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HISTÓRIA DAS ORGIAS
Edições Século XXI, Lda.
Apartado 41022
1506-001 Lisboa Codex
Reservados todos os direitos
de acordo com a legislação em vigor
© Burgo Partridge A History ofOrgies © Edições Século XXI (2003)
Colecção Percursos/História
Tradução de Leonel Cândido Silva Phêbo
Revisão gráfica de Alice Araújo
Capa de Paulo Bacelar
Imagem da capa: La Mort de Babylone, de Rochegrosse
Fotocomposição, paginação e montagem:
Ramo de Ouro, Lda.
ISBN: 972-8293-25-9
Depósito legal n.° 195599/03
Impressão: Papelmunde - SMG, Lda.
Acabamento: Inforsete - V. N. de Famalicão
Burgo Partridge
HISTÓRIA DAS ORGIAS
Tradução de
Leonel Cândido Silva Phébo
PREFÁCIO
A orgia é a válvula de escape de uma pressão como a do vapor de água; é a expulsão de histeria
acumulada pela abstinência e a autocontenção e, assim sendo, tende igualmente a partilhar dessa
natureza de fenómeno histeróide ou catártico.
Toda a forma de autocontenção acarreta as suas tensões peculiares. O Homem encontra-se na
constrangedora contingência de trazer em si mesmo, em simultâneo, as inclinações do indivíduo
civilizado e as do mero animal, as quais há que procurar conciliar, normalmente em detrimento
das últimas. Mas essa pressão, progressivamente crescente, não pode ele aguentá-la
perpetuamente; de modo que se valerá, para todos os tipos de tensão, de uma válvula de escape -
que é a orgia. Muitas das orgias, no entanto, não são tidas geralmente como tal. As guerras, por
exemplo, num certo sentido, são uma forma de orgia, extremada e desagradável; e, catalogáveis
muito lá para o fim da escala de valores da espécie, deparamos com as discussões em reuniões
sociais ou cocktails, as partidas de mau gosto, pregadas por caixeiros-viajantes grosseiros, as
pequenas escapadelas de maridos ocasionalmente infiéis - em suma, uma longa lista.
Neste livro só se incluem as orgias de carácter ou origem sexual, e isto por dois motivos
concomitantes, a saber: o superior interesse que representam para toda a gente e as dificuldades
que obstam ao reconhecimento e definição, propriamente como orgias, de algumas delas de outra
natureza.
A orgia serve ao propósito útil de não somente prover ao alívio de tensões causadas por
abstinências (necessárias, estas, ou não), mas também de reanimar por contraste o apetite para as
monótonas temperanças que representam parte inevitável da vida quotidiana. Daí ter sido utilizada
por certascomunidades sociais tão marcadamente diferentes entre si como por
7
exemplo, os povos da Grécia Antiga e (essa, de má vontade) a Igreja cristã medieval.
Existe ainda, todavia, mais uma espécie de orgia: a individual. Essa não é, na verdade,
essencialmente organizada, nem tolerada pelo Estado ou pela sociedade, visto que surge da
equação gratuitamente estabelecida pelo indivíduo, face à sociedade ou ao Estado com o
sentimento de reclusão e cerceamento que o aflige. Essa imputação é muitas vezes justificada,
sendo, por outro lado, algumas vezes errónea ou inexactamente concebida por si.
Estas últimas são as mais interessantes e menos banais: o rebelde é aí uma figura mais perplexiva
do que conformista e, neste particular campo de estudo, foi ele o que nos mereceu atenção mais
acurada. Caso algum desses tipos tenha recebido um tratamento desproporcionadamente extenso
da nossa parte, esperamos que sejam compreendidos os nossos motivos de autor.
Ambas as espécies de orgia, a do conformista e a do rebelde, podem ser reduzidas a um só e mesmo
princípio - o do escape a uma qualquer tensão intolerável. Uma delas poderá bem lograr êxito,
desde que incida sobre a verdadeira raiz do mal consumptivo; e, se não a acompanharem mui
aflitivos sentimentos de culpa e auto-repulsa, é provável até que continue a funcionar sem maiores
sobressaltos.
A outra espécie - a do rebelde - pode também ser satisfatória, se é que a equação imputadora da
opressão à responsabilidade do meio social se prova legítima; mas, mesmo assim, o orgiasta
expõe-se a permanecer um solitário e, tudo somado, um indivíduo nada feliz - pois ter-se-á
provavelmente excedido na sua peculiar forma de reacção, que o terá arrastado até a um grau de
licença que não lhe será propriamente inata.
Os dois primeiros capítulos versam sobre os orgiastas da espécie conformista (Grécia e Roma),
mas foi uma ou outra dessas duas diferenciadíssimas modalidades que os subsequentes ”rebeldes ”
tenderam a escolher como norma, motivo pelo qual importa muito que se tenham presentes à
lembrança as naturezas latina e helénica, e então estará aberto o caminho a uma tentativa de
apreciação ética do assunto.
8
CAPÍTULO PRIMEIRO
OS GREGOS
Aos que pensam que as grandes realizações e o êxito na vida dependem de subtileza mental e
destreza verbal e que a inteligência é incompatível com a ingenuidade, a esses o estudo da
maneira de viver e do pensamento dos Gregos provocará uma reveladora surpresa.
Como nação, os helenos realizaram maravilhas de arte, de pensamento e de teorização política
tais que não encontraram rivais que os superassem, se é que jamais foram ao menos igualados,
por mais de uma dúzia de séculos. Não obstante, no que diz respeito à vida prática de cada dia,
os Gregos baseavam o seu comportamento e os seus ideais num hedonismo
extraordinariamente ”simplório” e sensualístico. Diferiam da maioria dos povos modernos ao
serem imunes a essa moléstia que a tanta gente aflige hoje em dia, a fixação num alvo ou
objectivo na vida, excluídos todos os demais, e a busca semiobsessiva desse absorvente
objectivo, acompanhada da subestimação de quaisquer outras alternativas possíveis.
Os Gregos eram idealistas e entusiastas por tudo o que interessava à sua vida, consideravam a
juventude como um bem especialmente precioso e as alegrias dessa fase como a suprema
felicidade. A beleza e o amor eram, acima de tudo, votados aos prazeres da existência, que eles
almejavam, e o ideal proclamado pelos seus bardos. A saúde merecia-lhes apreço, porquanto
sem ela não se alcançaria facilmente a felicidade, e esta era a única finalidade da vida. Saborear
prazenteiramente a vida em geral era uma prerrogativa digna de se batalhar por ela, segundo
julgava Sólon. Por toda a parte, nos seus escritos e na vida particular de cada cidadão, os
esforços dos Gregos denotavam anseios idealísticos; e não pelo dinheiro nem tão-somente pela
sede de prestígio, nem ainda por alguma esdrúxula situação na existência humana. A cultura
helénica é, por inteiro, um hino em louvor do prazer, cuja
9
natureza era uma intensa e requintada sensualidade. Em todos os níveis intelectuais, o povo
discernia a essencial parte que o materialismo voluptuoso representava nas coisas humanas. Só
depois de velho é que Sófocles emitiu a conhecida observação de que a velhice merece ser
louvada, porque nos liberta da sujeição à sensualidade. A atitude do grego perante o desejo era
muito diversa.
O poeta Simónides pergunta: ”Seria deleitosa a vida dos mortais sem a existência da felicidade
dos sentidos? Não é, porventura, a vida dos bem-aventurados deuses bem pouco de invejar-se
sem isso?”
Os deuses gregos, que talvez reflictam a natureza dos seus fiéis helénicos mais flagrantemente
do que ocorrerá com os de qualquer outra mitologia e civilização, são, igualmente, sujeitos à
contingência dos desejos e dos prazeres da carne.
No oitavo canto da Odisseia há uma cena particularmente significativa, na qual Afrodite se
abandona a ilícitos gozos de amor nos braços de Ares, o deus-Sol. O marido, Heféstion, o deus-
coxo, conclama todos os outros deuses para que venham testemunhar o adultério daquelas duas
divindades; e, no entanto, ao contemplar aquele espectáculo, disse a Hermes o divino Apoio,
filho de Zeus: ”Ó Hermes, filho de Zeus e seu mensageiro, ó tu que és o dispensador das
benesses, em verdade gostarias, mesmo que te retivessem, muito embora, enleantes peias,
gostarias de te reclinar em tépido tálamo ao lado da áurea Afrodite?” Ao que interpôs o
mensageiro Argeifonte: ”Saberás tu, divino arqueiro Apoio, que, quanto a mim, quem mo dera,
que tal me caísse por sorte... pois, então, ainda que me atassem peias três vezes mais enleantes,
vós todos, ó deuses, e todas vós, deusas, também haveríeis de ver e estarrecer, ai!, que outra
coisa não faria eu senão deitar-me ali também, ao lado da deusa Afrodite, a dos cabelos de
oiro!” - e como de tal maneira discorresse o astuto mensageiro, farto gargalhar rebentou dos
divertidos deuses imortais. Como se vê, nem uma palavra de repulsa moral, mas apenas uma
gargalhada e aprazimento contém o comentário das olímpicas personagens sobre esse episódio,
em tomo de semelhante motejo à fidelidade conjugal, devido à própria deusa do Amor. É que
as convenções que regiam o comportamento sexual, tais como vigoravam então, tinham força
de lei apenas civil: o conceito de ”pecado” daí aduzido só apareceria mais tarde, com a
civilização cristã.
Megaclides, o historiador, censura os poetas por salientarem, em demasia, os trabalhos e as
provações de Hércules, o herói nacional grego, quando este andou sobre a Terra a conviver com
a Humanidade. Frisa ele quanto se comprazia o semideus, e intensamente, nos gozos sensuais,
o vasto número
10
de mulheres que desposou e o incontável de filhos que engendrou. Quanto gostava ele de comer
e de se banhar, que até, em toda a Grécia, era de uso um leito especialmente macio que se
conhecia, qual denominação industrial, pelo nome de Hércules. Megaclides ataca os poetas,
pois, não pelo mero facto de negligentemente omitirem um importante aspecto da vida de
Hércules, porém, sim, porque com esse descuido lhe estariam a lançar um sacrílego insulto.
Sem embargo, gente muito equilibrada eram os Gregos, para se entregarem a uma vida de
perpétuos festins e destemperas. Sabiam reconhecer na castidade o valor de aperitivo essencial
para a impudicícia e, também, que as delícias eróticas, por muito sedutoras que fossem, nem
por isso haveriam de ser ininterruptas. Mesmo assim, olhavam a sensualidade como assunto
muito sério e, como tal, versavam-na os seus escritores.
Ateneu de Náuclia, no duodécimo capítulo do seu Delpnosofistas, discorre sobre a noção de
prazer de um modo teórico, daí enveredando por um desdobrar de exemplos arrebanhados
dentre diversos povos, a começar pelos Persas, mostrando-nos como era que cada povo sabia
encher a existência com folguedos e libertinagens, a cuja exposição fazia seguir um rol de
homens afamados pela vida lasciva que levavam.
Segundo Heraclides, o rei dos Persas possuía um serralho de trezentas mulheres, as quais
”dormiam o dia todo, a fim de permanecerem despertas à noite; mas, ao serão, cantam e tangem
harpas, continuamente, enquanto as lâmpadas não se consomem; e então, o rei frui delas os
seus prazeres, como suas concubinas que são”. As ditas mulheres costumavam, aliás,
acompanhar o soberano às expedições cinegéticas1.
Os Lídios, no dizer de Xanto, costumavam castrar não somente rapazinhos, mas também
meninas, para empregá-los na qualidade de eunucos, nos palácios dos poderosos senhores de
então.
Os habitantes de Síbaris introduziram o costume dos banhos quentes e foram, também, o
primeiro povo que fez uso de vasos nocturnos em banquetes.
Na cidade de Tarento, na Baixa Itália, afirma-o Clearco, o povo local, após haver ”conquistado
a força e o poder... progrediu tanto em hábitos de luxo, que chegou ao ponto de fazer amaciar
toda a pele do corpo, assim inaugurando a prática da depilação, que passou a todos os outros
povos. Todos os homens vestiam um manto transparente, rematado por uma fímbria
Expedições de caça (N. do E.).
11
purpurina... louçanias que hoje em dia são um requinte e apanágio das modas femininas. Mais
tarde, porém, cegos pela paixão do luxo até ao desmando, arrasaram a cidade de Carbânia, dos
lafígios, fizeram reunir no templo daquela cidade os meninos, as meninas e as mulheres na
plenitude da vida e ali montaram um espectáculo, expondo nus aqueles desgraçados para a
lúbrica contemplação de quem quisesse, durante o dia; e quem bem o quisesse podia também
saltar sobre as pobres criaturas como o fariam lobos esfaimados sobre um rebanho e então
fartar a sua luxúria nos belos corpos das vítimas ali encurraladas e à sua mercê”. Pelos vistos,
no entanto, os deuses desaprovaram essa particular forma de sensualidade, pois os devassos
vieram a ser fulminados pelos fogos do céu.
É forçoso, neste ponto, concordar que, antes de se aventurar alguém num amplo panegírico do
viver dos Gregos, se impõe ter em conta o tratado de Heraclides Pônticos, discípulo de Platão e
filósofo por mérito próprio. No seu ensaio Sobre o Prazer, afirma que a vida requintada é
prerrogativa das classes governantes, relegando-se aos escravos e aos pobres, como o quinhão
que lhes cabia, a árdua lida e o tédio. Todo aquele que sabe apreciar a sensualidade e o luxo é
imbuído de carácter superior ao do que não partilha da sua percepção. Os Atenienses fizeram-se
um povo heróico precisamente em virtude, e não a despeito, da vida sibarítica que se
permitiam. O ponto de vista exposto na primeira parte do referido tratado é desagradável, sem
dúvida, e, se bem que muito dubitável a extensão em que se projectou e traduziu em
comportamento autêntico na prática, não é lícito esquecer que os escravos e os pobres eram
algumas vezes excluídos, tanto mentalmente quanto efectivamente, da própria espécie humana.
É possível que os Gregos tenham, quem sabe, encarado um poucochinho de mais o prazer como
manifestação religiosa, daí sustentando que tudo aquilo que tivesse ou pudesse ter tido,
comportado ou causado prazer, seria, sob quaisquer circunstâncias, um bem. Afinal de contas, o
hedonismo dos Gregos não foi certamente o hedonismo de J. S. Mill.
Voltemos à lista de Ateneu de Náuclia. Os habitantes de Colofónia jamais haviam
contemplado, segundo ele, o crepúsculo ou a alvorada, em toda a sua vida, visto que, ao dealbar
do dia ainda estavam eles bêbados e, ao vir o ocaso, já o estavam outra vez.
Sardanápalo, o último rei assírio, redigiu para si mesmo o seguinte epitáfio: ”Fui rei e,
enquanto me foi dado contemplar a luz do Sol, comi, bebi e rendi culto às alegrias do amor,
sabedor de quanto é transitória a vida do homem e sujeita a tanta variação e infortúnio e que
outros colherão a messe dos bens que deixo depois de mim. Por esse motivo, pois, não deixei
passar
12
dia que fosse sem guardar fidelidade a esse modo de vida.” A sua filosofia era a do autor do
Edesiastes, ainda que algo diversa a conclusão para que se encaminhou.
Aristóbulo descreve-nos um monumento a Sardanápalo que admirou em Anquiale. A mão
direita da estátua descreve-a ele como em acção de estalar os dedos. A inscrição, que nos
transmite, rezava o seguinte: ”Sardanápalo, filho de Anacindaraxes, construiu em apenas um
dia Anquiale e Tarso. Comei, bebei e folgai, pois o mais que resta não vale tanto.”
O orador Lísias narra-nos a seguinte anedota acerca de Alcibíades e Axíoco: ”[eles] fizeram-se
à vela, juntos, em demanda do Helesponto e desposaram, os dois ao mesmo tempo, em Abido,
uma mesma mulher, Medontis de Abido, e com ela coabitaram. Tempos depois, nasceu-lhes
uma filha, cuja paternidade ambos declararam não poder esclarecer. Mas, ao tomar-se a mesma
casadoira, os dois coabitaram com ela também; pois, sempre que possuía Alcibíades, era
alegando gozar o amor da filha de Axíoco, enquanto que, por seu turno, este último dizia
possuir a filha daquele.”
Clearco refere, acerca de Dionísio, o Moço, tirano da Sicília, o seguinte caso:
”Quando Dionísio alcançou a sua cidade natal, Locris fez atulhar de rosas e tomilho bravo a
casa mais bonita da cidade, após o que mandou vir as moças de Locris, uma de cada vez,
despojando-as, e a si próprio, de todas as vestes e, nus os dois, rolavam sobre o leito, ali
praticando todo o género de obscenidades imaginável. Pouco depois, ao terem os ultrajados
maridos e pais em seu poder a própria esposa e a prole do tirano, forçaram esses reféns a
cometer indecências à vista de todo o mundo e abandonaram-se a toda a espécie concebível de
devassidão. Após terem satisfeito naquelas vítimas a sua concupiscência, meteram-lhes agulhas
sob as unhas e, por fim, deram-Ihes morte.”
Estrabão refere também essa mesma história, acrescentando ainda o pormenor de que, após
preparada a câmara, soltavam-lhe para dentro alguns pombos com as asas aparadas, os quais as
raparigas, nuas como estavam, eram forçadas a perseguir e pegar, algumas inclusive obrigadas
a calçar sandálias desemparelhadas, sendo uma de salto baixo e a outra de salto alto.
Demétrio de Falero, que foi por muitos anos governador de Atenas, era dado como gozador de
secretas orgias com mulheres e nocturnos ”casos” com rapazes; tinha um considerável zelo pela
sua aparência pessoal, havendo inclusive tingido os cabelos com um absurdo matiz alourado e
pintado o rosto, à faceira.
13
A tese de que o prazer era o verdadeiro objecto da existência era apoiada por toda uma escola
filosófica, a de Aristipo, o qual, através de toda a sua vida, demonstrou a fé que depositava na
sua própria filosofia, e teve como amante Lais, uma notável hetera.
A maior parte dos homens arrolados na lista de Ateneu de Náuclia merecem antes comiseração.
Pertencem à categoria dos rebeldes e as suas orgias representam uma tentativa no sentido de
escaparem a algo mais poderoso e mais inexorável do que os meros travões das convenções.
Eles foram nada mais do que casos individuais, nunca figuras representativas da raça,
porquanto os Gregos, nunca o esqueçamos, atingiram uma forma de atitude perante os assuntos
sexuais jamais igualada, desde então, na sua realística sanidade. Hedonistas, sim, sê-lo-iam;
mas suficientemente sensatos para saberem que o prazer, de natureza unicamente sensual, cedo
esmaece, se não alternar com períodos de repouso e abstinência.
Poderíamos fornecer muitos outros exemplos, e fá-lo-emos, de extremos de luxúria e
devassidão no mundo helénico. Em primeiro lugar, há que considerar de forma ligeira o
conceito grego de matrimónio e a sua atitude face às mulheres em geral. Tendo apreciado a
”mulher-mãe”, está-se capacitado para a comparar com a ”mulher-rameira” e então passar-se-á
à atitude grega perante as hetairas, a religião, os festivais eróticos, os jogos, as orgias do género
”social” e a assombrosa ubiquidade da homossexualidade.
A natureza do matrimónio grego e a posição ocupada pelas mulheres no mundo helénico são
factos excessivamente difíceis de configurar sob forma de imagens compreensíveis, a esta
distância no tempo; e se tentarmos fazê-lo com base nos modernos padrões iremos deparar em
seguida com uma densa massa de material indiscutivelmente contraditório que nos lançará a
mente em plena confusão.
Logo de início, vemos a variadíssima condição das mulheres em diferentes partes da Grécia. A
impressão geral que se recebe é que as mulheres, lá, passavam a vida numa semi-reclusão e
sujeição; mas, ao passo que algumas delas viviam trancadas a sete chaves, no ginaekonitis, o
gineceu, sob a guarda de um feroz molosso, já na Lídia era coisa tida como corrente e aceite
que as raparigas solteiras comprassem para si mesmas os seus vestidos e amealhassem um dote
à custa de prostituição.
Sem embargo deste último exemplo, pouca dúvida existe de que, no que tange à liberdade
física, pessoal, as mulheres gregas nos pareceriam, ao nosso moderno sentir, intoleravelmente
limitadas. Entendiam os Gregos que o lugar das mulheres era no lar e que a sua função, como
animal que era, consistia em desempenhar os misteres de dona-de-casa e mãe. Não tinha que se
imiscuir
14
na vida literária, nem tão-pouco lhe era lícito andar pela rua desacompanhada. Isto, no entanto,
e por incrível que nos pareça, não se deve necessariamente interpretar como indicativo de se
encararem então as mulheres como seres inferiores, mas apenas criaturas diferentes,
comportando função diferente da dos homens na vida, diferente mas, de modo algum, inferior à
deles. Se era tolerado aos maridos o adultério, mais do que se o consentia às esposas, isso
devia-se a que os Gregos viam legitimidade nos instintos polígamos dos homens em contraste
com os, pelo menos teoricamente, mais monogâmicos que atribuíam às mulheres. Aventuras
sexuais extramatrimoniais eram toleradas a estas, contanto que não fossem elas de nascimento
livre, isto é, não escravas, nem fossem casadas com outro homem. Devassidão de mulher-mãe
ou esposa era outra coisa. No meio de tudo isto, vislumbrar-se-á, sorrateira, uma estranha
semelhança com os modos de ver a vida da recente época vitoriana; lá estava uma análoga
espécie de repartição separando as cortesãs das mulheres ditas ”de respeito” - a tal divisão mãe-
rameira. A diferença entre as duas sociedades reside no facto de o ponto de vista vitoriano se
projectar no preceito de que a actividade sexual era coisa que não se podia impor contra a
vontade ou satisfatoriamente gozar com a boa vontade de uma pessoa pertencente à mesma
classe social. Já os Gregos não pensavam assim. O matrimónio, entre eles, e a despeito da
evidente sujeição das mulheres, era uma instituição social mais civilizada e satisfatória do que o
vitoriano. Podia-se obter o divórcio sob alegação de mútua incompatibilidade, situação essa que
se pode comparar, e com vantagem, com a actual fórmula legal. Acima de tudo, existia entre
marido e mulher genuína afeição, cooperação no desempenho das diversas incumbências da
vida em comum e um estado de mútua admiração pelas realizações respectivas. Consta, na
literatura, farta messe de testemunhos da afirmação supra. E quem achar que, por viver reclusa
no âmbito restrito do lar, a mulher grega era uma escrava e que os homens tratavam as suas
esposas como tal, que leia, então, a narrativa da despedida entre Heitor e Andrómaca, na Ilíada
de Homero.
Que a infidelidade conjugal ocorresse no homem e, menos frequentemente, na mulher, isso era
coisa sancionada do ponto de vista hedonístico da vida, entre os Gregos, e menos capaz de
fazer periclitar a solidez do matrimónio por essa razão mesma - ainda que o facto se nos
apresente deplorável perante a nossa moderna moralidade. Os Gregos compreenderam, já
então, o que quase ninguém mais parece ter percebido durante todos os dois mil anos hoje
transcorridos: uma passageira vertigem de concupiscência por A nem por isso é incompatível
com um amor mais permanente por B, tanto que jocosas
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representações dos ardis empregados por esposas gregas para enganarem os seus maridos
aparecem nas comédias de então. E pressentiram também os helenos o que escapou aos nossos
vitorianos, a saber, que restrições impostas às mulheres casadas, convenientes ou não, que
fossem, eram o mesmo que impor-lhes um constrangedor estado de tensão, que melhor seria
deixá-las aliviar de tempos em tempos. Na realidade e no plano emocional, poderão as esposas
gregas ter sofrido ciúmes e revolta, ao saberem das aventuras dos seus cônjuges com as heteras.
Nem teriam sido humanas, se assim não fosse. No plano racional, no entanto, o princípio era
largamente aceite como válido e, ainda que cheirando a cinismo, prudente.
As damas que proviam aquela alternativa ao conúbio matrimonial não eram consideradas meras
válvulas de segurança, conquanto fossem precisamente isso mesmo, sem dúvida nenhuma. com
aquela simplicidade manifesta dos Gregos em todas as questões referentes ao sexo, essas
raparigas eram tratadas muito mais como sacerdotisas do culto hedonístico. A diferença entre a
condição das heteras na Grécia Antiga e as prostitutas da civilização moderna patenteia-se, de
modo vívido e surpreendente, em dois exemplos a ver: os habitantes de Téspias, cidade que a
famosa hetera Frine havia presenteado com uma magnífica estátua do deus Eros, retribuíram-
lhe a fineza encomendando a Praxíteles que esculpisse uma estátua dourada à imagem dela.
