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A pequena flor do campo




           Luiz Gonzaga Pinheiro
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Dedicatória




                Para meu neto Luan.
              Que seja tão forte e sábio
              Quanto o guerreiro da lua.
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Índice
   1. Introdução
   2. Alegrias de um pai ou o relampejar do tempo
   3. A obsessão em crianças
   4. O passado recente de Hortência
   5. A lança do Centro Espírita
   6. A falange dos mutilados
   7. As avós quimbandeiras
   8. O guerreiro da lua
   9. O estranho e compreensível sentimento materno
   10. Ogum – A força avassaladora da lei
   11. A batalha dos polvos voadores
   12. Conversa entre guerreiros
   13. Mulheres atormentadas
   14. Homens de luz
   15. Tecnologia de ponta
   16. Visita ao cemitério
   17. Devolvendo o coração
   18. Evitando choques futuros
   19. Guerreiros não atacam mulheres
   20. Recanto de paz
   21. Fragmento de biografia
   22. Conclusão
   23. Anexos
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Introdução


        Não há quem não se enterneça diante de uma flor solitária no campo,
principalmente quando ameaçada por ervas que a sufocam. A tendência natural de
qualquer caminhante é protegê-la, chegando mesmo a limpar o terreno ao seu redor, a
fim de que este divino espetáculo da natureza se prolongue por mais tempo.
        Assim também nos sentimos diante de Hortência, quando sua mãe, Margarida, a
trouxe ao Centro Espírita Grão de Mostarda para que lhe ministrássemos um passe.
Serena, ela sentou-se à nossa frente e passou a contar sua estranha história.
        Seu sofrimento fora anunciado há alguns anos. Sua mãe, frequentadora e
trabalhadora de um Centro Espírita em Fortaleza fora informada de que seu marido já
desencarnado, voltaria à carne na condição de filha de sua filha, ou seja, a neta receberia
o avô para dar-lhe a devida educação, cuja falta o tornara um déspota familiar.
        “Seu Flores” era ao mesmo tempo pai e avô de Margarida. Estando uma de suas
filhas grávida, por não gostar de quem a engravidara deixou que a neta nascesse e a
registrou como filha criando-a como tal.
        Além de tirano dentro de casa, revelou Margarida, seu avô considerava toda
mulher uma vagabunda e todo negro um marginal. Contudo, forçou mulheres a fazer
sexo com ele e depois as desprezou. Sua opinião era de que mulher só servia para esta
finalidade.
        “Seu Flores”, como era conhecido, pois seu nome era Armando Flores, fez
inimigos mesmo entre os familiares. Segundo Margarida, ele só tinha, dentre os de sua
parentela, uma réstia de afinidade com ela, sendo os demais familiares, afastados
através da costumeira intolerância.
        O fato é que quando a pequena Hortência nasceu, a vida de todos na família
sofreu profunda alteração. Brigas e inimizades se instalaram no lar; espíritas e católicos,
pois a família tinha preferências díspares no terreno religioso, partiram para
hostilidades; figuras sinistras oriundas do mundo invisível passaram a ser vistas pelos
cômodos e a criança sentia dificuldade para adormecer e se alimentar.
        A gravidez fora dificultosa e o pós-parto doloroso. Margarida passou a ter
pesadelos. Em um deles, uma figura aterradora lhe cortou os seios e a obrigou a engoli-
los. O trauma foi tão marcante que seus seios, antes generosos na alimentação da
pequena, secaram por algum tempo.
        Do diálogo que mantive com ela guardei uma frase que bem demonstra sua fibra
de mãe dedicada: sei que meu avô tem muitos inimigos. Mas quero educá-lo para que
respeite a todos, principalmente a Deus.
        Margarida sabia que um Espírito em débito com a Lei poderia optar por um
pagamento embasado no trabalho honesto e no amor aos mais sofridos. Este era o seu
plano para a pequena Hortência. Educá-la, sobretudo, moralmente, para que ela
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suportasse os golpes dos inimigos, conquistando-os pelo exemplo de fé e de amor aos
sofredores.
        Um belo plano como este certamente terá apoio integral da parte dos bons
Espíritos. Foi o que lhe disse no final de nossa conversa. Naquela noite a reunião de
desobsessão, emergencialmente, foi toda dedicada à pequena Hortência.
        Este livro narra o processo de desobsessão de uma garotinha com apenas 45 dias
de reencarne, acossada por cruéis inimigos que, a todo custo, pretendiam levá-la ao
desencarne.
        Seus agressores, escravos bantos, sempre se referiam a ela como “o assassino”,
ignorando totalmente a condição atual que a fragilizava. Vendo-o apenas como o antigo
algoz que ceifara seus filhos, mães e pais transformados em insistentes verdugos a
agrediam a chicotadas, transformando o pequeno apartamento em verdadeiro espetáculo
de magia negra.
        A linguagem, que neste caso poderia ser chula e bastante agressiva, foi adaptada
pelos médiuns, que tolhiam a agressividade e repassavam o pensamento, vestindo-o
com suas próprias palavras, sem, contudo, alterar a essência da comunicação. O chefe
banto agora seria escravo, diziam seus antigos e atuais perseguidores.
        Mas Deus é pai de infinita misericórdia. Vejamos como Ele, através do amor
extremado dos bons Espíritos, atendeu a todos, propiciando-lhes oportunidades de
esclarecimento e de recomeço nas abençoadas sendas do progresso.



Alegrias de um pai ou o relampejar do tempo

       Antes de começar, de fato, a trabalhar no drama que se agigantava à minha
frente, recebi de meu filho a cópia ou resumo do que seria o seu discurso de orador
oficial na conclusão do curso de medicina.
        Foi uma das maiores alegrias que senti. Eu o vi pequeno, o tomei nos braços,
ministrei-lhe lições importantes. Ele fez o restante da caminhada. Lembro-me dos
pirulitos, dos bicos de pão, dos desenhos que fazíamos riscando o chão da nossa casa.
        Lembro-me do primeiro dia na escola, do sarampo que o maltratou, dos cabelos
cacheados que ele tinha e que eu mesmo cortava; até da velha bicicleta que ele parecia
adorar, recordo, embora não a tenha guardado. Seus dentes de leite, eu os guardei em
uma caixinha que ainda está comigo. Se isso tudo aconteceu ontem como pode esse
menino me aparecer agora com um bisturi na mão atendendo àqueles enfermos todos?
        Quando ele nasceu eu o entreguei ao doutor Bezerra de Menezes: Tome-o
doutor Bezerra! Ajude-me a criá-lo, foi o que disse. Sei que o senhor tem bastante
trabalho, mas conseguirá um tempo para orientá-lo quando em vez. E o doutor Bezerra
nunca o abandonou.
        Sinto falta das chuvas que não nos molharam, dos filmes que só depois dele
crescido foram feitos, das cantigas de roda que nunca cantamos. Mas em meu coração
fizemos todas as brincadeiras e traquinagens a que tínhamos direito. Pulamos muros,
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roubamos frutas, nadamos em lagoas e subimos em árvores. Só nunca maltratamos
passarinhos, porque os amamos.
         E ele foi crescendo com aquele jeito de poeta tímido, de herói escondido pelo
blusão da humildade, de criança que adora livros, até que, de repente, me apareceu com
aquele discurso digno de Neruda ou do meu velho amigo Manuel Bandeira.
         O tempo relampejara e tingira meus cabelos com alguma prata, e meu Espírito,
envolvido com livros e reuniões não notara aquelas transformações. As imagens dos
meus filhos, Victor Emmanuel e Lívia parecem ter coagulado no tempo da infância. É a
maneira como gosto vê-los.
         Mas o tempo, esse devorador de imagens, foi substituindo as fotos antigas por
outras belíssimas, de homem e mulher fortes, de pessoas generosas e responsáveis, de
corações sensíveis e mãos operosas. Intimamente agradeci a Deus por jamais ter me
enganado a respeito deles. Enganei-me com outras coisas, com eles, jamais.
         Quando eu era criança julgava que amigos eram aqueles que me ensinavam a
matar aulas. Hoje sei que eram os futuros mendigos. Pensei também que os que
pulavam cercas comigo eram salteadores. Com o tempo os reconheci como
saltimbancos; mágicos que se tornavam invisíveis diante do dono da chácara.
         Imaginava que os homens que contavam vantagens entre um trago e outro no
botequim do meu pai eram mentirosos. Eram poetas do cotidiano. Quando eu era
criança ensinaram-me a ter medo de Deus. Que bobagem! Foi preciso descobrir que Ele
era diferente do meu pai para começar a amá-lo.
         Ninguém me ensinou a arte de navegar corações. Aprendi isso escrevendo
poemas e canções. Eles encontraram, cada um a seu modo, essa importante maneira de
tratar a vida e às pessoas.
         O discurso do meu filho serve para qualquer médico, em qualquer lugar deste
planeta tão belo e maltratado. Quem me dera que todos tivessem tal sensibilidade.

       “Éramos tão jovens tentando domar o futuro com nossos atos e um sonho nascia
em nós, apontando os rumos da vida profissional, luzindo os caminhos da nossa
existência. “Existirmos, a que será que se destina?”

       Hoje, diante da concretização desse sonho, sentimo-nos de volta ao começo.
Mas ele ainda nos impulsiona a seguir em frente, pois se transformou em estrada,
viagem em busca do horizonte das realizações.

       É preciso semear o sonho com as mãos no trabalho para germinar realidade.
Assim transformamos a dor e a morte de muitos em esperança e vida, para que possam,
igualmente, semear seus sonhos. Desse modo, ao longo de tantos outros anos, veremos
que o horizonte-sonho nunca é alcançado, só se expande. Veremos que o sonho torna-se
antigo, jamais velho.
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       Nossos sonhos se eternizam nos anseios de nossos irmãos, tornando-nos
humanos, fazendo-nos instrumentos de perpetuação da segurança e da beleza da vida.
Dessa forma, ao final desse ciclo terreno, a morte, o sonho nos levará de volta a um
começo, por ter se tornado maior que nossa própria vida: a vida se vai, mas os frutos do
trabalho, semeados por este sonho, permanecem para fazer a realidade que melhorará a
vida de outros.

       Ainda somos tão jovens, porém lúcidos para entender que seremos eternos
alunos da vida, aprendendo com ela para nos tornarmos professores de nós mesmos;
arquitetos de sonhos; engenheiros do amanhã; médicos de nossos anseios; filósofos de
nossa existência. Eis no que nos tornamos.

       Hoje, celebrando um final, comemoramos um recomeçar. Realizamos parte de
um desejo que não é só nosso, mas de toda humanidade desde sempre, perpetuando-se
num ciclo, como uma semente. Nossa alegria maior não é a de sermos médicos ou
historiadores, mas de ser alguém que possa semear esperanças de um futuro melhor.

       Existirmos, a isso se destina nossa vida. Para extrair da vida o milagre do
trabalho. Avante! Para isso existimos: para forjar através do trabalho o milagre da vida”.



A obsessão em crianças


       Muitas pessoas se admiram diante do sofrimento das crianças. Perguntam-se
entre dúvidas e lamentos por que Deus não espera que elas cresçam para então permitir
que a Lei faça suas cobranças.
       Deus é misericórdia, mas é também justiça. É pai do agressor e do agredido. Em
meio às tempestades coloca sempre abrigos para salvação. Encarnada ou desencarnada,
uma criança é um Espírito velho, e quando não tem méritos, foi esta a conclusão a que
cheguei através de muitas reuniões de desobsessão, pode ser apanhada por cruéis
obsessores.
        O que sentimos, espíritas ou não, quando uma criança, cheirando cola, vem em
nossa direção? Fugimos dela, mesmo que tenha apenas cinco anos de idade. Quantas
crianças, sem nenhuma chance de defesa são assassinadas por abortos no Brasil?
Quantas morrem de fome neste vasto mundo? Quantas são mutiladas e mortas em
guerras engendradas por adultos? O que fazem com elas os pedófilos? De onde parte a
maioria das agressões a elas senão da própria família que a abriga sob seu teto?
       Recentemente li um relatório da Confederação Internacional de Crédito
Agrícola, dando conta de que se chega a gastar oitocentos bilhões de dólares em
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armamentos por ano, em período de paz, enquanto trinta crianças morrem de fome, em
apenas um minuto, no mundo; que milionários gastam milhões de dólares em tacos para
jogar golfe enquanto a morte cava covas cada vez mais profundas.
        O mundo material gasta boa parte da sua violência em atormentar crianças. O
mundo espiritual inferior, do qual a Terra é cópia aproximada deveria ser diferente?
Claro que há casos e casos, e que em todos eles devemos observar atenuantes e
agravantes, mas negar que crianças passam por obsessões, não há como. Mesmo os
apóstolos, não foram carinhosos, afastando-as de Jesus, que interferiu a favor delas
(Então lhe apresentaram uns meninos para que os tocasse; mas os discípulos
ameaçavam os que lho apresentavam... Marcos, X: 13-16)
        Não mandou Herodes, segundo consta relato bíblico, matar todas as crianças
inferiores a dois anos de idade? O mesmo não fazia os egípcios periodicamente, para
que a população de escravos não se tornasse dispendiosa? Portanto, a agressão vem de
longe e em todas elas há de se analisar imparcialmente o histórico, sobretudo, moral do
Espírito agredido.
        Todavia, por conta de ser um Espírito velho e comprometido com a Lei, jamais
se deve ficar impassível diante do sofrimento de quem quer que seja, principalmente, de
uma criança. Jesus tinha especial carinho por elas (... E abraçando-os e pondo as mãos
sobre elas, as abençoava).
        Mas voltemos às obsessões. Vejamos o comentário de Kardec em complemento
à resposta 199 a de “O Livro dos Espíritos” relacionada ao destino das crianças depois
da morte: Não é racional, aliás, considerar a infância como um estado normal de
inocência. Não se vê crianças dotadas dos piores instintos em idade na qual a educação
não pôde, ainda, exercer sua influência? Algumas não há que parecem trazer do berço
a astúcia, a felonia, a perfídia, o instinto mesmo para o roubo e o homicídio, não
obstante os bons exemplos dados pelos que com ela convivem?
        Vejamos o que nos diz André Luiz em seu livro “Evolução em dois mundos”,
capítulo XV, vampirismo espiritual, psicografado por Chico Xavier:
        Parasitismo e reencarnação: Nas ocorrências dessa ordem, quando a
decomposição da vestimenta carnal não basta para consumar o resgate preciso, vítima
e verdugo se equiparam na mesma gama de sentimentos e pensamentos do além-
túmulo, em dolorosos painéis infernais, até que a misericórdia divina, por seus agentes
vigilantes, após estudo minucioso dos crimes cometidos, pesando atenuantes e
agravantes, promove a reencarnação daquele espírito que, em primeiro lugar, mereça
tal recurso.
        E, executado o projeto de retorno do beneficiário, a regressar do plano
espiritual para o plano terrestre, sofre a mulher, indicada por seus débitos à gravidez
respectiva, o assédio de forças obscuras que, em muitas ocasiões, se lhe implantam no
vaso genésico por simbiontes que influenciam o feto em gestação, estabelecendo-se,
desde essa hora inicial da nova existência, ligações fluídicas através dos tecidos do
corpo em formação, pelas quais a entidade reencarnante, a partir da infância continua
enlaçada ao companheiro ou aos companheiros menos felizes, que integram com ela
toda uma equipe de almas culpadas em reajuste.
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         Desenvolve-se-lhe, então a meninice, cresce, reinstrui-se e retorna à
juvenilidade das energias físicas, padecendo,porém, a influência constante dos
assediantes, até que, frequentemente por intermédio de uniões conjugais, em que a
provação emoldura amor, ou em circunstâncias difíceis do destino, lhes ofereça novo
corpo na Terra, para que, como filhos de seu sangue e de seu coração lhes devolva em
moeda de renúncia os bens que lhes deve, desde o passado próximo ou remoto.
         Acredito que a nossa admiração diante do fato de uma criança ser obsidiada
deve-se às nossas idéias cristalizadas do passado, quando por ocasião da morte de uma
delas dizíamos: É um anjinho! Não teve tempo para pecar! Vai direto para o céu!
         Mas a reencarnação não aprova tal raciocínio. Sabemos que havendo Espírito
devedor da lei cujo ofendido não o tenha perdoado e um possível encontro entre ambos
pode ocorrer obsessão; que não existe Espírito criança, mas Espírito com o corpo de
criança, que pode ser, inclusive, mantido por ele nesta forma como opção de apresentar-
se aos demais.
         Se a obsessão em criança é permita na condição de encarnada, quando o auxílio
imediato por parte dos bons Espíritos depende de inúmeras variáveis, por que não o
seria na condição de desencarnada quando depende apenas das decisões deles? Qual a
razão? Dois pesos e duas medidas? Isso não ocorre entre mentores espirituais. Ou existe
obsessão em "criança" ou não existe. Não tenho conhecimento de uma lei moral válida
para encarnados e não válida para desencarnados.
         Fui tocado por imensa, emoção enquanto conversava com a mãe da garota, ao
me lembrar daquele pai abraçado ao filho, ajoelhado diante de Jesus (sempre me
enterneço com ele) rogando: Senhor! Tem compaixão do meu filho, que é lunático e
padece muito; porque muitas vezes cai no fogo, e muitas na água. E tendo-o
apresentado aos teus discípulos, eles não o puderam curar. O mínimo que posso fazer
por Hortência é dar o máximo de mim na resolução desse drama. Foi o que prometi ao
meu coração.
         Conversei demoradamente com Margarida, sua mãe, pessoa lúcida, espírita
consciente. Enquanto conversava, a imagem de Maria, e a dor imensa que sofreu ao ver
seu filho, Jesus, torturado, ensangüentado, olhos semimortos, mas cheios de esperança,
não me saia da cabeça. Estaria aquela mãe, sentada a minha frente, preparada para
enfrentar inimigos do passado com as armas da fé e da oração? Adiantando-se ao meu
pensamento ela própria se propôs fazer o Evangelho no lar, trazer Hortência para tomar
passes, fluidificar a água através de orações e trazer para a evangelização infantil, sua
filha, logo que esta reconhecesse as primeiras letras.
         Ainda por muito tempo as crianças terrenas terão fantasmas a enfrentar. Em um
planeta cuja maioria da população não tem respeito pelos passarinhos, regatos e flores,
dificilmente a criança é amada como merece.
         Todavia, casos envolvendo criança são alvos de intenso cuidado por parte de
nossos instrutores. Tibiriçá se empenharia ao máximo, já que não tolera qualquer
desagrado feito às crianças. Tapuinha, a nossa médica-guerreira, muito menos.
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Certamente meus amigos índios não poupariam esforços para livrar Hortência da
ameaça que se instalara em sua vida.
       “Seu Flores” seria auxiliado por todos nós, jardineiros a serviço do Senhor dos
mundos; rosas com mais espinhos que pétalas, mas na sua função de perfumar o
ambiente com o suave aroma da caridade.
       Pensando assim dirigi-me ao abençoado salão de diálogos, ou seja, para a
reunião de desobsessão.



O passado recente de Hortência

        A história do Espírito que ora se chama Hortência é bem peculiar. Diria mesmo
bem estranha, pois sua encarnação foi anunciada várias vezes, por mais de uma fonte.
Margarida, a atual mãe, foi sua neta e pouco conviveu com ele. Dos diálogos que tive
com ela transcrevo aqui alguns fragmentos, logicamente mudando nomes e datas a fim
de manter o anonimato dos envolvidos.
        Tais informações são necessárias para que o leitor possa compreender o
contexto no qual “Seu Flores”, atual Hortência, veio ao mundo dos encarnados na
cidade cearense de Itapipoca no ano de 1908, desencarnando em Fortaleza 1988.
        Do envolvimento com mulheres: Durante sua vida se envolveu com várias
mulheres casadas, pois tinha grande apetite sexual, inclusive, pegando algumas à
força. Na mulher com quem casou gerou nove filhos, mas adultérios eram comuns em
sua vida.
        Do seu jeito de ser: Era um comerciante totalmente analfabeto, pois nunca
entrou em uma escola. Acredito que isso tenha contribuído para os arraigados
preconceitos que nutriu durante a encarnação. Rejeitava negros, deficientes físicos e
considerava a mulher uma criatura inferior, cuja função era apenas procriar. Não
tolerava visitas porque, segundo ele, estas só serviam para lhe roubar a paz e se
servirem do alimento que lhe pertencia. Eis alguns pensamentos seus: Não se deve
ensinar negro a ler porque ele vai escrever indecências nas paredes; se você ensinar
uma cunhã a ler, a primeira coisa que ela vai fazer é escrever uma carta para um
caboclo, querendo se enroscar com ele. Sabendo que uma pessoa tinha má vida, se
afastava dela sob o argumento de que era um cidadão, e assim sendo, não deveria se
contaminar com a ralé. Na verdade era orgulhoso e preconceituoso.
        Sobre a missão de pai: Não foi um bom pai. Em uma discussão banal quis
matar um dos filhos com uma foice. Este, se desvencilhando, foi embora e jamais
voltou. De outra feita, sabendo que uma filha estava grávida de um deficiente, correu
atrás dela para matá-la com uma faca. Quando a criança nasceu, também quis matá-la,
por ser filho de um deficiente. Posteriormente, quando este filho já era adulto e
ocupando um cargo de destaque, “Seu Flores” necessitou de seus préstimos para
acelerar sua aposentadoria. Recorreu a ele e lhe disse: se você me ajudar eu o perdoou
pelo fato de ser filho de deficiente.
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        Sobre seu desencarne: Sua saúde foi sendo minada por uma série de doenças,
dentre as quais, câncer de próstata, cirurgias mal sucedidas de catarata e mal de
Parkinson. Era viciado em álcool, cigarros e jogos de azar. Levou consigo muito ódio e
desejo de vingança de pessoas estranhas e de familiares. Minha avó, inclusive, já lhe
rogou muitas pragas, pois na última briga que teve com ele foi cuspida, amarada e
violentada sob a mira de um revólver apontado para sua cabeça. Sua mágoa maior é
porque acabara de ter saído de um aborto espontâneo.
        Sobre minha história: Minha mãe levou ao conhecimento de sua família que
iria casar com um homem negro. Recebeu de cara do “Seu Flores” a seguinte
advertência: prefiro vê-la morta por atropelamento e totalmente estraçalhada do que
casada com um negro. Minha mãe partiu para outra e começou um relacionamento que
não foi bem sucedido. Quando meu pai se foi deixou uma semente, está que lhe fala.
Minha avó, prevendo represálias por parte do marido, “Seu Flores”, inventou que
minha mãe estava grávida de um homem que havia sofrido um acidente e que agora era
um inválido. Então ele me registrou como sua filha legítima, pois jamais aceitaria um
inválido na família. Dessa maneira fiquei sendo filha e neta ao mesmo tempo
        Contaram-me que ele sempre me acolheu bem, desde o ventre da minha mãe.
Fui crescendo e quando completei oito anos de idade ele desencarnou. A partir de
então, sempre que ia passar por grandes dificuldades, sonhava com ele. Era como uma
advertência para que eu me preparasse para enfrentá-la. Passei a sentir um amor
inexplicável e um desejo arrebatador de ajudar meu avô a pagar as dívidas que ele
contraiu. Quero que ele pague à Lei Divina, com amor, através do Evangelho de Jesus.
        Na minha família sempre me contaram várias versões sobre minha origem.
Nenhuma que me fizesse feliz. Diziam que minha mãe era uma mulher promíscua e
abortadeira, coisa que não acredito. Cresci com muitos problemas. Como tive
formação religiosa no catolicismo era lá que tentava me livrar do desejo de por fim à
minha vida. Hoje venci este impulso e melhorei meu comportamento rebelde,
revoltado, infeliz, que me acompanhava desde a infância.
        Atualmente estudo a Doutrina Espírita e estou conseguindo mudar muita coisa
em minha vida.
        Sobre a anunciação: Minha mãe trabalha em um Centro Espírita e lá um
Espírito chamado José do Nascimento, o Dragão do Mar, dirigindo-se a ela no dia 9 de
outubro de 1997 disse-lhe que seu “Flores” voltaria à carne como filho de sua neta.
Segundo ele, o moço se arrependera profundamente ao constatar a extensão dos seus
erros e pedira uma oportunidade, em caráter imediato, para reparar parte do mal que
praticara. Essa informação foi confirmada no nosso evangelho no lar e em outras
oportunidades. Acredito que era uma espécie de aviso para que nos preparássemos
para recebê-lo.
        Sobre a gravidez e o nascimento de Hortência: Minha gravidez não foi das
piores. Tive alguns cistos no ovário que me obrigaram a uma intervenção cirúrgica.
Também tive descolamento de placenta. No mais, graças as minhas preces e a ajuda
dos amigos espirituais ela nasceu bem.
        Margarida é uma pessoa consciente de suas responsabilidades. No momento
participa de um curso básico de Espiritismo, embora demonstre conhecimentos além
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dos que ora estuda. Acredito que esteja preparada para a tarefa que lhe confiaram:
educar “Seu Flores” dentro da Doutrina Espírita para que ele comece a extensa subida
em direção à luz divina.


