalho,
ao
cair
manso,
não
refrescava
as
invejas.
Uma
cidade
afetuosamente
cruel.20
O
lugar
onde
a
narrativa
se
passa,
apesar
de
não
nomeado,
é
claramente
um
vilarejo
do
interior.
Isso
pode
ser
comprovado
pela
referencia
à
lerdeza,
aos
sussurros,
ao
silêncio.
Tais
traços
assemelham-‐se,
em
muito,
à
imagem
que
Drummond
constrói
do
interior
de
Minas
Gerais
em
“Cidadezinha
qualquer”:
Casas
entre
bananeiras
mulheres
entre
laranjeiras
pomar
amor
cantar.
Um
homem
vai
devagar.
Um
cachorro
vai
devagar.
Um
burro
vai
devagar.
Devagar...
As
janelas
olham.
Eta
vida
besta,
meu
Deus.21
MATRIZES
INTERTEXTUAIS
Na
epígrafe
–
Foi
preciso
deitar
o
vermelho
sobre
o
papel
branco
para
bem
aliviar
seu
amargor
–,
duas
temáticas
se
anunciam:
a
da
literatura
enquanto
possibilidade
de,
nas
palavras
de
Aristóteles,
purgar
as
paixões,
externar
as
sensações
(notadamente
aquelas
que
incomodam)
–
a
dita
função
catártica
–;
e
a
antecipação
do
tema
de
que
se
vai
falar:
o
dolorido,
o
trágico,
o
doído
existir
longe
do
objeto
amoroso.
O
trabalho
com
a
linguagem
[manifesto
na
cuidada
prosa
poética
urdida
ao
longo
das
mais
de
sessenta
páginas
da
novela],
a
densidade
narrativa
[perceptível
na
construção
da
angustiada
psique
do
menino-‐narrador-‐protagonista]
e
o
tom
elegíaco
são
indícios
de
que
o
autor,
nesta
obra,
afastou-‐se
da
literatura
infanto-‐juvenil.
Apesar
de
tais
aparatos
literários
serem
menos
comuns
na
literatura
juvenil,
percebe-‐
se,
no
projeto
gráfico
e
no
desenho
do
conflito
central
de
Vermelho
amargo,
um
diálogo
com
os
textos
produzidos
para
crianças
e
jovens.
Conforme
sugestão
de
Luiz
Guilherme
Barbosa,
em
“O
tomate
da
discórdia”,22
o
projeto
20
Idem, 15.
21
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. Rio de Janeiro: Record, 2002. p.71.
22
BARBOSA, Luiz Guilherme. O tomate da discórdia. In.: Rascunho; o jornal de literatura no Brasil. Disponível em:
http://rascunho.gazetadopovo.com.br. Acesso em 11/11/2012.
8
9. gráfico
permite
aproximar
a
obra
da
literatura
infanto-‐juvenil:
a
capa
e
a
cor
da
fonte
–
em
tons
avermelhados
intensos
–
dialogam
com
o
leitmotiv
da
obra
[o
tomate
–
vermelho
amargo
a
que
se
refere
o
autor].
Nas
palavras
do
referido
estudioso,
a
proximidade
da
novela
de
Bartolomeu
Campos
de
Queirós
dos
contos
de
fadas
revela-‐se
no
tema
da
criança
que
perde
a
mãe
e
vai
ser
criada
pela
madrasta.
Para
além
disso,
é
possível
afirmar
que
o
maniqueísmo
que
perpassa
a
oposição
Mãe/madrasta,
a
falta
de
referentes
espaço-‐temporais
e
a
ausência
do
nome
das
personagens
situam
a
narrativa
em
um
atopos,
em
um
lugar
fora
do
lugar,
illo
tempore,
típico
dos
contos
de
fadas
e
da
literatura
infantil.
LINGUAGEM
A
escrita
de
Vermelho
amargo
apresenta
alto
de
grau
de
elaboração,
manifesta,
principalmente,
no
grande
volume
de
figuras
de
linguagem
e
no
lirismo
que
parece
contaminar
a
narrativa
do
início
ao
fim.
O
envolvimento
emocional
que
transborda
no
texto
é
uma
tentativa
do
narrador
de
aprisionar
vivências
dilacerantes
e
inaugurais:
a
[dolorida]
experiência
amorosa
da
infância,
a
aprendizagem
do
mundo
e
a
perda
da
Mãe.
Do
amor,
fala-‐se
o
tempo
todo;
da
aprendizagem,
também.
Mas
é
a
dor
que
comparece
na
primeira
página.