Pronta a obra, foi erigida na praça pública, entre as estátuas do rei Arquidamo e a de Filipo, o
que a ninguém escandalizou, em absoluto. Sobre a lápide tumular de Calírroe de Bizâncio lê-se
a seguinte inscrição: ”Fui meretriz na cidade de Bizâncio e servi a todo o mundo o amor que
vendia. Sou Calírroe, a experiente em todas as artes da volúpia. Dilacerado pelas fúrias do
amor, Tomás pôs este epitáfio sobre a minha tumba, assim revelando a paixão que lhe habitava
na alma; o seu coração desfez-se, tão derretido como a cera.”
As heteras, que eram tidas como superiores às simples prostitutas de bordel, e cujos preços
reflectiam tão elevado conceito, eram admiradas pela posse de qualidades intelectuais, não
menos que as físicas, muito embora possa tomar-se objecto de irónicas dúvidas o precisar-se até
que ponto uma das duas prendas sobrelevaria a outra, numa avaliação objectiva total.
Tais personagens eram frequentemente convocadas a concorrer com os seus préstimos em
prestígio do culto de Afrodite. Em Corinto, cidade constantemente mencionada na literatura
grega como famosa pela libidinagem dos seus habitantes (”do desenfreio e licenciosidade da
vida nesta metrópole, do antigo empório tão rico e tão bem aquinhoado pela natureza, seria
difícil lavrar-se um relato a que alguém pudesse acoimar de exagerado”, diz-nos
16
Licht). Ou, conforme conta o valioso Ateneu: ”Tem prevalecido a usança segundo a qual a
cidade, sempre que oferece preces a Afrodite em imponente procissão, carreia para esta o maior
número possível de heteras, as quais também dirigem preces à deusa e se apresentam na
cerimónia do sacrifício e respectiva festividade.” A prostituição litúrgica, nos templos,
verificava-se em muitas localidades, destacando-se entre elas Corinto, Chipre e Abido. Nesses
templos era costume trazer ao vencedor dos Jogos Olímpicos, algumas vezes, um presente
constituído de raparigas.
Acerca do templo de Afrodite Pornea, em Corinto, escreveu Estrabão: ”O templo de Afrodite
era tão sumptuoso e rico, que podia manter um milhar de heteras que eram dedicadas à deusa e
visitadas tanto por homens como por mulheres. Por causa destas raparigas, afluíam até lá
multidões de forasteiros, do que resultou o enriquecimento da cidade.” (O facto de Afrodite, ao
mesmo tempo que era a deusa do amor, poder aparecer como ”Afrodite-prostituta”, denota a
ausência de ilusões do mundo helénico em relação à natureza humana).
Luciano apresenta-nos um relato sobre o templo de Biblos: ”Em Biblos vi também o grande
templo de Afrodite e conheci as orgias que são coisa corrente ali. Os habitantes da cidade têm a
crença de que a morte de Adónis sob os colmilhos de um javali se deu ali no seu país e, em
memória do facto, batem no peito e carpem, todos os anos, sendo que, por ocasião dessas
comemorações fúnebres, dão-se grandes sinais de pesar através de todo o país. Ao terminarem
com os murros no peito e as lamentações, passam então a efectuar as exéquias de Adónis e, no
dia seguinte, fazem de conta que ele despertou novamente para a vida, põem-no no seu céu e
raspam as próprias cabeças à maneira dos egípcios em sinal de luto pela morte do boi Ápis.
Mas toda a mulher que recuse deixar que lhe cortem os cabelos padece o seguinte castigo: num
dia marcado, é ela obrigada a prostituir-se publicamente, e a ela só permitem concorrer os
forasteiros, e a renda daí auferida é então entregue ao templo da Afrodite.”
Essa ideia, da actividade sexual encarada como coisa que pudesse aplicar-se à guisa de meio
punitivo, é estranha a todo o resto da vida grega. O conceito segundo o qual o instinto sexual é
um maravilhoso dom da natureza ou dos deuses, levando o indivíduo até ao contacto místico
com a divindade, benesse que é forçoso aproveitar-se e pela qual se deve mostrar a devida
gratidão mediante oferendas à deusa, bordeja perigosamente, diga-se mesmo paradoxalmente, a
atitude contrária, pela qual o referido instinto se toma uma força que exige apaziguamento e
sacrifício.
17
Estado de coisas muito semelhante deparar-se-nos-ia entre os babilónios, em ligação com o
culto de Milita, a equivalente babilónica de Afrodite. Por lei vigente entre esse povo, toda a
mulher devia, uma vez na vida, dirigir-se ao templo de Milita e aí prostituir-se ao primeiro
forasteiro que se lhe apresentasse. Na versão de Heródoto: ”Muitas mulheres, orgulhosas das
suas grandes riquezas e querendo conservar-se acima da gente vulgar, viajam em viatura
cerrada e coberta, acompanhadas por uma porção de servas, dirigindo-se ao templo... uma vez
ali sentada, uma mulher não poderá retomar a casa enquanto um dos forasteiros não lhe tiver
atirado no regaço uma moeda de ouro e tenha tido relações com ela na parte externa do templo;
ele, porém, ao atirar-lhe a peça de dinheiro, deverá acompanhar o gesto com a frase
sacramental: ’Eu te reclamo em nome de Milita.’”
As heteras mantiveram amizade com grandes homens de todo o género: soldados, filósofos,
artistas. Quando Alexandre, o Grande, derrotou Dário, marchou sobre a Babilónia, tomou a
cidade de Susa e entrou depois em Persépolis, a antiga capital; aí foi celebrado um espectáculo
em que uma horda de heteras desempenhou importante mas desastrosa parte. Regidas e
incitadas por Tais, a qual já tinha conseguido uma ligação com o próprio Alexandre, sem
embargo dos rumores correntes sobre contrariantes interesses por parte desse grande
conquistador. Foi ela quem lhe sugeriu que deitasse fogo ao palácio persa, quem se pôs à frente
dos incendiários bêbados, com acompanhamento de cânticos, tanger de flautas e danças
bacanais e, ainda, atirou pessoalmente o primeiro archote aceso.
O emprego de heteras profissionais nas festas religiosas já foi aqui referido. As afrodísias,
embora não oficialmente reconhecidas, nem por isso eram menos apreciadas e eram celebradas
por todo o território grego. Constituíam, muito simplesmente, festas em honra de Afrodite, das
quais raramente se ausentavam prostitutas e heteras. Uma dessas festas particularmente
conhecidas pelas heteras eram as afrodísias de Egina, onde Frine se comportava da maneira
descrita por Ateneu: ”Mas era Frine realmente a mais bela, com os seus velados encantos de
onde resultava não ser fácil conseguir-se vê-la nua, pois ela trazia em volta do corpo uma
roupagem muito justa às suas formas e jamais fazia uso dos banhos públicos. Mas na festa da
Eleusínia e da Poseidónia, à vista de todos os helenos, ela costumava despir o mantéu, soltar a
cabeleira e entrar nas águas do mar, tanto que Apeles fez dela o modelo da sua Afrodite
Anadiómena, a que surge do mar.”
As numerosas prostitutas de Corinto comemoravam as afrodísias à sua maneira particular,
lasciva e turbulenta. A cerimónia, conhecida pelo nome de ”pannychis ” (palavra que depois as
heteras adoptaram como a carinhosa
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e favorita designação delas mesmas), prolongava-se pela noite dentro. Muito embora se
tratasse, teoricamente, de festividade, não passavam os respectivos ritos de pouco mais que um
simples bacanal lúbrico e uma infrene bebedeira. As ”potrancas de Afrodite”, ”quase nuas sob
as suas roupagens de tenuíssimo tecido... vendiam os seus favores por tuta e meia, para que
todos pudessem permitir-se gozá-los”.
O festival de Afrodite Ansósia, celebrado na Tessália, participava da mesma natureza, excepto
quanto à circunstância de ser totalmente de carácter homossexual (entre mulheres, aliás). Não
abundam pormenores,” mas sabe-se que aí tinha maior relevo o uso da flagelação erótica.
Outros festivais de carácter inequivocamente erótico e mais ou menos de âmbito nacional
foram as dionisíacas, aparentadas de muito perto com as ”liberalia”, a idolatria romana de
Líber, deus dos pomares e das bagas (quod vide), e com as Lenea, a festa dos lagares e da
vindima. Esse festival destacava-se pela celebração de um grande banquete, largamente
subsidiado pelo Estado, e de um cortejo dançante que percorria a cidade e a que se comparecia
em trajos de fantasias - representando-se ninfas, bacantes, sátiros, etc. -, tudo acompanhado de
desbragadas troças e piadas de toda a espécie, no fundo e antes de tudo, de sentido erótico. Em
Março e Abril comemoravam-se as festas do Elaphebolion (mês correspondente, no calendário
ático), ou seja, as Dionisíacas da Cidade. Coros cantavam ditirambos em honra de Dionisos,
davam-se bailados desempenhados por mancebos formosos e ao entardecer toda a gente se
postava pelas ruas, deitada em leitos e a beber desmedidamente. Uma representação fálica,
senão mesmo diversas imagens de phalli, era imprescindível entre os ornamentos da folgança.
Em certas partes da Grécia, especialmente em Citera e no Parnasso, bem como nas ilhas,
realizava-se uma ”dionísia” exclusiva, na qual só tomavam parte mulheres feitas e raparigas. À
noite, ataviadas de fantasias de Baco, incluindo a pele de bode, cabeleira alvoroçada e as mãos
brandindo instrumentos musicais, elas galgavam o pico de um monte próximo e, estimuladas
pela actividade anormal, excitadas pelo vinho que, em geral, raramente ou nunca provavam nas
suas vidas, fora dali, celebravam lá em cima bailados e sacrifícios que rapidamente assumiam a
categoria de orgias.
Pausânias, verdadeiro ”Baedeker” para as coisas da Grécia Antiga, diz, a propósito da
referência de Homero aos ”locais de bailados do Panopeus”, que semelhante referência o
deixara muito intrigado, até ao dia em que lhe explicaram o tópico ”as mulheres às quais os
atenienses denominam de thyiadas”, bacantes, sacerdotisas de Dionisos. ”Essas thyiadas são
umas mulheres da Ática que, juntamente com as da Délfica, se dirigem todos os
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anos ao monte Parnasso, onde realizam orgias em honra de Dionisos. Essas mulheres têm por
hábito fazer as suas danças em várias localidades à beira da estrada que vai para Atenas, um de
tais pontos sendo o Panopeus.” A certa altura, falando da gruta coriciana (da ninfa Corícia, mãe
de Apolo), declara ele: ”Os píncaros elevam-se acima das nuvens e, neles, as thyiadas
entregam-se a desvarios em honra de Dionisos e Apolo.”
É preciso aqui especificar a natureza dessas celebrações dionisíacas, pois elas eram distintas,
sob um importante aspecto, do género de festa da fertilidade que todos conhecem. O grego,
uma vez empolgado por alguma força que o compelisse a agir de maneira diversa daquela que
normalmente adoptaria, justificava os seus impulsos, naturalmente com suficiência, dizendo-se
”possesso dos deuses”.
Contrariamente ao que ocorria com os Romanos, nos Gregos esse sentimento incutia atitudes
de admiração, que não de obediência, mas fazia, também, com que se desse valor a tudo aquilo
que conduzisse à consecução de um estado de ”teolépsia” - comunhão íntima com a divindade.
Isso explica aquilo que à mente moderna parece difícil de entender, como seja, o como e o
porquê de os Gregos encararem o amor às libações alcoólicas, às danças e ao coito com um
sentimento de reverente temor religioso.
A finalidade do culto era, pois, propiciar um acto que os Gregos tinham em conta de
religiosamente nobilitante, muito embora, nos nossos dias, um psicólogo configurasse tal
atitude ética sob terminologia bem diversa, e que um superficial exame objectivo das acções
verificadas naqueles festivais nos deixasse, como resíduo, a impressão de uma orgia de
lubricidade.
Sem embargo, aquelas festas eram também aproveitadas como oportunidades e recursos hábeis
ao relaxamento de tensões sexuais, asserto válido, por igual, para o culto da fertilidade, ainda
que este último possa ter sido considerado uma forma de encantamento, de invocação dos
deuses, para se obter deles, por associação de ideias, feliz êxito nas colheitas agrícolas.
Pelo Outono, celebravam-se os afamados Mistérios de Elêusis, misteriosos efectivamente. A
cerimónia durava nove dias, sendo a sua exacta natureza coisa difícil de se estabelecer. A ideia
que estava na sua base tinha a ver com o evanescimento e subsequente revitalização do grão.
De mistura com isso, iam vagas noções ou anseios de humana imortalidade.
Os primeiros dias dessa festa eram passados em procissões ao mar e banhos e demais
purificações, de ordem ritual, nem sempre verificados sob normas de decoro e pudor. Ao sexto
dia, saía de Atenas com destino a Elêusis uma procissão. Os que a acompanhavam - e
contavam-se, por certo, por milhares - iam coroados de mirto e hera, e levavam nas mãos
archotes e espigas
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de milho. Uma vez atingida Elêusis, que ficava a nove milhas - uns quinze quilómetros de
distância, o restante do prazo adjudicado às celebrações era preenchido com actividade
esotérica, ruidosa e transbordante de jovialidade, sendo, não obstante, atribuída a Titínios a
brutal afirmação de que o incesto também se incluía entre os demais pontos salientes dos ritos.
A maior parte das cerimónias que comportavam cópula cerimonial e outros actos orgíacos
comportavam, igualmente, um período de abstinência.
Nas thesmophoria de Demétrio, na Ática, por exemplo, uma das únicas verdadeiramente
nacionais e cujo conhecimento chegou até aos nossos dias em parte através das
Thesmophoriazusae de Aristófanes: ”Todas as mulheres que desejassem participar da festa
eram obrigadas a abster-se de relações sexuais durante os nove dias precedentes. A solércia dos
sacerdotes impunha essa condição como um dever de piedade, um acto de religião, cuja
verdadeira razão, entretanto, era, claro está, fazer com que as mulheres, acicatadas por longa
privação, pudessem partilhar das orgias eróticas com menos contenções. Para se fortalecerem
nessa castidade preparatória que se lhes exigia e que provavelmente achavam bastante árdua de
manter, as damas punham sobre os seus leitos ervas e folhagens refrescantes, entre estas
especialmente o Casto-Cordeiro, ouAgnus Castus (”que toma improdutiva”, segundo uma
logomaquia grega) e outras plantas do género. De acordo com Pócio, porém, por esse tempo as
mulheres comiam alho a fim de afugentar os homens, apavorados com o fedorento odor do
hálito delas.
Era, no entanto, no culto e homenagens a Afrodite que se efectuavam as mais sumptuosas,
empolgantes e dissolutas celebrações. Pois foi ela, Afrodite, quem trouxe aos Gregos e aos seus
mesmos deuses as alegrias do amor. Na mente grega entreteciam-se inseparavelmente e
interdependentemente o amor e a beleza. Ali, sim, mais do que em quaisquer outras
oportunidades, havia causa para júbilos e gratidões: para singela, porém entusiástica, expressão
das emoções. E Afrodite é também a deusa da Primavera; a das flores; especialmente da rosa e
do mirto, com que se engrinalda e envolve todo o corpo, ao atravessar as florestas. Os animais
silvestres acompanham-na, afagam-na. A Primavera, portanto, era a estação em que se
realizavam, em maior número, as festas afrodísias.
Em Chipre, ilha repleta de flores, coberta de frutos e embalsamada pela fragrância duma
imensidão de botões a desabrocharem, todos esses encantos galardoados pela própria Afrodite,
ali, em Pafos, o local onde a deusa nascera, à beira-mar, era onde tinha início a mais famosa e
grandiosa das cerimónias do seu culto. Banhava-se carinhosamente no mar a imagem sagrada,
cobria-se de
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flores, tudo isto a cargo de raparigas que, em seguida, se banhavam também, como preparação
para as subsequentes orgias de amor, nos frescos regatos que corriam sob bosques de mirto
sagrado, através de vales escondidos sob espesso tapete de amendoeiras em botão. Os deuses
dos Gregos representavam a própria expressão do sentir no corpo e alma dos seus fiéis helenos,
como que magnificentes modelos de tudo aquilo que estes eram em verdade ou quereriam para
si mesmos. Diversamente dos Romanos, que se valiam das suas divindades como de bodes
expiatórios, aos quais pudessem atribuir a manifestação de forças que não desejavam
reconhecer como naturais, sendo o seu culto assente num espírito de união, não de obediência.
(Diz-nos Seleuco, todavia, que não constituía costume ancestral a complacência nas libações e
em outros excessos dos sentidos, excepto por ocasião de alguma festividade sagrada.) As
estátuas de Afrodite representam sempre uma mulher que encarna nas suas formas todos os
padrões concebíveis e reconhecidos da beleza feminina em cada pormenor. Parece que os
Gregos nutriram sempre particular estima pelo traseiro humano e assim é que, com aquela
deliciosa simplicidade que jamais se encontraria alhures, eles erigiam estátuas, erguiam templos
a Afrodite Calipígia, a diva de lindas nádegas, à qual rendiam o seu culto idolátrico com aquela
graça e aquele indisfarçado entusiasmo que caracterizavam a raça. E isto, se aceitarmos a
opinião de Ateneus, decorria das seguintes circunstâncias:
”Um lavrador tinha duas lindas filhas que, certa vez, se puseram a disputar, chegando a
desafiarem-se no meio da estrada para decidirem qual das duas possuía nádegas mais bonitas.
Um dia passou por ali um mancebo cujo pai era um rico ancião e logo as duas litigantes
expuseram à vista e veredicto do moço o seu ’pomo de discórdia’, ao que, tendo
suficientemente contemplado as prendas, ele deu o seu parecer em favor da mais velha das duas
irmãs; e o facto é que se apaixonou por esta, a tal ponto que, ao tomar à sua casa na cidade,
meteu-se na cama, adoentado, contando ao irmão mais novo o episódio. De modo que esse
irmão se dirigiu também ao campo para contemplar as protuberâncias traseiras das duas irmãs
rivais, ficando também, por seu turno, amoroso, porém da outra irmã, previamente vencida. Eis
que o pai dos rapazes lhes pediu, então, que pelo menos saíssem em busca de matrimónio mais
respeitável, mas, não conseguindo demovê-los, trouxe as duas jovens daquela herdade para os
dois filhos, mediante o consentimento do velho lavrador e uniu-as em matrimónio aos rapazes.
Por isso, as duas raparigas ficaram sendo conhecidas na cidade como ’as belas nádegas’, canta
o satírico Cércidas de Megalópolis em seus versos jâmbicos. É sua a troça ’havia em Siracusa
uma parelha de irmãs de formosas nádegas’. Pois
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foram essas mesmo que, chegando a possuir uma grande fortuna, fundaram o templo de
Afrodite sob a invocação de ’Afrodite das Formosas Nádegas’, segundo o confirma, também,
Arquelau.”
Pode ver-se no Museu Nacional de Nápoles uma estátua dessa Afrodite Calipígia. Erótica, não
há dúvida, porém despida de qualquer traço de grosseria de todo não atribuível ao romantismo
e à reverência que tendem a tolher-nos a apreciação de peças dos museus, essa estátua oferece-
nos um momentâneo e parcial, mas também esclarecedor, olhar sobre a atitude helénica perante
o sexo e a vida.
Os jogos atléticos dos Gregos eram uma forma de expressão da delícia com que o povo
cultivava o corpo humano e suas capacidades. Para a gente da nossa época, habituada ao uso de
roupas, é muito difícil entender os motivos que os Gregos teriam para justificar a nudez
naqueles prélios, ou ainda mensurar o grau de erotismo presente na sua atitude diante deles.
Que um certo sentimento de vergonha, isto sim, lhes advinha antes do facto de envergar
roupagens e não da circunstância contrária, e que eles admitiam quaisquer peças de vestuário,
quando muito, por exigências climatéricas ou de higiene - eis uma noção hoje em dia tão
difundida que se tomou um lugar-comum. Entendiam os Gregos que agasalhar as partes íntimas
tão-somente, quando o resto do corpo se deixava ao vento, desembaraçado de panos, dava a
impressão de um certo desprezo ou vergonha dos genitália quando, na realidade, a opinião que
eles nutriam a respeito destes era precisamente oposta a isso, pois os genitais somente lhes
inspiravam gratidão e respeito aos numes imortais, como o instrumento, deles granjeado, para
sublimes prazeres e para o milagre da procriação.
O erotismo, no entanto, se é que aí constava, era só conscientemente ausente daqueles
entretenimentos, imperceptivelmente mesclando-se-lhe a admiração de uma espécie de função
física, misturada com uma outra de diferente tipo.
Em Mégara, realizavam-se na Primavera os jogos ”Diocleicos”, em honra do herói nacional
Díocles; por essas ocasiões, procedia-se aí a um concurso de beijos de formosos meninos,
pleito que assim nos descreve Teócrito: ”Em volta do túmulo dele (Díocles), assim que chega a
Primavera, as crianças competem num prélio de beijos e o menino que souber pousar lábios
sobre lábios com mais doçura, de lá regressa à genitora carregado de grinaldas.”
Em Esparta, onde o comportamento e a maneira de ver a vida diferiam acentuadamente dos do
resto da Grécia, a ”Gymnopaedia”, ou dança dos meninos nus, dava-se anualmente à guisa de
preito e comemoração de guerreiros
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espartanos tombados em Tirce. As homenagens constavam de danças e demonstrações de
ginástica efectuadas por meninos completamente desnudos. Essa festividade, longe de ser
considerada então sob certa luz de folgança descuidada, era antes tratada sob tais extremos de
veneração que até se lhe atribuía preferência sobre tudo o mais.
Ao chegar à sua cidade natal, ao regressar dos Jogos Olímpicos, o respectivo vencedor era
submetido a um tratamento de honrarias e festejos em profusão. Coroado de louros e enfeitado
de flores, transpunha os portais dos muros; entoavam-lhe cânticos, erigiam na agora, no centro
da cidade, estátuas à sua imagem. E daí por diante passava a ser tratado, para sempre, como
cidadão ilustre. O seu triunfo era tão magnífico quanto o de um general romano e a superior
competência dos Gregos em matéria de fausto é assunto que sobrepaira a quaisquer dúvidas,
para os que saibam julgar sem preconceitos.
Danças por motivo de várias festividades religiosas exclusivamente locais pululavam um pouco
por todo lado na Grécia Antiga. Já aquela modalidade de baile que hoje conhecemos nos nossos
tempos, como forma de sociabilidade, essa era, naturalmente, ainda desconhecida ali. Para a
Hélade de antanho, a dança era um meio de representação por arte mímica de ideias e emoções
do íntimo (e, como vimos, estímulo à consecução de um estado de catarse anímica). As eróticas
- refiro-me àquelas que não se ligavam necessariamente à religião - eram de uso geral. Entre
estas ficaram famosas a célebre ”Sicinnis” e a ”Cordax”. Segundo o moderno modo de julgar,
ambas seriam consideradas claramente e acima de tudo obscenas, já que comportavam
movimentos e posições significativos, bem como a supressão de todas as peças de vestuário. Os
sátiros, nos dramas satíricos, eram apresentados por bailarinos a desenvolverem um bailado que
uma tremelicante melodia de flautas acompanhava, e bem assim à peça toda.
A dança entre os convidados masculinos e as servas ”porta-taças” do anfitrião constituíam um
procedimento usual nos banquetes. Nesses casos aplaudir-se-ia, até, a lascívia pura e simples,
enquanto a falta de elegância e autodomínio eram condenados e desprezados pelos comensais.
Cleistenes, senhor de Sicião, tinha uma filha, Agarista, cuja beleza era tão notável que os
pretendentes à sua mão enchiam-lhe a casa durante mais de um ano, até que um dia ele se valeu
de uma oportunidade para meticulosamente pôr à prova os candidatos. No fim das
investigações, Hipocleides parecia ser o mais recomendável de todos e, assim, no dia em que se
encerraram as provas, houve um banquete em que os cortejadores da jovem exibiram os seus
dotes sociais e mesmo musicais. Hipocleides, que se desregrara
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um tanto nas libações, executou uma sugestiva dança ao som das flautas, chegando por fim a
exceder-se tanto em desatinos, que acabou por se plantar sobre a mesa de cabeça para baixo, e
as pernas a agitarem-se no ar. A isso, o quase sogro, que afinal já perdera a serenidade e a
paciência, disse ao moço que este acabara de também perder a noiva. Respondeu-lhe,
incontrito, o alucinado bailarino: ”Ora, Hipocleides não se importa!...” e, às gargalhadas,
abandonou a sala do festim.
Compostura e seriedade eram, aos olhos dos Gregos, as conquistas pessoais mais importantes.