A lança do Centro Espírita

        Algumas pessoas consideram que unir as mãos em defesa de uma idéia significa
atingir o final de um processo evolutivo no campo em que operam. Isso as faz bloquear
o recanto mental que poderia lhes fazer avançar com ensinamentos novos.
        Tais pessoas rebaixam o Espírito a simples operário exposto a estagnação e
pouco apreço dá a evolução, que exige constantes mudanças e rápidas passadas, naquilo
em que se empenham.
        São, no dizer de Jesus, os que fazem o que deveriam fazer, e não o que poderiam
fazer, pois avançariam velozmente se utilizassem o “motor de propulsão” desativado.
Médiuns e doutrinadores de mãos unidas é alguma coisa; de almas unidas é tudo.
        Nelson Mandela, cansado de pedir e de explicar que os negros tinham direito à
liberdade dentro do seu próprio país, sem jamais ser escutado, organizou um movimento
armado a que chamou de “a lança da nação”. Algo semelhante, embora de maneira
pacífica, aconteceu a Gandhi e Luther King que criaram a desobediência civil, e Steve
Biko, mentor da consciência negra.
        Às vezes me parece que as pessoas precisam ser empurradas para fazer aquilo
que necessitam ou que se comprometeram a fazer. Sem dúvidas isso promove um
desgaste da energia que poderia ser utilizada dentro da própria atividade do Centro
Espírita e é responsável por desistências e desagrados, melindres e futricas dentro do
ambiente de trabalho espiritual.
        Sob o argumento de que precisam sobreviver, do qual se servem para justificar
todos os atrasos, faltas e desistências, algumas pessoas levam o “desculpismo” para
dentro de uma reunião mediúnica. Outras, mais desavisadas, chegam mesmo a encarar o
trabalho voluntário como aquele no qual o trabalhador vai desempenhar sua tarefa no
dia que quer e chegar na hora que lhe convém.
        Duas coisas parecem bem estranhas quando partem de pessoas que se dizem
espíritas. Uma delas é o “desculpismo” diante da falta ou da negligência para com a
oportunidade de serviço; a outra é o “achismo”, que consiste em emitir respostas
inadequadas ou equivocadas devido ao personalismo ou a falta de estudo das questões
doutrinárias, sejam elas científicas, filosóficas ou morais.
        Cabe ao doutrinador alertar a todos que o dueto “disciplina e caridade” é a senha
de entrada e a regra utilizada nas relações do grupo, salvo em raríssimas exceções. Deve
ouvir a desculpa do retardatário ou faltoso e lembrar-lhe de que Deus espera de todos
nada menos que fidelidade no que foi acordado.
        Infelizmente, em qualquer Centro Espírita o doutrinador enfrenta o problema da
falta de médiuns destinados aos trabalhos do dia. Este detalhe é responsável por boa
parte do seu estresse e da ineficiência que ronda as portas da oficina em que trabalha.
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        Doutrinador com paciência curta precisa aprender a moderar sua vontade de
chamar o faltoso e dizer-lhe sem meias palavras: Deus é o mais ocupado de todos e
mesmo assim trabalha sem cessar, sem jamais faltar a um só compromisso. Ainda não
consegui demonstrar serenidade diante da negligência ao trabalho espírita. Sempre fico
ao lado de Tibiriçá nessas horas de avaliar a falta. Aprendi na cartilha dele que nem
morto se falta a um compromisso. No caso dele, como já é desencarnado, ou seja, não
desencarna em serviço, jamais faltou a um compromisso nesses quarenta anos de
convívio. No meu caso, disse-me ele certa vez referindo-se a minha condição de
encarnado, é deixar o corpo no caixão e comparecer ao trabalho.
        Como alguns médiuns haviam faltado à reunião por motivos variados, decidi
escrever pequena mensagem para que fosse lida no início da primeira reunião dedicada
a Hortência, a pequena flor do campo, como a chamei logo que soube de sua condição
espiritual.
        Pensei no dueto, “disciplina e caridade” a lança do Centro Espírita, estiquei o
arco e lancei minha seta para o mundo das idéias. É assim que sempre faço quando
quero pescar palavras. Sem demora, como um bumerangue encantado, de algum lugar
secreto, dos confins do dicionário de algum poeta, as palavras chegaram como um rio
caudaloso e prateado.
        Invadiram minha mente como um raio de sol penetra uma vidraça colorida de
biblioteca, deixando em minha pele um arrepio e na minha mente um rodopio. Capturei-
te palavra! Se Deus quiser sempre estarás comigo, disse. E tive a sensação de escutar
um sussurro vindo do mesmo mundo das idéias, para aonde havia atirado a seta: sou tua.
        Desse namoro com o infinito resultou o seguinte texto, que foi lido na primeira
reunião de Hortência.

Substituindo velhas frases
        Antes de dizer não, ao chamado do trabalho espírita com o qual se
comprometeu, reflita sobre suas atividades cotidianas, à luz do sábio ditado popular:
quando queremos, sempre arranjamos um jeito; quando não queremos, sempre
encontramos uma desculpa.
        Portanto, no lugar de dizer: não tenho tempo, diga: priorizando tarefas sei que
estarei lá.
        Ao invés de pensar: estou cheio de trabalho, diga: que bom que Deus me
permitiu mais uma oportunidade de serviço.
        No lugar de dizer: tenho um aniversário para ir, diga: depois da minha tarefa irei
abraçar o aniversariante.
        No lugar de dizer: o lazer me espera, diga: o fazer me chama
        Na tentação de argumentar: meu filho vem me visitar, diga: vou visitar os filhos
do meu coração, na volta abraçarei o filho da minha alma.
        Se é dia das mães, Finados, Carnaval, Semana Santa ou similares, não diga: é
feriado, não haverá trabalho. No lugar disso, reforce: Eu trabalho e meu Pai trabalha
sem cessar.
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       Se está chovendo, não dê a desculpa à sua consciência de que não vai ao Centro
porque não tem um guarda-chuva. Ela não aceitará este argumento a não ser que esteja
ocorrendo uma inundação e você não tenha uma canoa. Antes diga a si próprio: mesmo
sabendo que iria morrer dolorosamente Jesus compareceu diante dos algozes.
       Se um amigo o convidar para qualquer evento que o fará feliz, segundo o
conceito mundano de felicidade, não diga a ele que o seguirá, mas agradeça-lhe o
convite e explique-se: Tenho um compromisso inadiável com alguém mais importante
que o governador. Se ele insistir em saber com quem você está comprometido, diga:
com Jesus.
       Se os amigos organizaram uma festa em sua homenagem no dia de sua reunião
mediúnica e exige sua presença, não diga: estou nessa! Seja fiel aos seus verdadeiros
amigos, os espirituais, e responda com gentileza: Vou participar de um banquete neste
mesmo horário. Se puderem esperar, comemoraremos juntos a alegria que este encontro
nos causa.
       Mesmo que alguém muito amado lhe diga: Não vá! Você pode ser assaltado e
morto. Responda: Se isso acontecer, já que estarei a caminho, comparecerei para
trabalhar na condição de desencarnado.
       Seja qual for o motivo que o leve a se afastar da casa espírita, este deve ser
seriamente avaliado. O espírita deve ir além do senso comum e ter a certeza de que ele é
que precisa do Centro Espírita, pois este sobreviverá com a sua ausência. Além do mais
deve estar convicto de que o local mais fácil de ser encontrado pelos bons Espíritos é no
trabalho.

       Li a mensagem para os médiuns que a escutaram sem pronunciar uma única
palavra. Mas a absorveram sem deixar escapar nenhuma delas.
       Em nossa casa espírita há regulamentos versando sobre faltas e condições
exigidas para que um médium adentre uma reunião de desobsessão. No entanto,
consideramos como mais eficientes os mandamentos que gravamos na mente e
conservamos no coração por necessidade da consciência. Daí o esforço que fazemos em
sempre levar mensagens que lembrem a obrigação moral de assumirmos com
responsabilidade o trabalho com o qual nos comprometemos de livre vontade.
       Guias disciplinados e incentivadores que temos não nos permitem adormecer em
área de trabalho. Dr. Mário Rocha, um dos nossos instrutores espirituais definiu há
muito tempo, em parceria com Tibiriçá, o lema que deveríamos seguir: Compromisso
assumido é compromisso cumprido.
       Gostei e me afinei com ele. Por isso o adotei como regulamento da minha
consciência.