Dói.
Dói
muito.
Dói
pelo
corpo
inteiro.
Principia
nas
unhas,
passa
pelos
cabelos,
contagia
os
ossos,
penaliza
a
memória
e
se
estende
pela
altura
da
pele.
Nada
fica
sem
dor.
Também
os
olhos,
que
só
armazenam
as
imagens
do
que
já
fora,
doem.
A
dor
vem
de
afastadas
distâncias,
sepultados
tempos,
inconvenientes
lugares,
inseguros
futuros.
Não
se
chora
pelo
amanhã.
Só
se
salga
a
carne
morta.23
A
sequência
anafórica
prepara
o
leitor
para
um
discurso
sobre
a
perda.
O
parágrafo
inteiro
acena
para
o
fato
de
que
a
memória
será
um
dos
grandes
motivos
da
narrativa
[imagens
do
que
já
fora,
afastadas
distâncias,
sepultados
tempos].
Na
última
frase,
por
intermédio
de
um
aforismo,
o
locutor
reitera
que
é
sobre
o
tempo
perdido
que
se
vai
falar.
No
fecho
do
livro,
o
narrador,
ao
falar
sobre
sua
saída
de
casa
[e
da
narrativa],
reforça
seu
compromisso
com
o
discurso
amoroso.
Não
disse
adeus.
O
amor
peregrinou
em
meu
corpo
vida
adentro.
Se
23
QUEIRÓS, 2011, 07-08.
9
10. tudo
era
nada,
a
lembrança
acordava
mais.
O
amor
se
fez
sempre
o
rosto
do
meu
depois.
A
saudade,
ao
me
afrontar,
mais
eu
desfazia
dos
amanhãs.
E,
se
a
carne
reclamava,
eu
salgava
sua
dor
com
os
olhos
da
memória.
Sua
ausência
ocupou
os
labirintos
por
onde
eu
me
procurava
e
me
pedia
em
meus
próprios
traços.
Mesmo
em
vão,
jamais
interditei
os
prenúncios
do
meu
amor.24
Apesar
de
amor
reluzir
em
todos
os
“cantos”
da
narrativa,
é
principalmente
da
morte,
da
perda,
da
separação
de
que
se
fala.
Isso
fica
claro
quando
se
lembra
que
é
a
Mãe
morta
que
comanda
o
discurso
do
narrador
e
quando
se
considera
que
um
a
um
os
filhos
saem
de
casa
sem
uma
despedida,
uma
palavra
de
afeto.
Falei,
algumas
vezes,
em
discurso
elegíaco.
Quando
uso
esse
termo,
faço-‐o
pensando
em
como
Vermelho
amargo
se
aproxima
de
Solombra,
de
Cecília
Meireles,
e
de
Farewell,
de
Carlos
Drummond
de
Andrade.
Tal
qual
as
duas
obras
referidas
acima,
a
novela
de
Queirós
pode
ser
lida
como
um
livro
de
despedida
–
uma
reflexão
não
só
sobre
a
infância
de
um
menino
melancólico
do
interior
de
Minas
Gerais,
mas
também
uma
mirada
dolorida
acerca
da
passagem
do
tempo
e
da
consciência
de
que
viver
é
perder/morrer.
Prova
disso
é
que
os
aforismos
que
pontuam
a
narrativa
insinuam
uma
visão
de
mundo
triste,
corrosiva,
pessimista:
“Preencher
um
dia
é
demasiadamente
penoso,
se
não
me
ocupo
das
mentiras”.25
“Não
se
chora
pelo
amanhã.
Só
se
salga
a
carne
morta.”26
“Há
que
experimentar
o
prazer
para,
só
depois,
bem
suportar
a
dor”.27
“A
dor
do
parto
é
também
de
quem
nasce”.28
“Nascer
é
afastar-‐se
–
em
lágrimas
do
paraíso,
é
condenar-‐se
à
liberdade”.29
“Quanto
mais
amor,
mais
a
morte
se
anuncia”.30
24
Idem ibidem, 65.
25
Idem, 07.
26
Idem, 08.
27
Idem, 08.
28
Idem, 08.
29
Idem, 08.
30
Idem, 25.
10
11. “Mentir
a
si
mesmo
é
uma
fórmula
para
aliviar-‐se”.31
“a
dor
do
parto
é
também
de
quem
nasce”.32
“Suspeitar
é
negar-‐se
à
certeza”.33
Nesta
outra
sequência
anafórica,
percebe-‐se
igualmente
que
a
carga
emocional
que
pontua
o
discurso
do
narrador
é
contaminada
pela
melancolia
e
pelo
pessimismo:
Aturdido.