Os porta-taças dos banquetes eram, quase que invariavelmente, meninos. A maneira de oferecer
a taça era considerada uma grande arte - da qual, segundo Xenofonte, os que mais entendiam
eram os Persas. Conta-nos Luciano, a respeito, uma historieta interessante:
”Eu notara que um formoso escravo jovem, que fora colocado no serviço de apresentação de
taças, se postara atrás de Cleodemo, a sorrir; e fiquei curioso por saber a razão disso. Pus-me,
então, a observá-lo cerradamente, de modo que, quando o belo Ganimedes se abeirou
novamente para recolher a taça vazia das mãos de Cleodemo, descobri que este último lhe
roçava o dedo e, ao fazê-lo, pareceu-me que junto com a taça lhe depositava na mão tocada um
par de dracmas. Ao sentir o dedo tocado, novamente sorriu o rapaz, mas eu quero crer que nem
percebeu a presença das moedas. Em consequência disto, as duas dracmas rolaram para o
pavimento com o característico ruído, diante do que tanto o filósofo como o efebo coraram
fortemente!”
Cleodemo pretendeu, então, negar que tivesse algo a ver com aquele dinheiro, o moço imitou-
lhe a atitude, mas o dono da casa, à vista do incidente, achou melhor mandar retirar dali o servo
suspeito. A vergonha, para Cleodemo, está em duas circunstâncias: a sua incapacidade para o
autodomínio emotivo, sendo ele, no entanto, um filósofo, isto é, um sábio; e o ter-se permitido
algo, mínimo que fosse, de entendimento com um escravo.
Conquanto as mulheres provavelmente jamais fossem utilizadas como servidoras de taças, não
há dúvida de que estavam presentes raparigas, fossem como escravas ou como heteras, as quais,
por brincadeira, chegado o ponto em que a embriaguez imperava, podiam ser induzidas a vazar
o vinho dos picheis. Essa função, todavia, como encargo permanente, permanecia privilégio e
responsabilidade de escravos adolescentes.
Às dançarinas e aos tangedores de flauta cabiam finalidades múltiplas, porquanto, além de
satisfazerem, até certa medida ou modalidade, os apetites sexuais dos convivas, competia-lhes
até mesmo atender às funções de entretenimento apontadas pelas suas designações
especificamente profissionais.
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A gente de Colofónia (à qual já nos referimos), no dizer de Filarco, ”promulgou uma lei, que
ainda hoje vigora, estabelecendo que as flautistas e as harpistas, bem como outras artistas
públicas, ganhem salários a contar da manhãzinha cedo até ao meio-dia e desta hora até o
acender das lâmpadas...” E Teopompo afirma, acerca dos Tessálios, que ”passam a vida,
alguns, perpetuamente em companhia de dançarinas e tocadoras de flauta, ao passo que outros
consomem o dia inteiro a jogar, a beber e entregando-se, em suma, a análogas formas de
dissipação...”
Os Cárdios, talvez para variar, ”haviam exercitado os seus cavalos a dançar ao som de gaitas,
nas suas festas báquicas, de maneira que, erguendo-se no ar sobre as pernas traseiras e, como
quem diz, gesticulando com as dianteiras, as alimárias dançavam efectivamente, acostumadas
como estavam às melodias das gaitas”. Este curioso costume acabou por ser a sua desgraça,
pois os seus inimigos procuraram e compraram uma daquelas raparigas flautistas da Cárdia,
que ensinou a um grande número de músicos as melopeias a que os animais se habituaram a
acompanhar dançando, por forma que, ao desenrolar-se a batalha, a cavalaria cárdia se viu
subitamente dispersa pela intervenção da fatal música.
O receio de que a luxúria viesse a derrubar a força e a segurança militares parece ter sido o
argumento de maior peso em seu desfavor, e com certa dose de razão. Polícrates, tirano de
Samos, foi destronado em consequência da sua permanente preocupação com os prazeres - ou,
consoante Clearco -, ”Polícrates, tirano de Samos, arruinou-se por causa do seu dissipado viver,
posto que até se dava à emulação com os lídios em práticas efeminadas”. Levado por isto,
construiu na cidade o famoso ”bairro” de Samos, destinado a rivalizar com o parque existente
em Sardis e a que denominou de ”Doce Amplexo”: e, para competir com os floreios (isto é,
produtos e coisas afins ao prazer) da Lídia, entreteceu aquelas grinaldas sâmias largamente
gabadas. De tais inovações resultou que fosse o ”quarteirão sâmita” um jardim alcatifado de
mulheres profissionais do gozo, além de que dali saiu literalmente a empanturrar toda a Hélade
um extenso cardápio de todas as espécies de comidas que espicaçavam a sensualidade e a
incontinência. Aliás, as ditas floradas sâmitas consistem também nos vários encantos de
homens e mulheres. Mas enquanto a cidade em peso se achava imersa em descuidadas festas
públicas e avinhadas orgias, chegam os Persas, que a atacam e dela se apoderam. Os
Lacedemónios, mais prudentes, viviam atentos às condições físicas dos seus guerreiros,
fazendo o exército desfilar em parada uma vez por semana, estando os soldados completamente
nus,
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para detectar princípios de obesidade e outros indícios de relaxamento pessoal nos seus
homens. Também uma vez por semana se procedia, entre eles, à inspecção geral das camas,
para se ter a certeza de que não haveria quaisquer amaciamentos de colchões que amolecessem
a tropa, minando-lhe o moral.
As generalizações de Ateneus, tanto quanto as fontes de informação em que bebera, uma vez
que abrangem nações inteiras, tomam-se menos valiosas do que os retratos que traça de simples
indivíduos. Alguns destes esboços pessoais já aqui os reproduzimos, tais como os referentes a
Dionísio da Sicília e a Sardanápalo. Mas deste último consta ainda mais um episódio que nos
relata Ctésias. É o caso de Árbaces, um seu súbdito provindo da Média, que desejou encontrar-
se com o soberano; e, através de uma trama de intrigas, conseguiu ser recebido. ”Ao ser
admitido à presença, viu o rei de cara empastada de alvaiade, coberto de jóias como uma
mulher, e a enrolar lã púrpura em companhia das suas concubinas, entre as quais se achava
sentado de joelhos para cima, sobrancelhas pintadas de negro, vestido de mulher e barbeado
bem escanhoado, a face esfregada com pedra-pomes (ele era ainda mais branco do que o leite e
as pestanas eram também pintadas); e quando dirigiu o olhar para Árbaces, fê-lo revirando o
branco dos olhos.” Consta uma série de diferentes versões sobre a maneira como morreu esse
monarca. Segundo alguns, Árbaces, presa de imensa fúria e náusea, ao ver que espécie de
homem era o rei a quem devia vassalagem, abateu Sardanápalo ali mesmo. Outros sustentam
que o rei morreu na cama; e ainda há os que narram a sua morte voluntária, fazendo-se
consumir numa enorme pira fúnebre em companhia de suas concubinas, mais a rainha, e o real
tesouro, e todo o seu guarda-roupa. Essa fogueira ardeu durante quinze dias, provocando muita
perplexidade, porém nenhuma intervenção. Os Gregos eram profundamente conscientes do
lastro de aginismo latente no fundo da natureza humana, de forma que se encontram, com
surpreendente frequência, referências acerca de homens que costumavam aparecer em público
em trajes femininos, embora, a não ser isso, manifestassem hábitos viris, tendo normalmente
preferências heterossexuais. Esse travestismo tinha uma função nos mencionados festivais,
tanto quanto nas próprias vidas particulares, no dia-a-dia das pessoas. Na festa da ”oscofória”,
que se verificava no mês de pyanepsion (que abrangia partes dos nossos meses de Novembro e
Dezembro), a qual ostentava o nome dos ramos da vinha carregados de parras (”oskoi”), os
ditos ramos vinham conduzidos por dois belos efebos vestidos de raparigas. Em Amato, na ilha
de Chipre, adorava-se uma divindade macho-fêmea, parte de cujos ritos era oficiada por um
jovem que se punha deitado
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num leito simulando uma parturiente e a imitar os gritos de uma mulher em trabalho de parto.
Isso era feito em honra de Ariadne, que desembarcara naquela ilha em companhia de Teseu e lá
morrera de parto.
Outra personagem que se dava a semelhante fantasia indumentária fora Andrócoto, um frígio e,
a par dele, também Sagarisa, o mariandiniano. Este último, ”por força dos seus pendores e
hábitos voluptuosos, fazia-se alimentar directamente dos lábios de uma ama, até aos dias da sua
velhice, pois nem sequer se queria dar ao trabalho de mastigar por si mesmo, e também jamais
se dignou, ao menos, levar as suas mãos abaixo do próprio umbigo. Por análogo motivo é que
Aristóteles refere jocosamente a respeito de Xenócrates de Calcedónia que este, ao urinar,
nunca pegava no membro viril; e alegava, no dizer que Aristóteles lhe atribuía: ”As minhas
mãos são puras, a minha mente é que não.”
Idêntica prova da noção do grego quanto à bissexualidade do homem transparece na prática da
flagelação, habitual nas festas eróticas, que, ao contrário das dos Romanos, não eram eivadas
de culpa. Não é realmente de surpreender que o travestismo constituísse tão amiúde uma das
características dessas festas. Os seres humanos podem ter, ou deixar de ter, consciência da sua
bissexualidade. No ordinário da sua vida quotidiana, porém, é-lhes necessário sufocar tais
inclinações.
Teopompo, autor da História do Rei Filipe, refere-se a Estrátão, rei de Sidão, que ”excedia
todos os homens em matéria de prazeres e luxúria... Estrátão costumava arranjar festas íntimas
a que trazia tocadoras de flauta, cantadeiras e outras raparigas que tangiam a lira; era seu
hábito, também, mandar vir muitas cortesãs do Peloponeso, numerosas cantadeiras da lónia,
para além de tantas outras moças de todas as partes da Grécia, algumas sendo cantoras e outras
apenas dançarinas; e tinha a mania de instituir concursos entre elas, a que assistia com os
amigos, e na companhia de toda essa gente é que ele passava toda a sua vida, pois era a vida de
que ele gostava, sendo como era por natureza um escravo dos sentidos, mas mais que isso ia a
todos os extremos para suplantar o seu rival Nícocles”. (Ora aí temos um aspecto interessante e
original, esse motivo de nova espécie para a devassidão: o snobismo.) ”Porque acontece que os
dois tinham um imenso ciúme das façanhas recíprocas, pelo que cada um dos dois vivia a
consumir-se no empenho de cercar-se de mais intensos prazeres e mais conforto do que o seu
emulo...”
Teopompo prossegue, chegando a mencionar um outro amante da volúpia e do fausto, Cótis, rei
da Trácia. Este monarca, sempre que chegava a algum sítio que o seduzisse, durante as suas
andanças pelo reino, fazia-o transformar num local de banquetes ao ar livre, os quais depois
visitava,
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cada um por sua vez. Cótis organizou um grandioso banquete, sob o fantástico pretexto de que
ia casar-se com Palas Atena... ”e, após ter feito erguer uma câmara nupcial, meteu-se nela à
espera da deusa, numa bebedeira desvairada. Depois, completamente fora de si sob a influência
do vinho, destacou um dos seus guarda-costas para ir ver se a deusa já havia chegado ao
tálamo. Voltando o infortunado com a informação de que não havia ninguém no local indicado,
Cótis varou-o mortalmente com uma flecha do seu arco, repetindo a experiência - e o resultado
- com outro mensageiro, pela mesma razão; mas um terceiro soldado, muito sagazmente,
declarou que a deusa já lá estava há muito tempo, à espera do ”noivo”. Este mesmo rei, certa
vez, num acesso de ciúme da esposa, trucidou a pobre mulher com suas próprias mãos,
começando a medonha operação pelas partes pudendas dela”.
Cares, o general ateniense, costumava levar consigo, para toda a parte, nas suas campanhas,
tocadoras de flauta, de harpa e prostitutas, sendo seu costume desviar para a manutenção desses
confortos uma parte dos dinheiros angariados pelo país para a guerra e ainda devolvendo outra
parte a Atenas, destinada ao gozo de particulares e socorro a gente enterrada em dívidas e às
voltas com processos na justiça devido a esses gozos. Tudo isto o tomava extremamente
estimado pelos cidadãos, como era natural, ”porquanto estes também levavam uma vida
semelhante (à de Cares), a saber, que os muito jovens passavam todo o seu tempo em
companhia de umas flautistas insignificantes e nas casas de prostitutas; os já de mais idade
viviam metidos em vinhaças e jogatinas, e prodigalidades outras do mesmo género; enquanto o
povo, em geral, desperdiçava mais dinheiro nos banquetes públicos e nas distribuições de carne
do que na administração do Estado”. É Teopompo quem fala.
Heraclides, do Ponto, na sua obra intitulada Sobre o Prazer, diz de Temístocles que ”ainda nem
bem haviam os atenienses começado a dar-se às vinhaças e ao convívio com prostitutas, já ele
abertamente atrelava a uma carreta quatro cortesãs, e as dirigia como parelhas atreladas através
do Cerâmico, estando cheio de gente esse logradouro”. Esta narrativa vem ligeiramente
adulterada em Idomeneu que, na sua exposição, deixa margem a dúvidas sobre se as heteras
puxavam realmente o veículo, como o fariam alimárias, ou se apenas vinham nele transportadas
juntamente com a pessoa do próprio Temístocles. Contudo, um relato semelhante ao primeiro
existe sobre Marco António.
Como seria de prever, os Gregos davam precedência ao prazer que tomava a vida e a liberdade
coisas dignas de preservação, em detrimento até da condução de uma campanha militar, que
deveria ter a primazia; e, num
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contraste inspirador para os modernos políticos, sacrificavam a potência militar a fim de
manterem um padrão de conforto que servisse para lembrar aos seus concidadãos, lá na pátria, a
benesse por cuja defesa eles estavam a combater. O grande Alexandre, que não era nenhum
guerreiro pachorrento, era muito dado às voluptuosidades. Durante os seus jantares, gostava de
apreciar os entretenimentos apresentados por toda a espécie de prélios, de bailados e de música.
Chegava até a tomar parte pessoalmente nessas apresentações, sendo que, em tais ocasiões,
erguia ele os seus brindes com vinho puro, sem qualquer mistura, o que era contrário ao uso da
época e forçava os seus comensais a imitá-lo. Nos banquetes, ele comparecia ataviado numa
variada sequência de vestimentas, fantasiando-se de divindades diversas, deuses e deusas, umas
vezes ornado com comos como os do deus egípcio de cabeça de carneiro, e outras envolvendo-
se nas gazes femininas de Ártemis. Noutras ocasiões, conforme o seu capricho, ”envergava a
pele dum leão e brandia o grosso lenho, a fazer de Hércules”. ”Ainda noutras, envergava trajos,
como os de Hermes... mas, normalmente, no uso diário, vestia um manto purpurino de andar a
cavalo, uma túnica igualmente púrpura, mas listada de branco, e cobria-se com o toucado
macedónio que levava o friso de realeza. Em Ecbatana, ele organizou um festim em honra de
Dionísio, sendo aí tudo fornecido com prodigalidade para as celebrações; o sátrapa Satrábates
proporcionou entretenimentos e hospitalidade a todos os soldados.”
No dizer de Chares (o historiador, e não o general), ”ao submeter Dário, ele (Alexandre)
celebrou casamentos, para si mesmo e para os seus amigos também, erguendo noventa e duas
câmaras nupciais todas reunidas num mesmo local. A construção era bastante grande para
comportar cem leitos, cada um dos quais se achava enfeitado e guarnecido de cobertas nupciais
e era feito de prata no valor de vinte ’minae’, ou talentos; porém, o dele assentava sobre pés de
ouro. Convidou para o banquete todos os seus amigos e fê-los instalarem-se em leitos fronteiros
ao seu e aos dos demais nubentes do casamento em massa... Toda a armação estava decorada
com sumptuosidade e magnificência, recoberta de panejamentos, e finos linhos, tudo de alto
preço, e pisava-se sobre tapetes púrpura e carmesim entretecidos de fios de ouro. Para que o
colossal pavilhão se aguentasse firmemente ali, havia colunas de dez metros de altura, cobertas
de dourados e prateados e engastes de pedrarias preciosas. Essas bodas duraram cinco dias e
para elas concorreram os serviços prestados por numerosíssimas pessoas”.
Diz Policleto de Larissa que Alexandre fazia-se sempre acompanhar para os seus
acampamentos militares por flautistas, de ambos os sexos, os quais ficavam a beber em sua
companhia até ao amanhecer.
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Um casamento era então, como o é ainda hoje, um infalível pretexto para banquetes, pelo que
muitíssimos terão sido efectuados; um, porém, supera todos os demais, quanto à magnificência
- foram as celebrações em honra do matrimónio de Carano da Macedónia. Essa festa foi
descrita pormenorizadamente por Ateneus e, de facto, a julgar pela quantidade de comestíveis e
pela longa lista de representações artísticas aí exibidas, os festejos devem ter-se prolongado
através de um considerável espaço de tempo. É que não foi apenas uma festa, mas uma
contínua série de festas, pois os prélios de comezainas alternavam com os lances de diversões.
Eram vinte os convidados, os quais, no decorrer da noitada, lograram colher das mãos do
generoso anfitrião muitos presentes, a maior parte destes sob a forma de pratos e taças de ouro
de desenho grandiosamente dispendioso; e, depois dos preliminares comes e bebes de
gigantescas proporções, e que consistiram em galinhas, patos, pombos-torcazes, gansos, lebres,
cabritos, ”bolos com formatos curiosos”, pombos comuns, toutinegras, perdizes e ”outras aves
e de tudo muito”
- na descrição de Hipólocos, ”quando afinal já nos havíamos, satisfeitos e contentes, despedido
de toda a sobriedade, entraram flautistas e cantoras, mais algumas rodianas tocadoras de
sambuca. A mim pareceram-me essas raparigas inteiramente nuas, mas disseram-me que não,
que elas estavam cobertas de túnicas. (Seriam as famosas gazes coanas. Os fabricantes de
tecidos da ilha de Cós aprenderam a fazer produtos de finura de teia de aranha, tecidos esses
que as pessoas mais circunspectas reprovavam, mas os afoitos e os escravos da moda
sofregamente compravam. Muitos desses panos eram exportados para Roma).
As mencionadas artistas eram seguidas por um grande porco, que fazia a sua entrada solene
”sobre uma bandeja de prata toda recoberta de ouro e em espessura não pequena”. O suíno
”jazia de dorso... o seu ventre, visto do alto, revelava estar pejado de petiscos. Porquanto,
assados dentro dele e com ele, lá estavam amarradinhos de paturis, de rolinhas, em quantidade
ilimitada, puré de ervilhas servindo de guarnição a ovos, a ostras, a escalopes...”
Mais divertimentos vinham em seguida a esta assustadora explosão de alimentos, da qual deve
ter cabido bastante substancial porção a cada um dos vinte convivas a quem se destinavam
esses serviços. Dançarinos, jograis e algumas mulheres prestidigitadoras, nuas, logo
apareceram, ”os quais executaram números de equilibrismo por entre folhas de espadas e
sopraram fogo de dentro de suas bocas”.
Novamente se alternaram o comer e o espectáculo, pois às prestidigitadoras nuas seguiu-se
vasta libação. ”Tivemos a nossa atenção presa a uma bebida tépida e quase pura, sendo os
vinhos que estavam à nossa disposição
31
o tasiano, o mendeano e o lesbiano; e foram passadas a cada conviva enormes taças de ouro.”
Peixe assado e presentes de pratos de cristal foi o que veio depois dessa selecção de vinhos que,
por sua vez, precedeu imediatamente uma apresentação de dançarinas vestidas de nereidas e
ninfas e um esplêndido quadro vivo de Cupidos e Dianas, Pãs e Hermes, que seguravam tochas
ardentes presas em aros de prata. Aos comensais que, pelos vistos, ainda se aguentavam de pé
(porque ”O maravilhoso nisso tudo era que, apesar de ociosos e cheios de vinho até aos
gorgomilhos, assim que víamos entrar ’em cena’ qualquer um desses ’números’, logo nos
púnhamos todos suficientemente clareados da cabeça para que nos pudéssemos pôr de pé”), só
se requeria que aceitassem ainda mais um serviço, dado que, após serem servidos javalis
espetados em dardos de prata e carregados de presentes, ser-Ihes-ia permitido recolherem-se às
suas casas ”em seu perfeito juízo... tomamos os numes imortais por testemunhas!... visto que
ficáramos apreensivos quanto à segurança das riquezas que levávamos connosco”.
Resumindo, pode dizer-se que a comida era demasiada, pelo que será lícito qualificar-se esta
festa, sem reservas, como uma orgia nitidamente de tipo gastronómico; mas é certo que festas
de esponsais acordam pensamentos eróticos na cabeça dos convivas e, se bem que a natureza
sexual de uma função social deva ser apreciada mais objectiva do que subjectivamente, para
que se possa acertadamente dá-la como manifestação orgíaca, a válvula de escape, ainda que,
por via indirecta, é aí inquestionável, tanto que a mim me parece que lhe cairia bem a
qualificação de orgia.
Alexandre era, isso é indubitável, muitíssimo dado à bebida, mas na verdade o alcoolismo
exacerbado ao extremo era caso raro na Grécia Antiga, embora Dionísio da Sicília fosse
apontado como o responsável único pelo dano permanente que causou aos seus órgãos visuais
por essa forma de excesso, já que certa vez deixou-se ficar bêbado durante noventa dias de uma
assentada; também Niseus, depois tirano de Siracusa, se empanturrou de comida e se encharcou
de vinho ”como se tivesse sido encarcerado por crime de morte e pensasse que só lhe restavam
uns poucos meses de vida”. Este soberano, uma vez embriagado, ficava excessivamente lúbrico
e punha-se a violentar tanto rapazes como mulheres. Parece que os Sicilianos granjearam certa
reputação de serem desmesuradamente dados à comida e à bebida. Platão ficou
desfavoravelmente impressionado ao notá-lo e a propósito fez a seguinte observação: ”A vida
ali em nada e de nenhum modo me agradava; imagine-se uma existência toda ela passada a
encher-se o bandulho duas vezes por dia e jamais recolher-se ao leito sem companhia, à noite,
isso para não falar de todas as demais práticas que acompanham tal
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maneira de viver.” Diotimo, de Atenas, mereceu o epíteto de ”funil”, precisamente porque
”costumava meter na boca um funil, pelo qual ficava a engorgitar vinho, sem parar, enquanto se
lhe deitasse vinho ali”.
Quanto a orgias de brutalidade sexual, infligidas por um exército vencedor sobre a população
civil derrotada, isso é mais do mundo ex-helénico do que compatível com o espírito do povo
grego. No entanto, os Citas, povo vizinho, ”tendo uma vez saboreado o doce fruto dos
prazeres”, adiantaram-se, segundo narra Clearco, de tal modo ”no mau hábito da insolência,
que até decepavam o nariz a todos os homens cujos territórios haviam invadido, enquanto suas
mulheres tatuavam o corpo a todas as das tribos que viviam nas suas cercanias, para os lados do
Ocidente e do Norte, injectando-lhes com alfinetes os traços da tatuagem.
Afinal, compare-se o caso de Dionísio e das raparigas de Locris (acima narrado). Elas eram
súbditas, não um qualquer povo vencido, e quanto a Dionísio, este era apenas um caso
individual isolado e um ”não-conformista” com a moral corrente de então e, para além do mais,
um indivíduo que provocava até a repugnância da moralidade do seu tempo.
Para que, impõe-se-nos a pergunta, precisariam os Gregos então da válvula das orgias, já que o
seu ponto de vista era tão sadio, tão hedonístico? Por que não deixavam a tensão, fosse ela
sexual ou de outra ordem, ir-se consumindo gradual e mansamente no correr da vida rotineira
do dia-a-dia? A resposta a essas perplexidades é de natureza algo imponderável. É fácil
exagerar-se a noção do hedonismo dos helenos, e muitos o têm feito. E, todavia, aquilo que se
deve ter em mente é o notável equilíbrio da vida helénica, tal que não permitiam a si próprios
deixar que o afã em busca de um bem lhes anulasse o gozo de um outro. O casamento podia
trazer-lhes oportunidades para o deleite dos sentidos, sim, mas oferecia também outros
aspectos, tais como a procriação e a adequada educação da prole. Na Odisseia, vemos Nestor
exclamar para Atene: ”Sê, no entanto, propícia, ó rainha, e concede-me digno renome, que me
exalte e a meus filhos e à minha reverenciada consorte.” Perceberam bem os Gregos que a
desenfreada autocomplacência sexual conduzia, afinal, à satisfação sexual de ninguém e,
também, que esse auto-abandono ”ao prazer podia mesmo destruir outras benesses ocorrentes.