A falange dos espedaçados
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        O ódio atua no perispírito como um ácido a danificar-lhe as engrenagens.
Incompatível com a felicidade, ele é um ladrão da paz e um assassino da saúde, uma vez
que é fábrica de tormentos, dentre os quais se destacam a ansiedade e a frustração.
          Quando alguém diz, odeio, diz também, sou infeliz, estou doente, perdi a fé,
caminho para o abismo. É preciso muita paciência, compreensão e amor para lidar com
quem odeia, pois este exige demais sem nada retribuir, a não ser decepções e desgosto.
          Somente Espíritos fortes acolhem e tratam os infectados por este mal, uma vez
que têm a piedade como marca inconfundível das virtudes que já conquistaram.
        Os que perseguiam a pequena Hortência estavam todos doentes. E como
afirmara Jesus ter vindo ao mundo por causa deles, ovelhas desgarradas, pois os sãos
não necessitam de médicos, deveríamos fazer o melhor ao nosso alcance para amenizar-
lhes as dores. É pensando em tal argumento que o doutrinador deve iniciar uma reunião
sob seu comando.
        E foi assim que, advertido por uma médium de que já estava em serviço,
encaminhei-me para ela ciente da presença de todos os amigos desencarnados que
sempre estiveram comigo neste mundo de lutas.
        - Estou no quarto de Hortência. Tudo esta avermelhado pelo sangue. As
paredes, o berço, o teto... Poderia jurar que estou em um abatedouro de animais, sem a
mínima higiene. No interior do apartamento encontram-se espalhados bebês mutilados
e ensangüentados. Isso está me dando náuseas. Eles se movem em estertores, fazem
caretas de dor, fecham os punhos como se quisessem pegar o ódio com as mãos.
        Coisa tétrica. A pequena Hortência tem sono intranqüilo. Os bebês deformados
parecem espreitá-la. Diria que eles agem de maneira planejada, ou seja, sabem muito
bem o que fazem, e o fazem com a intenção de assombrar a menina.
        Vejo um negro muito forte e alto. Ele tem um chicote na mão e parece esperar
que a pequena saia do corpo para atacá-la. Além do chicote porta outros instrumentos
de flagelação, que embora rudimentares, são perigosos.
        Tibiriçá vai laçá-lo. Acho que vai ser uma briga feia, pois a caça é tão forte
quanto o caçador. Se bem conheço nosso amigo, o oponente poderia ter até o dobro da
sua altura que ele não desistiria. A rede cortou o vento e caiu em cheio por cima do
africano. Ele se debate, tenta rasgá-la, ruge como um animal com os olhos fixos em
Tibiriçá, mas está seguro.
        Vai ser encostado a mim para que você ouça, primeiramente, os insultos, depois
quando ele cansar, os argumentos.
        - Covardes! Mesmo vendo o que ele fez, ainda ficam do lado dele? É o que se
pode esperar de brancos matadores de negros. Quando sair daqui, acertaremos as
contas segundo minha tabuada.
        - Não estamos em guerra contra você ou seu povo. Queremos que a criança
cresça em paz a fim de pagar os débitos que fez à lei de Deus. Acredito que este seja
também o seu desejo. O Espírito antigo, agora nesse corpo frágil, comprometeu-se a
resgatar o passado doloroso. Mas como pagar se os credores se negam a receber?
        - Queremos que ele pague o que nos deve, mas com muita dor. Fez a nós, deve
pagar a nós. Não nos interessa lei ou religião. Quando estávamos nas mãos dele
nenhuma das duas fez nada por nós. Pois que não se meta agora que o temos na mira.
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        - Sei que está em posição desconfortável nessa rede, mas se me prometer discutir
as ofensas cometidas contra você e seu povo, com calma, o libertaremos para uma
conversa frente a frente, como vocês lutam com os leões nas savanas.
        - Nada de conversa com traidores.
        - Pode, pelos menos, me dizer quais os crimes que ele cometeu contra seu povo?
        - Contra o povo dele. O desgraçado é banto como nós. Era o chefe da nossa
tribo. Cruel e sanguinário, matou e mutilou muitos de nós. A outros vendeu como
escravos, destroçando suas famílias. Matava crianças sob o pretexto de que faltaria
comida se a tribo aumentasse muito. Mutilava as mulheres cortando-lhes os seios para
que não mais amamentassem as crianças e elas morressem à míngua. É esse miserável
que vocês defendem. É esse o monstro que querem apadrinhar.
        - Não sabíamos da extensão dos crimes que ele cometeu. Mesmo assim insisto
que a justiça divina, que é incorruptível, cuide dele. As crianças que a médium vê
esquartejadas são apenas criações mentais ou Espíritos com idéias fixas no instante da
morte?
        - O que você acha? Que estamos aqui para brincar de desenhar crianças
esquartejadas? É uma falange de Espíritos que foi cortada pelo facão dele. Todas elas
estão presentes para cobrar o que lhes devem. Sou o pai de uma delas.
        - Não quer mesmo conversar fora da rede, como dois amigos?
        - Não. Não tenho amigos traidores.
        - Lamento. Vou ficar com seu chicote e com os demais instrumentos.
Permanecerá aqui como nosso hóspede para prolongarmos esta conversa quando estiver
mais calmo. Preciso me ausentar para atender a uma amiga sua que acaba de ser
capturada enquanto pulava pelas paredes.
        A médium havia confidenciado que uma mulher negra a observava como se
estivesse pregada à parede. Capturada, encheu-nos de insultos por retirá-la de junto de
Hortência.
        - Pensam que podem deter a minha mão armada? Estou de vigia e espreito cada
movimento do assassino. O filho que ele me roubou vai lhe custar muito caro. O sangue
do meu filho vai ser resgatado gota a gota.
        - A primeira preocupação de uma mãe deveria ser a de cuidar do seu filho. No
entanto, não ouvi de seus lábios nenhuma pergunta com relação a ele.
        - Como posso falar de amor a um filho esquartejado? Não acredito mais no
amor, mas na força e na guerra. No meu coração não há espaço para outra coisa que
não seja ódio. Ele é a energia que me movimenta por essas paredes. O trabalho de me
prender em grades é inútil, pois ninguém consegue arrancá-lo de dentro de mim. Onde
estiver, permanecerei direcionando o mal e a ruína para o desgraçado que cobriu de
dor o meu povo.
        - Como ele matou seu filho?
        - Arrancando-o de dentro de mim e dividindo-o a facão. Ele é o demônio que
habitou entre os bantos. Representa o mal, a covardia, a destruição, a força das trevas
descida sobre o povo negro. Nenhum branco nos fez tanto mal quanto ele.
        - Sinto pelo seu filho e entendo o seu ódio, embora não pactue com ele. Gostaria
de ajudá-la, mas no momento não sei como. Tudo quanto tenho e posso oferecer são
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nossos médicos, nossos abrigos, nossa amizade. Se quiser permanecer entre nós para
que encontremos um meio de ajudar seu povo, sinta-se à vontade.
        - Na condição de prisioneira? Tudo que os brancos nos têm ofertado são prisões
e miséria. Pilharam nossas aldeias, fizeram nossos filhos escravos, dividiram nosso
povo, pois irmãos combatiam irmãos incentivados por eles. Nem mortos somos livres,
pois o ódio nos aprisiona. Serei livre quando matar o corpo que se forma e capturar o
Espírito que me deve. Essa é a minha convicção. Não pense que somos poucos ou
frágeis. Somos muitos e firmes. A selva tem sua lei. Agora somos os leões e ele o filhote
de gazela.
        - Julgo que irredutível como se encontra, nossa conversa não será conclusiva.
Ficará um tempo conosco para que a criança respire melhor. Quando estiver pronta para
um mergulho no passado, lugar da verdadeira causa dessa chacina, voltaremos a
conversar. Até lá ficará conosco e será bem tratada.
        As primeiras conversas com Espíritos endurecidos exigem complementos. Eles
estão raivosos, enfurecidos por estarem tolhidos, se julgando vítimas, pois as causas
passadas, ou seja, seus próprios equívocos, gênese da agressão que sofreram, estão
sepultados pelo esquecimento.
        Não é hora de levá-los a uma regressão, pois ainda não estão preparados para um
mergulho no passado. É preciso deixá-los perceber outras janelas abertas cujo painel
mostrado não seja o ódio. Isolados, ouvindo músicas suaves, conversando com
psicólogos, sendo visitados por quem realmente se interessa pelos seus destinos, fora do
ciclo de ódio que os alimentavam, aos poucos entram no clima da reflexão. É então que
são levados novamente à reunião de desobsessão. Às vezes tudo se resolve em trabalhos
durante o sono físico dos médiuns, no plano espiritual, onde as reuniões têm
continuidade. Nesses casos, como estes não se lembram dos trabalhos realizados, tudo
se passa como se aquele personagem que não mais retorna houvesse sumido sem deixar
pistas.
        No clima bélico instalado pelas entidades capturadas, voltei-me para um grito de
afronta de mais uma médium.
        - A criança vai morrer!
        - E quem decretou a sentença de morte?
        - Eu! Não adianta tratamento médico, espiritual, psíquico, neurológico, nada! O
salário do assassino é a morte. Ela está condenada! Vai morrer seca, assustada,
gritando. Vai ter a pior morte! Ela não sobreviverá dois meses!
        - Foi o tempo que ele gastou em torturá-lo?
        - Não! O facão dele era rápido. Digo mais! A Mãe dele vai ficar arrasada! Vai
ter que arrastar a dor da perda e do remorso.
        - Qual o grau de envolvimento da atual mãe nesse drama?
        - Até os cabelos. Era mulher dele. Quando tinha ciúme das negrinhas jovens e
bonitas, mandava decepar os seios, arrancar os dentes, riscar o rosto para torná-la
feia. Hoje ela se faz de inocente, mas de inocente não tem nada.
        - Sua tribo era grande?
        - Muito grande. Ela também entregava negras para serem escravizadas. Era tão
ruim que até os da família dela, vendia como escrava.
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        - Lembra do nome dele?
        - Só posso dizer que ele faz parte da história. Tenho que respeitar o sigilo.
        - De onde partiu a ordem para ocultar o nome dele?
        - Existe algo superior que nos adverte para não revelá-lo. Temos que obedecer.
Faz parte do contexto histórico. Não podemos ignorar essa ordem.
        O Leitor poderá se perguntar por que negros com idéias cristalizadas na
vingança, alguns analfabetos, expressam suas idéias tão corretamente. Neste caso os
médiuns traduzem o pensamento do comunicante, utilizando-se para isso, de suas
próprias palavras, o que não caracteriza uma alteração ou mistificação.
        - Qual o mal que ele lhe fez? Foi vendido, decepado?
        - Fui vendido e vim parar no Brasil. Sou um jovem. Desembarquei aqui com
minhas irmãs. Trabalhei em engenho de cana-de-açúcar.
        - Foi bem tratado pelo seu dono?
        - Sim. Não cheguei a apanhar nem fui para o tronco, mas morri escravo, sem
alcançar a liberdade, que era meu grande sonho.
        - Ficou gostando do Brasil?
        - Sim. Ainda sinto o cheiro do mel da cana. Ás vezes visito engenhos que teimam
em sobreviver. Nessas ocasiões parece que fico mais leve. Ajudo meus irmãos nessa
vingança por ter visto tudo aquilo. Por desaprovar a conduta dele. Digamos que estou
na luta por solidariedade.
        - Ninguém se importa ao vê-lo na pele de uma criança indefesa?
        - A maioria não liga para este fato, pois sabe que ali está um assassino. Quando
o olhamos de frente vemos o rosto dele e não a inocência de uma criança.
        - Vocês têm acesso a ele?
        - Total. Quando ele sai do corpo sua aparência é a do assassino. Nessas
ocasiões o torturamos e o corpo da criança estremece. Procuramos castigá-lo ao
máximo em pouco tempo porque sabemos que ele vai correr e se refugiar no corpo.
Batemos, maltratamos e vampirizamos, sem nos saciar.
        - Não há nessas ocasiões um só Espírito que o defenda?
        - Há. Uma matriarca. Uma espécie de madrinha que parece compadecida com o
seu drama. Quando ela ora, respeitamos. A prece o alivia, mas ela não pode ficar o
tempo todo com ele.
        - Qual o efeito que a prece produz em você.
        - Respeito. Fico receoso. Fico tocado e digo para mim mesmo para parar um
pouco.
        - Você acredita em Deus?
        - Eu acredito. Mas a maioria dos meus irmãos está descrente devido ao que
passou.
        - E o que sua consciência, que é a voz de Deus dentro de você, lhe adverte
quando você o tortura?
        - Procuro não pensar nisso para não me fragilizar e desistir. Lembro mais dos
meus irmãos ofendidos e esse pensamento me fortalece. Não sou de todo ignorante.
Tive chance de estudar um pouco e sei que serei cobrado pelo que estou fazendo. Mas
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sei que ele também merece isso. A justiça de Deus é lenta e queremos uma coisa mais
imediata.
        - Vocês são muitos?
        - Sim. O equivalente a uma população de dez senzalas.
        - Gostaria de ficar conosco para prolongarmos esta conversa? Interesso-me
bastante por este período da história, e como você a viveu, muito teria a me ensinar.
        - Se na condição de convidado, sim. Posso explicar-lhe a saga do meu povo.
        Nunca se sabe o que está na mente ou no coração de um comunicante. O
doutrinador deve acolher a todos, confiante, mas com aquela reserva de vigilância
aconselhada pela prudência. É comum durante um diálogo a calma se exasperar e o
destempero se acalmar. O coração da maioria dos obsessores tem cofres e armadilhas.
Nos primeiros, estão guardadas as fagulhas de bondade, pois ninguém é de todo mau.
Nas segundas, todo sentimento negativo que ainda não conseguiram alijar.
        Daí o cuidado e o tato psicológico que o doutrinador deve empregar, sempre
deixando claro que qualquer movimento em favor da reconciliação entre os litigantes
terá apoio integral da equipe que o auxilia.
        As primeiras reuniões que visam à solução de casos complexos de obsessão são
sempre movimentadas e com forte traço de agressividade. Hortência estava sob fogo
cerrado e era preciso desocupar, ou pelo menos aliviar, o espaço onde tentava
sobreviver, pois estava infestado de crianças deformadas.
        Tibiriçá, cuja função é capturar agressores e zombeteiros da lei, geralmente pede
ajuda a outros Espíritos, que o atendem devido ao respeito que conquistou entre eles,
quando precisa enfrentar a magia negra. Desta feita, uma mulher exótica, com voz
metálica e afeita a dar ordens, estava com ele. Ambos seguiram com a médium até o
quarto da pequena Hortência, iniciando-se o trabalho com a descrição da médium.
        - Aqui estou com Tibiriçá e uma senhora muito valente que não quis se
identificar. Todavia sei que ela é uma entidade da umbanda. Ela olha o cenário sem
demonstrar medo ou admiração, com se estivesse acostumada a espetáculos dantescos
como o que vemos. São dezenas de Espíritos na forma de crianças recém-nascidas,
todas mutiladas, faltando pedaços, ensangüentadas, mostrando carantonhas horríveis.
        Há sangue por toda parte. A mulher, que tem aspecto de guerreira, vasculha o
ambiente com seu olhar felino e se detém na figura de uma negra que apresenta cerca
de cinqüenta anos de idade e tem uma espécie de bacia de barro na mão.
        No interior da bacia há seios cortados, muitos dele. Meu Deus! Agora entendo
as dores que sinto nos seios desde ontem. Já marquei, inclusive, uma consulta médica
para avaliar este problema. De alguma maneira, devo estar ligada desde ontem a esta
entidade. A bacia está encharcada de sangue bem como as vestimentas da senhora
negra. A guerreira se dirige para ela com as mãos fechadas, como se fosse agredi-la e
a segura pela gola.
        - Que está tentando fazer sua imbecil. Até mesmo entre os maus uma criança
deve ser respeitada. Se lhe restou algum juízo depois que foi torturada, desfaça já esse
trabalho sujo. Aprenda a esperar a ordem natural das coisas. Pensa que pode ser mais
do que Deus?
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        - E quem foi que disse que tenho medo de você, sua arrogante. Para nós Deus
não existe, pois nos abandonou à própria sorte. Isso aqui é Quimbanda! É dessa
maneira que resolvemos nossos problemas. Se tem coragem para me enfrentar entre na
roda; se não tem, corra depressa antes que a panela ferva.
        - Aqui estou para impedir que você desça mais fundo do que já conseguiu. Não
queira medir forças comigo, pois não tem energia para isso. Põe fogo nessa bacia ou
eu mesmo te obrigo a deixá-la em pedaços.
        - Quem você pensa que é para atrapalhar o meu serviço, sua vadia? Se quer
provar do meu veneno se achegue.
        - Olha bem para o meu rosto para que o respeite quando nos encontrarmos
novamente. Por agora beija o chão e obedece!
        Dizendo isso, a estranha derrubou a africana e a obrigou a vomitar tudo quanto
tinha ingerido e a incendiar o conteúdo da bacia. Em seguida a entregou a Tibiriçá que
ficou responsável por sua segurança.
        E voltando-se para mim (a médium) explicou-me o que ocorria naquele quarto
macabro.
        - Aqui não tem nenhuma criança. Esses Espíritos se mantêm assim por vontade
própria. Foram crianças, quando assassinadas na África, mas conscientemente
optaram por permanecer com essa forma para assustar seus algozes. Isso é coisa
pensada. É um pacto de sangue, coisa difícil de quebrar. Se quiserem podem, com o
auxílio dos técnicos, retornarem a forma humana adulta, mas enlouquecidos de ódio, se
aproveitam de suas cristalizações para induzir seus antigos pais a persistirem na
vingança. É filho alimentado pai com a energia do ódio.
        Foi esse trabalho que fez secar os seios de Margarida? Perguntei a africana que
se queixava de estar cega e sem seus instrumentos de trabalho.
        - Aquilo foi apenas um pequeno efeito. Ele vai pagar por todos os seios que
decepou. Você não sabe o que é ter um filho arrancado de suas entranhas e vê-lo
cortado a facão. Você sabe por que ele decepava seios? Por não gostava de seios
fartos. Maldito!
        - O que ele era? Dono de harém, chefe de tribo?
        - Assassino! Este é o seu nome e o seu título. Era o chefe da nossa tribo. Somos
bantos. Na condição de chefe que deveria servir ao povo, o maltratava, matava, vendia
como escravo.
        - Por que ele matava crianças?
        - Instinto assassino. Dizia que haveria fome com muitas bocas para comer. Mas
era pura maldade. Canalha! Imundo! Todos éramos escravas dele. Muitas das minhas
irmãs chegaram aqui em navios, famintas, doentes, sujas como animais. Foram
vendidas, humilhadas, separadas da família, e passaram a vida a limpar o chão dos
brancos. Se um branco as quisesse como objeto sexual bastava tomar a força. Se
negassem iam para o tronco. Sou escolada na história do meu povo. Por isso meu ódio
é maior.
        - Parabenizo pelos seus conhecimentos e sou solidário na sua dor, não no seu
ódio. Desde já me coloco à disposição para auxiliar na busca pelo seu filho. Deve ser
um grande guerreiro hoje.
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       - Não! Não quero dever nenhum favor a você nem a branco nenhum.
       - Está enxergando melhor? ( A mulher se queixava de dor os olhos).
       - Um pouco.
       - Deixe-me melhorar sua visão.
       - O que vai pedir em troca? Se é para não odiar àquele assassino perde seu
tempo. Hei de odiá-lo até o fim dos meus dias.
       - Julga que seu ódio é justo porque lhe faltam dados para entendê-lo.
       - Nada é compreensível. Como pode alguém prejudicar a tantas pessoas e ter
proteção?Como pode o demônio ficar impune pelas maldades que praticou? Eu odeio o
mundo, a Deus, aos homens, a tudo. Só existe o mal, as trevas, o demônio que encarnou
nele.
       - E se eu lhe mostrar nessa tela, fatos que a convençam de que Deus existe?
       - Não vai me convencer porque eu só conheço a tortura, o sangue, a dor. Agora
vocês vão me prender feito um bicho. Vão me engaiolar e defender a ele. São hipócritas
como ele.
       - Olhe para mim. Veja meu rosto. Ainda vamos conversar sobre a justiça divina.
Virei durante o sono para conversarmos mais demoradamente.
       - Você não entende mesmo, não é?Eu só vejo sangue. Tudo que eu vejo tem a
cor vermelha. Que me interessa o seu rosto? Quero atitudes. Se quer ser meu amigo
tome partido e me defenda. Se não pretende auxiliar-me nessas condições, desista.
       - Somos teimosos quando se trata de ajudar nossos amigos.
       - A julgar pelos choques e maus tratos que recebi, sua amizade não é grande
coisa. Se tivesse visto uma filha pequena ser estuprada e morta não esqueceria
facilmente a cena e perseguiria o assassino até os confins do inferno. Estou prisioneira
e você se diz amigo. De que lado você está?
       - De Deus
       - Houve um tempo em que pensei que ele existisse. Hoje não mais acredito nele.
Certamente é uma invenção para nos fragilizar e dominar com mais facilidade. Hoje
acredito na força.
       - Quer um calmante para dormir um pouco? Acredito que esteja cansada e
necessitada de repouso.
       - Não!
       - Precisa descansar. O ódio deixa qualquer pessoa exausta. Quer ver paisagens
com sua filha?
       - Não!
       - Não se interessa mais por ela? Dizem que é uma jovem muito bonita.
       - Enquanto estiver saturada de ódio prefiro não vê-la. Quando tiver depositado
todo ele no coração daquele assassino a buscarei.
       - Teme que ela desaprove o que você faz?
       - Não é isso. Sei que mentem quando falam dela.
       - Baseio-me no fato de que toda mãe reconhece seu filho. Se mostrarmos uma
imagem dela seu amor a registrará de imediato como verdadeira.
       - Chega! Arranje outra maneira para me torturar. Essa é dolorosa demais.
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        - Julguei que falar de uma filha para sua mãe, trazendo-lhe boas notícias, fosse
motivo de refrigério para sua alma.
        - Não! Não quero! Quero primeiro matá-lo. Ai! Meu coração.
        Deve estar doendo muito. Dizem que o ódio vai obstruindo todas as veias e
artérias e acaba por enfermar seriamente este generoso órgão. Deixe que nossos
médicos a examinem.
        - Não! Vai passar logo!
        - Há quanto tempo não passa?
        - Jamais deixou de doer desde que me cortaram os seios e mataram minha filha
        - Então por que tenta enganar a si mesma?
        - A dor está aumentando agora...
        - Estamos em uma emergência médica. Nesses casos o paciente não tem vontade
própria. Vou lhe ministrar um calmante para que possa dormir. Quando acordar estará
sob os cuidados de nossos médicos. Depois voltaremos a falar sobre sua filha.
        A mulher foi adormecendo aos poucos, inclinando a cabeça sobre a mesa até
que, colocada em maca seguiu para atendimento médico. A desconhecida saiu de cena
e Tapuinha, uma índia que nos auxilia nos dramas onde a quimbanda predomina como
arma ofensiva, veio em nosso auxilio. Eis como a médium continua a descrição do
ocorrido
          - Entre os que estão deformados existem alguns que apresentam brechas
mentais através das quais podemos penetrar e quebrar os vínculos que os prendem ao
passado. É o que vamos fazer agora. Pareço adentrar uma espécie de túnel, segura
pela mão de Tapuinha. Não sei exatamente o que devo fazer, mas ela diz que servirei
com intermediária, para os Espíritos que se apresentam cansados dessa luta inglória e
podem sair do cenário com a nossa ajuda.
        Em caso de comunicação não haverá diálogo, pois emitirei apenas palavras
desconexas, servindo o intercâmbio como um choque anímico para despertá-los das
cenas coaguladas na mente.
        Noto que não estamos sozinhos. Existem Espíritos luminosos, médicos da equipe
do doutor Bezerra participando desse trabalho. Eles recolhem as crianças como se
fossem filhos e partem com eles deixando apenas os mais endurecidos para resgates
posteriores.
        Por parte da médium ouvimos apenas gritos e urros, gemidos e lamentos, até que
se aquietou e adormeceu. Sem demora outra médium já entrava em cena.
        - Veja meus dedos cortados! Aqui estou para mostrar o que ele fez comigo.
Vocês estão sendo injustos tomando o partido de um assassino.
        - Por que um chefe de tribo cortaria os dedos de um dos seus guerreiros?
        - Por que ambicionava sua mulher. Eu tinha um amor; acreditava nele, gostava
de viver nos campos da minha terra. Era um jovem de apenas dezoito anos quando ele
cobiçou a minha mulher. Aprisionou-me e apoderou-se dela, estuprando-a na minha
presença. Como me revoltei e o insultei ele mandou primeiro cortar-me os dedos e
depois me matou.
        - Por que veio até nós?
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        - Para dar testemunho da maldade dele. Aqui está uma prova de que ele é um
assassino, portanto, não existem razões para protegê-lo, a não ser que também sejam
assassinos.
        - Não estamos em um tribunal. Isso aqui é uma emergência médica. Deixe-me
ver seus dedos, pois conheço uma técnica para restaurá-los.
        Como era um Espírito ainda muito ligado a eventos materiais, molhei minhas
mãos e modelei cada ponta do seu dedo, induzindo-o a lembrar como eram suas mãos
antes do incidente. Quando terminei o que chamei de tratamento, disse-lhe: verifique
por você mesmo como tudo está perfeito.
        Ele olhou demoradamente para as mãos e respondeu: parece que sim. Parece não
é bem a palavra. Quero que você teste se seus dedos estão regenerados escrevendo seu
nome nesta folha. Insisti, dando-lhe uma folha em branco e um lápis. Ele escreveu em
letras graúdas: Naibo
        - Quer que consertemos sua cabeça?
        - Não! Certamente vão me pedir em troca que eu não mais o persiga. E isso eu
não farei. Não quero dever favores a vocês.
        - Não nos deve nada. Tudo de bom que conseguimos realizar vem de Deus.
Utilize bem seus dedos para que não lhe suceda algo pior.
        - Tenho bons planos para eles. Ainda vai ouvir falar de mim.
        - Queira Deus que seja para alegrar-nos sabendo-o feliz e em bom caminho.
        Assim terminamos aquela agitada semana na qual nossas reuniões foram
reservadas para Hortência. Deus, em sua infinita bondade, nos enviara aquele chefe de
tribo para que o ajudássemos entre os espinheiros que ele semeara. Sempre fico feliz
quando tenho trabalho. É uma felicidade difícil de explicar, mas, igualmente, difícil de
largar.