Eis
uma
palavra
muda
traçando
fronteira
com
a
loucura.
Só
hoje
descubro
esta
sonoridade
surda
morando
em
mim,
ainda
menino.
Aturdido
pelo
medo
de,
no
futuro,
não
ganhar
corpo,
e
não
suportar
o
peso
das
caixas
de
manteiga.
Aturdido
por
ter
as
carnes
atrofiadas
sobre
os
ossos.
Aturdido
por
ter
a
alma
como
carga,
e
suportá-‐la
para
viver
o
eterno
que
existia
depois
de
mim.
Aturdido
por
ser
moral
abrigando
o
imortal.
Aturdido
pelo
receio
de
descumprir
as
promessas
deixadas
aos
pés
dos
santos.
Aturdido
pela
desconfiança
de
a
vida
ser
uma
definitiva
mentira.
Aturdido
por
vislumbrar
o
vago
mundo
como
fantasia
de
Deus,
em
momento
de
ócio.34
O
contato
da
escrita
de
Queirós
com
a
poesia
manifesta-‐se,
ainda,
por
intermédio
de
outros
recursos
de
linguagem,
dentre
os
quais
se
destaca:
aliteração
“Mesmo
em
maio
–
com
manhãs
secas
e
frias
–
sou
tentado
a
mentir-‐
me”35
“Uma
música
desafinava
a
cidade.
Impossível
interditar
o
ruído
que
arranhava
os
ouvidos”36
“O
aço
frio
da
faca
afiada
encrespa-‐me
da
carne
à
alma”37
metáforas
“a
saudade
evaporando
pelos
olhos”38
“Ao
erguer
os
olhos
do
livro,
o
olhar
da
mãe
vinha
vestido
com
novo
31
Idem, 27.
32
Idem, 29.
33
Idem, 29.
34
Idem, 14.
35
Idem, 07.
36
Idem, 18.
37
Idem, 30.
38
Idem, 09.
11
12. luar
–
eu
invejava.
Em
cada
página
virada
ela
se
remoçava,
afagada
pelas
viagens,
amores
incômodos.
O
livro
aberto
era
seu
barco,
em
suas
páginas
ela
se
transmutava”39
“passarinho
é
uma
vírgula
pontuando
o
céu”40
assonâncias
“O
pai,
amparado
pela
prateleira
da
cozinha,
com
o
suor
desinfetando
o
ar,
tamanho
o
cheiro
do
álcool,
reparava
na
fome
dos
filhos”41
paradoxo
“Sem
o
colo
da
mãe
eu
me
fartava
em
falta
de
amor”42
metalinguagem
“Quando
invertida,
a
palavra
aroma
é
amora
Aroma
é
uma
amora
se
espiando
no
espelho”43
personificação
“a
ausência
da
mãe
ganhava
corpo”44
métrica
e
rima
“Primeira
estrela
que
eu
vejo/
me
dê
tudo
que
eu
desejo/
[...]
Estrela,
não
quero
espinho/
–
insistia
aturdido”.45
BIBLIOGRAFIA
BARBOSA,
Luiz
Guilherme.
O
tomate
da
discórdia.
In.:
Rascunho;
o
jornal
de
literatura
no
Brasil.
Disponível
em:
http://rascunho.gazetadopovo.com.br.
Acesso
em
11/11/2012.
FERRARI,
Márcio.
Memórias
sensoriais
da
infância.
Disponível
em:
http://editora.cocacnaify.com.
Acesso
em:
11/11/2012.
FONSECA,
Eliane.
Análise
de
“Vermelho
amargo”.
s.n.t.
39
Idem, 19.
40
Idem, 30.
41
Idem, 10.
42
Idem, 10.
43
Idem, 12.
44
Idem, 16.
45
Idem, 33.
12
13. QUEIRÓS,
Bartolomeu
Campos
de.
Projeto
“Memórias
da
literatura
infantil”.
Disponível
em:
http://www.youtube.com/watch?v=1-‐z-‐8O31_qc.
Acesso
em:
11/11/2012.
_______________________________________.
Vermelho
amargo.
São
Paulo:
Cosac
Naify,
2011.
SANCHES
NETO,
Miguel.
Legendar
o
mundo.
In.:
Gazeta
do
povo.
17
abr.
2011.
Disponível
em:
http://www.gazetadopovo.com.br.
Acesso
em:
11/11/2012.
13