(Os próprios festivais catárticos, de desafogo, como o eram as festas dionisíacas, davam-se a
intervalos pouco frequentes, conquanto regularmente espaçados). A despeito de toda a sua
ingenuidade, eram os Gregos um povo eminentemente prático, suficientemente realista para se
dar conta de que a inclinação prevalecia sempre e, pois, diríamos hoje, para evitarem a
explosão da caldeira, de tempos em tempos, libertavam a
33
válvula de escape. Além do mais, eles sabiam muito bem que nem sempre se equipara o
hedonismo à fugaz satisfação física de um instante. Não obstante, já entre eles se pressente o
indício do conceito que viria a ser o nosso, hoje velho, preconceito vitoriano, a saber, que as
mulheres ou são rameiras, ou são honestas mães de família: as duas categorias são
irreconciliavelmente antagónicas entre si. O âmago da questão reside no facto já exposto,
aquele facto que se esconde por trás do fenómeno orgia no que esta tem de fenómeno social, e é
que os homens são, em boa parte do seu ser, humanos. Porém, noutra parte, são meros animais,
e os interesses dessas duas componentes estão em conflito. A esposa toma-se inaceitável como
partilhadora de lubricidades precisamente porque é esposa, sendo também a pessoa que está
encarregada de desempenhar as funções de dona-de-casa e de mãe.
Um dos resultados da reclusão das mulheres foi a prevalência da homossexualidade - situação
semelhante à que se encontra muito nos países muçulmanos.
Tal foi, na Grécia, uma alternativa a servir de válvula de segurança. Não era, entre eles, tolhida;
porém, e tal como a maior parte das coisas em que infundiam o seu toque, ela tomou-se, nas
mãos dos Gregos, algo idealizado, sublimado.
Em consequência dessa sublimação, desenvolveu-se uma espécie de relações cuja verdadeira
natureza é algo muito árduo de julgar.
O amor entre um homem de mais idade e outro mais jovem era tido como desejável devido à
influência que essas relações teriam sobre o comportamento, em geral, do mais novo. Cria-se,
talvez acertadamente, que o desejo de ser-se considerado admirável influiria beneficamente no
comportamento e nas realizações do mancebo. Agora, o ponto exacto em que tais relações
passavam do plano sentimental para o físico permanece tão problemático quanto o são as
razões pelas quais os Gregos resolveram não só deixar de vedar esse derivativo, como até, pelo
contrário, tiveram por bem glorificá-lo.
Conforme já o dissemos atrás, tratamos dos Gregos um tanto extensamente por eles terem
constituído uma das duas sociedades civilizadas que inscreveram essa manifestação, a orgia,
como parte integrante do seu modo de vida nacional, em suma, como um recurso oficialmente
reconhecido, de escape de pressões. Disso não se conclua, já o vimos, que não haveria entre
eles, também, os orgiastas ”rebeldes” contra a sociedade helénica, e isto é uma circunstância
interessante e significativa, conquanto seja ainda muito cedo para se precisar de que é ela
significativa. A segunda de tais civilizações é a romana, da qual passaremos agora a tratar.
Infelizmente, à prestimosidade
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da orgia, como válvula de segurança, associa-se o inerente perigo de degeneração. Um daqueles
povos, que apresentam dois respectivos padrões do fenómeno, dentro de um dos quais os
orgiastas rebeldes de subsequentes gerações podem ser classificados, um deles, o grego ou o
romano, foi, a meu ver, infinitamente mais sadio, brilhou mais e viu-se dotado de mais
esclarecimento quanto ao verdadeiro objectivo da orgia e, ainda, de maneira curiosa quanto à
natureza total da própria sexualidade, do que o foi o outro. Não antecipemos, porém, o debate
da questão - pois os sucessores dos Gregos vão ser agora analisados, de modo que as
comparações ressaltarão por si mesmas, sem dúvida.
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CAPITULO SEGUNDO
OS ROMANOS
É impossível imaginar-se uma maior diferença do que aquela que separava as duas filosofias da
vida antagónicas, a dos Romanos e a dos Gregos, se as apreciarmos à luz dos conhecimentos
que possuímos sobre o comum das gentes integradas, respectivamente, numa e na outra das
duas civilizações.
No ramerrão do seu viver diário, o grego, tal como já aqui vimos, mostrava um indisfarçável
gosto de viver, no que entremeava de graça de classe e de subtilezas de entendido na arte de
bem viver, bem como de saber compreendê-la nos seus iguais: quer isto dizer que sabia comer,
sabia envergar as suas belas vestes e sabia conduzir-se no terreno da sexualidade. Uma das
primeiras impressões que nos assaltam ao lermos algo sobre este aspecto das respectivas
existências dos dois povos é a de que os Gregos sabiam dominar a sua sexualidade, ao passo
que a dos Romanos, ao contrário, dominava-os a eles, que se lhe abandonavam como a um
despótico senhor, o qual por fim veio a destruí-los tal como eles mesmos o haviam previsto e
até pretendido e deliberado.
A vida sexual grega era extraordinariamente isenta de perversões. (Desta categoria, excluo a
homossexualidade, pois esta não procede de um erróneo conceito de sexualidade.) Um dos mais
certos sinais da presença, ou da ausência, de malignidade na vida sexual característica de uma
dada civilização é encontrar-se isso na sua literatura, critério este pelo qual os Romanos sofrem
condenação, ao mesmo tempo que os Gregos superam a prova tão garbosamente, senão mais
airosamente, do que qualquer nação moderna. Este juízo, à semelhança de qualquer outro de
ordem ética, é essencialmente subjectivo e não objectivo; mas quer-me parecer que grande
parte do descontentamento proveniente do sexo dever-se-á apenas a uma parcial e inconsciente
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renúncia à actividade sexual; pelo que não acho que à sexualidade se possa, com justiça,
atribuir, em qualquer extensão, causa eficiente de infortúnio, e que, isso sim, será ela causa de
alegrias.
A literatura dos Gregos contém numerosas referências ao amor homossexual mas, como já
vimos, esse amor é sempre envolto em idealismo, é objecto de admiração e misticismo: toda a
atitude grega indicava apreço e admiração pelas possibilidades de deleites puramente sensuais,
sem a pecha da heresia de achar impossível combinar, entre si, prazeres intelectuais e físicos, o
que leva, inevitavelmente, tanto quanto indesejavelmente, ao sacrifício de um dos outros dois
géneros associados.
Analisando a literatura dos Romanos, encontramos-lhe algo de diferente. Não que seja tão
ostensiva quanto seria de esperar, porém ela aí está, sempre perceptível, não obstante a
obsessão da crueldade e, o que é mais importante, a atitude propensa à crueldade, coisa jamais
encontrável na literatura dos helenos. E todos sabemos quanto a referida presença se reflectia
efectivamente na quotidiana vida prática do Lácio. Quanto a mim, tenho uma firme convicção
quanto à causa real de tal fenómeno e, se estou com a verdade, a dita causa é extremamente
relevante para o exame dos métodos pelos quais os Romanos procuravam os seus prazeres, bem
como da razão porque, segundo demonstrei, falharam nisso. Em primeiro lugar, quero
demonstrar a extensão realmente estarrecedora em que os seus instintos tanáticos se fizeram
sentir na vida ordinária do seu povo.
É claro que os Gregos, como todo o mundo, aliás, tinham também os seus sentimentos de
agressividade e desejos sádicos, ainda que tal vocábulo, ”sadismo”, apareça aqui, na verdade,
como coisa singularmente descabida; porquanto a essência mesma, integral, da atitude grega
perante esses instintos era a de uma completa isenção de taras mórbidas. Os festins orgíacos, do
género dos dionisíacos, serviam-lhes não somente como recurso para conseguirem aquela
”teolépsia” que já descrevemos, como também - e igualmente já o disse - como válvula de
escape a ambos os instintos, o tanático e o erótico.
Essa última (a dita válvula de segurança) é que é a verdadeira função atribuível à orgia, não
passando aquela referência à ”teolépsia” de explicação romântica com que o homem
semiprimitivo procurava racionalizar factos que a sua mente não conseguia nitidamente
apreender.
Muita gente há que se obstina em não reconhecer que é portadora de instintos sádicos; outros
indivíduos, porém, até se deixam fascinar completamente por eles. Neste fenómeno reside um
dos perigos da orgia, se a ela se entregam pessoas que não tenham o discernimento de perceber
a sua
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natureza diversiva. E os Romanos enquadravam-se neste último tipo de gente.
Há quem ache incrível que alguém retire qualquer prazer real, gozo de origem erótica, da
contemplação do sofrimento. Pois existe tal espécie de indivíduos, ou, pelo menos, havia
outrora gente que se deleitava em ver matanças, acompanhadas ou não de tormentos; é coisa
incrível, porém, infelizmente, menos possível de se rejeitar a pretexto de subjectiva
incompreensibilidade.
Pela descrição de Rosenbaum (Histórias da Sífilis), grandes levas de prostitutas costumavam
reunir-se em bordéis nas cercanias do Anfiteatro Máximo, visando interceptar, na saída dos
jogos, os homens que de lá vinham sexualmente excitados, a mais não poder, pelas sangrentas
exibições de gladiadores, mutilações e carnagem, lutas de feras e todas as demais formas de
insânia obsessiva que se desenrolavam na arena. Uma das mais destacadas, repulsivas e
características feições daquelas cerimónias era a organização, o elevado grau de ritualismo com
que elas eram realizadas. Eis, portanto, o que põe o ferrete de pervertidos na carne dos
Romanos: a meticulosa elaboração, o planeamento, a constante engenhosidade no criar sempre
novos instrumentos de tortura, o odioso cerimonial, em suma. Em todo e qualquer modo novo
de levarem a efeito uma execução, em toda a forma de tortura, era invariavelmente introduzida
uma formalidade que era vergastar-se previamente a vítima ou condenado. Não bastava matá-
la. A morte nada era, uma simples sonegação de vida; era mister infligir dor, primeiro. ”Firam-
no de maneira que ele sinta que está a morrer!” - disse Calígula; e, embora pareçamos desleais
por citarmos, como provas, dizeres de um epiléptico e louco, a História aí está para nos mostrar
com horrível e empolgante clareza que, no tempo desse monstro, tal mentalidade não era tão-só
o apanágio de um tarado apenas, ou sequer de um reduzido círculo de iguais a ele. Por onde
quer que olhemos, deparamos com coisas idênticas. A sociedade romana baseava-se na
escravatura e tratava os seus escravos de maneira abominável, fazendo-o não apenas os amos,
os pater famílias, mas também as respectivas matronas; nem se dirá, tentando uma explicação
justificativa, que semelhante crueldade assentava na necessidade, ou que diferiam das nossas
actuais, as convenções que regulavam, na época, o humanitarismo; ou, ainda, alguma outra
desculpa qualquer, a fugir da simples e interessante verdade. Vemos como Juvenal verbera o
sadismo das mulheres romanas do seu tempo:
Mas sabeis, decerto, o que faz a mulher
em casa o dia inteiro. Se o marido lhe deu as costas
no leito: o deus acuda à serva da casa!
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Às servas da senhora são estraçalhadas as vestes, | ”?!;; f
[e surra-se o cocheiro, Por ter comparecido atrasado (e punido porque
[um outro dormia) destroem-se fusos, costas lanhadas e a sangrar
[são ainda flageladas E novamente lanhadas: damas há que têm de reserva
[um açoite especial, seu.
com ele açoitam, enquanto lhe fazem a pintura facial, Conversam com pessoas amigas, apreciam
um vestido com
[fímbrias douradas, Lêem tabulas diárias e vergastam até que se desfaça
[em tiras o açoite
e então gritam ”Ide-vos daqui!”, eis que terminou o suplício. E assim a ”domina” governa a sua
casa com mais selvajaria
[do que um tirano.
Marcou um encontro, quer ter uma aparência Mais bela que a costumeira, pois ”ele” espera-a Sob as
árvores, ou no bordel da deusa ísis, E a pobre Pseca arranja a cabeleira de sua ama, enquanto
[que a sua própria
Ela a tem desgrenhada e os ombros nus, seios à mostra. ”Esse cacho está muito alto!” E, sem
demora, o chicote
[de couro de boi Corta as carnes à desgraçada, cujo crime fora uma simples
[cabeleira mal arranjada.
O relato de Juvenal não deixa de trair veladas insinuações sexuais.
Buscando-se a causa de uma característica tão evidente numa dada sociedade, vai-se
naturalmente procurá-la no estudo do seu sistema educacional. Aqui, como noutros lugares,
achamos a mesma velha história, os frequentes e severos acoitamentos, a pregação da virilidade
agressiva que, tal como na situação que lhe faz eco 2000 anos mais tarde, só podia levar a
subsequente infortúnio para quem quer que se achasse envolvido nela. Mas é discutível se
deveremos aceitar, ou não, tais elementos da educação romana e da germânica, como causas,
ou antes como resultado, meramente sintomático, da enfermidade social originária.
A crueldade dos jogos circenses e o fausto dos particulares aumentavam à medida que a
actividade militar nacional decrescia. Ao longo de muitos
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anos, os romanos deram-se à crueldade e à violência mais ou menos acessórias, apenas, dos fins
a que visassem. Cessada a necessidade delas, verificaram que, não obstante, já não podiam
largar o seu hábito. Aquilo que começara como facto desprovido de sentido sexual, agora, sub-
repticiamente, firmava-se no erotismo. Este é um processo que se pode observar, e tem sido
observado, noutros locais, muito em particular no que diz respeito aos cultos religiosos. O
instinto sexual é muito forte e a fertilidade da mente humana para a criação de simbolismos
sexuais é uma coisa sem limites. Não será muito de surpreender que o erotismo seja uma
manifestação de tal modo infiltrante. Todo o ser humano é, até certo ponto, polimorficamente
pervertido, já que as sementes de tantas perversões jazem dentro de nós todos, e nenhuma delas
responde tão prontamente à fertilização como o fazem o sadismo e o masoquismo. O sadismo
dos jogos circenses romanos indubitavelmente acordava ecos nos corações de muitos dos
espectadores. Santo Agostinho relata o seguinte:
”Vivia em Roma, onde estudava, um jovem cristão. Muito tempo andara a evitar o anfiteatro,
mas por fim um dia lá foi, levado em visita por alguns amigos. Afirmou-lhes que eles podiam
arrastar o seu corpo até ali, porém não a alma, porquanto pretendia deixar-se estar
permanentemente de olhos fechados e, assim, se conservaria ausente. Fez como prometeu; mas
um grande brado que se levantara induziu-o a abrir, instintivamente, os olhos curiosos. Foi aí
que a sua alma se viu trespassada mais cruamente do que os corpos feridos que ele quis
contemplar; e sua queda foi mais deplorável do que o tombo mortal, na arena, que provocara o
alarido. Porque, à vista do sangue, ele se embebedou da embriaguez da crueldade; não mais
teve forças para desviar a vista; esta tomou-se-lhe fixa, fascinada; ei-lo, que estava bêbedo e
sequioso de sangue. Para que hei-de eu insistir? Apenas olhou e logo o seu sangue ferveu; e
dali já saiu ele levando na mente uma insânia que desde então o seduziria a voltar outras
vezes.”
Atrás da ideia de sado-masoquismo situa-se uma equação de violência e cópula. E isso implica
várias outras ideias preliminares. A primeira delas é o conceito de que no sexo há algo de
criminoso e erróneo, e a segunda, que daí procede, é que o elemento activo, dos dois
participantes, comete um ultraje contra a pessoa do comparsa passivo. No seguimento disso
virá o impulso-desejo de retribuição.
O portador de qualquer uma dessas duas perversões é um espírito tresmalhado, em algum canto
do seu consciente. Dar-se-á um de dois casos, a saber: que ele tenha decidido, mediante um
tortuoso e enganoso processo
40
mental subconsciente, dever sacrificar a sua sexualidade a bem da salvação da sua consciência
e daqueles entes com quem entre em contacto; ou, então, como se passa com o sádico, ver-se-á
torturado por um muito merecido sentimento de culpa.
Isso é o que eu acredito que se passava no caso da Roma Imperial. Lá porque os Romanos se
comportavam brutalmente, não há que concluir - e, na verdade, tal conclusão seria a mais
errónea que é possível - que eles eram fundamental e totalmente gente brutal. Não há quem seja
dono de um carácter rectilíneo de ponta a ponta, não há ninguém inteiramente isento de
instintos inferiores, mas também ninguém é completamente animalizado e, portanto, ninguém,
que não seja simplesmente um animal, é completamente privado de consciência.
A sociedade romana repousava, em equilíbrio, sobre uma outra, a dos escravos. Erigia-se sobre
o penhor que os senhores deviam aos seus escravos e o qual bem podiam fingir não ter em
conta, e procuravam ajustar-se lá no seu íntimo, o que não deixava de constituir uma
permanente ameaça à sua paz de espírito.
Não há, no que aqui se disse, nenhuma imaginativa especulação do género freudiano. Se
examinarmos os prazeres dos Romanos, revelar-se-nos-ão neles muitas das características do
jogador obcecado, que age ostensivamente com a esperança de ganhar, porém no seu modo de
agir vislumbra-se que ele está igualmente empolgado com a ideia de que poderá perder e,
assim, retira o seu prazer em grande parte desse elemento de perigo que o ameaça. Este traço
ressurge amiúde nas acções dos Romanos. Eles não eram hedonistas, apesar de
apaixonadamente se darem à luxúria,” já que lhes deverá ter parecido evidente, tal como aos
seus vindouros, que o que faziam continha um elemento de autodestruição e haveria
forçosamente de renegar os próprios fins visados. O hedonista não é alguém que esteja
necessariamente a trair a sua filosofia ao comprar a felicidade do momento ao preço do
desgosto de mais tarde, a menos que nos recessos da sua mente o termo ”comprar” seja
utilizado com o sentido com que nós dizemos de um criminoso regressado da prisão que este
”pagou” pelo crime que cometeu. Esta confusão é frequente.
Até esta altura pintámos um quadro bastante soturno, aliás uma representação exacta; porém,
diga-se que nem todos os romanos eram sádicos. Pondo-se de parte as excepções individuais
que confirmam quaisquer regras, havia abundância de aspectos da vida romana onde a
preocupação de domínio daquela raça dormia tranquila no seu seio, conquanto e bastante
estranhamente sejam alguns desses aspectos que terão sofrido o maior impacto dos apodos
atirados sobre o ”decadente” Estado romano.
41
O sado-masoquismo representa um falso conceito da natureza da sexualidade, sendo a religião
ainda outro, como já o apreciámos no caso dos Gregos. É possível não ser isto um postulado
muito correcto. O sadismo representa um falso conceito; a religião é uma idealização. Nenhum
dos dois estará à altura de aceitar o sexo pelo seu valor nominal, mas a última, a religião, é
infinitamente preferível ao primeiro. Pois este, o sadismo, representa uma derrota, ao passo que
aquela oferece um compromisso. O sadismo pode causar infinito mal, enquanto a religião bem
pouco.
Quase todas as divindades romanas relacionadas com a vida sexual, fossem elas importadas ou
locais, viram-se rapidamente descaracterizar pelo carácter dos seus ”progenitores” humanos.
Vénus, teoricamente a deusa do amor, aparece na vida romana sob sete personificações
diferentes, quase inconciliáveis entre si. Era ela a guardiã do amor lícito, sendo o seu culto
celebrado pelas matronae, as mães de família. Mas essa faceta do seu carácter, na qual é vista
essencialmente grande lubricidade, reduz-se a nada ao descobrir-se que a deusa era, igualmente,
a padroeira das meretrizes. E, terceiro aspecto, quiçá o mais significativo, ela era até, de alguma
forma, a própria mãe da nacionalidade romana. (Sabendo-se que o símbolo do poder do Estado
entre os Romanos eram os fasces
- feixes de varas e um machado, dos lictores -, essa ligação entre nação e instinto erótico é, para
se ser breve, pelo menos interessante). Para nos confundir ainda mais, Vénus surge-nos uma
quarta vez como a Vénus Verticordia, isto é, aquela que desvia os corações (a das coisas
licenciosas). A idolatria desta forma da divindade vem do ano 114 a. C., em que três virgens
vestais foram condenadas à morte por terem desobedecido às leis sobre actividades sexuais. É
difícil entender-se muita coisa sobre esta complicada deidade, cujas diferentes ”invocações” se
celebravam, todas, em diferentes festivais. Aquela a quem as rameiras invocavam como sua
padroeira sob nome de Volgivaga, a que perambula pelas ruas, tinha a sua festa a 23 de Abril,
no dizer de Ovídio que, infelizmente, não entra em pormenores. O culto de Vénus denota a
capacidade que tinham os antigos para verter em formas ritualísticas religiosas numerosos
assuntos que aos nossos modernos modos de ver são perfeitamente inadequados à deificação e
ao culto.
A idolatria de uma divindade conhecida como Fortuna Virilis, que alguns diziam estar
relacionada com Vénus, e que era adorada por mulheres das classes pobres nos banhos dos
homens - mais a ingénua justificação de que ”ali, ficam a descoberto aquelas partes do corpo
masculino que reclamam o favor das mulheres” -, tudo isso revela a mesma atitude um tanto ou
quanto helénica. f c -
42
O deus Líber, pelo menos originalmente, era apenas um nume que presidia, de maneira
relativamente positiva e directa, à fertilidade. Em várias regiões da Itália honravam-no
mediante cultos fálicos. Onde tal se verificava, ia um enorme falo de madeira conduzido com
grande cerimonial sobre uma carreta, a percorrer a cidade e os campos, até ao momento em que
uma das matronas locais o ornamentava com uma coroa. Pode ser que os Romanos o tenham,
ou não, idealizado originariamente como ligado apenas à fertilidade do solo; o facto, porém, é
que ali existia o respectivo simbolismo, patente e conveniente, pelo que logo se pôs a esgueirar-
se-lhe para dentro um outro elemento. Eis como Santo Agostinho fala dessas cerimónias:
”Varrão diz, entre outras coisas, que os ritos do deus Líber eram celebrados nas encruzilhadas
dos caminhos da Itália, de forma tão despudorada e licenciosa que as genitálias masculinas
eram aí adoradas em honra do deus... e isso não era feito com qualquer aparência de sigiloso
recato, mas com depravação escancarada e exultante. Aquela vergonhosa parte do corpo era
pomposamente colocada, durante a festa de Líber, em carretas que se arrastavam por todas as
encruzilhadas, campo fora, chegando, por fim, à cidade. Na de Lanuvium, era dedicado a Líber
um mês inteiro. No decurso deste, todos os cidadãos se exprimiam com a linguagem mais
ignominiosa, até ao instante em que o gigantesco falo era levado através da praça do mercado
para o lugar onde ficaria novamente guardado em repouso. Havia imprescindivelmente mister
que a mais distinta das matronas da cidade engrinaldasse com suas próprias mãos honradas
aquela infamante efígie. É que o deus Líber precisava ser atraído a propiciar, garantindo-o, o
futuro das colheitas; também se impunha esconjurar o mau olhado dos campos, mediante o
forçar-se uma dama casada a fazer em público coisas que nem mesmo uma rameira poderia
num palco teatral realizar à vista das espectadoras casadas.”
Kiefer explica que ”o facto de ser a cerimónia desempenhada por uma mulher séria mostra que
não constituía manifestação de deboche mas, sim, um velho costume impregnado de
significação religiosa, o qual visava evitar influências mágicas destrutivas”. Há um pouco de
verdade, mas não muita, no que ele aventa. Mais comum, até, do que raro, é que a apreciação
de resultados constitua método fidedigno de se julgar uma causa. Se certa gente se comporta de
maneira parcial ou totalmente erótica, evidentemente não seria lícito supor-se que as suas
motivações seriam, na sua origem absoluta, parcial ou totalmente sexuais. Nos casos em que se
introduz um dado processo intelectual à guisa de motivação de determinado comportamento
sexual, é mais crível que se trate então do caso inverso.
43
Kiefer prossegue, abalançando-se a encarar o falo como um amuleto contra o mau olhado,
procurando desta forma isolar da erótica aquele emblema.
”Por vezes erigia-se sobre as portas da cidade um falo, como protecção contra o azar. Havia
casos em que o dito falo se sobrepunha à inscrição ’Hie Habitat Felicitas’ - a felicidade mora
aqui. Isso, naturalmente, não queria dizer que a localidade se atribuía a virtude de garantir a
ninguém qualquer forma de felicidade sexual, mas, tão-somente, que aquele falo, pelos seus
poderes mágicos, repelia o assalto do mal.”
No entanto, a ideia que Kiefer tão ligeiramente descarta nem por isso é inteiramente ridícula. O
falo é capaz de acarretar a homens e mulheres felicidade de um determinado tipo, pelo menos,
e, sendo na verdade miraculosa a natureza desse dom, ela surgia aos olhos do homem
semicivilizado de então como um facto portentoso, de natureza mágica.
É ainda Kiefer quem menciona o número de amuletos fálicos que estão na posse dos museus, os
quais os negam, ciosamente, à vista embasbacada do grosso do público. ”O homem dos nossos
dias contempla essas coisas quase que com os olhos de Santo Agostinho e, assim, deixa de
fazer justiça ao profundo significado original do (tal) símbolo.”
Não se pode evitar acolher-se a impressão de que o homem de hoje, na sua ingenuidade e
simplicidade e, com ele, Santo Agostinho - pondo-se de parte o moralismo deste último -,
estarão com a razão, ao passo que Kiefer, em toda aquela sua subtileza, é que estará errado. O
tal significado que ele dá como sendo ”original” não passa, em boa verdade, de um
desenvolvimento do original, que deverá ter sido, ainda que nem conscientemente, erótico.