As avós quimbandeiras

        A situação da pequena Hortência era muito complicada. A falange de Espíritos
que se mantinham com a forma infantil, ensangüentada, atraía muitos Espíritos
interessados no sangue e nas energias desprendidas pelo ódio, material utilizado em
práticas de magia negra.
        O quarto da pequena era um caos que a todo custo era amenizado pela atuação
dos pretos velhos e dos nossos instrutores, que tudo faziam para torná-lo habitável. Aos
poucos eram retirados do local, aqueles que ofereciam condições de resgate, os
penetras, os contratados, os atraídos pelo cheiro do sangue, para então, tratarmos dos
enfermos e dos alucinados pelo ódio.
        Ali este sentimento era palpável. Os médiuns em desdobramento sentiam sua
pressão em forma de atmosfera sufocante, perturbadora, que provocava náuseas, dores
de cabeça, tremores, sendo-lhes necessário muito equilíbrio para desempenharem as
funções e as tarefas que lhes eram destinadas.
        Diziam que penetrar na casa de Hortência era como mergulhar em uma piscina
lamacenta na qual sentiam asfixia e sensação de estresse muito grande. Mas ao
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trabalhador espírita não cabe escolher tarefa. Se é para cavar ele cava: se é para voar ele
voa. Foi assim que nos foi ensinado e é assim que agimos. Portanto, mais uma vez
entramos na casa da pequena para auxiliá-la.
          - Estamos aqui, Eu, Tibiriçá e seus ajudantes, para capturarmos agressores da
pequena Hortência. Nosso objetivo, explica o chefe dos milicianos, é capturar e retirar
do recinto algumas senhoras que trabalham com quimbanda. Os índios já se encontram
com uma delas que se debate e os agride com palavrões pronunciados em seu idioma
nativo.
         Vão encostá-la a mim para que você converse com ela. Espero segurar sua
fúria, pois ela se debate muito, cuspindo a todos.
         - Não vou sair daqui, coisa nenhuma! A escuridão já se abateu sobre este teto e
a morte em breve virá buscar o assassino. Ninguém vai me impedir de concluir o que
iniciei. Estou irada com vocês. Tenho que matar o desgraçado! Qualquer interferência
terá toda a ira das avós da quimbanda.
         - São realmente avós das crianças que ele matou?
         - Somos. Todas as que aqui se encontram tiveram netos e netas mortos por ele.
Unimos nossas forças para mandá-lo de volta ao inferno onde estava antes de nascer.
Não nos interessa se ele se arrependeu. Arrependimento tarde é chuva fora de época
que não é útil para a lavoura. Queremos a pele dele pendurada na ponta da lança dos
nossos guerreiros e queimada pelas nossas ervas.
         - Sei que foram maltratadas e que estão sofridas por seus netos. Mas nosso plano
é ampará-los e encaminhá-los a novos renascimentos. Queremos retirá-los dessa forma
infantil e deformada, torná-los homens feitos, guerreiros fortes, e enviá-los a terras ricas
em caça e pesca.
         - Não perca seu tempo em fantasias. No momento só a bruxaria deve comandar
as ações por aqui.
         - O que faz com ela? Que material utiliza?
         - Sangue! A matéria prima da nossa magia é o sangue.
         - E onde o consegue?
         - Cravo minhas unhas na garganta dele e tiro, tiro, tiro! Ele se apavora! Chora!
Ele vai morrer pouco a pouco, como aconteceu conosco. Morremos por dentro.
Secamos pela falta de nossos netos e pelo ódio que os substituiu.
         - O que faz com o sangue?
         - Misturo com o das crianças. Risco no chão a morte dele. Invoco os demônios
para que o levem.
         - Que desenho tem a morte?
         - O pavor! A dor! A sensação de assombro eterno.
         A comunicante, ao dizer isso, começou a bater sobre a mesa dizendo: vou matá-
lo! Vou Matá-lo!
         - Não bata na mesa. Coloquei pregos aí e não quero que se fira. Como era sua
neta?
         Alguns Espíritos, ainda muito apegadas à matéria, sentem a dor da perfuração
quando teimam em continuar batendo na mesa.
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        - Para uma avó, toda neta é perfeita. Mas ele não matou somente meninas da
tribo dele. Eu pertencia a uma tribo vizinha, e ele em sua ânsia de dominação, nos
invadiu. Levava nossos guerreiros para vender, roubava nossas cabras, nossas peles e
nossas mulheres para acasalar. Crianças ele matava.
        - Naquela época já entendia de magia negra?
        - Desde criança que lido com isso. Crianças aprendem com as avós. É uma
espécie de tradição na tribo. É a nossa religião. Se não temos inimigos usamos nossa
magia de ervas para curar doenças. Se os temos para atormentá-los.
        - Lembra do nome dele?
        - Damiano. O rei do inferno! Estou muito cansada. Preciso retornar para meu
posto.
        - Ainda não. Poderá passar o restante da noite aqui e descansar. Amanhã
retomaremos esta conversa. Como esta com muito sono, sugiro que deite nesta maca.
Ninguém lhe fará nenhum mal.
        Mas não somente uma médium havia sido desdobrada até a casa de Hortência.
        - Confirmo que o clima aqui é fumarento. O ar esta infestado pela atuação de
quimbandeiros e de aproveitadores que terão que ser removidos. A tragédia das
crianças deformadas e ensangüentadas é como um imã a atrair viciados em sangue.
Que coisa! Por que tanto Espírito gosta disso?
        Tibiriçá diz que não é ocasião para perguntas. Que devo me ater ao trabalho,
que no momento, requer o máximo de atenção. Ele me mostra um Espírito que em nada
se diferencia de um sapo. É enorme e está se alimentando de uma espécie de gosma que
se forma no ambiente como resultado do caos que aqui impera.
        Ele pula como um sapo. Sua língua alcança certa distância e se gruda à gosma
que lhe falei. Seu alvo no momento são os fluidos da menina e da mãe dela. Devo
registrar que é a primeira vez que vejo um cenário assim. Ele está bufando, agora que
me viu! É do tipo raivoso, adverte Tibiriçá. Sem se deter para explicações o chefe dos
lanceiros eleva sua lança e a atira. A cena é tão rápida que quando vi a lança
novamente, ela estava cravada no pescoço do sapo.
        Ele está rodopiando sob os olhares atônitos de alguns aproveitadores, que se
dispersam temerosos. Tibiriçá e os guerreiros invadem a área e lançam uma grande
rede sobre ele. Espero que.... Não! Mas é justamente isso que vão fazer! Vão encostá-lo
em mim para que você o escute.
        A médium começou a tremer e a dar sinais de engasgo, que na verdade eram
tentativas do Espírito dizer o quanto estava odiando aquela situação. Tentando levantar-
se e reagir, urrava, gemia, colocava sua longa língua para fora a fim de nos atingir com
sua gosma. Finalmente consegui dizer
        - Vou cuspir em você, seu imbecil. Meu veneno vai deixar sua pele em
frangalhos.
        - Há um campo entre nós que impede qualquer contato. A cada vez que se
debate a lança penetra mais fundo. Para seu próprio bem é melhor acalmar-se e esperar
que os técnicos a retirem.
        - Marquei seu rosto. Você vai morrer.
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        - Vou morrer quando minha hora for determinada por Deus. Enquanto ela não
chega continuarei fazendo meu trabalho. Vou injetar este liquido em seu braço para que
se acalme. É um calmante muito forte que o fará dormir.
        A sugestão funcionou, mesmo porque eu havia pressionado o braço da médium
no local onde, geralmente, se toma injeção na veia, para que o comunicante, sentindo o
efeito da pressão a interpretasse como a introdução de uma agulha em seu corpo. Sem
demora ele tombou sobre a mesa.
        Mas já outro visitante exigia minha presença com nervosas gargalhadas.
        - Que engraçados! Pensam que é com meia dúzia de palavras que vão dominar
a mim e a quem está lá? É muito difícil! Não é assim que se esfola um gato não, amigo.
        - Se vem de lá, poderia dizer-me em que tipo de trabalho se empenhava, quando
foi capturado?
        - Sou uma espécie de ajudante de equipe. Como não tenho especialização em
magia negra nem em hipnotismo, fico fazendo mandados. Mas o senhor sabe que todo
cargo é importante. Sem a ação dos pequenos os grandes param.
        - Tem certa razão. Mas não estou entendendo as gargalhadas. Estamos diante de
uma tragédia e você rindo como se estivesse de braços com a felicidade.
        - É isso! Estou feliz! Tudo está se encaminhando como o combinado. Suas
palavras no meio daquele vendaval não vão produzir efeito nenhum.
        - Perdeu algum filho para ele?
        - É claro! Quem ali no meio daquele matadouro não perdeu?
        - Quantos?
        - Não quero lembrar isso!
        - Quantos?
        - Já disse que não quero me lembrar desse fato. Ele me fragiliza toda vez que o
recordo. Fui trazido à sua frente para uma conversa de homem para homem e não para
que você falasse da minha antiga família.
        - Antiga? Quer dizer que já a descartou? Que já não se interessa por ela?
        - Não distorça o que eu disse. O que quero é evitar que essa conversa me
amoleça.
        - E amolecendo irá dar prioridade á busca de seus filhos? É disso que tem medo?
De encontrá-los e abraçá-los?
        - Diabo de homem teimoso! Eu tinha duas filhas.
        - Por que só fala no passado? Não seria melhor dizer: tenho duas filhas?
        - Você está sendo inconveniente. É melhor me liberar antes que nos tornemos
inimigos.
        - Talvez tenha razão. Acho que não é a pessoa que me disseram para ajudar a
encontrar as filhas. Deve ter havido algum engano. Com quem deveria conversar,
disseram, amava demais as filhas e jamais trocaria o amor delas por futricas.
        - Ninguém lhe disse nada. É apenas um mentiroso tentando se aproveitar de um
pai desesperado.
        - Desesperado para que? Para voltar à casa da criança e enchê-la de sopapos?
        - Ela não é uma criança. É um assassino. Por que não entendem isso? É um
assassino escondido no corpo de um bebê, mas é um assassino.
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        - Quando vejo uma criança, logo me lembro dos meus filhos quando tinham
aquela idade. Crianças são frágeis e dependentes. É preciso ser muito covarde para
agredir alguém tão indefeso.
        - Pois era isso que ele fazia. Preciso voltar para lá. Se o matarmos acabaremos
com o drama daqueles bebês esquartejados.
        - Isso não é verdade. O motivo que os mantêm esquartejados é o ódio e o desejo
de vingança. O esquecimento das ofensas logo abriria margem para que nossos médicos
curassem a todos. Mesmo que o matem, o ódio continuará em seus corações e o
buscarão no além-túmulo para torturá-lo. Acho que já viveu o bastante para saber que
esse tipo de ódio só se desfaz com o perdão. Talvez seja melhor enviá-lo a outro
dialogista. Não é mesmo o homem que disseram que me procuraria.
        - Quem lhe disse isso?
        - Meu instrutor. Disse que um homem com saudades das filhas me buscaria. Que
o atendesse com boa vontade e dissesse que sabemos onde elas estão.
        - Por que mente em caso tão importante? Pelo amor de Deus, não me tire
daquela casa.
        - Agora deu provas de que é a pessoa certa! Quando pronunciou a palavra,
“Deus”, entendi que ainda há amor em você. Ainda acredita Nele?
        - Eu sempre acreditei em Deus. Mas ele foi muito injusto comigo. Deixou que
matassem minhas filhas.
        - Deus é justo por excelência. Nosso entendimento é que é curto para alcançá-lo.
Aceita ficar conosco para terminarmos esta conversa logo mais quando eu for dormir?
Temos as explicações corretas e nossos instrutores saberão como encontrar suas filhas.
        - E ele?Ficará impune?
        - Quem com o ferro fere com o ferro será ferido. Essa é a lei da vida.
Responderá por cada crime cometido contra crianças; pelo desrespeito aos idosos; pela
agressão às mulheres e a quem quer que tenha ofendido. Qualquer Espírito está
submetido a essa lei.
        - Sabem mesmo onde minhas filhas se encontram?
        - Sabemos. Aguarde junto aos guerreiros de Tibiriçá. Ele o atenderá quando a
reunião terminar.
        Apressei-me, pois outra médium, com ânsia de vômitos há alguns minutos, me
buscava.
         - Que está sentindo?
        - Aquela casa é maldita. Disseram-me para passar por lá que a farra estava
boa. Boa, coisa nenhuma! Informaram que tinha sangue, energia de angústia, de ódio,
esses petiscos que a gente gosta. Que nada! Passei mal! Para completar ainda fui
capturado por esses índios. Veja! Estou machucado.
        - É. Parece que não deu sorte. Quem sabe com uma prece...
        - O quê! Ainda escutar sermão? Só pode ser um pesadelo. E o que fizeram das
minhas asas? Com essa maré de azar só me falta ficar preso aqui.
        - É o que vai acontecer. Estou sem tempo para conversas longas e vou entregá-lo
aos cuidados dos lanceiros. São ótimos corredores. Não tente nada para não se
arrepender.
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        - Sei.
        Com certos comunicantes, não convém esticar conversa, pois o tempo disponível
deve ser utilizado para casos mais sérios. Aquele Espírito era um “penetra” em busca de
alguma vantagem. Uma hiena tentando se aproveitar dos restos alimentares após o
repasto dos leões. Personagem assim, na maioria das vezes, é retido por algum tempo e
depois, sob severas advertências, libertado. Movi-me. A dança em uma reunião
mediúnica não pára.
        - Eu só estou aqui para dar um recado e ir embora. Pediram-me este favor, e
como não me custa atender, vou lhe passar o recado.
        - De onde partiu o pedido?
        - Isso não interessa. O recado serve para que você se situe melhor no contexto
do drama. Eu era um guerreiro do grupo que protegia este assassino na África. Mas
nem todos nós concordávamos com o que ele fazia. Ele maltratava as pessoas. Nossa
tribo era enorme. Daí o grande número de inimigos que ele tem hoje. Fugi da tribo
porque não concordava com as atitudes dele. Não o odeio. Penso que ele é apenas um
iludido que se deu mal. Sou neutro nesse episódio. Vim apenas para dizer que nem
todas as pessoas que o protegiam concordavam com ele. Alguns o lamentam, outros o
detestam, mas não é o meu caso. Apenas observo.
        Em uma reunião mediúnica surgem fatos novos a todo instante. O doutrinador
precisa estar atento para reunir os dados e formar o enredo correto. Existem as
informações falsas, as profecias que não se realizam, as “intuições” encomendadas,
próprias de um jogo de gato e rato. É preciso avaliar tudo com cautela, utilizar à lógica
e o bom senso, e se necessário, indagar diretamente os instrutores espirituais sobre
comunicações suspeitas. Mais uma vez outra médium deslocou-se até a casa da pequena
Hortência para nova missão.
        - O jovem que se comunicou agora tem razão. As crianças esquartejadas estão
protegidas por guerreiros que se sensibilizaram com o sofrimento delas. Ao
desencarnarem, acostumados à arte da guerra, pois a tribo não oferecia estudos nem
outras opções que não fossem as voltadas para a sobrevivência, ou seja, caça,
agricultura mirrada e guerra, entraram em contato com essas crianças, e até mesmo
para se engajarem em alguma tarefa que os mantivessem ocupados, se organizaram em
torno delas para justiçar o chefe sanguinário que os dirigia.
        São homens sem perspectiva, acostumados à guerra, ainda não burilados nem
aptos para se organizarem em uma sociedade fraterna. Parecem sentir falta de alguém
que os lidere, pois têm tendência a obedecer a um chefe. Não parecem maus. Apenas
ainda não conquistaram valores que os capacitem para uma vida com objetivos mais
transcendentais. Aparentam ser muito ligados a terra; mais força que intelecto. Não vai
aqui nenhum preconceito contra eles. É uma análise que faço baseada na vida que
tiveram e pela maneira como respondem às questões que enfrentam agora.
        O jovem guerreiro que está comigo diz que a minha análise foi boa, mas que
eles já têm uma noção de justiça bem acentuada, pois souberam muito bem definir-se a
favor dos massacrados. Ele está aqui para me auxiliar a retirar uma criança
esquartejada. Não sei por que esta em especial, mas ela terá que apartar-se das
demais. Há planos para ela.
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        A criança está muito perturbada. Não a sinto arrependida nem motivada para
largar a luta. Muito ao contrário. Ela resiste para ficar com as demais e o seu ódio é
intenso. Como existe na falange uma sintonia formada por este sentimento negativo,
mais difícil é arrancá-la do círculo que a atrai e a mantém agrupada.
        - Assassino! Assassino! Não me tirem daqui! Eu preciso ficar e matá-lo! Não!
Não! Não! Maldito! Eu vou te matar! Quem ousa me arrancar daqui!
        - Estou lhe retirando para levá-lo a uma vida melhor. Preciso entregá-lo aos seus
pais. Todos se alegrarão com sua chegada...
        A médium foi adormecendo aos poucos, o que significava que a criança estava
segura nos braços de algum instrutor nosso. Outra médium que a auxiliava descreve o
cenário da casa, sempre renovado por sucessivas visitas de nossos dirigentes.
        - Consigo ver no aparente caos aqui instalado, alguns médicos, pretos velhos
com suas ervas e nossos amigos franciscanos. Se não fossem eles, Hortência estaria
muito pior. Quem sabe até desencarnada. Essa proteção está garantindo um pequeno
bem-estar para ela e para a mãe.
        Estamos aqui para levar alguém que está aprontado algumas trapalhadas.
Tibiriçá diz que foi ele quem explodiu o copo no meu rosto hoje, e que por milagre, os
fragmentos não atingiram meus olhos.
        A médium estava em casa junto ao filho e, de repente, ao tentar tomar um copo
com água, este explodiu em vários fragmentos em sua mão, fato que a assustou e a
deixou confusa devido ao acontecido.
        - Estou de passagem. Vim aprender com os mestres que estão dando um curso
intensivo por lá.
        - E o que já conseguiu aprender?
        - Pouca coisa. A magia traz respeito. Todo mundo quer contratar quem sabe
manejar essas forças. Quero que respeitem o meu poder.
        - Só vale a pena respeitar o poder quando ele emana de Deus. Outro tipo de
poder é força desgovernada.
        - Iguais a mim tem muitos lá. Não tenho nada a ver com o caso. Entrei no frevo
para me escolar.
        - Ouvi dizer que tentou agredir uma mulher hoje, invadindo-lhe a casa e
quebrando um copo em suas mãos.
        - É verdade. Para você vê como a magia é útil. Absorvi as energias lá e elas
passaram a fazer parte de mim. Fiquei igual a uma pilha. Com essa energia cheguei
perto do copo e utilizando a vontade disse: explode! E ele explodiu. Mas esse índio
estava espreitando e se lançou entre o copo e a mulher. Se não fosse ele os cacos
teriam feito um bom estrago no rosto dela. A partir daí ele me aprisionou e tive as
aulas interrompidas.
        - Fez uma coisa muito grave. Pelas leis dos índios deverá passar bom tempo em
trabalho de campo, lavrando a terra, até que tenha expiado todo mal que há em seu
coração.
        - Sei que é o manda-chuva por aqui. Se pedir aos índios que me soltem eles o
obedecerão.
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       - Fez o pedido à pessoa errada. Eu é que obedeço ao que eles dizem. Por sinal já
me disseram que você está aqui para desfazer um trabalho que iniciou. Portanto, Já que
sente necessidade de aprender algo, iniciemos por desfazer o mal feito praticado.
       Não é raro que o comunicante se recuse a atender a ordem de desfazer um
trabalho, mas, também, é comum, diante da aplicação de técnicas que o imobilizam, o
fazem sentir choques, pesos enormes sobre a coluna, coceiras e queimaduras na pele,
vomitar tudo quanto engoliu, que obedeça prontamente.
       - Pronto! Aí estão! As ervas, a areia, o sangue! Tudo! Maldita hora em que eu
vim parar neste local!
       - O que pagaram para que você invadisse a casa da mulher e explodisse o copo?
       - Conhecimento. Ensinaram-me a fazer. Também me deram sangue, e energias
para outros trabalhos.
       - Agora vai receber ensinamentos sobre agricultura. Segundo meu pai, que era
sertanejo, não há nada mais lindo que um roçado de milho com seus pendões
balançando ao vento. Não faça nada que desagrade aos índios. Eles são muito amigos,
mas não são bestas.
       Tendo alguns minutos restantes ainda houve tempo para mais uma comunicação.
       - Que coisa boa! Esse poço não seca nunca! Vocês tiram um e trazemos dez. O
malditozinho esta piorando. Eu estava lá neste minuto e posso afirmar que ele se
encaminha para o buraco. Já lesou até o corpo físico. Não tem jeito! Matou, tem que
morrer!
       - Preciso saber qual sua função neste caso para averiguar se volta ou não a
trabalhar nele.
       - Volto! Gosto de ver o circo pegar fogo. Sou olheiro e presto contas do que
observo.
       - Presta contas a quem?
       - A Deus.
       - É certo que prestamos contas a Deus de todos os nossos atos. Quero saber o
motivo da sua vingança.
       - Nenhum! Ele nada fez a mim. Mas tenho notícia de que fez mal a muita gente
indefesa. É um monstrinho que a gente tem que observar e cortar as asas.
       - Se não tem relação com a briga por que entrou nela?
       - Gosto de ver a palha voar. Se tem confusão estou nela. Digamos que sou um
observador da natureza humana e que hoje ele vai ter uma piora especial.
       - E pensa que estará lá para verificar isso?
       - Claro! Estou a serviço da justiça. Obstrução da justiça é crime. Esses índios
que me trouxeram, certamente, me levarão de volta. Se houver problema passo uma
conversa neles.
       - Está confundindo índio com ignorante; guerreiro com imbecil. Como eles
escutaram o que disse já temos um problema aqui: acalmá-los para que não lhe
ministrem uma boa sova.
       - Acho que não usei o verbo adequadamente.
       - Como estão os rostos deles?
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        - Sérios! Parecem que vão enfrentar um leão. Mas sou apenas uma formiguinha,
cara.
        - Deixo a seu cargo se justificar pela ofensa feita aos nossos guerreiros. Está sob
os cuidados deles. Quem sabe um pedido de desculpa sincera não lhe caia bem?
        - E o que vou ficar fazendo aqui? Tenho que cuidar do monstrinho.
        - Continua usando o verbo inadequadamente. Cuidarão da criança os bons
Espíritos e de você os guerreiros. Deus cuida de tudo e de todos. Boa sorte! Vai
precisar!
        Confesso que fiz um pouco, só um pouquinho, de terrorismo com ele. Os
guerreiros agem com lealdade e justiça. Estão preparados para a guerra e atuam em
combates. Com prisioneiros apenas fazem a guarda sob as ordens de Espíritos
superiores.
        De coração leve pela tarefa realizada, nos despedimos para nossos afazeres.
Deus velaria por Hortência até nossa volta. Senti aquela sensação de estar à frente do
tempo e acima do espaço, que às vezes sinto, quando viro a chave do templo onde
trabalho. Alguns chamam isso de amor ao trabalho. Chamo de missão cumprida.



O guerreiro da lua

        A pequena Hortência havia passado uma semana com muito cansaço, falta de
sono, perturbações que atingiam também sua mãe, Margarida. Todavia, esta continuava
firme em sua fé, a trazê-la para tomar passes e a frequentar o curso sobre iniciação à
Doutrina, com a mesma robustez que apresentara na entrevista.
        A falange dos esquartejados, ciente de sua força, não retrocedera em seus
ataques, antes os recrudescendo, com a finalidade de acelerar a passagem do Espírito a
quem perseguia, para seu domínio.
        Iniciamos a reunião naquele dia com cuidados redobrados. Deus, senhor dos
mundos, ligado em uma simples folha de sua criação, jamais abandonaria seus filhos no
campo de trabalho. Mesmo assim, havia uma parte sob nossa responsabilidade que
precisava de perseverança e de fidelidade.
        Feita a prece inicial, de imediato, um médium foi levado através de
desdobramento a uma região desconhecida por todos do grupo. Apesar da asfixia que
passou a sentir, iniciou a descrição do entorno, tentando situar o doutrinador para os
eventos seguintes e encaminhá-lo à postura a ser assumida em diálogo.
        - Isso parece uma coisa sem fim. É uma espécie de muralha enorme,
verticalmente muita alta e sem limites na horizontal. Há um vigia, guardião ou
sentinela que vela por ela. Com sua habilidade em subir, descer, e locomover-se, ele
tenta me intimidar, inclusive, desaparecendo e reaparecendo próximo a mim.
        Ele é muito rápido, apesar do seu aspecto pavoroso que lembra um sapo. Como
se desloca na vertical, presumo que suas patas têm ventosas que o grudam ao muro
sustentando-lhe o peso. Ele agora me encara agressivamente.
32


        Toquei no muro e senti que é como uma geléia, ou seja, é algo que permite ser
atravessado. Ao permanecer com a mão sobre ele, como se minhas “digitais” não
fossem reconhecidas, ele se tornou sólido na região em que o toquei.
        Agora percebo junto a mim, mais uma médium, Tibiriçá, Tapuinha e um grande
número de guerreiros, todos armados e pintados para a guerra. Não sei o que nos
espera do outro lado desse muro, mas que vai haver uma batalha, não tenho dúvidas.
        Quatro pessoas desconhecidas passam frente a mim e se dirigem para o muro.
Pelo que vi na mão de uma delas, uma bolinha luminosa, e como sei que é uma arma
altamente explosiva, devastadora mesmo, pois já a vi em ação (espécie de bomba de
alto poder explosivo que afeta apenas obstáculos materiais) em outros resgates,
acredito que esse muro sairá do contexto em segundos.
        Ocorreu o que eu disse. Tudo ruiu diante de um cogumelo luminoso. O guardião
já se encontra nas mãos dos guerreiros e a tropa avança sob o comando de Tibiriçá.
Ganhamos terreno, mas paramos diante de novo obstáculo. É difícil acreditar no que
vejo. Tudo é espantoso. Parecemos estar em um mundo estranho, um cenário
semelhante aos filmes de guerra medievais, uma ficção ou epopéia imaginada por uma
mente criativa e agressiva. Se alguém me contasse sobre o que vejo aqui, certamente
duvidaria. Estamos dentro de um ambiente que lembra uma grande placenta, ou útero,
não sei bem.
        Tem vilosidades. Nos meandros dessas vilosidades se abrigam “crianças”
esquartejadas, iguais as que se encontram rebeladas. Acho que é uma maneira de se
protegerem contra agressões do meio e de inimigos externos. O que vejo aqui é coisa
engendrada por mente humana e não um cenário formado pela natureza.
        Começamos a passar mal. É como se alguém nos tivesse cortado o ar, que,
aliás, aqui é insuportável. Mesmo os guerreiros encontram dificuldades em meio tão
hostil. Adaptar-se a esse clima de ódio e de agressão é algo que parece estar acima de
nossas forças.
        Tibiriçá organiza a tropa, incentiva os guerreiros, manda que nos amparem,
pois sente que estamos quase desfalecendo.
        Na verdade os dois médiuns demonstravam enorme sinal de estresse e cansaço.
Ânsias de vômitos os obrigavam a levar a mão à garganta tentando aliviar a agonia que
os tomara. Por nossa vez orávamos e ministrávamos passes sobre eles incentivando-os a
que buscassem suas reservas de forças, pois, certamente, Tibiriçá não os levaria tão
longe apenas para mostrar-lhes um cenário de guerra. Lembramos de Emmanuel, o
disciplinado mentor de Chico Xavier, que deixou impresso no seu excelente livro
“Paulo e Estevão”: Que cada discípulo possa entender quanto lhe compete trabalhar e
sofrer, por amor a Jesus Cristo.
        Quando tudo parecia insuperável, que nossos guerreiros encarnados capitulariam
diante da agressividade do meio em que estavam, um deles, vencendo a angustiante
asfixia gritou:
        - Vejo uma luz que se aproxima! É forte como o Sol. É um grande risco no
horizonte, formando o próprio horizonte, que se agiganta e vem em nossa direção. A luz
derruba tudo ao redor; passa por cima de tudo; vem levando qualquer obstáculo que
tenha a ousadia de se colocar à sua frente.
33


        Estou tremendo dos pés à cabeça! Mesmo porque o tropel dos cavalos faz
também a terra tremer. Deve ser a luz de Deus que invade as trevas. São guerreiros
luminosos! Vejo à frente da tropa uma espécie de anjo guerreiro, montado em um
cavalo muito grande. Ele se destaca dos demais pela luminosidade. De espada em
punho organiza a batalha, ordena que cerquem os rebeldes, dita ordens. Seus
auxiliares, todos armados, atiram redes, fazem verdadeiras varreduras, capturando a
horda. Isso é que é batalha! São centenas! Todos atirando redes. O general os
incentiva!
        - Chega de rebeldia às leis divinas! Acabou a desordem! A partir de agora a
bandeira do Cristo tremulará nessa região. Que toda treva seja banida! Toda violência
desarticulada! Toda maldade vencida! A luz que Jesus fez brilhar no mundo reinará
aqui também!
        Ao pronunciar tais palavras o médium agigantou-se em palavras e gestos. Seu
braço erguido, como a segurar uma espada, rodopiava entre nós, ora apontando em uma
direção, ora para outra.
        - Que a luz expulse as trevas! O bem não pode ser detido pela ignorância!
Vamos meus bravos! A criação de Deus não pode se voltar contra Ele! Os limites da
tolerância foram ultrapassados! Este pedaço de terra tem que refletir a bondade de
Deus! O que não pertence a Ele que seja extirpado!
        - A voz do comandante causa verdadeiro desespero entre os habitantes da
placenta. Diria que há apenas tentativa de fuga, e não resistência. O arrastão continua.
Há correria, gritaria, maldições, quedas espetaculares, redes voando, espadas luzindo,
cavalos que se empinam mostrando suas patas dianteiras elevadas.
        Os rostos dos guerreiros permanecem serenos, como se fizessem uma operação
necessária não vinculada a um combate. Organizados e, certamente, em obediência a
um plano pré-estabelecido, cercam tudo, derrubam obstáculos, capturam qualquer
coisa móvel e a obriga a adentrar uma espécie de gaiola. Prisioneiros são libertados,
mas igualmente controlados para averiguação.
        Um dos guerreiros passou próximo a mim! É belíssimo! Quando eles se
aproximam de algo, iluminam tudo ao redor. A noite virou dia com a presença deles.
Detenho-me em observação do cenário. Árvores ressequidas, lama petrificada, aves
agourentas. Os guerreiros continuam aprisionando os rebeldes.
        Não sei quem é o comandante, mas a semelhança com a figura de São Jorge é
inegável. Se tiver alguma chance pergunto se é o guerreiro da lua que comanda esta
batalha. Suas feições são tão brilhantes que é preciso fixar o rosto por algum tempo
para perceber algum detalhe. Suas armas à vista, armadura, lança e espada, mais
servem para direcionar que para atacar, pois toda sua autoridade se reflete dele
mesmo, causando medo e uma sensação de que é inútil resistir. Seu cavalo é muito
branco, musculoso, ornado por um manto com bordados dourados.
        Todos os combatentes do batalhão estão uniformizados. Usam trajes brancos
com tons azulados, e mostram alguma semelhança com os guerreiros romanos. Com
eles, vieram técnicos, igualmente, capacitados, que se encarregam de colocar as
“crianças” em macas. Vou descrever o que eles fazem com uma delas.
34


        Eles a colocam em uma espécie de maca, feita de um material semelhante ao
mármore branco. A criança parece um pequeno monstro ensangüentado. Quatro deles
ocupam os cantos da maca e colocam as mãos seguindo os ângulos retos da mesma, de
forma que vejo oito mãos com as palmas voltadas para a criança. Concentram-se como
se estivessem em oração e tudo fica tão luminoso que não percebo mais a criança.
Quando volto a vê-la já não é criança, mas um Espírito adulto, deformado, com o
corpo semelhante ao de um escorpião. Apenas sua cabeça é humana.
        Posso afirmar que ele é meio homem e meio escorpião. De sua mente se
projetam imagens mentais, como se houvessem sido liberadas sob a força hipnótica dos
técnicos. As imagens que se projetam ao seu redor são de um feiticeiro que fazia
sacrifícios humanos utilizando crianças como vítimas. Eles as esquartejava. Agora o
Espírito é posto para dormir. Parece que vão empregar esta técnica com todos.
        Não sei exatamente o que eles fizeram, mas foi rápido. Diria, intuitivamente,
que penetraram na mente do enfermo e de lá tiraram a trava, o bloqueio, a
cristalização, fazendo-o mostrar-se tal qual é na realidade. O enfermo, que se mantinha
perispiritualmente modificado por sua vontade ou por hipnotismo, teve o comando
mental anulado e recebeu uma ordem irrecusável de assumir o “traje nupcial”
compatível com seu estado evolutivo.
        Daqui partirão para cirurgias reparadoras, modelações perispirituais
necessárias, sobretudo, educação mental visando amenizar o sofrimento moral de que
são portadores. A lei do progresso parece ter chegado a este pedaço de mundo
enegrecido, mostrando claramente que ninguém zomba da Lei por muito tempo.
        A batalha ainda se desenrola sem nenhuma chance de vitória para os rebeldes.
Há centenas deles adormecidos em macas, em espécies de gaiolas, na verdade, prisões
temporárias para que sejam retirados de combate e aguardem o tratamento que lhe
falei.
        Aproximo-me de uma das “crianças” aprisionadas. Sua forma infantil não tem
a meiguice desses pequenos seres. É tão escura que não há nitidez em seu rosto. São
sombras, hematomas, pústulas, sangue. Aqui só o amor, com suas mãos cariciosas,
conseguirá modificar tão apavorante quadro.
        Ainda há muito movimento por aqui. Tibiriçá diz que devemos dormir cedo e
nos prepararmos para mais trabalho durante o sono. O choque da batalha passou, mas
seus efeitos vão continuar durante dias.
        Nessa reunião comunicaram-se prisioneiros apavorados, escravizados pelos que
chamavam de “demônios da escuridão”. Demonstraram medo profundo, esgotamento,
sinais de loucura em meio a um pouco de lucidez desesperada. Foi a nossa maneira de
participarmos da batalha, epopéia difícil de descrever, e para muitos, de acreditar.
        Mas estamos no Espiritismo a serviço. Se nossos instrutores, no afã de ajudar a
superar as dores do mundo, nos levam a tais cenários e nos autorizam divulgar o que
ocorre além de nossas pedreiras materiais, alguma utilidade deve haver.
        Como atuamos e pesquisamos nos campos da mediunidade e da obsessão, e
como não somos os únicos, muito provavelmente, outros grupos têm a chance de
encontros semelhantes aos nossos. Tais relatos são testemunhos de que a vida no além
continua em sua diversidade sem fronteiras. Confirmam que, através dos seus
35


auxiliares, Deus se faz presente em qualquer recanto do universo. Que em nenhum lugar
a ignorância domina soberana, pois as rédeas do universo sempre estiveram nas mãos
Dele.
        Por outro lado incentiva a que novos grupos mediúnicos se aperfeiçoem para que
sejam utilizados como auxiliares dos bons Espíritos em seus trabalhos de resgates. A
seara de Jesus é imensa e diversificada. Há trabalho para todos, em qualquer nível de
evolução. Candidate-se e verá.



O estranho e compreensível sentimento materno

        Um filho é uma evocação muito forte. Não é propriedade da mãe, mas prioridade
em sua bonança e amargura em seu sofrimento. Por um filho ela enfrenta exércitos e
desertos; planta jardins, limpa fontes e aplaina caminhos.
        Um filho é como a linha do horizonte, cuja função é impulsionar o caminhante
para novos passos. O coração de uma mãe é como o coração de um guerreiro. Está
sempre pronto para uma nova batalha.
        Quão estranho, compreensível e maravilhoso é o sentimento materno. Já se
tornaram comuns, cenas de mães desesperadas diante de presídios, enquanto seus filhos
queimam colchões, agridem vigilantes, ameaçam matar quem lhes evite a fuga. Elas
sabem que eles estão errados, que violaram leis justas, que são, às vezes, ladrões e
assassinos, mas os amam como se fossem anjos imaculados.
        Mas o sacrifício materno não se contenta com apenas isso. Desde que o filho é
gerado, ainda no útero, procuram fazer o melhor que sabem, sacrificam-se, e se
dependesse da vontade dessas heroínas, optariam por morrer no parto, conquanto seus
filhos fossem salvos. Quando eles nascem, elas ficam sem comer, se o alimento é
pouco, pois preferem alimentá-los que a si próprias. E ainda mais. Se o alimento é
suficiente, a melhor parte é para eles.
        Por isso estabeleci como definição para minha mãe, já desencarnada, uma frase
com cheiro de sertão cearense que bem define a sua garra ao criar dezessete filhos,
multiplicando o alimento de cada dia qual Jesus fez com pães e peixes: Minha mãe era
uma mulher muito bonita. Chorava sem botar água e achava graça sem fazer barulho.
Mas tenho a certeza absoluta de que esta frase define todas, pois todas são reflexos da
bondade de Deus na Terra. Concordo com Chico Xavier, quando disse: Mãe que
abandona os filhos é caso patológico.
        Não há quem não se emocione com elas. Sejam encarnadas ou desencarnadas
esse sentimento não muda. Encarnadas e abandonadas pelos maridos, não largam os
filhos nem na fome nem na doença, preferindo morrer ao lado deles tentando ajudá-los.
Desencarnadas, os buscam desesperadas sem se deter diante de qualquer perigo para tê-
los em seus braços.
        O amor materno é tão forte que o doutrinador, diante de uma mãe que por algum
desespero esteja perseguindo alguém, pode perguntar: Prefere continuar nessa briga
inglória ou abraçar seu filho? Ela é tomada por uma onda avassaladora de ternura e
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A pequena flor do campo e o relampejar do tempo