Príapo, o deus dos jardins, é ainda mais francamente fálico. Sendo, teoricamente, um mero
espantalho de aves, como era Líber, o seu elemento de erotismo acabou, afinal, por dominar
inteiramente o seu culto. Por vezes, a sua imagem resumia-se simplesmente à forma de um
imenso falo, ao qual se acrescentava uma aparência de cabeça e fisionomia humanas. Quase
sempre vinha ornado de um órgão genital de colossais dimensões. De qualquer maneira, fosse o
deus originariamente ligado, ou não, à ideia de sexo, o facto é que a imaginação popular desde
logo o transformou numa divindade totalmente sexual e, assim, as características da sua
sexualidade seriam precisamente as dos seus adoradores. O falo de Príapo aparece
frequentemente sob o conceito de arma ou instrumento de castigo, segundo no-lo indica a
conhecida colecção de poemas latinos que traz o título de Priapeia. Percorre esses poemas de
ponta a ponta uma veia acentuadamente sádica, notando-se que um elemento idêntico se
encontra nas festas adstritas ao culto priápico.
44
História das orgias gregas
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História das orgias gregas

  • 2. Edições Século XXI, Lda. Apartado 41022 1506-001 Lisboa Codex Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor © Burgo Partridge A History ofOrgies © Edições Século XXI (2003) Colecção Percursos/História Tradução de Leonel Cândido Silva Phêbo Revisão gráfica de Alice Araújo Capa de Paulo Bacelar Imagem da capa: La Mort de Babylone, de Rochegrosse Fotocomposição, paginação e montagem: Ramo de Ouro, Lda. ISBN: 972-8293-25-9 Depósito legal n.° 195599/03 Impressão: Papelmunde - SMG, Lda. Acabamento: Inforsete - V. N. de Famalicão
  • 3. Burgo Partridge HISTÓRIA DAS ORGIAS Tradução de Leonel Cândido Silva Phébo
  • 4. PREFÁCIO A orgia é a válvula de escape de uma pressão como a do vapor de água; é a expulsão de histeria acumulada pela abstinência e a autocontenção e, assim sendo, tende igualmente a partilhar dessa natureza de fenómeno histeróide ou catártico. Toda a forma de autocontenção acarreta as suas tensões peculiares. O Homem encontra-se na constrangedora contingência de trazer em si mesmo, em simultâneo, as inclinações do indivíduo civilizado e as do mero animal, as quais há que procurar conciliar, normalmente em detrimento das últimas. Mas essa pressão, progressivamente crescente, não pode ele aguentá-la perpetuamente; de modo que se valerá, para todos os tipos de tensão, de uma válvula de escape - que é a orgia. Muitas das orgias, no entanto, não são tidas geralmente como tal. As guerras, por exemplo, num certo sentido, são uma forma de orgia, extremada e desagradável; e, catalogáveis muito lá para o fim da escala de valores da espécie, deparamos com as discussões em reuniões sociais ou cocktails, as partidas de mau gosto, pregadas por caixeiros-viajantes grosseiros, as pequenas escapadelas de maridos ocasionalmente infiéis - em suma, uma longa lista. Neste livro só se incluem as orgias de carácter ou origem sexual, e isto por dois motivos concomitantes, a saber: o superior interesse que representam para toda a gente e as dificuldades que obstam ao reconhecimento e definição, propriamente como orgias, de algumas delas de outra natureza. A orgia serve ao propósito útil de não somente prover ao alívio de tensões causadas por abstinências (necessárias, estas, ou não), mas também de reanimar por contraste o apetite para as monótonas temperanças que representam parte inevitável da vida quotidiana. Daí ter sido utilizada por certascomunidades sociais tão marcadamente diferentes entre si como por 7
  • 5. exemplo, os povos da Grécia Antiga e (essa, de má vontade) a Igreja cristã medieval. Existe ainda, todavia, mais uma espécie de orgia: a individual. Essa não é, na verdade, essencialmente organizada, nem tolerada pelo Estado ou pela sociedade, visto que surge da equação gratuitamente estabelecida pelo indivíduo, face à sociedade ou ao Estado com o sentimento de reclusão e cerceamento que o aflige. Essa imputação é muitas vezes justificada, sendo, por outro lado, algumas vezes errónea ou inexactamente concebida por si. Estas últimas são as mais interessantes e menos banais: o rebelde é aí uma figura mais perplexiva do que conformista e, neste particular campo de estudo, foi ele o que nos mereceu atenção mais acurada. Caso algum desses tipos tenha recebido um tratamento desproporcionadamente extenso da nossa parte, esperamos que sejam compreendidos os nossos motivos de autor. Ambas as espécies de orgia, a do conformista e a do rebelde, podem ser reduzidas a um só e mesmo princípio - o do escape a uma qualquer tensão intolerável. Uma delas poderá bem lograr êxito, desde que incida sobre a verdadeira raiz do mal consumptivo; e, se não a acompanharem mui aflitivos sentimentos de culpa e auto-repulsa, é provável até que continue a funcionar sem maiores sobressaltos. A outra espécie - a do rebelde - pode também ser satisfatória, se é que a equação imputadora da opressão à responsabilidade do meio social se prova legítima; mas, mesmo assim, o orgiasta expõe-se a permanecer um solitário e, tudo somado, um indivíduo nada feliz - pois ter-se-á provavelmente excedido na sua peculiar forma de reacção, que o terá arrastado até a um grau de licença que não lhe será propriamente inata. Os dois primeiros capítulos versam sobre os orgiastas da espécie conformista (Grécia e Roma), mas foi uma ou outra dessas duas diferenciadíssimas modalidades que os subsequentes ”rebeldes ” tenderam a escolher como norma, motivo pelo qual importa muito que se tenham presentes à lembrança as naturezas latina e helénica, e então estará aberto o caminho a uma tentativa de apreciação ética do assunto. 8
  • 6. CAPÍTULO PRIMEIRO OS GREGOS Aos que pensam que as grandes realizações e o êxito na vida dependem de subtileza mental e destreza verbal e que a inteligência é incompatível com a ingenuidade, a esses o estudo da maneira de viver e do pensamento dos Gregos provocará uma reveladora surpresa. Como nação, os helenos realizaram maravilhas de arte, de pensamento e de teorização política tais que não encontraram rivais que os superassem, se é que jamais foram ao menos igualados, por mais de uma dúzia de séculos. Não obstante, no que diz respeito à vida prática de cada dia, os Gregos baseavam o seu comportamento e os seus ideais num hedonismo extraordinariamente ”simplório” e sensualístico. Diferiam da maioria dos povos modernos ao serem imunes a essa moléstia que a tanta gente aflige hoje em dia, a fixação num alvo ou objectivo na vida, excluídos todos os demais, e a busca semiobsessiva desse absorvente objectivo, acompanhada da subestimação de quaisquer outras alternativas possíveis. Os Gregos eram idealistas e entusiastas por tudo o que interessava à sua vida, consideravam a juventude como um bem especialmente precioso e as alegrias dessa fase como a suprema felicidade. A beleza e o amor eram, acima de tudo, votados aos prazeres da existência, que eles almejavam, e o ideal proclamado pelos seus bardos. A saúde merecia-lhes apreço, porquanto sem ela não se alcançaria facilmente a felicidade, e esta era a única finalidade da vida. Saborear prazenteiramente a vida em geral era uma prerrogativa digna de se batalhar por ela, segundo julgava Sólon. Por toda a parte, nos seus escritos e na vida particular de cada cidadão, os esforços dos Gregos denotavam anseios idealísticos; e não pelo dinheiro nem tão-somente pela sede de prestígio, nem ainda por alguma esdrúxula situação na existência humana. A cultura helénica é, por inteiro, um hino em louvor do prazer, cuja 9
  • 7. natureza era uma intensa e requintada sensualidade. Em todos os níveis intelectuais, o povo discernia a essencial parte que o materialismo voluptuoso representava nas coisas humanas. Só depois de velho é que Sófocles emitiu a conhecida observação de que a velhice merece ser louvada, porque nos liberta da sujeição à sensualidade. A atitude do grego perante o desejo era muito diversa. O poeta Simónides pergunta: ”Seria deleitosa a vida dos mortais sem a existência da felicidade dos sentidos? Não é, porventura, a vida dos bem-aventurados deuses bem pouco de invejar-se sem isso?” Os deuses gregos, que talvez reflictam a natureza dos seus fiéis helénicos mais flagrantemente do que ocorrerá com os de qualquer outra mitologia e civilização, são, igualmente, sujeitos à contingência dos desejos e dos prazeres da carne. No oitavo canto da Odisseia há uma cena particularmente significativa, na qual Afrodite se abandona a ilícitos gozos de amor nos braços de Ares, o deus-Sol. O marido, Heféstion, o deus- coxo, conclama todos os outros deuses para que venham testemunhar o adultério daquelas duas divindades; e, no entanto, ao contemplar aquele espectáculo, disse a Hermes o divino Apoio, filho de Zeus: ”Ó Hermes, filho de Zeus e seu mensageiro, ó tu que és o dispensador das benesses, em verdade gostarias, mesmo que te retivessem, muito embora, enleantes peias, gostarias de te reclinar em tépido tálamo ao lado da áurea Afrodite?” Ao que interpôs o mensageiro Argeifonte: ”Saberás tu, divino arqueiro Apoio, que, quanto a mim, quem mo dera, que tal me caísse por sorte... pois, então, ainda que me atassem peias três vezes mais enleantes, vós todos, ó deuses, e todas vós, deusas, também haveríeis de ver e estarrecer, ai!, que outra coisa não faria eu senão deitar-me ali também, ao lado da deusa Afrodite, a dos cabelos de oiro!” - e como de tal maneira discorresse o astuto mensageiro, farto gargalhar rebentou dos divertidos deuses imortais. Como se vê, nem uma palavra de repulsa moral, mas apenas uma gargalhada e aprazimento contém o comentário das olímpicas personagens sobre esse episódio, em tomo de semelhante motejo à fidelidade conjugal, devido à própria deusa do Amor. É que as convenções que regiam o comportamento sexual, tais como vigoravam então, tinham força de lei apenas civil: o conceito de ”pecado” daí aduzido só apareceria mais tarde, com a civilização cristã. Megaclides, o historiador, censura os poetas por salientarem, em demasia, os trabalhos e as provações de Hércules, o herói nacional grego, quando este andou sobre a Terra a conviver com a Humanidade. Frisa ele quanto se comprazia o semideus, e intensamente, nos gozos sensuais, o vasto número 10
  • 8. de mulheres que desposou e o incontável de filhos que engendrou. Quanto gostava ele de comer e de se banhar, que até, em toda a Grécia, era de uso um leito especialmente macio que se conhecia, qual denominação industrial, pelo nome de Hércules. Megaclides ataca os poetas, pois, não pelo mero facto de negligentemente omitirem um importante aspecto da vida de Hércules, porém, sim, porque com esse descuido lhe estariam a lançar um sacrílego insulto. Sem embargo, gente muito equilibrada eram os Gregos, para se entregarem a uma vida de perpétuos festins e destemperas. Sabiam reconhecer na castidade o valor de aperitivo essencial para a impudicícia e, também, que as delícias eróticas, por muito sedutoras que fossem, nem por isso haveriam de ser ininterruptas. Mesmo assim, olhavam a sensualidade como assunto muito sério e, como tal, versavam-na os seus escritores. Ateneu de Náuclia, no duodécimo capítulo do seu Delpnosofistas, discorre sobre a noção de prazer de um modo teórico, daí enveredando por um desdobrar de exemplos arrebanhados dentre diversos povos, a começar pelos Persas, mostrando-nos como era que cada povo sabia encher a existência com folguedos e libertinagens, a cuja exposição fazia seguir um rol de homens afamados pela vida lasciva que levavam. Segundo Heraclides, o rei dos Persas possuía um serralho de trezentas mulheres, as quais ”dormiam o dia todo, a fim de permanecerem despertas à noite; mas, ao serão, cantam e tangem harpas, continuamente, enquanto as lâmpadas não se consomem; e então, o rei frui delas os seus prazeres, como suas concubinas que são”. As ditas mulheres costumavam, aliás, acompanhar o soberano às expedições cinegéticas1. Os Lídios, no dizer de Xanto, costumavam castrar não somente rapazinhos, mas também meninas, para empregá-los na qualidade de eunucos, nos palácios dos poderosos senhores de então. Os habitantes de Síbaris introduziram o costume dos banhos quentes e foram, também, o primeiro povo que fez uso de vasos nocturnos em banquetes. Na cidade de Tarento, na Baixa Itália, afirma-o Clearco, o povo local, após haver ”conquistado a força e o poder... progrediu tanto em hábitos de luxo, que chegou ao ponto de fazer amaciar toda a pele do corpo, assim inaugurando a prática da depilação, que passou a todos os outros povos. Todos os homens vestiam um manto transparente, rematado por uma fímbria Expedições de caça (N. do E.). 11
  • 9. purpurina... louçanias que hoje em dia são um requinte e apanágio das modas femininas. Mais tarde, porém, cegos pela paixão do luxo até ao desmando, arrasaram a cidade de Carbânia, dos lafígios, fizeram reunir no templo daquela cidade os meninos, as meninas e as mulheres na plenitude da vida e ali montaram um espectáculo, expondo nus aqueles desgraçados para a lúbrica contemplação de quem quisesse, durante o dia; e quem bem o quisesse podia também saltar sobre as pobres criaturas como o fariam lobos esfaimados sobre um rebanho e então fartar a sua luxúria nos belos corpos das vítimas ali encurraladas e à sua mercê”. Pelos vistos, no entanto, os deuses desaprovaram essa particular forma de sensualidade, pois os devassos vieram a ser fulminados pelos fogos do céu. É forçoso, neste ponto, concordar que, antes de se aventurar alguém num amplo panegírico do viver dos Gregos, se impõe ter em conta o tratado de Heraclides Pônticos, discípulo de Platão e filósofo por mérito próprio. No seu ensaio Sobre o Prazer, afirma que a vida requintada é prerrogativa das classes governantes, relegando-se aos escravos e aos pobres, como o quinhão que lhes cabia, a árdua lida e o tédio. Todo aquele que sabe apreciar a sensualidade e o luxo é imbuído de carácter superior ao do que não partilha da sua percepção. Os Atenienses fizeram-se um povo heróico precisamente em virtude, e não a despeito, da vida sibarítica que se permitiam. O ponto de vista exposto na primeira parte do referido tratado é desagradável, sem dúvida, e, se bem que muito dubitável a extensão em que se projectou e traduziu em comportamento autêntico na prática, não é lícito esquecer que os escravos e os pobres eram algumas vezes excluídos, tanto mentalmente quanto efectivamente, da própria espécie humana. É possível que os Gregos tenham, quem sabe, encarado um poucochinho de mais o prazer como manifestação religiosa, daí sustentando que tudo aquilo que tivesse ou pudesse ter tido, comportado ou causado prazer, seria, sob quaisquer circunstâncias, um bem. Afinal de contas, o hedonismo dos Gregos não foi certamente o hedonismo de J. S. Mill. Voltemos à lista de Ateneu de Náuclia. Os habitantes de Colofónia jamais haviam contemplado, segundo ele, o crepúsculo ou a alvorada, em toda a sua vida, visto que, ao dealbar do dia ainda estavam eles bêbados e, ao vir o ocaso, já o estavam outra vez. Sardanápalo, o último rei assírio, redigiu para si mesmo o seguinte epitáfio: ”Fui rei e, enquanto me foi dado contemplar a luz do Sol, comi, bebi e rendi culto às alegrias do amor, sabedor de quanto é transitória a vida do homem e sujeita a tanta variação e infortúnio e que outros colherão a messe dos bens que deixo depois de mim. Por esse motivo, pois, não deixei passar 12
  • 10. dia que fosse sem guardar fidelidade a esse modo de vida.” A sua filosofia era a do autor do Edesiastes, ainda que algo diversa a conclusão para que se encaminhou. Aristóbulo descreve-nos um monumento a Sardanápalo que admirou em Anquiale. A mão direita da estátua descreve-a ele como em acção de estalar os dedos. A inscrição, que nos transmite, rezava o seguinte: ”Sardanápalo, filho de Anacindaraxes, construiu em apenas um dia Anquiale e Tarso. Comei, bebei e folgai, pois o mais que resta não vale tanto.” O orador Lísias narra-nos a seguinte anedota acerca de Alcibíades e Axíoco: ”[eles] fizeram-se à vela, juntos, em demanda do Helesponto e desposaram, os dois ao mesmo tempo, em Abido, uma mesma mulher, Medontis de Abido, e com ela coabitaram. Tempos depois, nasceu-lhes uma filha, cuja paternidade ambos declararam não poder esclarecer. Mas, ao tomar-se a mesma casadoira, os dois coabitaram com ela também; pois, sempre que possuía Alcibíades, era alegando gozar o amor da filha de Axíoco, enquanto que, por seu turno, este último dizia possuir a filha daquele.” Clearco refere, acerca de Dionísio, o Moço, tirano da Sicília, o seguinte caso: ”Quando Dionísio alcançou a sua cidade natal, Locris fez atulhar de rosas e tomilho bravo a casa mais bonita da cidade, após o que mandou vir as moças de Locris, uma de cada vez, despojando-as, e a si próprio, de todas as vestes e, nus os dois, rolavam sobre o leito, ali praticando todo o género de obscenidades imaginável. Pouco depois, ao terem os ultrajados maridos e pais em seu poder a própria esposa e a prole do tirano, forçaram esses reféns a cometer indecências à vista de todo o mundo e abandonaram-se a toda a espécie concebível de devassidão. Após terem satisfeito naquelas vítimas a sua concupiscência, meteram-lhes agulhas sob as unhas e, por fim, deram-Ihes morte.” Estrabão refere também essa mesma história, acrescentando ainda o pormenor de que, após preparada a câmara, soltavam-lhe para dentro alguns pombos com as asas aparadas, os quais as raparigas, nuas como estavam, eram forçadas a perseguir e pegar, algumas inclusive obrigadas a calçar sandálias desemparelhadas, sendo uma de salto baixo e a outra de salto alto. Demétrio de Falero, que foi por muitos anos governador de Atenas, era dado como gozador de secretas orgias com mulheres e nocturnos ”casos” com rapazes; tinha um considerável zelo pela sua aparência pessoal, havendo inclusive tingido os cabelos com um absurdo matiz alourado e pintado o rosto, à faceira. 13
  • 11. A tese de que o prazer era o verdadeiro objecto da existência era apoiada por toda uma escola filosófica, a de Aristipo, o qual, através de toda a sua vida, demonstrou a fé que depositava na sua própria filosofia, e teve como amante Lais, uma notável hetera. A maior parte dos homens arrolados na lista de Ateneu de Náuclia merecem antes comiseração. Pertencem à categoria dos rebeldes e as suas orgias representam uma tentativa no sentido de escaparem a algo mais poderoso e mais inexorável do que os meros travões das convenções. Eles foram nada mais do que casos individuais, nunca figuras representativas da raça, porquanto os Gregos, nunca o esqueçamos, atingiram uma forma de atitude perante os assuntos sexuais jamais igualada, desde então, na sua realística sanidade. Hedonistas, sim, sê-lo-iam; mas suficientemente sensatos para saberem que o prazer, de natureza unicamente sensual, cedo esmaece, se não alternar com períodos de repouso e abstinência. Poderíamos fornecer muitos outros exemplos, e fá-lo-emos, de extremos de luxúria e devassidão no mundo helénico. Em primeiro lugar, há que considerar de forma ligeira o conceito grego de matrimónio e a sua atitude face às mulheres em geral. Tendo apreciado a ”mulher-mãe”, está-se capacitado para a comparar com a ”mulher-rameira” e então passar-se-á à atitude grega perante as hetairas, a religião, os festivais eróticos, os jogos, as orgias do género ”social” e a assombrosa ubiquidade da homossexualidade. A natureza do matrimónio grego e a posição ocupada pelas mulheres no mundo helénico são factos excessivamente difíceis de configurar sob forma de imagens compreensíveis, a esta distância no tempo; e se tentarmos fazê-lo com base nos modernos padrões iremos deparar em seguida com uma densa massa de material indiscutivelmente contraditório que nos lançará a mente em plena confusão. Logo de início, vemos a variadíssima condição das mulheres em diferentes partes da Grécia. A impressão geral que se recebe é que as mulheres, lá, passavam a vida numa semi-reclusão e sujeição; mas, ao passo que algumas delas viviam trancadas a sete chaves, no ginaekonitis, o gineceu, sob a guarda de um feroz molosso, já na Lídia era coisa tida como corrente e aceite que as raparigas solteiras comprassem para si mesmas os seus vestidos e amealhassem um dote à custa de prostituição. Sem embargo deste último exemplo, pouca dúvida existe de que, no que tange à liberdade física, pessoal, as mulheres gregas nos pareceriam, ao nosso moderno sentir, intoleravelmente limitadas. Entendiam os Gregos que o lugar das mulheres era no lar e que a sua função, como animal que era, consistia em desempenhar os misteres de dona-de-casa e mãe. Não tinha que se imiscuir 14
  • 12. na vida literária, nem tão-pouco lhe era lícito andar pela rua desacompanhada. Isto, no entanto, e por incrível que nos pareça, não se deve necessariamente interpretar como indicativo de se encararem então as mulheres como seres inferiores, mas apenas criaturas diferentes, comportando função diferente da dos homens na vida, diferente mas, de modo algum, inferior à deles. Se era tolerado aos maridos o adultério, mais do que se o consentia às esposas, isso devia-se a que os Gregos viam legitimidade nos instintos polígamos dos homens em contraste com os, pelo menos teoricamente, mais monogâmicos que atribuíam às mulheres. Aventuras sexuais extramatrimoniais eram toleradas a estas, contanto que não fossem elas de nascimento livre, isto é, não escravas, nem fossem casadas com outro homem. Devassidão de mulher-mãe ou esposa era outra coisa. No meio de tudo isto, vislumbrar-se-á, sorrateira, uma estranha semelhança com os modos de ver a vida da recente época vitoriana; lá estava uma análoga espécie de repartição separando as cortesãs das mulheres ditas ”de respeito” - a tal divisão mãe- rameira. A diferença entre as duas sociedades reside no facto de o ponto de vista vitoriano se projectar no preceito de que a actividade sexual era coisa que não se podia impor contra a vontade ou satisfatoriamente gozar com a boa vontade de uma pessoa pertencente à mesma classe social. Já os Gregos não pensavam assim. O matrimónio, entre eles, e a despeito da evidente sujeição das mulheres, era uma instituição social mais civilizada e satisfatória do que o vitoriano. Podia-se obter o divórcio sob alegação de mútua incompatibilidade, situação essa que se pode comparar, e com vantagem, com a actual fórmula legal. Acima de tudo, existia entre marido e mulher genuína afeição, cooperação no desempenho das diversas incumbências da vida em comum e um estado de mútua admiração pelas realizações respectivas. Consta, na literatura, farta messe de testemunhos da afirmação supra. E quem achar que, por viver reclusa no âmbito restrito do lar, a mulher grega era uma escrava e que os homens tratavam as suas esposas como tal, que leia, então, a narrativa da despedida entre Heitor e Andrómaca, na Ilíada de Homero. Que a infidelidade conjugal ocorresse no homem e, menos frequentemente, na mulher, isso era coisa sancionada do ponto de vista hedonístico da vida, entre os Gregos, e menos capaz de fazer periclitar a solidez do matrimónio por essa razão mesma - ainda que o facto se nos apresente deplorável perante a nossa moderna moralidade. Os Gregos compreenderam, já então, o que quase ninguém mais parece ter percebido durante todos os dois mil anos hoje transcorridos: uma passageira vertigem de concupiscência por A nem por isso é incompatível com um amor mais permanente por B, tanto que jocosas 15