  • 1. 1 A pequena flor do campo Luiz Gonzaga Pinheiro
  • 2. 2 Dedicatória Para meu neto Luan. Que seja tão forte e sábio Quanto o guerreiro da lua.
  • 3. 3 Índice 1. Introdução 2. Alegrias de um pai ou o relampejar do tempo 3. A obsessão em crianças 4. O passado recente de Hortência 5. A lança do Centro Espírita 6. A falange dos mutilados 7. As avós quimbandeiras 8. O guerreiro da lua 9. O estranho e compreensível sentimento materno 10. Ogum – A força avassaladora da lei 11. A batalha dos polvos voadores 12. Conversa entre guerreiros 13. Mulheres atormentadas 14. Homens de luz 15. Tecnologia de ponta 16. Visita ao cemitério 17. Devolvendo o coração 18. Evitando choques futuros 19. Guerreiros não atacam mulheres 20. Recanto de paz 21. Fragmento de biografia 22. Conclusão 23. Anexos
  • 4. 4 Introdução Não há quem não se enterneça diante de uma flor solitária no campo, principalmente quando ameaçada por ervas que a sufocam. A tendência natural de qualquer caminhante é protegê-la, chegando mesmo a limpar o terreno ao seu redor, a fim de que este divino espetáculo da natureza se prolongue por mais tempo. Assim também nos sentimos diante de Hortência, quando sua mãe, Margarida, a trouxe ao Centro Espírita Grão de Mostarda para que lhe ministrássemos um passe. Serena, ela sentou-se à nossa frente e passou a contar sua estranha história. Seu sofrimento fora anunciado há alguns anos. Sua mãe, frequentadora e trabalhadora de um Centro Espírita em Fortaleza fora informada de que seu marido já desencarnado, voltaria à carne na condição de filha de sua filha, ou seja, a neta receberia o avô para dar-lhe a devida educação, cuja falta o tornara um déspota familiar. “Seu Flores” era ao mesmo tempo pai e avô de Margarida. Estando uma de suas filhas grávida, por não gostar de quem a engravidara deixou que a neta nascesse e a registrou como filha criando-a como tal. Além de tirano dentro de casa, revelou Margarida, seu avô considerava toda mulher uma vagabunda e todo negro um marginal. Contudo, forçou mulheres a fazer sexo com ele e depois as desprezou. Sua opinião era de que mulher só servia para esta finalidade. “Seu Flores”, como era conhecido, pois seu nome era Armando Flores, fez inimigos mesmo entre os familiares. Segundo Margarida, ele só tinha, dentre os de sua parentela, uma réstia de afinidade com ela, sendo os demais familiares, afastados através da costumeira intolerância. O fato é que quando a pequena Hortência nasceu, a vida de todos na família sofreu profunda alteração. Brigas e inimizades se instalaram no lar; espíritas e católicos, pois a família tinha preferências díspares no terreno religioso, partiram para hostilidades; figuras sinistras oriundas do mundo invisível passaram a ser vistas pelos cômodos e a criança sentia dificuldade para adormecer e se alimentar. A gravidez fora dificultosa e o pós-parto doloroso. Margarida passou a ter pesadelos. Em um deles, uma figura aterradora lhe cortou os seios e a obrigou a engoli- los. O trauma foi tão marcante que seus seios, antes generosos na alimentação da pequena, secaram por algum tempo. Do diálogo que mantive com ela guardei uma frase que bem demonstra sua fibra de mãe dedicada: sei que meu avô tem muitos inimigos. Mas quero educá-lo para que respeite a todos, principalmente a Deus. Margarida sabia que um Espírito em débito com a Lei poderia optar por um pagamento embasado no trabalho honesto e no amor aos mais sofridos. Este era o seu plano para a pequena Hortência. Educá-la, sobretudo, moralmente, para que ela
  • 5. 5 suportasse os golpes dos inimigos, conquistando-os pelo exemplo de fé e de amor aos sofredores. Um belo plano como este certamente terá apoio integral da parte dos bons Espíritos. Foi o que lhe disse no final de nossa conversa. Naquela noite a reunião de desobsessão, emergencialmente, foi toda dedicada à pequena Hortência. Este livro narra o processo de desobsessão de uma garotinha com apenas 45 dias de reencarne, acossada por cruéis inimigos que, a todo custo, pretendiam levá-la ao desencarne. Seus agressores, escravos bantos, sempre se referiam a ela como “o assassino”, ignorando totalmente a condição atual que a fragilizava. Vendo-o apenas como o antigo algoz que ceifara seus filhos, mães e pais transformados em insistentes verdugos a agrediam a chicotadas, transformando o pequeno apartamento em verdadeiro espetáculo de magia negra. A linguagem, que neste caso poderia ser chula e bastante agressiva, foi adaptada pelos médiuns, que tolhiam a agressividade e repassavam o pensamento, vestindo-o com suas próprias palavras, sem, contudo, alterar a essência da comunicação. O chefe banto agora seria escravo, diziam seus antigos e atuais perseguidores. Mas Deus é pai de infinita misericórdia. Vejamos como Ele, através do amor extremado dos bons Espíritos, atendeu a todos, propiciando-lhes oportunidades de esclarecimento e de recomeço nas abençoadas sendas do progresso. Alegrias de um pai ou o relampejar do tempo Antes de começar, de fato, a trabalhar no drama que se agigantava à minha frente, recebi de meu filho a cópia ou resumo do que seria o seu discurso de orador oficial na conclusão do curso de medicina. Foi uma das maiores alegrias que senti. Eu o vi pequeno, o tomei nos braços, ministrei-lhe lições importantes. Ele fez o restante da caminhada. Lembro-me dos pirulitos, dos bicos de pão, dos desenhos que fazíamos riscando o chão da nossa casa. Lembro-me do primeiro dia na escola, do sarampo que o maltratou, dos cabelos cacheados que ele tinha e que eu mesmo cortava; até da velha bicicleta que ele parecia adorar, recordo, embora não a tenha guardado. Seus dentes de leite, eu os guardei em uma caixinha que ainda está comigo. Se isso tudo aconteceu ontem como pode esse menino me aparecer agora com um bisturi na mão atendendo àqueles enfermos todos? Quando ele nasceu eu o entreguei ao doutor Bezerra de Menezes: Tome-o doutor Bezerra! Ajude-me a criá-lo, foi o que disse. Sei que o senhor tem bastante trabalho, mas conseguirá um tempo para orientá-lo quando em vez. E o doutor Bezerra nunca o abandonou. Sinto falta das chuvas que não nos molharam, dos filmes que só depois dele crescido foram feitos, das cantigas de roda que nunca cantamos. Mas em meu coração fizemos todas as brincadeiras e traquinagens a que tínhamos direito. Pulamos muros,
  • 6. 6 roubamos frutas, nadamos em lagoas e subimos em árvores. Só nunca maltratamos passarinhos, porque os amamos. E ele foi crescendo com aquele jeito de poeta tímido, de herói escondido pelo blusão da humildade, de criança que adora livros, até que, de repente, me apareceu com aquele discurso digno de Neruda ou do meu velho amigo Manuel Bandeira. O tempo relampejara e tingira meus cabelos com alguma prata, e meu Espírito, envolvido com livros e reuniões não notara aquelas transformações. As imagens dos meus filhos, Victor Emmanuel e Lívia parecem ter coagulado no tempo da infância. É a maneira como gosto vê-los. Mas o tempo, esse devorador de imagens, foi substituindo as fotos antigas por outras belíssimas, de homem e mulher fortes, de pessoas generosas e responsáveis, de corações sensíveis e mãos operosas. Intimamente agradeci a Deus por jamais ter me enganado a respeito deles. Enganei-me com outras coisas, com eles, jamais. Quando eu era criança julgava que amigos eram aqueles que me ensinavam a matar aulas. Hoje sei que eram os futuros mendigos. Pensei também que os que pulavam cercas comigo eram salteadores. Com o tempo os reconheci como saltimbancos; mágicos que se tornavam invisíveis diante do dono da chácara. Imaginava que os homens que contavam vantagens entre um trago e outro no botequim do meu pai eram mentirosos. Eram poetas do cotidiano. Quando eu era criança ensinaram-me a ter medo de Deus. Que bobagem! Foi preciso descobrir que Ele era diferente do meu pai para começar a amá-lo. Ninguém me ensinou a arte de navegar corações. Aprendi isso escrevendo poemas e canções. Eles encontraram, cada um a seu modo, essa importante maneira de tratar a vida e às pessoas. O discurso do meu filho serve para qualquer médico, em qualquer lugar deste planeta tão belo e maltratado. Quem me dera que todos tivessem tal sensibilidade. “Éramos tão jovens tentando domar o futuro com nossos atos e um sonho nascia em nós, apontando os rumos da vida profissional, luzindo os caminhos da nossa existência. “Existirmos, a que será que se destina?” Hoje, diante da concretização desse sonho, sentimo-nos de volta ao começo. Mas ele ainda nos impulsiona a seguir em frente, pois se transformou em estrada, viagem em busca do horizonte das realizações. É preciso semear o sonho com as mãos no trabalho para germinar realidade. Assim transformamos a dor e a morte de muitos em esperança e vida, para que possam, igualmente, semear seus sonhos. Desse modo, ao longo de tantos outros anos, veremos que o horizonte-sonho nunca é alcançado, só se expande. Veremos que o sonho torna-se antigo, jamais velho.
  • 7. 7 Nossos sonhos se eternizam nos anseios de nossos irmãos, tornando-nos humanos, fazendo-nos instrumentos de perpetuação da segurança e da beleza da vida. Dessa forma, ao final desse ciclo terreno, a morte, o sonho nos levará de volta a um começo, por ter se tornado maior que nossa própria vida: a vida se vai, mas os frutos do trabalho, semeados por este sonho, permanecem para fazer a realidade que melhorará a vida de outros. Ainda somos tão jovens, porém lúcidos para entender que seremos eternos alunos da vida, aprendendo com ela para nos tornarmos professores de nós mesmos; arquitetos de sonhos; engenheiros do amanhã; médicos de nossos anseios; filósofos de nossa existência. Eis no que nos tornamos. Hoje, celebrando um final, comemoramos um recomeçar. Realizamos parte de um desejo que não é só nosso, mas de toda humanidade desde sempre, perpetuando-se num ciclo, como uma semente. Nossa alegria maior não é a de sermos médicos ou historiadores, mas de ser alguém que possa semear esperanças de um futuro melhor. Existirmos, a isso se destina nossa vida. Para extrair da vida o milagre do trabalho. Avante! Para isso existimos: para forjar através do trabalho o milagre da vida”. A obsessão em crianças Muitas pessoas se admiram diante do sofrimento das crianças. Perguntam-se entre dúvidas e lamentos por que Deus não espera que elas cresçam para então permitir que a Lei faça suas cobranças. Deus é misericórdia, mas é também justiça. É pai do agressor e do agredido. Em meio às tempestades coloca sempre abrigos para salvação. Encarnada ou desencarnada, uma criança é um Espírito velho, e quando não tem méritos, foi esta a conclusão a que cheguei através de muitas reuniões de desobsessão, pode ser apanhada por cruéis obsessores. O que sentimos, espíritas ou não, quando uma criança, cheirando cola, vem em nossa direção? Fugimos dela, mesmo que tenha apenas cinco anos de idade. Quantas crianças, sem nenhuma chance de defesa são assassinadas por abortos no Brasil? Quantas morrem de fome neste vasto mundo? Quantas são mutiladas e mortas em guerras engendradas por adultos? O que fazem com elas os pedófilos? De onde parte a maioria das agressões a elas senão da própria família que a abriga sob seu teto? Recentemente li um relatório da Confederação Internacional de Crédito Agrícola, dando conta de que se chega a gastar oitocentos bilhões de dólares em
  • 8. 8 armamentos por ano, em período de paz, enquanto trinta crianças morrem de fome, em apenas um minuto, no mundo; que milionários gastam milhões de dólares em tacos para jogar golfe enquanto a morte cava covas cada vez mais profundas. O mundo material gasta boa parte da sua violência em atormentar crianças. O mundo espiritual inferior, do qual a Terra é cópia aproximada deveria ser diferente? Claro que há casos e casos, e que em todos eles devemos observar atenuantes e agravantes, mas negar que crianças passam por obsessões, não há como. Mesmo os apóstolos, não foram carinhosos, afastando-as de Jesus, que interferiu a favor delas (Então lhe apresentaram uns meninos para que os tocasse; mas os discípulos ameaçavam os que lho apresentavam... Marcos, X: 13-16) Não mandou Herodes, segundo consta relato bíblico, matar todas as crianças inferiores a dois anos de idade? O mesmo não fazia os egípcios periodicamente, para que a população de escravos não se tornasse dispendiosa? Portanto, a agressão vem de longe e em todas elas há de se analisar imparcialmente o histórico, sobretudo, moral do Espírito agredido. Todavia, por conta de ser um Espírito velho e comprometido com a Lei, jamais se deve ficar impassível diante do sofrimento de quem quer que seja, principalmente, de uma criança. Jesus tinha especial carinho por elas (... E abraçando-os e pondo as mãos sobre elas, as abençoava). Mas voltemos às obsessões. Vejamos o comentário de Kardec em complemento à resposta 199 a de “O Livro dos Espíritos” relacionada ao destino das crianças depois da morte: Não é racional, aliás, considerar a infância como um estado normal de inocência. Não se vê crianças dotadas dos piores instintos em idade na qual a educação não pôde, ainda, exercer sua influência? Algumas não há que parecem trazer do berço a astúcia, a felonia, a perfídia, o instinto mesmo para o roubo e o homicídio, não obstante os bons exemplos dados pelos que com ela convivem? Vejamos o que nos diz André Luiz em seu livro “Evolução em dois mundos”, capítulo XV, vampirismo espiritual, psicografado por Chico Xavier: Parasitismo e reencarnação: Nas ocorrências dessa ordem, quando a decomposição da vestimenta carnal não basta para consumar o resgate preciso, vítima e verdugo se equiparam na mesma gama de sentimentos e pensamentos do além- túmulo, em dolorosos painéis infernais, até que a misericórdia divina, por seus agentes vigilantes, após estudo minucioso dos crimes cometidos, pesando atenuantes e agravantes, promove a reencarnação daquele espírito que, em primeiro lugar, mereça tal recurso. E, executado o projeto de retorno do beneficiário, a regressar do plano espiritual para o plano terrestre, sofre a mulher, indicada por seus débitos à gravidez respectiva, o assédio de forças obscuras que, em muitas ocasiões, se lhe implantam no vaso genésico por simbiontes que influenciam o feto em gestação, estabelecendo-se, desde essa hora inicial da nova existência, ligações fluídicas através dos tecidos do corpo em formação, pelas quais a entidade reencarnante, a partir da infância continua enlaçada ao companheiro ou aos companheiros menos felizes, que integram com ela toda uma equipe de almas culpadas em reajuste.
  • 9. 9 Desenvolve-se-lhe, então a meninice, cresce, reinstrui-se e retorna à juvenilidade das energias físicas, padecendo,porém, a influência constante dos assediantes, até que, frequentemente por intermédio de uniões conjugais, em que a provação emoldura amor, ou em circunstâncias difíceis do destino, lhes ofereça novo corpo na Terra, para que, como filhos de seu sangue e de seu coração lhes devolva em moeda de renúncia os bens que lhes deve, desde o passado próximo ou remoto. Acredito que a nossa admiração diante do fato de uma criança ser obsidiada deve-se às nossas idéias cristalizadas do passado, quando por ocasião da morte de uma delas dizíamos: É um anjinho! Não teve tempo para pecar! Vai direto para o céu! Mas a reencarnação não aprova tal raciocínio. Sabemos que havendo Espírito devedor da lei cujo ofendido não o tenha perdoado e um possível encontro entre ambos pode ocorrer obsessão; que não existe Espírito criança, mas Espírito com o corpo de criança, que pode ser, inclusive, mantido por ele nesta forma como opção de apresentar- se aos demais. Se a obsessão em criança é permita na condição de encarnada, quando o auxílio imediato por parte dos bons Espíritos depende de inúmeras variáveis, por que não o seria na condição de desencarnada quando depende apenas das decisões deles? Qual a razão? Dois pesos e duas medidas? Isso não ocorre entre mentores espirituais. Ou existe obsessão em "criança" ou não existe. Não tenho conhecimento de uma lei moral válida para encarnados e não válida para desencarnados. Fui tocado por imensa, emoção enquanto conversava com a mãe da garota, ao me lembrar daquele pai abraçado ao filho, ajoelhado diante de Jesus (sempre me enterneço com ele) rogando: Senhor! Tem compaixão do meu filho, que é lunático e padece muito; porque muitas vezes cai no fogo, e muitas na água. E tendo-o apresentado aos teus discípulos, eles não o puderam curar. O mínimo que posso fazer por Hortência é dar o máximo de mim na resolução desse drama. Foi o que prometi ao meu coração. Conversei demoradamente com Margarida, sua mãe, pessoa lúcida, espírita consciente. Enquanto conversava, a imagem de Maria, e a dor imensa que sofreu ao ver seu filho, Jesus, torturado, ensangüentado, olhos semimortos, mas cheios de esperança, não me saia da cabeça. Estaria aquela mãe, sentada a minha frente, preparada para enfrentar inimigos do passado com as armas da fé e da oração? Adiantando-se ao meu pensamento ela própria se propôs fazer o Evangelho no lar, trazer Hortência para tomar passes, fluidificar a água através de orações e trazer para a evangelização infantil, sua filha, logo que esta reconhecesse as primeiras letras. Ainda por muito tempo as crianças terrenas terão fantasmas a enfrentar. Em um planeta cuja maioria da população não tem respeito pelos passarinhos, regatos e flores, dificilmente a criança é amada como merece. Todavia, casos envolvendo criança são alvos de intenso cuidado por parte de nossos instrutores. Tibiriçá se empenharia ao máximo, já que não tolera qualquer desagrado feito às crianças. Tapuinha, a nossa médica-guerreira, muito menos.
  • 10. 10 Certamente meus amigos índios não poupariam esforços para livrar Hortência da ameaça que se instalara em sua vida. “Seu Flores” seria auxiliado por todos nós, jardineiros a serviço do Senhor dos mundos; rosas com mais espinhos que pétalas, mas na sua função de perfumar o ambiente com o suave aroma da caridade. Pensando assim dirigi-me ao abençoado salão de diálogos, ou seja, para a reunião de desobsessão. O passado recente de Hortência A história do Espírito que ora se chama Hortência é bem peculiar. Diria mesmo bem estranha, pois sua encarnação foi anunciada várias vezes, por mais de uma fonte. Margarida, a atual mãe, foi sua neta e pouco conviveu com ele. Dos diálogos que tive com ela transcrevo aqui alguns fragmentos, logicamente mudando nomes e datas a fim de manter o anonimato dos envolvidos. Tais informações são necessárias para que o leitor possa compreender o contexto no qual “Seu Flores”, atual Hortência, veio ao mundo dos encarnados na cidade cearense de Itapipoca no ano de 1908, desencarnando em Fortaleza 1988. Do envolvimento com mulheres: Durante sua vida se envolveu com várias mulheres casadas, pois tinha grande apetite sexual, inclusive, pegando algumas à força. Na mulher com quem casou gerou nove filhos, mas adultérios eram comuns em sua vida. Do seu jeito de ser: Era um comerciante totalmente analfabeto, pois nunca entrou em uma escola. Acredito que isso tenha contribuído para os arraigados preconceitos que nutriu durante a encarnação. Rejeitava negros, deficientes físicos e considerava a mulher uma criatura inferior, cuja função era apenas procriar. Não tolerava visitas porque, segundo ele, estas só serviam para lhe roubar a paz e se servirem do alimento que lhe pertencia. Eis alguns pensamentos seus: Não se deve ensinar negro a ler porque ele vai escrever indecências nas paredes; se você ensinar uma cunhã a ler, a primeira coisa que ela vai fazer é escrever uma carta para um caboclo, querendo se enroscar com ele. Sabendo que uma pessoa tinha má vida, se afastava dela sob o argumento de que era um cidadão, e assim sendo, não deveria se contaminar com a ralé. Na verdade era orgulhoso e preconceituoso. Sobre a missão de pai: Não foi um bom pai. Em uma discussão banal quis matar um dos filhos com uma foice. Este, se desvencilhando, foi embora e jamais voltou. De outra feita, sabendo que uma filha estava grávida de um deficiente, correu atrás dela para matá-la com uma faca. Quando a criança nasceu, também quis matá-la, por ser filho de um deficiente. Posteriormente, quando este filho já era adulto e ocupando um cargo de destaque, “Seu Flores” necessitou de seus préstimos para acelerar sua aposentadoria. Recorreu a ele e lhe disse: se você me ajudar eu o perdoou pelo fato de ser filho de deficiente.
  • 11. 11 Sobre seu desencarne: Sua saúde foi sendo minada por uma série de doenças, dentre as quais, câncer de próstata, cirurgias mal sucedidas de catarata e mal de Parkinson. Era viciado em álcool, cigarros e jogos de azar. Levou consigo muito ódio e desejo de vingança de pessoas estranhas e de familiares. Minha avó, inclusive, já lhe rogou muitas pragas, pois na última briga que teve com ele foi cuspida, amarada e violentada sob a mira de um revólver apontado para sua cabeça. Sua mágoa maior é porque acabara de ter saído de um aborto espontâneo. Sobre minha história: Minha mãe levou ao conhecimento de sua família que iria casar com um homem negro. Recebeu de cara do “Seu Flores” a seguinte advertência: prefiro vê-la morta por atropelamento e totalmente estraçalhada do que casada com um negro. Minha mãe partiu para outra e começou um relacionamento que não foi bem sucedido. Quando meu pai se foi deixou uma semente, está que lhe fala. Minha avó, prevendo represálias por parte do marido, “Seu Flores”, inventou que minha mãe estava grávida de um homem que havia sofrido um acidente e que agora era um inválido. Então ele me registrou como sua filha legítima, pois jamais aceitaria um inválido na família. Dessa maneira fiquei sendo filha e neta ao mesmo tempo Contaram-me que ele sempre me acolheu bem, desde o ventre da minha mãe. Fui crescendo e quando completei oito anos de idade ele desencarnou. A partir de então, sempre que ia passar por grandes dificuldades, sonhava com ele. Era como uma advertência para que eu me preparasse para enfrentá-la. Passei a sentir um amor inexplicável e um desejo arrebatador de ajudar meu avô a pagar as dívidas que ele contraiu. Quero que ele pague à Lei Divina, com amor, através do Evangelho de Jesus. Na minha família sempre me contaram várias versões sobre minha origem. Nenhuma que me fizesse feliz. Diziam que minha mãe era uma mulher promíscua e abortadeira, coisa que não acredito. Cresci com muitos problemas. Como tive formação religiosa no catolicismo era lá que tentava me livrar do desejo de por fim à minha vida. Hoje venci este impulso e melhorei meu comportamento rebelde, revoltado, infeliz, que me acompanhava desde a infância. Atualmente estudo a Doutrina Espírita e estou conseguindo mudar muita coisa em minha vida. Sobre a anunciação: Minha mãe trabalha em um Centro Espírita e lá um Espírito chamado José do Nascimento, o Dragão do Mar, dirigindo-se a ela no dia 9 de outubro de 1997 disse-lhe que seu “Flores” voltaria à carne como filho de sua neta. Segundo ele, o moço se arrependera profundamente ao constatar a extensão dos seus erros e pedira uma oportunidade, em caráter imediato, para reparar parte do mal que praticara. Essa informação foi confirmada no nosso evangelho no lar e em outras oportunidades. Acredito que era uma espécie de aviso para que nos preparássemos para recebê-lo. Sobre a gravidez e o nascimento de Hortência: Minha gravidez não foi das piores. Tive alguns cistos no ovário que me obrigaram a uma intervenção cirúrgica. Também tive descolamento de placenta. No mais, graças as minhas preces e a ajuda dos amigos espirituais ela nasceu bem. Margarida é uma pessoa consciente de suas responsabilidades. No momento participa de um curso básico de Espiritismo, embora demonstre conhecimentos além
  • 12. 12 dos que ora estuda. Acredito que esteja preparada para a tarefa que lhe confiaram: educar “Seu Flores” dentro da Doutrina Espírita para que ele comece a extensa subida em direção à luz divina. A lança do Centro Espírita Algumas pessoas consideram que unir as mãos em defesa de uma idéia significa atingir o final de um processo evolutivo no campo em que operam. Isso as faz bloquear o recanto mental que poderia lhes fazer avançar com ensinamentos novos. Tais pessoas rebaixam o Espírito a simples operário exposto a estagnação e pouco apreço dá a evolução, que exige constantes mudanças e rápidas passadas, naquilo em que se empenham. São, no dizer de Jesus, os que fazem o que deveriam fazer, e não o que poderiam fazer, pois avançariam velozmente se utilizassem o “motor de propulsão” desativado. Médiuns e doutrinadores de mãos unidas é alguma coisa; de almas unidas é tudo. Nelson Mandela, cansado de pedir e de explicar que os negros tinham direito à liberdade dentro do seu próprio país, sem jamais ser escutado, organizou um movimento armado a que chamou de “a lança da nação”. Algo semelhante, embora de maneira pacífica, aconteceu a Gandhi e Luther King que criaram a desobediência civil, e Steve Biko, mentor da consciência negra. Às vezes me parece que as pessoas precisam ser empurradas para fazer aquilo que necessitam ou que se comprometeram a fazer. Sem dúvidas isso promove um desgaste da energia que poderia ser utilizada dentro da própria atividade do Centro Espírita e é responsável por desistências e desagrados, melindres e futricas dentro do ambiente de trabalho espiritual. Sob o argumento de que precisam sobreviver, do qual se servem para justificar todos os atrasos, faltas e desistências, algumas pessoas levam o “desculpismo” para dentro de uma reunião mediúnica. Outras, mais desavisadas, chegam mesmo a encarar o trabalho voluntário como aquele no qual o trabalhador vai desempenhar sua tarefa no dia que quer e chegar na hora que lhe convém. Duas coisas parecem bem estranhas quando partem de pessoas que se dizem espíritas. Uma delas é o “desculpismo” diante da falta ou da negligência para com a oportunidade de serviço; a outra é o “achismo”, que consiste em emitir respostas inadequadas ou equivocadas devido ao personalismo ou a falta de estudo das questões doutrinárias, sejam elas científicas, filosóficas ou morais. Cabe ao doutrinador alertar a todos que o dueto “disciplina e caridade” é a senha de entrada e a regra utilizada nas relações do grupo, salvo em raríssimas exceções. Deve ouvir a desculpa do retardatário ou faltoso e lembrar-lhe de que Deus espera de todos nada menos que fidelidade no que foi acordado. Infelizmente, em qualquer Centro Espírita o doutrinador enfrenta o problema da falta de médiuns destinados aos trabalhos do dia. Este detalhe é responsável por boa parte do seu estresse e da ineficiência que ronda as portas da oficina em que trabalha.
  • 13. 13 Doutrinador com paciência curta precisa aprender a moderar sua vontade de chamar o faltoso e dizer-lhe sem meias palavras: Deus é o mais ocupado de todos e mesmo assim trabalha sem cessar, sem jamais faltar a um só compromisso. Ainda não consegui demonstrar serenidade diante da negligência ao trabalho espírita. Sempre fico ao lado de Tibiriçá nessas horas de avaliar a falta. Aprendi na cartilha dele que nem morto se falta a um compromisso. No caso dele, como já é desencarnado, ou seja, não desencarna em serviço, jamais faltou a um compromisso nesses quarenta anos de convívio. No meu caso, disse-me ele certa vez referindo-se a minha condição de encarnado, é deixar o corpo no caixão e comparecer ao trabalho. Como alguns médiuns haviam faltado à reunião por motivos variados, decidi escrever pequena mensagem para que fosse lida no início da primeira reunião dedicada a Hortência, a pequena flor do campo, como a chamei logo que soube de sua condição espiritual. Pensei no dueto, “disciplina e caridade” a lança do Centro Espírita, estiquei o arco e lancei minha seta para o mundo das idéias. É assim que sempre faço quando quero pescar palavras. Sem demora, como um bumerangue encantado, de algum lugar secreto, dos confins do dicionário de algum poeta, as palavras chegaram como um rio caudaloso e prateado. Invadiram minha mente como um raio de sol penetra uma vidraça colorida de biblioteca, deixando em minha pele um arrepio e na minha mente um rodopio. Capturei- te palavra! Se Deus quiser sempre estarás comigo, disse. E tive a sensação de escutar um sussurro vindo do mesmo mundo das idéias, para aonde havia atirado a seta: sou tua. Desse namoro com o infinito resultou o seguinte texto, que foi lido na primeira reunião de Hortência. Substituindo velhas frases Antes de dizer não, ao chamado do trabalho espírita com o qual se comprometeu, reflita sobre suas atividades cotidianas, à luz do sábio ditado popular: quando queremos, sempre arranjamos um jeito; quando não queremos, sempre encontramos uma desculpa. Portanto, no lugar de dizer: não tenho tempo, diga: priorizando tarefas sei que estarei lá. Ao invés de pensar: estou cheio de trabalho, diga: que bom que Deus me permitiu mais uma oportunidade de serviço. No lugar de dizer: tenho um aniversário para ir, diga: depois da minha tarefa irei abraçar o aniversariante. No lugar de dizer: o lazer me espera, diga: o fazer me chama Na tentação de argumentar: meu filho vem me visitar, diga: vou visitar os filhos do meu coração, na volta abraçarei o filho da minha alma. Se é dia das mães, Finados, Carnaval, Semana Santa ou similares, não diga: é feriado, não haverá trabalho. No lugar disso, reforce: Eu trabalho e meu Pai trabalha sem cessar.
  • 14. 14 Se está chovendo, não dê a desculpa à sua consciência de que não vai ao Centro porque não tem um guarda-chuva. Ela não aceitará este argumento a não ser que esteja ocorrendo uma inundação e você não tenha uma canoa. Antes diga a si próprio: mesmo sabendo que iria morrer dolorosamente Jesus compareceu diante dos algozes. Se um amigo o convidar para qualquer evento que o fará feliz, segundo o conceito mundano de felicidade, não diga a ele que o seguirá, mas agradeça-lhe o convite e explique-se: Tenho um compromisso inadiável com alguém mais importante que o governador. Se ele insistir em saber com quem você está comprometido, diga: com Jesus. Se os amigos organizaram uma festa em sua homenagem no dia de sua reunião mediúnica e exige sua presença, não diga: estou nessa! Seja fiel aos seus verdadeiros amigos, os espirituais, e responda com gentileza: Vou participar de um banquete neste mesmo horário. Se puderem esperar, comemoraremos juntos a alegria que este encontro nos causa. Mesmo que alguém muito amado lhe diga: Não vá! Você pode ser assaltado e morto. Responda: Se isso acontecer, já que estarei a caminho, comparecerei para trabalhar na condição de desencarnado. Seja qual for o motivo que o leve a se afastar da casa espírita, este deve ser seriamente avaliado. O espírita deve ir além do senso comum e ter a certeza de que ele é que precisa do Centro Espírita, pois este sobreviverá com a sua ausência. Além do mais deve estar convicto de que o local mais fácil de ser encontrado pelos bons Espíritos é no trabalho. Li a mensagem para os médiuns que a escutaram sem pronunciar uma única palavra. Mas a absorveram sem deixar escapar nenhuma delas. Em nossa casa espírita há regulamentos versando sobre faltas e condições exigidas para que um médium adentre uma reunião de desobsessão. No entanto, consideramos como mais eficientes os mandamentos que gravamos na mente e conservamos no coração por necessidade da consciência. Daí o esforço que fazemos em sempre levar mensagens que lembrem a obrigação moral de assumirmos com responsabilidade o trabalho com o qual nos comprometemos de livre vontade. Guias disciplinados e incentivadores que temos não nos permitem adormecer em área de trabalho. Dr. Mário Rocha, um dos nossos instrutores espirituais definiu há muito tempo, em parceria com Tibiriçá, o lema que deveríamos seguir: Compromisso assumido é compromisso cumprido. Gostei e me afinei com ele. Por isso o adotei como regulamento da minha consciência. A falange dos espedaçados
  • 15. 15 O ódio atua no perispírito como um ácido a danificar-lhe as engrenagens. Incompatível com a felicidade, ele é um ladrão da paz e um assassino da saúde, uma vez que é fábrica de tormentos, dentre os quais se destacam a ansiedade e a frustração. Quando alguém diz, odeio, diz também, sou infeliz, estou doente, perdi a fé, caminho para o abismo. É preciso muita paciência, compreensão e amor para lidar com quem odeia, pois este exige demais sem nada retribuir, a não ser decepções e desgosto. Somente Espíritos fortes acolhem e tratam os infectados por este mal, uma vez que têm a piedade como marca inconfundível das virtudes que já conquistaram. Os que perseguiam a pequena Hortência estavam todos doentes. E como afirmara Jesus ter vindo ao mundo por causa deles, ovelhas desgarradas, pois os sãos não necessitam de médicos, deveríamos fazer o melhor ao nosso alcance para amenizar- lhes as dores. É pensando em tal argumento que o doutrinador deve iniciar uma reunião sob seu comando. E foi assim que, advertido por uma médium de que já estava em serviço, encaminhei-me para ela ciente da presença de todos os amigos desencarnados que sempre estiveram comigo neste mundo de lutas. - Estou no quarto de Hortência. Tudo esta avermelhado pelo sangue. As paredes, o berço, o teto... Poderia jurar que estou em um abatedouro de animais, sem a mínima higiene. No interior do apartamento encontram-se espalhados bebês mutilados e ensangüentados. Isso está me dando náuseas. Eles se movem em estertores, fazem caretas de dor, fecham os punhos como se quisessem pegar o ódio com as mãos. Coisa tétrica. A pequena Hortência tem sono intranqüilo. Os bebês deformados parecem espreitá-la. Diria que eles agem de maneira planejada, ou seja, sabem muito bem o que fazem, e o fazem com a intenção de assombrar a menina. Vejo um negro muito forte e alto. Ele tem um chicote na mão e parece esperar que a pequena saia do corpo para atacá-la. Além do chicote porta outros instrumentos de flagelação, que embora rudimentares, são perigosos. Tibiriçá vai laçá-lo. Acho que vai ser uma briga feia, pois a caça é tão forte quanto o caçador. Se bem conheço nosso amigo, o oponente poderia ter até o dobro da sua altura que ele não desistiria. A rede cortou o vento e caiu em cheio por cima do africano. Ele se debate, tenta rasgá-la, ruge como um animal com os olhos fixos em Tibiriçá, mas está seguro. Vai ser encostado a mim para que você ouça, primeiramente, os insultos, depois quando ele cansar, os argumentos. - Covardes! Mesmo vendo o que ele fez, ainda ficam do lado dele? É o que se pode esperar de brancos matadores de negros. Quando sair daqui, acertaremos as contas segundo minha tabuada. - Não estamos em guerra contra você ou seu povo. Queremos que a criança cresça em paz a fim de pagar os débitos que fez à lei de Deus. Acredito que este seja também o seu desejo. O Espírito antigo, agora nesse corpo frágil, comprometeu-se a resgatar o passado doloroso. Mas como pagar se os credores se negam a receber? - Queremos que ele pague o que nos deve, mas com muita dor. Fez a nós, deve pagar a nós. Não nos interessa lei ou religião. Quando estávamos nas mãos dele nenhuma das duas fez nada por nós. Pois que não se meta agora que o temos na mira.
  • 16. 16 - Sei que está em posição desconfortável nessa rede, mas se me prometer discutir as ofensas cometidas contra você e seu povo, com calma, o libertaremos para uma conversa frente a frente, como vocês lutam com os leões nas savanas. - Nada de conversa com traidores. - Pode, pelos menos, me dizer quais os crimes que ele cometeu contra seu povo? - Contra o povo dele. O desgraçado é banto como nós. Era o chefe da nossa tribo. Cruel e sanguinário, matou e mutilou muitos de nós. A outros vendeu como escravos, destroçando suas famílias. Matava crianças sob o pretexto de que faltaria comida se a tribo aumentasse muito. Mutilava as mulheres cortando-lhes os seios para que não mais amamentassem as crianças e elas morressem à míngua. É esse miserável que vocês defendem. É esse o monstro que querem apadrinhar. - Não sabíamos da extensão dos crimes que ele cometeu. Mesmo assim insisto que a justiça divina, que é incorruptível, cuide dele. As crianças que a médium vê esquartejadas são apenas criações mentais ou Espíritos com idéias fixas no instante da morte? - O que você acha? Que estamos aqui para brincar de desenhar crianças esquartejadas? É uma falange de Espíritos que foi cortada pelo facão dele. Todas elas estão presentes para cobrar o que lhes devem. Sou o pai de uma delas. - Não quer mesmo conversar fora da rede, como dois amigos? - Não. Não tenho amigos traidores. - Lamento. Vou ficar com seu chicote e com os demais instrumentos. Permanecerá aqui como nosso hóspede para prolongarmos esta conversa quando estiver mais calmo. Preciso me ausentar para atender a uma amiga sua que acaba de ser capturada enquanto pulava pelas paredes. A médium havia confidenciado que uma mulher negra a observava como se estivesse pregada à parede. Capturada, encheu-nos de insultos por retirá-la de junto de Hortência. - Pensam que podem deter a minha mão armada? Estou de vigia e espreito cada movimento do assassino. O filho que ele me roubou vai lhe custar muito caro. O sangue do meu filho vai ser resgatado gota a gota. - A primeira preocupação de uma mãe deveria ser a de cuidar do seu filho. No entanto, não ouvi de seus lábios nenhuma pergunta com relação a ele. - Como posso falar de amor a um filho esquartejado? Não acredito mais no amor, mas na força e na guerra. No meu coração não há espaço para outra coisa que não seja ódio. Ele é a energia que me movimenta por essas paredes. O trabalho de me prender em grades é inútil, pois ninguém consegue arrancá-lo de dentro de mim. Onde estiver, permanecerei direcionando o mal e a ruína para o desgraçado que cobriu de dor o meu povo. - Como ele matou seu filho? - Arrancando-o de dentro de mim e dividindo-o a facão. Ele é o demônio que habitou entre os bantos. Representa o mal, a covardia, a destruição, a força das trevas descida sobre o povo negro. Nenhum branco nos fez tanto mal quanto ele. - Sinto pelo seu filho e entendo o seu ódio, embora não pactue com ele. Gostaria de ajudá-la, mas no momento não sei como. Tudo quanto tenho e posso oferecer são
  • 17. 17 nossos médicos, nossos abrigos, nossa amizade. Se quiser permanecer entre nós para que encontremos um meio de ajudar seu povo, sinta-se à vontade. - Na condição de prisioneira? Tudo que os brancos nos têm ofertado são prisões e miséria. Pilharam nossas aldeias, fizeram nossos filhos escravos, dividiram nosso povo, pois irmãos combatiam irmãos incentivados por eles. Nem mortos somos livres, pois o ódio nos aprisiona. Serei livre quando matar o corpo que se forma e capturar o Espírito que me deve. Essa é a minha convicção. Não pense que somos poucos ou frágeis. Somos muitos e firmes. A selva tem sua lei. Agora somos os leões e ele o filhote de gazela. - Julgo que irredutível como se encontra, nossa conversa não será conclusiva. Ficará um tempo conosco para que a criança respire melhor. Quando estiver pronta para um mergulho no passado, lugar da verdadeira causa dessa chacina, voltaremos a conversar. Até lá ficará conosco e será bem tratada. As primeiras conversas com Espíritos endurecidos exigem complementos. Eles estão raivosos, enfurecidos por estarem tolhidos, se julgando vítimas, pois as causas passadas, ou seja, seus próprios equívocos, gênese da agressão que sofreram, estão sepultados pelo esquecimento. Não é hora de levá-los a uma regressão, pois ainda não estão preparados para um mergulho no passado. É preciso deixá-los perceber outras janelas abertas cujo painel mostrado não seja o ódio. Isolados, ouvindo músicas suaves, conversando com psicólogos, sendo visitados por quem realmente se interessa pelos seus destinos, fora do ciclo de ódio que os alimentavam, aos poucos entram no clima da reflexão. É então que são levados novamente à reunião de desobsessão. Às vezes tudo se resolve em trabalhos durante o sono físico dos médiuns, no plano espiritual, onde as reuniões têm continuidade. Nesses casos, como estes não se lembram dos trabalhos realizados, tudo se passa como se aquele personagem que não mais retorna houvesse sumido sem deixar pistas. No clima bélico instalado pelas entidades capturadas, voltei-me para um grito de afronta de mais uma médium. - A criança vai morrer! - E quem decretou a sentença de morte? - Eu! Não adianta tratamento médico, espiritual, psíquico, neurológico, nada! O salário do assassino é a morte. Ela está condenada! Vai morrer seca, assustada, gritando. Vai ter a pior morte! Ela não sobreviverá dois meses! - Foi o tempo que ele gastou em torturá-lo? - Não! O facão dele era rápido. Digo mais! A Mãe dele vai ficar arrasada! Vai ter que arrastar a dor da perda e do remorso. - Qual o grau de envolvimento da atual mãe nesse drama? - Até os cabelos. Era mulher dele. Quando tinha ciúme das negrinhas jovens e bonitas, mandava decepar os seios, arrancar os dentes, riscar o rosto para torná-la feia. Hoje ela se faz de inocente, mas de inocente não tem nada. - Sua tribo era grande? - Muito grande. Ela também entregava negras para serem escravizadas. Era tão ruim que até os da família dela, vendia como escrava.
  • 18. 18 - Lembra do nome dele? - Só posso dizer que ele faz parte da história. Tenho que respeitar o sigilo. - De onde partiu a ordem para ocultar o nome dele? - Existe algo superior que nos adverte para não revelá-lo. Temos que obedecer. Faz parte do contexto histórico. Não podemos ignorar essa ordem. O Leitor poderá se perguntar por que negros com idéias cristalizadas na vingança, alguns analfabetos, expressam suas idéias tão corretamente. Neste caso os médiuns traduzem o pensamento do comunicante, utilizando-se para isso, de suas próprias palavras, o que não caracteriza uma alteração ou mistificação. - Qual o mal que ele lhe fez? Foi vendido, decepado? - Fui vendido e vim parar no Brasil. Sou um jovem. Desembarquei aqui com minhas irmãs. Trabalhei em engenho de cana-de-açúcar. - Foi bem tratado pelo seu dono? - Sim. Não cheguei a apanhar nem fui para o tronco, mas morri escravo, sem alcançar a liberdade, que era meu grande sonho. - Ficou gostando do Brasil? - Sim. Ainda sinto o cheiro do mel da cana. Ás vezes visito engenhos que teimam em sobreviver. Nessas ocasiões parece que fico mais leve. Ajudo meus irmãos nessa vingança por ter visto tudo aquilo. Por desaprovar a conduta dele. Digamos que estou na luta por solidariedade. - Ninguém se importa ao vê-lo na pele de uma criança indefesa? - A maioria não liga para este fato, pois sabe que ali está um assassino. Quando o olhamos de frente vemos o rosto dele e não a inocência de uma criança. - Vocês têm acesso a ele? - Total. Quando ele sai do corpo sua aparência é a do assassino. Nessas ocasiões o torturamos e o corpo da criança estremece. Procuramos castigá-lo ao máximo em pouco tempo porque sabemos que ele vai correr e se refugiar no corpo. Batemos, maltratamos e vampirizamos, sem nos saciar. - Não há nessas ocasiões um só Espírito que o defenda? - Há. Uma matriarca. Uma espécie de madrinha que parece compadecida com o seu drama. Quando ela ora, respeitamos. A prece o alivia, mas ela não pode ficar o tempo todo com ele. - Qual o efeito que a prece produz em você. - Respeito. Fico receoso. Fico tocado e digo para mim mesmo para parar um pouco. - Você acredita em Deus? - Eu acredito. Mas a maioria dos meus irmãos está descrente devido ao que passou. - E o que sua consciência, que é a voz de Deus dentro de você, lhe adverte quando você o tortura? - Procuro não pensar nisso para não me fragilizar e desistir. Lembro mais dos meus irmãos ofendidos e esse pensamento me fortalece. Não sou de todo ignorante. Tive chance de estudar um pouco e sei que serei cobrado pelo que estou fazendo. Mas
  • 19. 19 sei que ele também merece isso. A justiça de Deus é lenta e queremos uma coisa mais imediata. - Vocês são muitos? - Sim. O equivalente a uma população de dez senzalas. - Gostaria de ficar conosco para prolongarmos esta conversa? Interesso-me bastante por este período da história, e como você a viveu, muito teria a me ensinar. - Se na condição de convidado, sim. Posso explicar-lhe a saga do meu povo. Nunca se sabe o que está na mente ou no coração de um comunicante. O doutrinador deve acolher a todos, confiante, mas com aquela reserva de vigilância aconselhada pela prudência. É comum durante um diálogo a calma se exasperar e o destempero se acalmar. O coração da maioria dos obsessores tem cofres e armadilhas. Nos primeiros, estão guardadas as fagulhas de bondade, pois ninguém é de todo mau. Nas segundas, todo sentimento negativo que ainda não conseguiram alijar. Daí o cuidado e o tato psicológico que o doutrinador deve empregar, sempre deixando claro que qualquer movimento em favor da reconciliação entre os litigantes terá apoio integral da equipe que o auxilia. As primeiras reuniões que visam à solução de casos complexos de obsessão são sempre movimentadas e com forte traço de agressividade. Hortência estava sob fogo cerrado e era preciso desocupar, ou pelo menos aliviar, o espaço onde tentava sobreviver, pois estava infestado de crianças deformadas. Tibiriçá, cuja função é capturar agressores e zombeteiros da lei, geralmente pede ajuda a outros Espíritos, que o atendem devido ao respeito que conquistou entre eles, quando precisa enfrentar a magia negra. Desta feita, uma mulher exótica, com voz metálica e afeita a dar ordens, estava com ele. Ambos seguiram com a médium até o quarto da pequena Hortência, iniciando-se o trabalho com a descrição da médium. - Aqui estou com Tibiriçá e uma senhora muito valente que não quis se identificar. Todavia sei que ela é uma entidade da umbanda. Ela olha o cenário sem demonstrar medo ou admiração, com se estivesse acostumada a espetáculos dantescos como o que vemos. São dezenas de Espíritos na forma de crianças recém-nascidas, todas mutiladas, faltando pedaços, ensangüentadas, mostrando carantonhas horríveis. Há sangue por toda parte. A mulher, que tem aspecto de guerreira, vasculha o ambiente com seu olhar felino e se detém na figura de uma negra que apresenta cerca de cinqüenta anos de idade e tem uma espécie de bacia de barro na mão. No interior da bacia há seios cortados, muitos dele. Meu Deus! Agora entendo as dores que sinto nos seios desde ontem. Já marquei, inclusive, uma consulta médica para avaliar este problema. De alguma maneira, devo estar ligada desde ontem a esta entidade. A bacia está encharcada de sangue bem como as vestimentas da senhora negra. A guerreira se dirige para ela com as mãos fechadas, como se fosse agredi-la e a segura pela gola. - Que está tentando fazer sua imbecil. Até mesmo entre os maus uma criança deve ser respeitada. Se lhe restou algum juízo depois que foi torturada, desfaça já esse trabalho sujo. Aprenda a esperar a ordem natural das coisas. Pensa que pode ser mais do que Deus?
  • 20. 20 - E quem foi que disse que tenho medo de você, sua arrogante. Para nós Deus não existe, pois nos abandonou à própria sorte. Isso aqui é Quimbanda! É dessa maneira que resolvemos nossos problemas. Se tem coragem para me enfrentar entre na roda; se não tem, corra depressa antes que a panela ferva. - Aqui estou para impedir que você desça mais fundo do que já conseguiu. Não queira medir forças comigo, pois não tem energia para isso. Põe fogo nessa bacia ou eu mesmo te obrigo a deixá-la em pedaços. - Quem você pensa que é para atrapalhar o meu serviço, sua vadia? Se quer provar do meu veneno se achegue. - Olha bem para o meu rosto para que o respeite quando nos encontrarmos novamente. Por agora beija o chão e obedece! Dizendo isso, a estranha derrubou a africana e a obrigou a vomitar tudo quanto tinha ingerido e a incendiar o conteúdo da bacia. Em seguida a entregou a Tibiriçá que ficou responsável por sua segurança. E voltando-se para mim (a médium) explicou-me o que ocorria naquele quarto macabro. - Aqui não tem nenhuma criança. Esses Espíritos se mantêm assim por vontade própria. Foram crianças, quando assassinadas na África, mas conscientemente optaram por permanecer com essa forma para assustar seus algozes. Isso é coisa pensada. É um pacto de sangue, coisa difícil de quebrar. Se quiserem podem, com o auxílio dos técnicos, retornarem a forma humana adulta, mas enlouquecidos de ódio, se aproveitam de suas cristalizações para induzir seus antigos pais a persistirem na vingança. É filho alimentado pai com a energia do ódio. Foi esse trabalho que fez secar os seios de Margarida? Perguntei a africana que se queixava de estar cega e sem seus instrumentos de trabalho. - Aquilo foi apenas um pequeno efeito. Ele vai pagar por todos os seios que decepou. Você não sabe o que é ter um filho arrancado de suas entranhas e vê-lo cortado a facão. Você sabe por que ele decepava seios? Por não gostava de seios fartos. Maldito! - O que ele era? Dono de harém, chefe de tribo? - Assassino! Este é o seu nome e o seu título. Era o chefe da nossa tribo. Somos bantos. Na condição de chefe que deveria servir ao povo, o maltratava, matava, vendia como escravo. - Por que ele matava crianças? - Instinto assassino. Dizia que haveria fome com muitas bocas para comer. Mas era pura maldade. Canalha! Imundo! Todos éramos escravas dele. Muitas das minhas irmãs chegaram aqui em navios, famintas, doentes, sujas como animais. Foram vendidas, humilhadas, separadas da família, e passaram a vida a limpar o chão dos brancos. Se um branco as quisesse como objeto sexual bastava tomar a força. Se negassem iam para o tronco. Sou escolada na história do meu povo. Por isso meu ódio é maior. - Parabenizo pelos seus conhecimentos e sou solidário na sua dor, não no seu ódio. Desde já me coloco à disposição para auxiliar na busca pelo seu filho. Deve ser um grande guerreiro hoje.
  • 21. 21 - Não! Não quero dever nenhum favor a você nem a branco nenhum. - Está enxergando melhor? ( A mulher se queixava de dor os olhos). - Um pouco. - Deixe-me melhorar sua visão. - O que vai pedir em troca? Se é para não odiar àquele assassino perde seu tempo. Hei de odiá-lo até o fim dos meus dias. - Julga que seu ódio é justo porque lhe faltam dados para entendê-lo. - Nada é compreensível. Como pode alguém prejudicar a tantas pessoas e ter proteção?Como pode o demônio ficar impune pelas maldades que praticou? Eu odeio o mundo, a Deus, aos homens, a tudo. Só existe o mal, as trevas, o demônio que encarnou nele. - E se eu lhe mostrar nessa tela, fatos que a convençam de que Deus existe? - Não vai me convencer porque eu só conheço a tortura, o sangue, a dor. Agora vocês vão me prender feito um bicho. Vão me engaiolar e defender a ele. São hipócritas como ele. - Olhe para mim. Veja meu rosto. Ainda vamos conversar sobre a justiça divina. Virei durante o sono para conversarmos mais demoradamente. - Você não entende mesmo, não é?Eu só vejo sangue. Tudo que eu vejo tem a cor vermelha. Que me interessa o seu rosto? Quero atitudes. Se quer ser meu amigo tome partido e me defenda. Se não pretende auxiliar-me nessas condições, desista. - Somos teimosos quando se trata de ajudar nossos amigos. - A julgar pelos choques e maus tratos que recebi, sua amizade não é grande coisa. Se tivesse visto uma filha pequena ser estuprada e morta não esqueceria facilmente a cena e perseguiria o assassino até os confins do inferno. Estou prisioneira e você se diz amigo. De que lado você está? - De Deus - Houve um tempo em que pensei que ele existisse. Hoje não mais acredito nele. Certamente é uma invenção para nos fragilizar e dominar com mais facilidade. Hoje acredito na força. - Quer um calmante para dormir um pouco? Acredito que esteja cansada e necessitada de repouso. - Não! - Precisa descansar. O ódio deixa qualquer pessoa exausta. Quer ver paisagens com sua filha? - Não! - Não se interessa mais por ela? Dizem que é uma jovem muito bonita. - Enquanto estiver saturada de ódio prefiro não vê-la. Quando tiver depositado todo ele no coração daquele assassino a buscarei. - Teme que ela desaprove o que você faz? - Não é isso. Sei que mentem quando falam dela. - Baseio-me no fato de que toda mãe reconhece seu filho. Se mostrarmos uma imagem dela seu amor a registrará de imediato como verdadeira. - Chega! Arranje outra maneira para me torturar. Essa é dolorosa demais.