  • 13. representações dos ardis empregados por esposas gregas para enganarem os seus maridos aparecem nas comédias de então. E pressentiram também os helenos o que escapou aos nossos vitorianos, a saber, que restrições impostas às mulheres casadas, convenientes ou não, que fossem, eram o mesmo que impor-lhes um constrangedor estado de tensão, que melhor seria deixá-las aliviar de tempos em tempos. Na realidade e no plano emocional, poderão as esposas gregas ter sofrido ciúmes e revolta, ao saberem das aventuras dos seus cônjuges com as heteras. Nem teriam sido humanas, se assim não fosse. No plano racional, no entanto, o princípio era largamente aceite como válido e, ainda que cheirando a cinismo, prudente. As damas que proviam aquela alternativa ao conúbio matrimonial não eram consideradas meras válvulas de segurança, conquanto fossem precisamente isso mesmo, sem dúvida nenhuma. com aquela simplicidade manifesta dos Gregos em todas as questões referentes ao sexo, essas raparigas eram tratadas muito mais como sacerdotisas do culto hedonístico. A diferença entre a condição das heteras na Grécia Antiga e as prostitutas da civilização moderna patenteia-se, de modo vívido e surpreendente, em dois exemplos a ver: os habitantes de Téspias, cidade que a famosa hetera Frine havia presenteado com uma magnífica estátua do deus Eros, retribuíram- lhe a fineza encomendando a Praxíteles que esculpisse uma estátua dourada à imagem dela. Pronta a obra, foi erigida na praça pública, entre as estátuas do rei Arquidamo e a de Filipo, o que a ninguém escandalizou, em absoluto. Sobre a lápide tumular de Calírroe de Bizâncio lê-se a seguinte inscrição: ”Fui meretriz na cidade de Bizâncio e servi a todo o mundo o amor que vendia. Sou Calírroe, a experiente em todas as artes da volúpia. Dilacerado pelas fúrias do amor, Tomás pôs este epitáfio sobre a minha tumba, assim revelando a paixão que lhe habitava na alma; o seu coração desfez-se, tão derretido como a cera.” As heteras, que eram tidas como superiores às simples prostitutas de bordel, e cujos preços reflectiam tão elevado conceito, eram admiradas pela posse de qualidades intelectuais, não menos que as físicas, muito embora possa tomar-se objecto de irónicas dúvidas o precisar-se até que ponto uma das duas prendas sobrelevaria a outra, numa avaliação objectiva total. Tais personagens eram frequentemente convocadas a concorrer com os seus préstimos em prestígio do culto de Afrodite. Em Corinto, cidade constantemente mencionada na literatura grega como famosa pela libidinagem dos seus habitantes (”do desenfreio e licenciosidade da vida nesta metrópole, do antigo empório tão rico e tão bem aquinhoado pela natureza, seria difícil lavrar-se um relato a que alguém pudesse acoimar de exagerado”, diz-nos 16
  • 14. Licht). Ou, conforme conta o valioso Ateneu: ”Tem prevalecido a usança segundo a qual a cidade, sempre que oferece preces a Afrodite em imponente procissão, carreia para esta o maior número possível de heteras, as quais também dirigem preces à deusa e se apresentam na cerimónia do sacrifício e respectiva festividade.” A prostituição litúrgica, nos templos, verificava-se em muitas localidades, destacando-se entre elas Corinto, Chipre e Abido. Nesses templos era costume trazer ao vencedor dos Jogos Olímpicos, algumas vezes, um presente constituído de raparigas. Acerca do templo de Afrodite Pornea, em Corinto, escreveu Estrabão: ”O templo de Afrodite era tão sumptuoso e rico, que podia manter um milhar de heteras que eram dedicadas à deusa e visitadas tanto por homens como por mulheres. Por causa destas raparigas, afluíam até lá multidões de forasteiros, do que resultou o enriquecimento da cidade.” (O facto de Afrodite, ao mesmo tempo que era a deusa do amor, poder aparecer como ”Afrodite-prostituta”, denota a ausência de ilusões do mundo helénico em relação à natureza humana). Luciano apresenta-nos um relato sobre o templo de Biblos: ”Em Biblos vi também o grande templo de Afrodite e conheci as orgias que são coisa corrente ali. Os habitantes da cidade têm a crença de que a morte de Adónis sob os colmilhos de um javali se deu ali no seu país e, em memória do facto, batem no peito e carpem, todos os anos, sendo que, por ocasião dessas comemorações fúnebres, dão-se grandes sinais de pesar através de todo o país. Ao terminarem com os murros no peito e as lamentações, passam então a efectuar as exéquias de Adónis e, no dia seguinte, fazem de conta que ele despertou novamente para a vida, põem-no no seu céu e raspam as próprias cabeças à maneira dos egípcios em sinal de luto pela morte do boi Ápis. Mas toda a mulher que recuse deixar que lhe cortem os cabelos padece o seguinte castigo: num dia marcado, é ela obrigada a prostituir-se publicamente, e a ela só permitem concorrer os forasteiros, e a renda daí auferida é então entregue ao templo da Afrodite.” Essa ideia, da actividade sexual encarada como coisa que pudesse aplicar-se à guisa de meio punitivo, é estranha a todo o resto da vida grega. O conceito segundo o qual o instinto sexual é um maravilhoso dom da natureza ou dos deuses, levando o indivíduo até ao contacto místico com a divindade, benesse que é forçoso aproveitar-se e pela qual se deve mostrar a devida gratidão mediante oferendas à deusa, bordeja perigosamente, diga-se mesmo paradoxalmente, a atitude contrária, pela qual o referido instinto se toma uma força que exige apaziguamento e sacrifício. 17
  • 15. Estado de coisas muito semelhante deparar-se-nos-ia entre os babilónios, em ligação com o culto de Milita, a equivalente babilónica de Afrodite. Por lei vigente entre esse povo, toda a mulher devia, uma vez na vida, dirigir-se ao templo de Milita e aí prostituir-se ao primeiro forasteiro que se lhe apresentasse. Na versão de Heródoto: ”Muitas mulheres, orgulhosas das suas grandes riquezas e querendo conservar-se acima da gente vulgar, viajam em viatura cerrada e coberta, acompanhadas por uma porção de servas, dirigindo-se ao templo... uma vez ali sentada, uma mulher não poderá retomar a casa enquanto um dos forasteiros não lhe tiver atirado no regaço uma moeda de ouro e tenha tido relações com ela na parte externa do templo; ele, porém, ao atirar-lhe a peça de dinheiro, deverá acompanhar o gesto com a frase sacramental: ’Eu te reclamo em nome de Milita.’” As heteras mantiveram amizade com grandes homens de todo o género: soldados, filósofos, artistas. Quando Alexandre, o Grande, derrotou Dário, marchou sobre a Babilónia, tomou a cidade de Susa e entrou depois em Persépolis, a antiga capital; aí foi celebrado um espectáculo em que uma horda de heteras desempenhou importante mas desastrosa parte. Regidas e incitadas por Tais, a qual já tinha conseguido uma ligação com o próprio Alexandre, sem embargo dos rumores correntes sobre contrariantes interesses por parte desse grande conquistador. Foi ela quem lhe sugeriu que deitasse fogo ao palácio persa, quem se pôs à frente dos incendiários bêbados, com acompanhamento de cânticos, tanger de flautas e danças bacanais e, ainda, atirou pessoalmente o primeiro archote aceso. O emprego de heteras profissionais nas festas religiosas já foi aqui referido. As afrodísias, embora não oficialmente reconhecidas, nem por isso eram menos apreciadas e eram celebradas por todo o território grego. Constituíam, muito simplesmente, festas em honra de Afrodite, das quais raramente se ausentavam prostitutas e heteras. Uma dessas festas particularmente conhecidas pelas heteras eram as afrodísias de Egina, onde Frine se comportava da maneira descrita por Ateneu: ”Mas era Frine realmente a mais bela, com os seus velados encantos de onde resultava não ser fácil conseguir-se vê-la nua, pois ela trazia em volta do corpo uma roupagem muito justa às suas formas e jamais fazia uso dos banhos públicos. Mas na festa da Eleusínia e da Poseidónia, à vista de todos os helenos, ela costumava despir o mantéu, soltar a cabeleira e entrar nas águas do mar, tanto que Apeles fez dela o modelo da sua Afrodite Anadiómena, a que surge do mar.” As numerosas prostitutas de Corinto comemoravam as afrodísias à sua maneira particular, lasciva e turbulenta. A cerimónia, conhecida pelo nome de ”pannychis ” (palavra que depois as heteras adoptaram como a carinhosa 18
  • 16. e favorita designação delas mesmas), prolongava-se pela noite dentro. Muito embora se tratasse, teoricamente, de festividade, não passavam os respectivos ritos de pouco mais que um simples bacanal lúbrico e uma infrene bebedeira. As ”potrancas de Afrodite”, ”quase nuas sob as suas roupagens de tenuíssimo tecido... vendiam os seus favores por tuta e meia, para que todos pudessem permitir-se gozá-los”. O festival de Afrodite Ansósia, celebrado na Tessália, participava da mesma natureza, excepto quanto à circunstância de ser totalmente de carácter homossexual (entre mulheres, aliás). Não abundam pormenores,” mas sabe-se que aí tinha maior relevo o uso da flagelação erótica. Outros festivais de carácter inequivocamente erótico e mais ou menos de âmbito nacional foram as dionisíacas, aparentadas de muito perto com as ”liberalia”, a idolatria romana de Líber, deus dos pomares e das bagas (quod vide), e com as Lenea, a festa dos lagares e da vindima. Esse festival destacava-se pela celebração de um grande banquete, largamente subsidiado pelo Estado, e de um cortejo dançante que percorria a cidade e a que se comparecia em trajos de fantasias - representando-se ninfas, bacantes, sátiros, etc. -, tudo acompanhado de desbragadas troças e piadas de toda a espécie, no fundo e antes de tudo, de sentido erótico. Em Março e Abril comemoravam-se as festas do Elaphebolion (mês correspondente, no calendário ático), ou seja, as Dionisíacas da Cidade. Coros cantavam ditirambos em honra de Dionisos, davam-se bailados desempenhados por mancebos formosos e ao entardecer toda a gente se postava pelas ruas, deitada em leitos e a beber desmedidamente. Uma representação fálica, senão mesmo diversas imagens de phalli, era imprescindível entre os ornamentos da folgança. Em certas partes da Grécia, especialmente em Citera e no Parnasso, bem como nas ilhas, realizava-se uma ”dionísia” exclusiva, na qual só tomavam parte mulheres feitas e raparigas. À noite, ataviadas de fantasias de Baco, incluindo a pele de bode, cabeleira alvoroçada e as mãos brandindo instrumentos musicais, elas galgavam o pico de um monte próximo e, estimuladas pela actividade anormal, excitadas pelo vinho que, em geral, raramente ou nunca provavam nas suas vidas, fora dali, celebravam lá em cima bailados e sacrifícios que rapidamente assumiam a categoria de orgias. Pausânias, verdadeiro ”Baedeker” para as coisas da Grécia Antiga, diz, a propósito da referência de Homero aos ”locais de bailados do Panopeus”, que semelhante referência o deixara muito intrigado, até ao dia em que lhe explicaram o tópico ”as mulheres às quais os atenienses denominam de thyiadas”, bacantes, sacerdotisas de Dionisos. ”Essas thyiadas são umas mulheres da Ática que, juntamente com as da Délfica, se dirigem todos os 19
  • 17. anos ao monte Parnasso, onde realizam orgias em honra de Dionisos. Essas mulheres têm por hábito fazer as suas danças em várias localidades à beira da estrada que vai para Atenas, um de tais pontos sendo o Panopeus.” A certa altura, falando da gruta coriciana (da ninfa Corícia, mãe de Apolo), declara ele: ”Os píncaros elevam-se acima das nuvens e, neles, as thyiadas entregam-se a desvarios em honra de Dionisos e Apolo.” É preciso aqui especificar a natureza dessas celebrações dionisíacas, pois elas eram distintas, sob um importante aspecto, do género de festa da fertilidade que todos conhecem. O grego, uma vez empolgado por alguma força que o compelisse a agir de maneira diversa daquela que normalmente adoptaria, justificava os seus impulsos, naturalmente com suficiência, dizendo-se ”possesso dos deuses”. Contrariamente ao que ocorria com os Romanos, nos Gregos esse sentimento incutia atitudes de admiração, que não de obediência, mas fazia, também, com que se desse valor a tudo aquilo que conduzisse à consecução de um estado de ”teolépsia” - comunhão íntima com a divindade. Isso explica aquilo que à mente moderna parece difícil de entender, como seja, o como e o porquê de os Gregos encararem o amor às libações alcoólicas, às danças e ao coito com um sentimento de reverente temor religioso. A finalidade do culto era, pois, propiciar um acto que os Gregos tinham em conta de religiosamente nobilitante, muito embora, nos nossos dias, um psicólogo configurasse tal atitude ética sob terminologia bem diversa, e que um superficial exame objectivo das acções verificadas naqueles festivais nos deixasse, como resíduo, a impressão de uma orgia de lubricidade. Sem embargo, aquelas festas eram também aproveitadas como oportunidades e recursos hábeis ao relaxamento de tensões sexuais, asserto válido, por igual, para o culto da fertilidade, ainda que este último possa ter sido considerado uma forma de encantamento, de invocação dos deuses, para se obter deles, por associação de ideias, feliz êxito nas colheitas agrícolas. Pelo Outono, celebravam-se os afamados Mistérios de Elêusis, misteriosos efectivamente. A cerimónia durava nove dias, sendo a sua exacta natureza coisa difícil de se estabelecer. A ideia que estava na sua base tinha a ver com o evanescimento e subsequente revitalização do grão. De mistura com isso, iam vagas noções ou anseios de humana imortalidade. Os primeiros dias dessa festa eram passados em procissões ao mar e banhos e demais purificações, de ordem ritual, nem sempre verificados sob normas de decoro e pudor. Ao sexto dia, saía de Atenas com destino a Elêusis uma procissão. Os que a acompanhavam - e contavam-se, por certo, por milhares - iam coroados de mirto e hera, e levavam nas mãos archotes e espigas 20
  • 18. de milho. Uma vez atingida Elêusis, que ficava a nove milhas - uns quinze quilómetros de distância, o restante do prazo adjudicado às celebrações era preenchido com actividade esotérica, ruidosa e transbordante de jovialidade, sendo, não obstante, atribuída a Titínios a brutal afirmação de que o incesto também se incluía entre os demais pontos salientes dos ritos. A maior parte das cerimónias que comportavam cópula cerimonial e outros actos orgíacos comportavam, igualmente, um período de abstinência. Nas thesmophoria de Demétrio, na Ática, por exemplo, uma das únicas verdadeiramente nacionais e cujo conhecimento chegou até aos nossos dias em parte através das Thesmophoriazusae de Aristófanes: ”Todas as mulheres que desejassem participar da festa eram obrigadas a abster-se de relações sexuais durante os nove dias precedentes. A solércia dos sacerdotes impunha essa condição como um dever de piedade, um acto de religião, cuja verdadeira razão, entretanto, era, claro está, fazer com que as mulheres, acicatadas por longa privação, pudessem partilhar das orgias eróticas com menos contenções. Para se fortalecerem nessa castidade preparatória que se lhes exigia e que provavelmente achavam bastante árdua de manter, as damas punham sobre os seus leitos ervas e folhagens refrescantes, entre estas especialmente o Casto-Cordeiro, ouAgnus Castus (”que toma improdutiva”, segundo uma logomaquia grega) e outras plantas do género. De acordo com Pócio, porém, por esse tempo as mulheres comiam alho a fim de afugentar os homens, apavorados com o fedorento odor do hálito delas. Era, no entanto, no culto e homenagens a Afrodite que se efectuavam as mais sumptuosas, empolgantes e dissolutas celebrações. Pois foi ela, Afrodite, quem trouxe aos Gregos e aos seus mesmos deuses as alegrias do amor. Na mente grega entreteciam-se inseparavelmente e interdependentemente o amor e a beleza. Ali, sim, mais do que em quaisquer outras oportunidades, havia causa para júbilos e gratidões: para singela, porém entusiástica, expressão das emoções. E Afrodite é também a deusa da Primavera; a das flores; especialmente da rosa e do mirto, com que se engrinalda e envolve todo o corpo, ao atravessar as florestas. Os animais silvestres acompanham-na, afagam-na. A Primavera, portanto, era a estação em que se realizavam, em maior número, as festas afrodísias. Em Chipre, ilha repleta de flores, coberta de frutos e embalsamada pela fragrância duma imensidão de botões a desabrocharem, todos esses encantos galardoados pela própria Afrodite, ali, em Pafos, o local onde a deusa nascera, à beira-mar, era onde tinha início a mais famosa e grandiosa das cerimónias do seu culto. Banhava-se carinhosamente no mar a imagem sagrada, cobria-se de 21
  • 19. flores, tudo isto a cargo de raparigas que, em seguida, se banhavam também, como preparação para as subsequentes orgias de amor, nos frescos regatos que corriam sob bosques de mirto sagrado, através de vales escondidos sob espesso tapete de amendoeiras em botão. Os deuses dos Gregos representavam a própria expressão do sentir no corpo e alma dos seus fiéis helenos, como que magnificentes modelos de tudo aquilo que estes eram em verdade ou quereriam para si mesmos. Diversamente dos Romanos, que se valiam das suas divindades como de bodes expiatórios, aos quais pudessem atribuir a manifestação de forças que não desejavam reconhecer como naturais, sendo o seu culto assente num espírito de união, não de obediência. (Diz-nos Seleuco, todavia, que não constituía costume ancestral a complacência nas libações e em outros excessos dos sentidos, excepto por ocasião de alguma festividade sagrada.) As estátuas de Afrodite representam sempre uma mulher que encarna nas suas formas todos os padrões concebíveis e reconhecidos da beleza feminina em cada pormenor. Parece que os Gregos nutriram sempre particular estima pelo traseiro humano e assim é que, com aquela deliciosa simplicidade que jamais se encontraria alhures, eles erigiam estátuas, erguiam templos a Afrodite Calipígia, a diva de lindas nádegas, à qual rendiam o seu culto idolátrico com aquela graça e aquele indisfarçado entusiasmo que caracterizavam a raça. E isto, se aceitarmos a opinião de Ateneus, decorria das seguintes circunstâncias: ”Um lavrador tinha duas lindas filhas que, certa vez, se puseram a disputar, chegando a desafiarem-se no meio da estrada para decidirem qual das duas possuía nádegas mais bonitas. Um dia passou por ali um mancebo cujo pai era um rico ancião e logo as duas litigantes expuseram à vista e veredicto do moço o seu ’pomo de discórdia’, ao que, tendo suficientemente contemplado as prendas, ele deu o seu parecer em favor da mais velha das duas irmãs; e o facto é que se apaixonou por esta, a tal ponto que, ao tomar à sua casa na cidade, meteu-se na cama, adoentado, contando ao irmão mais novo o episódio. De modo que esse irmão se dirigiu também ao campo para contemplar as protuberâncias traseiras das duas irmãs rivais, ficando também, por seu turno, amoroso, porém da outra irmã, previamente vencida. Eis que o pai dos rapazes lhes pediu, então, que pelo menos saíssem em busca de matrimónio mais respeitável, mas, não conseguindo demovê-los, trouxe as duas jovens daquela herdade para os dois filhos, mediante o consentimento do velho lavrador e uniu-as em matrimónio aos rapazes. Por isso, as duas raparigas ficaram sendo conhecidas na cidade como ’as belas nádegas’, canta o satírico Cércidas de Megalópolis em seus versos jâmbicos. É sua a troça ’havia em Siracusa uma parelha de irmãs de formosas nádegas’. Pois 22
  • 20. foram essas mesmo que, chegando a possuir uma grande fortuna, fundaram o templo de Afrodite sob a invocação de ’Afrodite das Formosas Nádegas’, segundo o confirma, também, Arquelau.” Pode ver-se no Museu Nacional de Nápoles uma estátua dessa Afrodite Calipígia. Erótica, não há dúvida, porém despida de qualquer traço de grosseria de todo não atribuível ao romantismo e à reverência que tendem a tolher-nos a apreciação de peças dos museus, essa estátua oferece- nos um momentâneo e parcial, mas também esclarecedor, olhar sobre a atitude helénica perante o sexo e a vida. Os jogos atléticos dos Gregos eram uma forma de expressão da delícia com que o povo cultivava o corpo humano e suas capacidades. Para a gente da nossa época, habituada ao uso de roupas, é muito difícil entender os motivos que os Gregos teriam para justificar a nudez naqueles prélios, ou ainda mensurar o grau de erotismo presente na sua atitude diante deles. Que um certo sentimento de vergonha, isto sim, lhes advinha antes do facto de envergar roupagens e não da circunstância contrária, e que eles admitiam quaisquer peças de vestuário, quando muito, por exigências climatéricas ou de higiene - eis uma noção hoje em dia tão difundida que se tomou um lugar-comum. Entendiam os Gregos que agasalhar as partes íntimas tão-somente, quando o resto do corpo se deixava ao vento, desembaraçado de panos, dava a impressão de um certo desprezo ou vergonha dos genitália quando, na realidade, a opinião que eles nutriam a respeito destes era precisamente oposta a isso, pois os genitais somente lhes inspiravam gratidão e respeito aos numes imortais, como o instrumento, deles granjeado, para sublimes prazeres e para o milagre da procriação. O erotismo, no entanto, se é que aí constava, era só conscientemente ausente daqueles entretenimentos, imperceptivelmente mesclando-se-lhe a admiração de uma espécie de função física, misturada com uma outra de diferente tipo. Em Mégara, realizavam-se na Primavera os jogos ”Diocleicos”, em honra do herói nacional Díocles; por essas ocasiões, procedia-se aí a um concurso de beijos de formosos meninos, pleito que assim nos descreve Teócrito: ”Em volta do túmulo dele (Díocles), assim que chega a Primavera, as crianças competem num prélio de beijos e o menino que souber pousar lábios sobre lábios com mais doçura, de lá regressa à genitora carregado de grinaldas.” Em Esparta, onde o comportamento e a maneira de ver a vida diferiam acentuadamente dos do resto da Grécia, a ”Gymnopaedia”, ou dança dos meninos nus, dava-se anualmente à guisa de preito e comemoração de guerreiros 23
  • 21. espartanos tombados em Tirce. As homenagens constavam de danças e demonstrações de ginástica efectuadas por meninos completamente desnudos. Essa festividade, longe de ser considerada então sob certa luz de folgança descuidada, era antes tratada sob tais extremos de veneração que até se lhe atribuía preferência sobre tudo o mais. Ao chegar à sua cidade natal, ao regressar dos Jogos Olímpicos, o respectivo vencedor era submetido a um tratamento de honrarias e festejos em profusão. Coroado de louros e enfeitado de flores, transpunha os portais dos muros; entoavam-lhe cânticos, erigiam na agora, no centro da cidade, estátuas à sua imagem. E daí por diante passava a ser tratado, para sempre, como cidadão ilustre. O seu triunfo era tão magnífico quanto o de um general romano e a superior competência dos Gregos em matéria de fausto é assunto que sobrepaira a quaisquer dúvidas, para os que saibam julgar sem preconceitos. Danças por motivo de várias festividades religiosas exclusivamente locais pululavam um pouco por todo lado na Grécia Antiga. Já aquela modalidade de baile que hoje conhecemos nos nossos tempos, como forma de sociabilidade, essa era, naturalmente, ainda desconhecida ali. Para a Hélade de antanho, a dança era um meio de representação por arte mímica de ideias e emoções do íntimo (e, como vimos, estímulo à consecução de um estado de catarse anímica). As eróticas - refiro-me àquelas que não se ligavam necessariamente à religião - eram de uso geral. Entre estas ficaram famosas a célebre ”Sicinnis” e a ”Cordax”. Segundo o moderno modo de julgar, ambas seriam consideradas claramente e acima de tudo obscenas, já que comportavam movimentos e posições significativos, bem como a supressão de todas as peças de vestuário. Os sátiros, nos dramas satíricos, eram apresentados por bailarinos a desenvolverem um bailado que uma tremelicante melodia de flautas acompanhava, e bem assim à peça toda. A dança entre os convidados masculinos e as servas ”porta-taças” do anfitrião constituíam um procedimento usual nos banquetes. Nesses casos aplaudir-se-ia, até, a lascívia pura e simples, enquanto a falta de elegância e autodomínio eram condenados e desprezados pelos comensais. Cleistenes, senhor de Sicião, tinha uma filha, Agarista, cuja beleza era tão notável que os pretendentes à sua mão enchiam-lhe a casa durante mais de um ano, até que um dia ele se valeu de uma oportunidade para meticulosamente pôr à prova os candidatos. No fim das investigações, Hipocleides parecia ser o mais recomendável de todos e, assim, no dia em que se encerraram as provas, houve um banquete em que os cortejadores da jovem exibiram os seus dotes sociais e mesmo musicais. Hipocleides, que se desregrara 24
  • 22. um tanto nas libações, executou uma sugestiva dança ao som das flautas, chegando por fim a exceder-se tanto em desatinos, que acabou por se plantar sobre a mesa de cabeça para baixo, e as pernas a agitarem-se no ar. A isso, o quase sogro, que afinal já perdera a serenidade e a paciência, disse ao moço que este acabara de também perder a noiva. Respondeu-lhe, incontrito, o alucinado bailarino: ”Ora, Hipocleides não se importa!...” e, às gargalhadas, abandonou a sala do festim. Compostura e seriedade eram, aos olhos dos Gregos, as conquistas pessoais mais importantes. Os porta-taças dos banquetes eram, quase que invariavelmente, meninos. A maneira de oferecer a taça era considerada uma grande arte - da qual, segundo Xenofonte, os que mais entendiam eram os Persas. Conta-nos Luciano, a respeito, uma historieta interessante: ”Eu notara que um formoso escravo jovem, que fora colocado no serviço de apresentação de taças, se postara atrás de Cleodemo, a sorrir; e fiquei curioso por saber a razão disso. Pus-me, então, a observá-lo cerradamente, de modo que, quando o belo Ganimedes se abeirou novamente para recolher a taça vazia das mãos de Cleodemo, descobri que este último lhe roçava o dedo e, ao fazê-lo, pareceu-me que junto com a taça lhe depositava na mão tocada um par de dracmas. Ao sentir o dedo tocado, novamente sorriu o rapaz, mas eu quero crer que nem percebeu a presença das moedas. Em consequência disto, as duas dracmas rolaram para o pavimento com o característico ruído, diante do que tanto o filósofo como o efebo coraram fortemente!” Cleodemo pretendeu, então, negar que tivesse algo a ver com aquele dinheiro, o moço imitou- lhe a atitude, mas o dono da casa, à vista do incidente, achou melhor mandar retirar dali o servo suspeito. A vergonha, para Cleodemo, está em duas circunstâncias: a sua incapacidade para o autodomínio emotivo, sendo ele, no entanto, um filósofo, isto é, um sábio; e o ter-se permitido algo, mínimo que fosse, de entendimento com um escravo. Conquanto as mulheres provavelmente jamais fossem utilizadas como servidoras de taças, não há dúvida de que estavam presentes raparigas, fossem como escravas ou como heteras, as quais, por brincadeira, chegado o ponto em que a embriaguez imperava, podiam ser induzidas a vazar o vinho dos picheis. Essa função, todavia, como encargo permanente, permanecia privilégio e responsabilidade de escravos adolescentes. Às dançarinas e aos tangedores de flauta cabiam finalidades múltiplas, porquanto, além de satisfazerem, até certa medida ou modalidade, os apetites sexuais dos convivas, competia-lhes até mesmo atender às funções de entretenimento apontadas pelas suas designações especificamente profissionais. 25
  • 23. A gente de Colofónia (à qual já nos referimos), no dizer de Filarco, ”promulgou uma lei, que ainda hoje vigora, estabelecendo que as flautistas e as harpistas, bem como outras artistas públicas, ganhem salários a contar da manhãzinha cedo até ao meio-dia e desta hora até o acender das lâmpadas...” E Teopompo afirma, acerca dos Tessálios, que ”passam a vida, alguns, perpetuamente em companhia de dançarinas e tocadoras de flauta, ao passo que outros consomem o dia inteiro a jogar, a beber e entregando-se, em suma, a análogas formas de dissipação...” Os Cárdios, talvez para variar, ”haviam exercitado os seus cavalos a dançar ao som de gaitas, nas suas festas báquicas, de maneira que, erguendo-se no ar sobre as pernas traseiras e, como quem diz, gesticulando com as dianteiras, as alimárias dançavam efectivamente, acostumadas como estavam às melodias das gaitas”. Este curioso costume acabou por ser a sua desgraça, pois os seus inimigos procuraram e compraram uma daquelas raparigas flautistas da Cárdia, que ensinou a um grande número de músicos as melopeias a que os animais se habituaram a acompanhar dançando, por forma que, ao desenrolar-se a batalha, a cavalaria cárdia se viu subitamente dispersa pela intervenção da fatal música. O receio de que a luxúria viesse a derrubar a força e a segurança militares parece ter sido o argumento de maior peso em seu desfavor, e com certa dose de razão. Polícrates, tirano de Samos, foi destronado em consequência da sua permanente preocupação com os prazeres - ou, consoante Clearco -, ”Polícrates, tirano de Samos, arruinou-se por causa do seu dissipado viver, posto que até se dava à emulação com os lídios em práticas efeminadas”. Levado por isto, construiu na cidade o famoso ”bairro” de Samos, destinado a rivalizar com o parque existente em Sardis e a que denominou de ”Doce Amplexo”: e, para competir com os floreios (isto é, produtos e coisas afins ao prazer) da Lídia, entreteceu aquelas grinaldas sâmias largamente gabadas. De tais inovações resultou que fosse o ”quarteirão sâmita” um jardim alcatifado de mulheres profissionais do gozo, além de que dali saiu literalmente a empanturrar toda a Hélade um extenso cardápio de todas as espécies de comidas que espicaçavam a sensualidade e a incontinência. Aliás, as ditas floradas sâmitas consistem também nos vários encantos de homens e mulheres. Mas enquanto a cidade em peso se achava imersa em descuidadas festas públicas e avinhadas orgias, chegam os Persas, que a atacam e dela se apoderam. Os Lacedemónios, mais prudentes, viviam atentos às condições físicas dos seus guerreiros, fazendo o exército desfilar em parada uma vez por semana, estando os soldados completamente nus, 26
  • 24. para detectar princípios de obesidade e outros indícios de relaxamento pessoal nos seus homens. Também uma vez por semana se procedia, entre eles, à inspecção geral das camas, para se ter a certeza de que não haveria quaisquer amaciamentos de colchões que amolecessem a tropa, minando-lhe o moral. As generalizações de Ateneus, tanto quanto as fontes de informação em que bebera, uma vez que abrangem nações inteiras, tomam-se menos valiosas do que os retratos que traça de simples indivíduos. Alguns destes esboços pessoais já aqui os reproduzimos, tais como os referentes a Dionísio da Sicília e a Sardanápalo. Mas deste último consta ainda mais um episódio que nos relata Ctésias. É o caso de Árbaces, um seu súbdito provindo da Média, que desejou encontrar- se com o soberano; e, através de uma trama de intrigas, conseguiu ser recebido. ”Ao ser admitido à presença, viu o rei de cara empastada de alvaiade, coberto de jóias como uma mulher, e a enrolar lã púrpura em companhia das suas concubinas, entre as quais se achava sentado de joelhos para cima, sobrancelhas pintadas de negro, vestido de mulher e barbeado bem escanhoado, a face esfregada com pedra-pomes (ele era ainda mais branco do que o leite e as pestanas eram também pintadas); e quando dirigiu o olhar para Árbaces, fê-lo revirando o branco dos olhos.” Consta uma série de diferentes versões sobre a maneira como morreu esse monarca. Segundo alguns, Árbaces, presa de imensa fúria e náusea, ao ver que espécie de homem era o rei a quem devia vassalagem, abateu Sardanápalo ali mesmo. Outros sustentam que o rei morreu na cama; e ainda há os que narram a sua morte voluntária, fazendo-se consumir numa enorme pira fúnebre em companhia de suas concubinas, mais a rainha, e o real tesouro, e todo o seu guarda-roupa. Essa fogueira ardeu durante quinze dias, provocando muita perplexidade, porém nenhuma intervenção. Os Gregos eram profundamente conscientes do lastro de aginismo latente no fundo da natureza humana, de forma que se encontram, com surpreendente frequência, referências acerca de homens que costumavam aparecer em público em trajes femininos, embora, a não ser isso, manifestassem hábitos viris, tendo normalmente preferências heterossexuais. Esse travestismo tinha uma função nos mencionados festivais, tanto quanto nas próprias vidas particulares, no dia-a-dia das pessoas. Na festa da ”oscofória”, que se verificava no mês de pyanepsion (que abrangia partes dos nossos meses de Novembro e Dezembro), a qual ostentava o nome dos ramos da vinha carregados de parras (”oskoi”), os ditos ramos vinham conduzidos por dois belos efebos vestidos de raparigas. Em Amato, na ilha de Chipre, adorava-se uma divindade macho-fêmea, parte de cujos ritos era oficiada por um jovem que se punha deitado 27
  • 25. num leito simulando uma parturiente e a imitar os gritos de uma mulher em trabalho de parto. Isso era feito em honra de Ariadne, que desembarcara naquela ilha em companhia de Teseu e lá morrera de parto. Outra personagem que se dava a semelhante fantasia indumentária fora Andrócoto, um frígio e, a par dele, também Sagarisa, o mariandiniano. Este último, ”por força dos seus pendores e hábitos voluptuosos, fazia-se alimentar directamente dos lábios de uma ama, até aos dias da sua velhice, pois nem sequer se queria dar ao trabalho de mastigar por si mesmo, e também jamais se dignou, ao menos, levar as suas mãos abaixo do próprio umbigo. Por análogo motivo é que Aristóteles refere jocosamente a respeito de Xenócrates de Calcedónia que este, ao urinar, nunca pegava no membro viril; e alegava, no dizer que Aristóteles lhe atribuía: ”As minhas mãos são puras, a minha mente é que não.” Idêntica prova da noção do grego quanto à bissexualidade do homem transparece na prática da flagelação, habitual nas festas eróticas, que, ao contrário das dos Romanos, não eram eivadas de culpa. Não é realmente de surpreender que o travestismo constituísse tão amiúde uma das características dessas festas. Os seres humanos podem ter, ou deixar de ter, consciência da sua bissexualidade. No ordinário da sua vida quotidiana, porém, é-lhes necessário sufocar tais inclinações. Teopompo, autor da História do Rei Filipe, refere-se a Estrátão, rei de Sidão, que ”excedia todos os homens em matéria de prazeres e luxúria... Estrátão costumava arranjar festas íntimas a que trazia tocadoras de flauta, cantadeiras e outras raparigas que tangiam a lira; era seu hábito, também, mandar vir muitas cortesãs do Peloponeso, numerosas cantadeiras da lónia, para além de tantas outras moças de todas as partes da Grécia, algumas sendo cantoras e outras apenas dançarinas; e tinha a mania de instituir concursos entre elas, a que assistia com os amigos, e na companhia de toda essa gente é que ele passava toda a sua vida, pois era a vida de que ele gostava, sendo como era por natureza um escravo dos sentidos, mas mais que isso ia a todos os extremos para suplantar o seu rival Nícocles”. (Ora aí temos um aspecto interessante e original, esse motivo de nova espécie para a devassidão: o snobismo.) ”Porque acontece que os dois tinham um imenso ciúme das façanhas recíprocas, pelo que cada um dos dois vivia a consumir-se no empenho de cercar-se de mais intensos prazeres e mais conforto do que o seu emulo...” Teopompo prossegue, chegando a mencionar um outro amante da volúpia e do fausto, Cótis, rei da Trácia. Este monarca, sempre que chegava a algum sítio que o seduzisse, durante as suas andanças pelo reino, fazia-o transformar num local de banquetes ao ar livre, os quais depois visitava, 28
  • 26. cada um por sua vez. Cótis organizou um grandioso banquete, sob o fantástico pretexto de que ia casar-se com Palas Atena... ”e, após ter feito erguer uma câmara nupcial, meteu-se nela à espera da deusa, numa bebedeira desvairada. Depois, completamente fora de si sob a influência do vinho, destacou um dos seus guarda-costas para ir ver se a deusa já havia chegado ao tálamo. Voltando o infortunado com a informação de que não havia ninguém no local indicado, Cótis varou-o mortalmente com uma flecha do seu arco, repetindo a experiência - e o resultado - com outro mensageiro, pela mesma razão; mas um terceiro soldado, muito sagazmente, declarou que a deusa já lá estava há muito tempo, à espera do ”noivo”. Este mesmo rei, certa vez, num acesso de ciúme da esposa, trucidou a pobre mulher com suas próprias mãos, começando a medonha operação pelas partes pudendas dela”. Cares, o general ateniense, costumava levar consigo, para toda a parte, nas suas campanhas, tocadoras de flauta, de harpa e prostitutas, sendo seu costume desviar para a manutenção desses confortos uma parte dos dinheiros angariados pelo país para a guerra e ainda devolvendo outra parte a Atenas, destinada ao gozo de particulares e socorro a gente enterrada em dívidas e às voltas com processos na justiça devido a esses gozos. Tudo isto o tomava extremamente estimado pelos cidadãos, como era natural, ”porquanto estes também levavam uma vida semelhante (à de Cares), a saber, que os muito jovens passavam todo o seu tempo em companhia de umas flautistas insignificantes e nas casas de prostitutas; os já de mais idade viviam metidos em vinhaças e jogatinas, e prodigalidades outras do mesmo género; enquanto o povo, em geral, desperdiçava mais dinheiro nos banquetes públicos e nas distribuições de carne do que na administração do Estado”. É Teopompo quem fala. Heraclides, do Ponto, na sua obra intitulada Sobre o Prazer, diz de Temístocles que ”ainda nem bem haviam os atenienses começado a dar-se às vinhaças e ao convívio com prostitutas, já ele abertamente atrelava a uma carreta quatro cortesãs, e as dirigia como parelhas atreladas através do Cerâmico, estando cheio de gente esse logradouro”. Esta narrativa vem ligeiramente adulterada em Idomeneu que, na sua exposição, deixa margem a dúvidas sobre se as heteras puxavam realmente o veículo, como o fariam alimárias, ou se apenas vinham nele transportadas juntamente com a pessoa do próprio Temístocles. Contudo, um relato semelhante ao primeiro existe sobre Marco António. Como seria de prever, os Gregos davam precedência ao prazer que tomava a vida e a liberdade coisas dignas de preservação, em detrimento até da condução de uma campanha militar, que deveria ter a primazia; e, num 29
  • 27. contraste inspirador para os modernos políticos, sacrificavam a potência militar a fim de manterem um padrão de conforto que servisse para lembrar aos seus concidadãos, lá na pátria, a benesse por cuja defesa eles estavam a combater. O grande Alexandre, que não era nenhum guerreiro pachorrento, era muito dado às voluptuosidades. Durante os seus jantares, gostava de apreciar os entretenimentos apresentados por toda a espécie de prélios, de bailados e de música. Chegava até a tomar parte pessoalmente nessas apresentações, sendo que, em tais ocasiões, erguia ele os seus brindes com vinho puro, sem qualquer mistura, o que era contrário ao uso da época e forçava os seus comensais a imitá-lo. Nos banquetes, ele comparecia ataviado numa variada sequência de vestimentas, fantasiando-se de divindades diversas, deuses e deusas, umas vezes ornado com comos como os do deus egípcio de cabeça de carneiro, e outras envolvendo- se nas gazes femininas de Ártemis. Noutras ocasiões, conforme o seu capricho, ”envergava a pele dum leão e brandia o grosso lenho, a fazer de Hércules”. ”Ainda noutras, envergava trajos, como os de Hermes... mas, normalmente, no uso diário, vestia um manto purpurino de andar a cavalo, uma túnica igualmente púrpura, mas listada de branco, e cobria-se com o toucado macedónio que levava o friso de realeza. Em Ecbatana, ele organizou um festim em honra de Dionísio, sendo aí tudo fornecido com prodigalidade para as celebrações; o sátrapa Satrábates proporcionou entretenimentos e hospitalidade a todos os soldados.” No dizer de Chares (o historiador, e não o general), ”ao submeter Dário, ele (Alexandre) celebrou casamentos, para si mesmo e para os seus amigos também, erguendo noventa e duas câmaras nupciais todas reunidas num mesmo local. A construção era bastante grande para comportar cem leitos, cada um dos quais se achava enfeitado e guarnecido de cobertas nupciais e era feito de prata no valor de vinte ’minae’, ou talentos; porém, o dele assentava sobre pés de ouro. Convidou para o banquete todos os seus amigos e fê-los instalarem-se em leitos fronteiros ao seu e aos dos demais nubentes do casamento em massa... Toda a armação estava decorada com sumptuosidade e magnificência, recoberta de panejamentos, e finos linhos, tudo de alto preço, e pisava-se sobre tapetes púrpura e carmesim entretecidos de fios de ouro. Para que o colossal pavilhão se aguentasse firmemente ali, havia colunas de dez metros de altura, cobertas de dourados e prateados e engastes de pedrarias preciosas. Essas bodas duraram cinco dias e para elas concorreram os serviços prestados por numerosíssimas pessoas”. Diz Policleto de Larissa que Alexandre fazia-se sempre acompanhar para os seus acampamentos militares por flautistas, de ambos os sexos, os quais ficavam a beber em sua companhia até ao amanhecer. 30
  • 28. Um casamento era então, como o é ainda hoje, um infalível pretexto para banquetes, pelo que muitíssimos terão sido efectuados; um, porém, supera todos os demais, quanto à magnificência - foram as celebrações em honra do matrimónio de Carano da Macedónia. Essa festa foi descrita pormenorizadamente por Ateneus e, de facto, a julgar pela quantidade de comestíveis e pela longa lista de representações artísticas aí exibidas, os festejos devem ter-se prolongado através de um considerável espaço de tempo. É que não foi apenas uma festa, mas uma contínua série de festas, pois os prélios de comezainas alternavam com os lances de diversões. Eram vinte os convidados, os quais, no decorrer da noitada, lograram colher das mãos do generoso anfitrião muitos presentes, a maior parte destes sob a forma de pratos e taças de ouro de desenho grandiosamente dispendioso; e, depois dos preliminares comes e bebes de gigantescas proporções, e que consistiram em galinhas, patos, pombos-torcazes, gansos, lebres, cabritos, ”bolos com formatos curiosos”, pombos comuns, toutinegras, perdizes e ”outras aves e de tudo muito” - na descrição de Hipólocos, ”quando afinal já nos havíamos, satisfeitos e contentes, despedido de toda a sobriedade, entraram flautistas e cantoras, mais algumas rodianas tocadoras de sambuca. A mim pareceram-me essas raparigas inteiramente nuas, mas disseram-me que não, que elas estavam cobertas de túnicas. (Seriam as famosas gazes coanas. Os fabricantes de tecidos da ilha de Cós aprenderam a fazer produtos de finura de teia de aranha, tecidos esses que as pessoas mais circunspectas reprovavam, mas os afoitos e os escravos da moda sofregamente compravam. Muitos desses panos eram exportados para Roma). As mencionadas artistas eram seguidas por um grande porco, que fazia a sua entrada solene ”sobre uma bandeja de prata toda recoberta de ouro e em espessura não pequena”. O suíno ”jazia de dorso... o seu ventre, visto do alto, revelava estar pejado de petiscos. Porquanto, assados dentro dele e com ele, lá estavam amarradinhos de paturis, de rolinhas, em quantidade ilimitada, puré de ervilhas servindo de guarnição a ovos, a ostras, a escalopes...” Mais divertimentos vinham em seguida a esta assustadora explosão de alimentos, da qual deve ter cabido bastante substancial porção a cada um dos vinte convivas a quem se destinavam esses serviços. Dançarinos, jograis e algumas mulheres prestidigitadoras, nuas, logo apareceram, ”os quais executaram números de equilibrismo por entre folhas de espadas e sopraram fogo de dentro de suas bocas”. Novamente se alternaram o comer e o espectáculo, pois às prestidigitadoras nuas seguiu-se vasta libação. ”Tivemos a nossa atenção presa a uma bebida tépida e quase pura, sendo os vinhos que estavam à nossa disposição 31
  • 29. o tasiano, o mendeano e o lesbiano; e foram passadas a cada conviva enormes taças de ouro.” Peixe assado e presentes de pratos de cristal foi o que veio depois dessa selecção de vinhos que, por sua vez, precedeu imediatamente uma apresentação de dançarinas vestidas de nereidas e ninfas e um esplêndido quadro vivo de Cupidos e Dianas, Pãs e Hermes, que seguravam tochas ardentes presas em aros de prata. Aos comensais que, pelos vistos, ainda se aguentavam de pé (porque ”O maravilhoso nisso tudo era que, apesar de ociosos e cheios de vinho até aos gorgomilhos, assim que víamos entrar ’em cena’ qualquer um desses ’números’, logo nos púnhamos todos suficientemente clareados da cabeça para que nos pudéssemos pôr de pé”), só se requeria que aceitassem ainda mais um serviço, dado que, após serem servidos javalis espetados em dardos de prata e carregados de presentes, ser-Ihes-ia permitido recolherem-se às suas casas ”em seu perfeito juízo... tomamos os numes imortais por testemunhas!... visto que ficáramos apreensivos quanto à segurança das riquezas que levávamos connosco”. Resumindo, pode dizer-se que a comida era demasiada, pelo que será lícito qualificar-se esta festa, sem reservas, como uma orgia nitidamente de tipo gastronómico; mas é certo que festas de esponsais acordam pensamentos eróticos na cabeça dos convivas e, se bem que a natureza sexual de uma função social deva ser apreciada mais objectiva do que subjectivamente, para que se possa acertadamente dá-la como manifestação orgíaca, a válvula de escape, ainda que, por via indirecta, é aí inquestionável, tanto que a mim me parece que lhe cairia bem a qualificação de orgia. Alexandre era, isso é indubitável, muitíssimo dado à bebida, mas na verdade o alcoolismo exacerbado ao extremo era caso raro na Grécia Antiga, embora Dionísio da Sicília fosse apontado como o responsável único pelo dano permanente que causou aos seus órgãos visuais por essa forma de excesso, já que certa vez deixou-se ficar bêbado durante noventa dias de uma assentada; também Niseus, depois tirano de Siracusa, se empanturrou de comida e se encharcou de vinho ”como se tivesse sido encarcerado por crime de morte e pensasse que só lhe restavam uns poucos meses de vida”. Este soberano, uma vez embriagado, ficava excessivamente lúbrico e punha-se a violentar tanto rapazes como mulheres. Parece que os Sicilianos granjearam certa reputação de serem desmesuradamente dados à comida e à bebida. Platão ficou desfavoravelmente impressionado ao notá-lo e a propósito fez a seguinte observação: ”A vida ali em nada e de nenhum modo me agradava; imagine-se uma existência toda ela passada a encher-se o bandulho duas vezes por dia e jamais recolher-se ao leito sem companhia, à noite, isso para não falar de todas as demais práticas que acompanham tal 32
  • 30. maneira de viver.” Diotimo, de Atenas, mereceu o epíteto de ”funil”, precisamente porque ”costumava meter na boca um funil, pelo qual ficava a engorgitar vinho, sem parar, enquanto se lhe deitasse vinho ali”. Quanto a orgias de brutalidade sexual, infligidas por um exército vencedor sobre a população civil derrotada, isso é mais do mundo ex-helénico do que compatível com o espírito do povo grego. No entanto, os Citas, povo vizinho, ”tendo uma vez saboreado o doce fruto dos prazeres”, adiantaram-se, segundo narra Clearco, de tal modo ”no mau hábito da insolência, que até decepavam o nariz a todos os homens cujos territórios haviam invadido, enquanto suas mulheres tatuavam o corpo a todas as das tribos que viviam nas suas cercanias, para os lados do Ocidente e do Norte, injectando-lhes com alfinetes os traços da tatuagem. Afinal, compare-se o caso de Dionísio e das raparigas de Locris (acima narrado). Elas eram súbditas, não um qualquer povo vencido, e quanto a Dionísio, este era apenas um caso individual isolado e um ”não-conformista” com a moral corrente de então e, para além do mais, um indivíduo que provocava até a repugnância da moralidade do seu tempo. Para que, impõe-se-nos a pergunta, precisariam os Gregos então da válvula das orgias, já que o seu ponto de vista era tão sadio, tão hedonístico? Por que não deixavam a tensão, fosse ela sexual ou de outra ordem, ir-se consumindo gradual e mansamente no correr da vida rotineira do dia-a-dia? A resposta a essas perplexidades é de natureza algo imponderável. É fácil exagerar-se a noção do hedonismo dos helenos, e muitos o têm feito. E, todavia, aquilo que se deve ter em mente é o notável equilíbrio da vida helénica, tal que não permitiam a si próprios deixar que o afã em busca de um bem lhes anulasse o gozo de um outro. O casamento podia trazer-lhes oportunidades para o deleite dos sentidos, sim, mas oferecia também outros aspectos, tais como a procriação e a adequada educação da prole. Na Odisseia, vemos Nestor exclamar para Atene: ”Sê, no entanto, propícia, ó rainha, e concede-me digno renome, que me exalte e a meus filhos e à minha reverenciada consorte.” Perceberam bem os Gregos que a desenfreada autocomplacência sexual conduzia, afinal, à satisfação sexual de ninguém e, também, que esse auto-abandono ”ao prazer podia mesmo destruir outras benesses ocorrentes. (Os próprios festivais catárticos, de desafogo, como o eram as festas dionisíacas, davam-se a intervalos pouco frequentes, conquanto regularmente espaçados). A despeito de toda a sua ingenuidade, eram os Gregos um povo eminentemente prático, suficientemente realista para se dar conta de que a inclinação prevalecia sempre e, pois, diríamos hoje, para evitarem a explosão da caldeira, de tempos em tempos, libertavam a 33
  • 31. válvula de escape. Além do mais, eles sabiam muito bem que nem sempre se equipara o hedonismo à fugaz satisfação física de um instante. Não obstante, já entre eles se pressente o indício do conceito que viria a ser o nosso, hoje velho, preconceito vitoriano, a saber, que as mulheres ou são rameiras, ou são honestas mães de família: as duas categorias são irreconciliavelmente antagónicas entre si. O âmago da questão reside no facto já exposto, aquele facto que se esconde por trás do fenómeno orgia no que esta tem de fenómeno social, e é que os homens são, em boa parte do seu ser, humanos. Porém, noutra parte, são meros animais, e os interesses dessas duas componentes estão em conflito. A esposa toma-se inaceitável como partilhadora de lubricidades precisamente porque é esposa, sendo também a pessoa que está encarregada de desempenhar as funções de dona-de-casa e de mãe. Um dos resultados da reclusão das mulheres foi a prevalência da homossexualidade - situação semelhante à que se encontra muito nos países muçulmanos. Tal foi, na Grécia, uma alternativa a servir de válvula de segurança. Não era, entre eles, tolhida; porém, e tal como a maior parte das coisas em que infundiam o seu toque, ela tomou-se, nas mãos dos Gregos, algo idealizado, sublimado. Em consequência dessa sublimação, desenvolveu-se uma espécie de relações cuja verdadeira natureza é algo muito árduo de julgar. O amor entre um homem de mais idade e outro mais jovem era tido como desejável devido à influência que essas relações teriam sobre o comportamento, em geral, do mais novo. Cria-se, talvez acertadamente, que o desejo de ser-se considerado admirável influiria beneficamente no comportamento e nas realizações do mancebo. Agora, o ponto exacto em que tais relações passavam do plano sentimental para o físico permanece tão problemático quanto o são as razões pelas quais os Gregos resolveram não só deixar de vedar esse derivativo, como até, pelo contrário, tiveram por bem glorificá-lo. Conforme já o dissemos atrás, tratamos dos Gregos um tanto extensamente por eles terem constituído uma das duas sociedades civilizadas que inscreveram essa manifestação, a orgia, como parte integrante do seu modo de vida nacional, em suma, como um recurso oficialmente reconhecido, de escape de pressões. Disso não se conclua, já o vimos, que não haveria entre eles, também, os orgiastas ”rebeldes” contra a sociedade helénica, e isto é uma circunstância interessante e significativa, conquanto seja ainda muito cedo para se precisar de que é ela significativa. A segunda de tais civilizações é a romana, da qual passaremos agora a tratar. Infelizmente, à prestimosidade 34
  • 32. da orgia, como válvula de segurança, associa-se o inerente perigo de degeneração. Um daqueles povos, que apresentam dois respectivos padrões do fenómeno, dentro de um dos quais os orgiastas rebeldes de subsequentes gerações podem ser classificados, um deles, o grego ou o romano, foi, a meu ver, infinitamente mais sadio, brilhou mais e viu-se dotado de mais esclarecimento quanto ao verdadeiro objectivo da orgia e, ainda, de maneira curiosa quanto à natureza total da própria sexualidade, do que o foi o outro. Não antecipemos, porém, o debate da questão - pois os sucessores dos Gregos vão ser agora analisados, de modo que as comparações ressaltarão por si mesmas, sem dúvida. 35
  • 33. CAPITULO SEGUNDO OS ROMANOS É impossível imaginar-se uma maior diferença do que aquela que separava as duas filosofias da vida antagónicas, a dos Romanos e a dos Gregos, se as apreciarmos à luz dos conhecimentos que possuímos sobre o comum das gentes integradas, respectivamente, numa e na outra das duas civilizações. No ramerrão do seu viver diário, o grego, tal como já aqui vimos, mostrava um indisfarçável gosto de viver, no que entremeava de graça de classe e de subtilezas de entendido na arte de bem viver, bem como de saber compreendê-la nos seus iguais: quer isto dizer que sabia comer, sabia envergar as suas belas vestes e sabia conduzir-se no terreno da sexualidade. Uma das primeiras impressões que nos assaltam ao lermos algo sobre este aspecto das respectivas existências dos dois povos é a de que os Gregos sabiam dominar a sua sexualidade, ao passo que a dos Romanos, ao contrário, dominava-os a eles, que se lhe abandonavam como a um despótico senhor, o qual por fim veio a destruí-los tal como eles mesmos o haviam previsto e até pretendido e deliberado. A vida sexual grega era extraordinariamente isenta de perversões. (Desta categoria, excluo a homossexualidade, pois esta não procede de um erróneo conceito de sexualidade.) Um dos mais certos sinais da presença, ou da ausência, de malignidade na vida sexual característica de uma dada civilização é encontrar-se isso na sua literatura, critério este pelo qual os Romanos sofrem condenação, ao mesmo tempo que os Gregos superam a prova tão garbosamente, senão mais airosamente, do que qualquer nação moderna. Este juízo, à semelhança de qualquer outro de ordem ética, é essencialmente subjectivo e não objectivo; mas quer-me parecer que grande parte do descontentamento proveniente do sexo dever-se-á apenas a uma parcial e inconsciente 36
  • 34. renúncia à actividade sexual; pelo que não acho que à sexualidade se possa, com justiça, atribuir, em qualquer extensão, causa eficiente de infortúnio, e que, isso sim, será ela causa de alegrias. A literatura dos Gregos contém numerosas referências ao amor homossexual mas, como já vimos, esse amor é sempre envolto em idealismo, é objecto de admiração e misticismo: toda a atitude grega indicava apreço e admiração pelas possibilidades de deleites puramente sensuais, sem a pecha da heresia de achar impossível combinar, entre si, prazeres intelectuais e físicos, o que leva, inevitavelmente, tanto quanto indesejavelmente, ao sacrifício de um dos outros dois géneros associados. Analisando a literatura dos Romanos, encontramos-lhe algo de diferente. Não que seja tão ostensiva quanto seria de esperar, porém ela aí está, sempre perceptível, não obstante a obsessão da crueldade e, o que é mais importante, a atitude propensa à crueldade, coisa jamais encontrável na literatura dos helenos. E todos sabemos quanto a referida presença se reflectia efectivamente na quotidiana vida prática do Lácio. Quanto a mim, tenho uma firme convicção quanto à causa real de tal fenómeno e, se estou com a verdade, a dita causa é extremamente relevante para o exame dos métodos pelos quais os Romanos procuravam os seus prazeres, bem como da razão porque, segundo demonstrei, falharam nisso. Em primeiro lugar, quero demonstrar a extensão realmente estarrecedora em que os seus instintos tanáticos se fizeram sentir na vida ordinária do seu povo. É claro que os Gregos, como todo o mundo, aliás, tinham também os seus sentimentos de agressividade e desejos sádicos, ainda que tal vocábulo, ”sadismo”, apareça aqui, na verdade, como coisa singularmente descabida; porquanto a essência mesma, integral, da atitude grega perante esses instintos era a de uma completa isenção de taras mórbidas. Os festins orgíacos, do género dos dionisíacos, serviam-lhes não somente como recurso para conseguirem aquela ”teolépsia” que já descrevemos, como também - e igualmente já o disse - como válvula de escape a ambos os instintos, o tanático e o erótico. Essa última (a dita válvula de segurança) é que é a verdadeira função atribuível à orgia, não passando aquela referência à ”teolépsia” de explicação romântica com que o homem semiprimitivo procurava racionalizar factos que a sua mente não conseguia nitidamente apreender. Muita gente há que se obstina em não reconhecer que é portadora de instintos sádicos; outros indivíduos, porém, até se deixam fascinar completamente por eles. Neste fenómeno reside um dos perigos da orgia, se a ela se entregam pessoas que não tenham o discernimento de perceber a sua 37
  • 35. natureza diversiva. E os Romanos enquadravam-se neste último tipo de gente. Há quem ache incrível que alguém retire qualquer prazer real, gozo de origem erótica, da contemplação do sofrimento. Pois existe tal espécie de indivíduos, ou, pelo menos, havia outrora gente que se deleitava em ver matanças, acompanhadas ou não de tormentos; é coisa incrível, porém, infelizmente, menos possível de se rejeitar a pretexto de subjectiva incompreensibilidade. Pela descrição de Rosenbaum (Histórias da Sífilis), grandes levas de prostitutas costumavam reunir-se em bordéis nas cercanias do Anfiteatro Máximo, visando interceptar, na saída dos jogos, os homens que de lá vinham sexualmente excitados, a mais não poder, pelas sangrentas exibições de gladiadores, mutilações e carnagem, lutas de feras e todas as demais formas de insânia obsessiva que se desenrolavam na arena. Uma das mais destacadas, repulsivas e características feições daquelas cerimónias era a organização, o elevado grau de ritualismo com que elas eram realizadas. Eis, portanto, o que põe o ferrete de pervertidos na carne dos Romanos: a meticulosa elaboração, o planeamento, a constante engenhosidade no criar sempre novos instrumentos de tortura, o odioso cerimonial, em suma. Em todo e qualquer modo novo de levarem a efeito uma execução, em toda a forma de tortura, era invariavelmente introduzida uma formalidade que era vergastar-se previamente a vítima ou condenado. Não bastava matá- la. A morte nada era, uma simples sonegação de vida; era mister infligir dor, primeiro. ”Firam- no de maneira que ele sinta que está a morrer!” - disse Calígula; e, embora pareçamos desleais por citarmos, como provas, dizeres de um epiléptico e louco, a História aí está para nos mostrar com horrível e empolgante clareza que, no tempo desse monstro, tal mentalidade não era tão-só o apanágio de um tarado apenas, ou sequer de um reduzido círculo de iguais a ele. Por onde quer que olhemos, deparamos com coisas idênticas. A sociedade romana baseava-se na escravatura e tratava os seus escravos de maneira abominável, fazendo-o não apenas os amos, os pater famílias, mas também as respectivas matronas; nem se dirá, tentando uma explicação justificativa, que semelhante crueldade assentava na necessidade, ou que diferiam das nossas actuais, as convenções que regulavam, na época, o humanitarismo; ou, ainda, alguma outra desculpa qualquer, a fugir da simples e interessante verdade. Vemos como Juvenal verbera o sadismo das mulheres romanas do seu tempo: Mas sabeis, decerto, o que faz a mulher em casa o dia inteiro. Se o marido lhe deu as costas no leito: o deus acuda à serva da casa! 38
  • 36. Às servas da senhora são estraçalhadas as vestes, | ”?!;; f [e surra-se o cocheiro, Por ter comparecido atrasado (e punido porque [um outro dormia) destroem-se fusos, costas lanhadas e a sangrar [são ainda flageladas E novamente lanhadas: damas há que têm de reserva [um açoite especial, seu. com ele açoitam, enquanto lhe fazem a pintura facial, Conversam com pessoas amigas, apreciam um vestido com [fímbrias douradas, Lêem tabulas diárias e vergastam até que se desfaça [em tiras o açoite e então gritam ”Ide-vos daqui!”, eis que terminou o suplício. E assim a ”domina” governa a sua casa com mais selvajaria [do que um tirano. Marcou um encontro, quer ter uma aparência Mais bela que a costumeira, pois ”ele” espera-a Sob as árvores, ou no bordel da deusa ísis, E a pobre Pseca arranja a cabeleira de sua ama, enquanto [que a sua própria Ela a tem desgrenhada e os ombros nus, seios à mostra. ”Esse cacho está muito alto!” E, sem demora, o chicote [de couro de boi Corta as carnes à desgraçada, cujo crime fora uma simples [cabeleira mal arranjada. O relato de Juvenal não deixa de trair veladas insinuações sexuais. Buscando-se a causa de uma característica tão evidente numa dada sociedade, vai-se naturalmente procurá-la no estudo do seu sistema educacional. Aqui, como noutros lugares, achamos a mesma velha história, os frequentes e severos acoitamentos, a pregação da virilidade agressiva que, tal como na situação que lhe faz eco 2000 anos mais tarde, só podia levar a subsequente infortúnio para quem quer que se achasse envolvido nela. Mas é discutível se deveremos aceitar, ou não, tais elementos da educação romana e da germânica, como causas, ou antes como resultado, meramente sintomático, da enfermidade social originária. A crueldade dos jogos circenses e o fausto dos particulares aumentavam à medida que a actividade militar nacional decrescia. Ao longo de muitos 39
  • 37. anos, os romanos deram-se à crueldade e à violência mais ou menos acessórias, apenas, dos fins a que visassem. Cessada a necessidade delas, verificaram que, não obstante, já não podiam largar o seu hábito. Aquilo que começara como facto desprovido de sentido sexual, agora, sub- repticiamente, firmava-se no erotismo. Este é um processo que se pode observar, e tem sido observado, noutros locais, muito em particular no que diz respeito aos cultos religiosos. O instinto sexual é muito forte e a fertilidade da mente humana para a criação de simbolismos sexuais é uma coisa sem limites. Não será muito de surpreender que o erotismo seja uma manifestação de tal modo infiltrante. Todo o ser humano é, até certo ponto, polimorficamente pervertido, já que as sementes de tantas perversões jazem dentro de nós todos, e nenhuma delas responde tão prontamente à fertilização como o fazem o sadismo e o masoquismo. O sadismo dos jogos circenses romanos indubitavelmente acordava ecos nos corações de muitos dos espectadores. Santo Agostinho relata o seguinte: ”Vivia em Roma, onde estudava, um jovem cristão. Muito tempo andara a evitar o anfiteatro, mas por fim um dia lá foi, levado em visita por alguns amigos. Afirmou-lhes que eles podiam arrastar o seu corpo até ali, porém não a alma, porquanto pretendia deixar-se estar permanentemente de olhos fechados e, assim, se conservaria ausente. Fez como prometeu; mas um grande brado que se levantara induziu-o a abrir, instintivamente, os olhos curiosos. Foi aí que a sua alma se viu trespassada mais cruamente do que os corpos feridos que ele quis contemplar; e sua queda foi mais deplorável do que o tombo mortal, na arena, que provocara o alarido. Porque, à vista do sangue, ele se embebedou da embriaguez da crueldade; não mais teve forças para desviar a vista; esta tomou-se-lhe fixa, fascinada; ei-lo, que estava bêbedo e sequioso de sangue. Para que hei-de eu insistir? Apenas olhou e logo o seu sangue ferveu; e dali já saiu ele levando na mente uma insânia que desde então o seduziria a voltar outras vezes.” Atrás da ideia de sado-masoquismo situa-se uma equação de violência e cópula. E isso implica várias outras ideias preliminares. A primeira delas é o conceito de que no sexo há algo de criminoso e erróneo, e a segunda, que daí procede, é que o elemento activo, dos dois participantes, comete um ultraje contra a pessoa do comparsa passivo. No seguimento disso virá o impulso-desejo de retribuição. O portador de qualquer uma dessas duas perversões é um espírito tresmalhado, em algum canto do seu consciente. Dar-se-á um de dois casos, a saber: que ele tenha decidido, mediante um tortuoso e enganoso processo 40
  • 38. mental subconsciente, dever sacrificar a sua sexualidade a bem da salvação da sua consciência e daqueles entes com quem entre em contacto; ou, então, como se passa com o sádico, ver-se-á torturado por um muito merecido sentimento de culpa. Isso é o que eu acredito que se passava no caso da Roma Imperial. Lá porque os Romanos se comportavam brutalmente, não há que concluir - e, na verdade, tal conclusão seria a mais errónea que é possível - que eles eram fundamental e totalmente gente brutal. Não há quem seja dono de um carácter rectilíneo de ponta a ponta, não há ninguém inteiramente isento de instintos inferiores, mas também ninguém é completamente animalizado e, portanto, ninguém, que não seja simplesmente um animal, é completamente privado de consciência. A sociedade romana repousava, em equilíbrio, sobre uma outra, a dos escravos. Erigia-se sobre o penhor que os senhores deviam aos seus escravos e o qual bem podiam fingir não ter em conta, e procuravam ajustar-se lá no seu íntimo, o que não deixava de constituir uma permanente ameaça à sua paz de espírito. Não há, no que aqui se disse, nenhuma imaginativa especulação do género freudiano. Se examinarmos os prazeres dos Romanos, revelar-se-nos-ão neles muitas das características do jogador obcecado, que age ostensivamente com a esperança de ganhar, porém no seu modo de agir vislumbra-se que ele está igualmente empolgado com a ideia de que poderá perder e, assim, retira o seu prazer em grande parte desse elemento de perigo que o ameaça. Este traço ressurge amiúde nas acções dos Romanos. Eles não eram hedonistas, apesar de apaixonadamente se darem à luxúria,” já que lhes deverá ter parecido evidente, tal como aos seus vindouros, que o que faziam continha um elemento de autodestruição e haveria forçosamente de renegar os próprios fins visados. O hedonista não é alguém que esteja necessariamente a trair a sua filosofia ao comprar a felicidade do momento ao preço do desgosto de mais tarde, a menos que nos recessos da sua mente o termo ”comprar” seja utilizado com o sentido com que nós dizemos de um criminoso regressado da prisão que este ”pagou” pelo crime que cometeu. Esta confusão é frequente. Até esta altura pintámos um quadro bastante soturno, aliás uma representação exacta; porém, diga-se que nem todos os romanos eram sádicos. Pondo-se de parte as excepções individuais que confirmam quaisquer regras, havia abundância de aspectos da vida romana onde a preocupação de domínio daquela raça dormia tranquila no seu seio, conquanto e bastante estranhamente sejam alguns desses aspectos que terão sofrido o maior impacto dos apodos atirados sobre o ”decadente” Estado romano. 41
  • 39. O sado-masoquismo representa um falso conceito da natureza da sexualidade, sendo a religião ainda outro, como já o apreciámos no caso dos Gregos. É possível não ser isto um postulado muito correcto. O sadismo representa um falso conceito; a religião é uma idealização. Nenhum dos dois estará à altura de aceitar o sexo pelo seu valor nominal, mas a última, a religião, é infinitamente preferível ao primeiro. Pois este, o sadismo, representa uma derrota, ao passo que aquela oferece um compromisso. O sadismo pode causar infinito mal, enquanto a religião bem pouco. Quase todas as divindades romanas relacionadas com a vida sexual, fossem elas importadas ou locais, viram-se rapidamente descaracterizar pelo carácter dos seus ”progenitores” humanos. Vénus, teoricamente a deusa do amor, aparece na vida romana sob sete personificações diferentes, quase inconciliáveis entre si. Era ela a guardiã do amor lícito, sendo o seu culto celebrado pelas matronae, as mães de família. Mas essa faceta do seu carácter, na qual é vista essencialmente grande lubricidade, reduz-se a nada ao descobrir-se que a deusa era, igualmente, a padroeira das meretrizes. E, terceiro aspecto, quiçá o mais significativo, ela era até, de alguma forma, a própria mãe da nacionalidade romana. (Sabendo-se que o símbolo do poder do Estado entre os Romanos eram os fasces - feixes de varas e um machado, dos lictores -, essa ligação entre nação e instinto erótico é, para se ser breve, pelo menos interessante). Para nos confundir ainda mais, Vénus surge-nos uma quarta vez como a Vénus Verticordia, isto é, aquela que desvia os corações (a das coisas licenciosas). A idolatria desta forma da divindade vem do ano 114 a. C., em que três virgens vestais foram condenadas à morte por terem desobedecido às leis sobre actividades sexuais. É difícil entender-se muita coisa sobre esta complicada deidade, cujas diferentes ”invocações” se celebravam, todas, em diferentes festivais. Aquela a quem as rameiras invocavam como sua padroeira sob nome de Volgivaga, a que perambula pelas ruas, tinha a sua festa a 23 de Abril, no dizer de Ovídio que, infelizmente, não entra em pormenores. O culto de Vénus denota a capacidade que tinham os antigos para verter em formas ritualísticas religiosas numerosos assuntos que aos nossos modernos modos de ver são perfeitamente inadequados à deificação e ao culto. A idolatria de uma divindade conhecida como Fortuna Virilis, que alguns diziam estar relacionada com Vénus, e que era adorada por mulheres das classes pobres nos banhos dos homens - mais a ingénua justificação de que ”ali, ficam a descoberto aquelas partes do corpo masculino que reclamam o favor das mulheres” -, tudo isso revela a mesma atitude um tanto ou quanto helénica. f c - 42
  • 40. O deus Líber, pelo menos originalmente, era apenas um nume que presidia, de maneira relativamente positiva e directa, à fertilidade. Em várias regiões da Itália honravam-no mediante cultos fálicos. Onde tal se verificava, ia um enorme falo de madeira conduzido com grande cerimonial sobre uma carreta, a percorrer a cidade e os campos, até ao momento em que uma das matronas locais o ornamentava com uma coroa. Pode ser que os Romanos o tenham, ou não, idealizado originariamente como ligado apenas à fertilidade do solo; o facto, porém, é que ali existia o respectivo simbolismo, patente e conveniente, pelo que logo se pôs a esgueirar- se-lhe para dentro um outro elemento. Eis como Santo Agostinho fala dessas cerimónias: ”Varrão diz, entre outras coisas, que os ritos do deus Líber eram celebrados nas encruzilhadas dos caminhos da Itália, de forma tão despudorada e licenciosa que as genitálias masculinas eram aí adoradas em honra do deus... e isso não era feito com qualquer aparência de sigiloso recato, mas com depravação escancarada e exultante. Aquela vergonhosa parte do corpo era pomposamente colocada, durante a festa de Líber, em carretas que se arrastavam por todas as encruzilhadas, campo fora, chegando, por fim, à cidade. Na de Lanuvium, era dedicado a Líber um mês inteiro. No decurso deste, todos os cidadãos se exprimiam com a linguagem mais ignominiosa, até ao instante em que o gigantesco falo era levado através da praça do mercado para o lugar onde ficaria novamente guardado em repouso. Havia imprescindivelmente mister que a mais distinta das matronas da cidade engrinaldasse com suas próprias mãos honradas aquela infamante efígie. É que o deus Líber precisava ser atraído a propiciar, garantindo-o, o futuro das colheitas; também se impunha esconjurar o mau olhado dos campos, mediante o forçar-se uma dama casada a fazer em público coisas que nem mesmo uma rameira poderia num palco teatral realizar à vista das espectadoras casadas.” Kiefer explica que ”o facto de ser a cerimónia desempenhada por uma mulher séria mostra que não constituía manifestação de deboche mas, sim, um velho costume impregnado de significação religiosa, o qual visava evitar influências mágicas destrutivas”. Há um pouco de verdade, mas não muita, no que ele aventa. Mais comum, até, do que raro, é que a apreciação de resultados constitua método fidedigno de se julgar uma causa. Se certa gente se comporta de maneira parcial ou totalmente erótica, evidentemente não seria lícito supor-se que as suas motivações seriam, na sua origem absoluta, parcial ou totalmente sexuais. Nos casos em que se introduz um dado processo intelectual à guisa de motivação de determinado comportamento sexual, é mais crível que se trate então do caso inverso. 43
  • 41. Kiefer prossegue, abalançando-se a encarar o falo como um amuleto contra o mau olhado, procurando desta forma isolar da erótica aquele emblema. ”Por vezes erigia-se sobre as portas da cidade um falo, como protecção contra o azar. Havia casos em que o dito falo se sobrepunha à inscrição ’Hie Habitat Felicitas’ - a felicidade mora aqui. Isso, naturalmente, não queria dizer que a localidade se atribuía a virtude de garantir a ninguém qualquer forma de felicidade sexual, mas, tão-somente, que aquele falo, pelos seus poderes mágicos, repelia o assalto do mal.” No entanto, a ideia que Kiefer tão ligeiramente descarta nem por isso é inteiramente ridícula. O falo é capaz de acarretar a homens e mulheres felicidade de um determinado tipo, pelo menos, e, sendo na verdade miraculosa a natureza desse dom, ela surgia aos olhos do homem semicivilizado de então como um facto portentoso, de natureza mágica. É ainda Kiefer quem menciona o número de amuletos fálicos que estão na posse dos museus, os quais os negam, ciosamente, à vista embasbacada do grosso do público. ”O homem dos nossos dias contempla essas coisas quase que com os olhos de Santo Agostinho e, assim, deixa de fazer justiça ao profundo significado original do (tal) símbolo.” Não se pode evitar acolher-se a impressão de que o homem de hoje, na sua ingenuidade e simplicidade e, com ele, Santo Agostinho - pondo-se de parte o moralismo deste último -, estarão com a razão, ao passo que Kiefer, em toda aquela sua subtileza, é que estará errado. O tal significado que ele dá como sendo ”original” não passa, em boa verdade, de um desenvolvimento do original, que deverá ter sido, ainda que nem conscientemente, erótico. Príapo, o deus dos jardins, é ainda mais francamente fálico. Sendo, teoricamente, um mero espantalho de aves, como era Líber, o seu elemento de erotismo acabou, afinal, por dominar inteiramente o seu culto. Por vezes, a sua imagem resumia-se simplesmente à forma de um imenso falo, ao qual se acrescentava uma aparência de cabeça e fisionomia humanas. Quase sempre vinha ornado de um órgão genital de colossais dimensões. De qualquer maneira, fosse o deus originariamente ligado, ou não, à ideia de sexo, o facto é que a imaginação popular desde logo o transformou numa divindade totalmente sexual e, assim, as características da sua sexualidade seriam precisamente as dos seus adoradores. O falo de Príapo aparece frequentemente sob o conceito de arma ou instrumento de castigo, segundo no-lo indica a conhecida colecção de poemas latinos que traz o título de Priapeia. Percorre esses poemas de ponta a ponta uma veia acentuadamente sádica, notando-se que um elemento idêntico se encontra nas festas adstritas ao culto priápico. 44