  • 22. 22 - Julguei que falar de uma filha para sua mãe, trazendo-lhe boas notícias, fosse motivo de refrigério para sua alma. - Não! Não quero! Quero primeiro matá-lo. Ai! Meu coração. Deve estar doendo muito. Dizem que o ódio vai obstruindo todas as veias e artérias e acaba por enfermar seriamente este generoso órgão. Deixe que nossos médicos a examinem. - Não! Vai passar logo! - Há quanto tempo não passa? - Jamais deixou de doer desde que me cortaram os seios e mataram minha filha - Então por que tenta enganar a si mesma? - A dor está aumentando agora... - Estamos em uma emergência médica. Nesses casos o paciente não tem vontade própria. Vou lhe ministrar um calmante para que possa dormir. Quando acordar estará sob os cuidados de nossos médicos. Depois voltaremos a falar sobre sua filha. A mulher foi adormecendo aos poucos, inclinando a cabeça sobre a mesa até que, colocada em maca seguiu para atendimento médico. A desconhecida saiu de cena e Tapuinha, uma índia que nos auxilia nos dramas onde a quimbanda predomina como arma ofensiva, veio em nosso auxilio. Eis como a médium continua a descrição do ocorrido - Entre os que estão deformados existem alguns que apresentam brechas mentais através das quais podemos penetrar e quebrar os vínculos que os prendem ao passado. É o que vamos fazer agora. Pareço adentrar uma espécie de túnel, segura pela mão de Tapuinha. Não sei exatamente o que devo fazer, mas ela diz que servirei com intermediária, para os Espíritos que se apresentam cansados dessa luta inglória e podem sair do cenário com a nossa ajuda. Em caso de comunicação não haverá diálogo, pois emitirei apenas palavras desconexas, servindo o intercâmbio como um choque anímico para despertá-los das cenas coaguladas na mente. Noto que não estamos sozinhos. Existem Espíritos luminosos, médicos da equipe do doutor Bezerra participando desse trabalho. Eles recolhem as crianças como se fossem filhos e partem com eles deixando apenas os mais endurecidos para resgates posteriores. Por parte da médium ouvimos apenas gritos e urros, gemidos e lamentos, até que se aquietou e adormeceu. Sem demora outra médium já entrava em cena. - Veja meus dedos cortados! Aqui estou para mostrar o que ele fez comigo. Vocês estão sendo injustos tomando o partido de um assassino. - Por que um chefe de tribo cortaria os dedos de um dos seus guerreiros? - Por que ambicionava sua mulher. Eu tinha um amor; acreditava nele, gostava de viver nos campos da minha terra. Era um jovem de apenas dezoito anos quando ele cobiçou a minha mulher. Aprisionou-me e apoderou-se dela, estuprando-a na minha presença. Como me revoltei e o insultei ele mandou primeiro cortar-me os dedos e depois me matou. - Por que veio até nós?
  • 23. 23 - Para dar testemunho da maldade dele. Aqui está uma prova de que ele é um assassino, portanto, não existem razões para protegê-lo, a não ser que também sejam assassinos. - Não estamos em um tribunal. Isso aqui é uma emergência médica. Deixe-me ver seus dedos, pois conheço uma técnica para restaurá-los. Como era um Espírito ainda muito ligado a eventos materiais, molhei minhas mãos e modelei cada ponta do seu dedo, induzindo-o a lembrar como eram suas mãos antes do incidente. Quando terminei o que chamei de tratamento, disse-lhe: verifique por você mesmo como tudo está perfeito. Ele olhou demoradamente para as mãos e respondeu: parece que sim. Parece não é bem a palavra. Quero que você teste se seus dedos estão regenerados escrevendo seu nome nesta folha. Insisti, dando-lhe uma folha em branco e um lápis. Ele escreveu em letras graúdas: Naibo - Quer que consertemos sua cabeça? - Não! Certamente vão me pedir em troca que eu não mais o persiga. E isso eu não farei. Não quero dever favores a vocês. - Não nos deve nada. Tudo de bom que conseguimos realizar vem de Deus. Utilize bem seus dedos para que não lhe suceda algo pior. - Tenho bons planos para eles. Ainda vai ouvir falar de mim. - Queira Deus que seja para alegrar-nos sabendo-o feliz e em bom caminho. Assim terminamos aquela agitada semana na qual nossas reuniões foram reservadas para Hortência. Deus, em sua infinita bondade, nos enviara aquele chefe de tribo para que o ajudássemos entre os espinheiros que ele semeara. Sempre fico feliz quando tenho trabalho. É uma felicidade difícil de explicar, mas, igualmente, difícil de largar. As avós quimbandeiras A situação da pequena Hortência era muito complicada. A falange de Espíritos que se mantinham com a forma infantil, ensangüentada, atraía muitos Espíritos interessados no sangue e nas energias desprendidas pelo ódio, material utilizado em práticas de magia negra. O quarto da pequena era um caos que a todo custo era amenizado pela atuação dos pretos velhos e dos nossos instrutores, que tudo faziam para torná-lo habitável. Aos poucos eram retirados do local, aqueles que ofereciam condições de resgate, os penetras, os contratados, os atraídos pelo cheiro do sangue, para então, tratarmos dos enfermos e dos alucinados pelo ódio. Ali este sentimento era palpável. Os médiuns em desdobramento sentiam sua pressão em forma de atmosfera sufocante, perturbadora, que provocava náuseas, dores de cabeça, tremores, sendo-lhes necessário muito equilíbrio para desempenharem as funções e as tarefas que lhes eram destinadas. Diziam que penetrar na casa de Hortência era como mergulhar em uma piscina lamacenta na qual sentiam asfixia e sensação de estresse muito grande. Mas ao
  • 24. 24 trabalhador espírita não cabe escolher tarefa. Se é para cavar ele cava: se é para voar ele voa. Foi assim que nos foi ensinado e é assim que agimos. Portanto, mais uma vez entramos na casa da pequena para auxiliá-la. - Estamos aqui, Eu, Tibiriçá e seus ajudantes, para capturarmos agressores da pequena Hortência. Nosso objetivo, explica o chefe dos milicianos, é capturar e retirar do recinto algumas senhoras que trabalham com quimbanda. Os índios já se encontram com uma delas que se debate e os agride com palavrões pronunciados em seu idioma nativo. Vão encostá-la a mim para que você converse com ela. Espero segurar sua fúria, pois ela se debate muito, cuspindo a todos. - Não vou sair daqui, coisa nenhuma! A escuridão já se abateu sobre este teto e a morte em breve virá buscar o assassino. Ninguém vai me impedir de concluir o que iniciei. Estou irada com vocês. Tenho que matar o desgraçado! Qualquer interferência terá toda a ira das avós da quimbanda. - São realmente avós das crianças que ele matou? - Somos. Todas as que aqui se encontram tiveram netos e netas mortos por ele. Unimos nossas forças para mandá-lo de volta ao inferno onde estava antes de nascer. Não nos interessa se ele se arrependeu. Arrependimento tarde é chuva fora de época que não é útil para a lavoura. Queremos a pele dele pendurada na ponta da lança dos nossos guerreiros e queimada pelas nossas ervas. - Sei que foram maltratadas e que estão sofridas por seus netos. Mas nosso plano é ampará-los e encaminhá-los a novos renascimentos. Queremos retirá-los dessa forma infantil e deformada, torná-los homens feitos, guerreiros fortes, e enviá-los a terras ricas em caça e pesca. - Não perca seu tempo em fantasias. No momento só a bruxaria deve comandar as ações por aqui. - O que faz com ela? Que material utiliza? - Sangue! A matéria prima da nossa magia é o sangue. - E onde o consegue? - Cravo minhas unhas na garganta dele e tiro, tiro, tiro! Ele se apavora! Chora! Ele vai morrer pouco a pouco, como aconteceu conosco. Morremos por dentro. Secamos pela falta de nossos netos e pelo ódio que os substituiu. - O que faz com o sangue? - Misturo com o das crianças. Risco no chão a morte dele. Invoco os demônios para que o levem. - Que desenho tem a morte? - O pavor! A dor! A sensação de assombro eterno. A comunicante, ao dizer isso, começou a bater sobre a mesa dizendo: vou matá- lo! Vou Matá-lo! - Não bata na mesa. Coloquei pregos aí e não quero que se fira. Como era sua neta? Alguns Espíritos, ainda muito apegadas à matéria, sentem a dor da perfuração quando teimam em continuar batendo na mesa.
  • 25. 25 - Para uma avó, toda neta é perfeita. Mas ele não matou somente meninas da tribo dele. Eu pertencia a uma tribo vizinha, e ele em sua ânsia de dominação, nos invadiu. Levava nossos guerreiros para vender, roubava nossas cabras, nossas peles e nossas mulheres para acasalar. Crianças ele matava. - Naquela época já entendia de magia negra? - Desde criança que lido com isso. Crianças aprendem com as avós. É uma espécie de tradição na tribo. É a nossa religião. Se não temos inimigos usamos nossa magia de ervas para curar doenças. Se os temos para atormentá-los. - Lembra do nome dele? - Damiano. O rei do inferno! Estou muito cansada. Preciso retornar para meu posto. - Ainda não. Poderá passar o restante da noite aqui e descansar. Amanhã retomaremos esta conversa. Como esta com muito sono, sugiro que deite nesta maca. Ninguém lhe fará nenhum mal. Mas não somente uma médium havia sido desdobrada até a casa de Hortência. - Confirmo que o clima aqui é fumarento. O ar esta infestado pela atuação de quimbandeiros e de aproveitadores que terão que ser removidos. A tragédia das crianças deformadas e ensangüentadas é como um imã a atrair viciados em sangue. Que coisa! Por que tanto Espírito gosta disso? Tibiriçá diz que não é ocasião para perguntas. Que devo me ater ao trabalho, que no momento, requer o máximo de atenção. Ele me mostra um Espírito que em nada se diferencia de um sapo. É enorme e está se alimentando de uma espécie de gosma que se forma no ambiente como resultado do caos que aqui impera. Ele pula como um sapo. Sua língua alcança certa distância e se gruda à gosma que lhe falei. Seu alvo no momento são os fluidos da menina e da mãe dela. Devo registrar que é a primeira vez que vejo um cenário assim. Ele está bufando, agora que me viu! É do tipo raivoso, adverte Tibiriçá. Sem se deter para explicações o chefe dos lanceiros eleva sua lança e a atira. A cena é tão rápida que quando vi a lança novamente, ela estava cravada no pescoço do sapo. Ele está rodopiando sob os olhares atônitos de alguns aproveitadores, que se dispersam temerosos. Tibiriçá e os guerreiros invadem a área e lançam uma grande rede sobre ele. Espero que.... Não! Mas é justamente isso que vão fazer! Vão encostá-lo em mim para que você o escute. A médium começou a tremer e a dar sinais de engasgo, que na verdade eram tentativas do Espírito dizer o quanto estava odiando aquela situação. Tentando levantar- se e reagir, urrava, gemia, colocava sua longa língua para fora a fim de nos atingir com sua gosma. Finalmente consegui dizer - Vou cuspir em você, seu imbecil. Meu veneno vai deixar sua pele em frangalhos. - Há um campo entre nós que impede qualquer contato. A cada vez que se debate a lança penetra mais fundo. Para seu próprio bem é melhor acalmar-se e esperar que os técnicos a retirem. - Marquei seu rosto. Você vai morrer.
  • 26. 26 - Vou morrer quando minha hora for determinada por Deus. Enquanto ela não chega continuarei fazendo meu trabalho. Vou injetar este liquido em seu braço para que se acalme. É um calmante muito forte que o fará dormir. A sugestão funcionou, mesmo porque eu havia pressionado o braço da médium no local onde, geralmente, se toma injeção na veia, para que o comunicante, sentindo o efeito da pressão a interpretasse como a introdução de uma agulha em seu corpo. Sem demora ele tombou sobre a mesa. Mas já outro visitante exigia minha presença com nervosas gargalhadas. - Que engraçados! Pensam que é com meia dúzia de palavras que vão dominar a mim e a quem está lá? É muito difícil! Não é assim que se esfola um gato não, amigo. - Se vem de lá, poderia dizer-me em que tipo de trabalho se empenhava, quando foi capturado? - Sou uma espécie de ajudante de equipe. Como não tenho especialização em magia negra nem em hipnotismo, fico fazendo mandados. Mas o senhor sabe que todo cargo é importante. Sem a ação dos pequenos os grandes param. - Tem certa razão. Mas não estou entendendo as gargalhadas. Estamos diante de uma tragédia e você rindo como se estivesse de braços com a felicidade. - É isso! Estou feliz! Tudo está se encaminhando como o combinado. Suas palavras no meio daquele vendaval não vão produzir efeito nenhum. - Perdeu algum filho para ele? - É claro! Quem ali no meio daquele matadouro não perdeu? - Quantos? - Não quero lembrar isso! - Quantos? - Já disse que não quero me lembrar desse fato. Ele me fragiliza toda vez que o recordo. Fui trazido à sua frente para uma conversa de homem para homem e não para que você falasse da minha antiga família. - Antiga? Quer dizer que já a descartou? Que já não se interessa por ela? - Não distorça o que eu disse. O que quero é evitar que essa conversa me amoleça. - E amolecendo irá dar prioridade á busca de seus filhos? É disso que tem medo? De encontrá-los e abraçá-los? - Diabo de homem teimoso! Eu tinha duas filhas. - Por que só fala no passado? Não seria melhor dizer: tenho duas filhas? - Você está sendo inconveniente. É melhor me liberar antes que nos tornemos inimigos. - Talvez tenha razão. Acho que não é a pessoa que me disseram para ajudar a encontrar as filhas. Deve ter havido algum engano. Com quem deveria conversar, disseram, amava demais as filhas e jamais trocaria o amor delas por futricas. - Ninguém lhe disse nada. É apenas um mentiroso tentando se aproveitar de um pai desesperado. - Desesperado para que? Para voltar à casa da criança e enchê-la de sopapos? - Ela não é uma criança. É um assassino. Por que não entendem isso? É um assassino escondido no corpo de um bebê, mas é um assassino.
  • 27. 27 - Quando vejo uma criança, logo me lembro dos meus filhos quando tinham aquela idade. Crianças são frágeis e dependentes. É preciso ser muito covarde para agredir alguém tão indefeso. - Pois era isso que ele fazia. Preciso voltar para lá. Se o matarmos acabaremos com o drama daqueles bebês esquartejados. - Isso não é verdade. O motivo que os mantêm esquartejados é o ódio e o desejo de vingança. O esquecimento das ofensas logo abriria margem para que nossos médicos curassem a todos. Mesmo que o matem, o ódio continuará em seus corações e o buscarão no além-túmulo para torturá-lo. Acho que já viveu o bastante para saber que esse tipo de ódio só se desfaz com o perdão. Talvez seja melhor enviá-lo a outro dialogista. Não é mesmo o homem que disseram que me procuraria. - Quem lhe disse isso? - Meu instrutor. Disse que um homem com saudades das filhas me buscaria. Que o atendesse com boa vontade e dissesse que sabemos onde elas estão. - Por que mente em caso tão importante? Pelo amor de Deus, não me tire daquela casa. - Agora deu provas de que é a pessoa certa! Quando pronunciou a palavra, “Deus”, entendi que ainda há amor em você. Ainda acredita Nele? - Eu sempre acreditei em Deus. Mas ele foi muito injusto comigo. Deixou que matassem minhas filhas. - Deus é justo por excelência. Nosso entendimento é que é curto para alcançá-lo. Aceita ficar conosco para terminarmos esta conversa logo mais quando eu for dormir? Temos as explicações corretas e nossos instrutores saberão como encontrar suas filhas. - E ele?Ficará impune? - Quem com o ferro fere com o ferro será ferido. Essa é a lei da vida. Responderá por cada crime cometido contra crianças; pelo desrespeito aos idosos; pela agressão às mulheres e a quem quer que tenha ofendido. Qualquer Espírito está submetido a essa lei. - Sabem mesmo onde minhas filhas se encontram? - Sabemos. Aguarde junto aos guerreiros de Tibiriçá. Ele o atenderá quando a reunião terminar. Apressei-me, pois outra médium, com ânsia de vômitos há alguns minutos, me buscava. - Que está sentindo? - Aquela casa é maldita. Disseram-me para passar por lá que a farra estava boa. Boa, coisa nenhuma! Informaram que tinha sangue, energia de angústia, de ódio, esses petiscos que a gente gosta. Que nada! Passei mal! Para completar ainda fui capturado por esses índios. Veja! Estou machucado. - É. Parece que não deu sorte. Quem sabe com uma prece... - O quê! Ainda escutar sermão? Só pode ser um pesadelo. E o que fizeram das minhas asas? Com essa maré de azar só me falta ficar preso aqui. - É o que vai acontecer. Estou sem tempo para conversas longas e vou entregá-lo aos cuidados dos lanceiros. São ótimos corredores. Não tente nada para não se arrepender.
  • 28. 28 - Sei. Com certos comunicantes, não convém esticar conversa, pois o tempo disponível deve ser utilizado para casos mais sérios. Aquele Espírito era um “penetra” em busca de alguma vantagem. Uma hiena tentando se aproveitar dos restos alimentares após o repasto dos leões. Personagem assim, na maioria das vezes, é retido por algum tempo e depois, sob severas advertências, libertado. Movi-me. A dança em uma reunião mediúnica não pára. - Eu só estou aqui para dar um recado e ir embora. Pediram-me este favor, e como não me custa atender, vou lhe passar o recado. - De onde partiu o pedido? - Isso não interessa. O recado serve para que você se situe melhor no contexto do drama. Eu era um guerreiro do grupo que protegia este assassino na África. Mas nem todos nós concordávamos com o que ele fazia. Ele maltratava as pessoas. Nossa tribo era enorme. Daí o grande número de inimigos que ele tem hoje. Fugi da tribo porque não concordava com as atitudes dele. Não o odeio. Penso que ele é apenas um iludido que se deu mal. Sou neutro nesse episódio. Vim apenas para dizer que nem todas as pessoas que o protegiam concordavam com ele. Alguns o lamentam, outros o detestam, mas não é o meu caso. Apenas observo. Em uma reunião mediúnica surgem fatos novos a todo instante. O doutrinador precisa estar atento para reunir os dados e formar o enredo correto. Existem as informações falsas, as profecias que não se realizam, as “intuições” encomendadas, próprias de um jogo de gato e rato. É preciso avaliar tudo com cautela, utilizar à lógica e o bom senso, e se necessário, indagar diretamente os instrutores espirituais sobre comunicações suspeitas. Mais uma vez outra médium deslocou-se até a casa da pequena Hortência para nova missão. - O jovem que se comunicou agora tem razão. As crianças esquartejadas estão protegidas por guerreiros que se sensibilizaram com o sofrimento delas. Ao desencarnarem, acostumados à arte da guerra, pois a tribo não oferecia estudos nem outras opções que não fossem as voltadas para a sobrevivência, ou seja, caça, agricultura mirrada e guerra, entraram em contato com essas crianças, e até mesmo para se engajarem em alguma tarefa que os mantivessem ocupados, se organizaram em torno delas para justiçar o chefe sanguinário que os dirigia. São homens sem perspectiva, acostumados à guerra, ainda não burilados nem aptos para se organizarem em uma sociedade fraterna. Parecem sentir falta de alguém que os lidere, pois têm tendência a obedecer a um chefe. Não parecem maus. Apenas ainda não conquistaram valores que os capacitem para uma vida com objetivos mais transcendentais. Aparentam ser muito ligados a terra; mais força que intelecto. Não vai aqui nenhum preconceito contra eles. É uma análise que faço baseada na vida que tiveram e pela maneira como respondem às questões que enfrentam agora. O jovem guerreiro que está comigo diz que a minha análise foi boa, mas que eles já têm uma noção de justiça bem acentuada, pois souberam muito bem definir-se a favor dos massacrados. Ele está aqui para me auxiliar a retirar uma criança esquartejada. Não sei por que esta em especial, mas ela terá que apartar-se das demais. Há planos para ela.
  • 29. 29 A criança está muito perturbada. Não a sinto arrependida nem motivada para largar a luta. Muito ao contrário. Ela resiste para ficar com as demais e o seu ódio é intenso. Como existe na falange uma sintonia formada por este sentimento negativo, mais difícil é arrancá-la do círculo que a atrai e a mantém agrupada. - Assassino! Assassino! Não me tirem daqui! Eu preciso ficar e matá-lo! Não! Não! Não! Maldito! Eu vou te matar! Quem ousa me arrancar daqui! - Estou lhe retirando para levá-lo a uma vida melhor. Preciso entregá-lo aos seus pais. Todos se alegrarão com sua chegada... A médium foi adormecendo aos poucos, o que significava que a criança estava segura nos braços de algum instrutor nosso. Outra médium que a auxiliava descreve o cenário da casa, sempre renovado por sucessivas visitas de nossos dirigentes. - Consigo ver no aparente caos aqui instalado, alguns médicos, pretos velhos com suas ervas e nossos amigos franciscanos. Se não fossem eles, Hortência estaria muito pior. Quem sabe até desencarnada. Essa proteção está garantindo um pequeno bem-estar para ela e para a mãe. Estamos aqui para levar alguém que está aprontado algumas trapalhadas. Tibiriçá diz que foi ele quem explodiu o copo no meu rosto hoje, e que por milagre, os fragmentos não atingiram meus olhos. A médium estava em casa junto ao filho e, de repente, ao tentar tomar um copo com água, este explodiu em vários fragmentos em sua mão, fato que a assustou e a deixou confusa devido ao acontecido. - Estou de passagem. Vim aprender com os mestres que estão dando um curso intensivo por lá. - E o que já conseguiu aprender? - Pouca coisa. A magia traz respeito. Todo mundo quer contratar quem sabe manejar essas forças. Quero que respeitem o meu poder. - Só vale a pena respeitar o poder quando ele emana de Deus. Outro tipo de poder é força desgovernada. - Iguais a mim tem muitos lá. Não tenho nada a ver com o caso. Entrei no frevo para me escolar. - Ouvi dizer que tentou agredir uma mulher hoje, invadindo-lhe a casa e quebrando um copo em suas mãos. - É verdade. Para você vê como a magia é útil. Absorvi as energias lá e elas passaram a fazer parte de mim. Fiquei igual a uma pilha. Com essa energia cheguei perto do copo e utilizando a vontade disse: explode! E ele explodiu. Mas esse índio estava espreitando e se lançou entre o copo e a mulher. Se não fosse ele os cacos teriam feito um bom estrago no rosto dela. A partir daí ele me aprisionou e tive as aulas interrompidas. - Fez uma coisa muito grave. Pelas leis dos índios deverá passar bom tempo em trabalho de campo, lavrando a terra, até que tenha expiado todo mal que há em seu coração. - Sei que é o manda-chuva por aqui. Se pedir aos índios que me soltem eles o obedecerão.
  • 30. 30 - Fez o pedido à pessoa errada. Eu é que obedeço ao que eles dizem. Por sinal já me disseram que você está aqui para desfazer um trabalho que iniciou. Portanto, Já que sente necessidade de aprender algo, iniciemos por desfazer o mal feito praticado. Não é raro que o comunicante se recuse a atender a ordem de desfazer um trabalho, mas, também, é comum, diante da aplicação de técnicas que o imobilizam, o fazem sentir choques, pesos enormes sobre a coluna, coceiras e queimaduras na pele, vomitar tudo quanto engoliu, que obedeça prontamente. - Pronto! Aí estão! As ervas, a areia, o sangue! Tudo! Maldita hora em que eu vim parar neste local! - O que pagaram para que você invadisse a casa da mulher e explodisse o copo? - Conhecimento. Ensinaram-me a fazer. Também me deram sangue, e energias para outros trabalhos. - Agora vai receber ensinamentos sobre agricultura. Segundo meu pai, que era sertanejo, não há nada mais lindo que um roçado de milho com seus pendões balançando ao vento. Não faça nada que desagrade aos índios. Eles são muito amigos, mas não são bestas. Tendo alguns minutos restantes ainda houve tempo para mais uma comunicação. - Que coisa boa! Esse poço não seca nunca! Vocês tiram um e trazemos dez. O malditozinho esta piorando. Eu estava lá neste minuto e posso afirmar que ele se encaminha para o buraco. Já lesou até o corpo físico. Não tem jeito! Matou, tem que morrer! - Preciso saber qual sua função neste caso para averiguar se volta ou não a trabalhar nele. - Volto! Gosto de ver o circo pegar fogo. Sou olheiro e presto contas do que observo. - Presta contas a quem? - A Deus. - É certo que prestamos contas a Deus de todos os nossos atos. Quero saber o motivo da sua vingança. - Nenhum! Ele nada fez a mim. Mas tenho notícia de que fez mal a muita gente indefesa. É um monstrinho que a gente tem que observar e cortar as asas. - Se não tem relação com a briga por que entrou nela? - Gosto de ver a palha voar. Se tem confusão estou nela. Digamos que sou um observador da natureza humana e que hoje ele vai ter uma piora especial. - E pensa que estará lá para verificar isso? - Claro! Estou a serviço da justiça. Obstrução da justiça é crime. Esses índios que me trouxeram, certamente, me levarão de volta. Se houver problema passo uma conversa neles. - Está confundindo índio com ignorante; guerreiro com imbecil. Como eles escutaram o que disse já temos um problema aqui: acalmá-los para que não lhe ministrem uma boa sova. - Acho que não usei o verbo adequadamente. - Como estão os rostos deles?
  • 31. 31 - Sérios! Parecem que vão enfrentar um leão. Mas sou apenas uma formiguinha, cara. - Deixo a seu cargo se justificar pela ofensa feita aos nossos guerreiros. Está sob os cuidados deles. Quem sabe um pedido de desculpa sincera não lhe caia bem? - E o que vou ficar fazendo aqui? Tenho que cuidar do monstrinho. - Continua usando o verbo inadequadamente. Cuidarão da criança os bons Espíritos e de você os guerreiros. Deus cuida de tudo e de todos. Boa sorte! Vai precisar! Confesso que fiz um pouco, só um pouquinho, de terrorismo com ele. Os guerreiros agem com lealdade e justiça. Estão preparados para a guerra e atuam em combates. Com prisioneiros apenas fazem a guarda sob as ordens de Espíritos superiores. De coração leve pela tarefa realizada, nos despedimos para nossos afazeres. Deus velaria por Hortência até nossa volta. Senti aquela sensação de estar à frente do tempo e acima do espaço, que às vezes sinto, quando viro a chave do templo onde trabalho. Alguns chamam isso de amor ao trabalho. Chamo de missão cumprida. O guerreiro da lua A pequena Hortência havia passado uma semana com muito cansaço, falta de sono, perturbações que atingiam também sua mãe, Margarida. Todavia, esta continuava firme em sua fé, a trazê-la para tomar passes e a frequentar o curso sobre iniciação à Doutrina, com a mesma robustez que apresentara na entrevista. A falange dos esquartejados, ciente de sua força, não retrocedera em seus ataques, antes os recrudescendo, com a finalidade de acelerar a passagem do Espírito a quem perseguia, para seu domínio. Iniciamos a reunião naquele dia com cuidados redobrados. Deus, senhor dos mundos, ligado em uma simples folha de sua criação, jamais abandonaria seus filhos no campo de trabalho. Mesmo assim, havia uma parte sob nossa responsabilidade que precisava de perseverança e de fidelidade. Feita a prece inicial, de imediato, um médium foi levado através de desdobramento a uma região desconhecida por todos do grupo. Apesar da asfixia que passou a sentir, iniciou a descrição do entorno, tentando situar o doutrinador para os eventos seguintes e encaminhá-lo à postura a ser assumida em diálogo. - Isso parece uma coisa sem fim. É uma espécie de muralha enorme, verticalmente muita alta e sem limites na horizontal. Há um vigia, guardião ou sentinela que vela por ela. Com sua habilidade em subir, descer, e locomover-se, ele tenta me intimidar, inclusive, desaparecendo e reaparecendo próximo a mim. Ele é muito rápido, apesar do seu aspecto pavoroso que lembra um sapo. Como se desloca na vertical, presumo que suas patas têm ventosas que o grudam ao muro sustentando-lhe o peso. Ele agora me encara agressivamente.
  • 32. 32 Toquei no muro e senti que é como uma geléia, ou seja, é algo que permite ser atravessado. Ao permanecer com a mão sobre ele, como se minhas “digitais” não fossem reconhecidas, ele se tornou sólido na região em que o toquei. Agora percebo junto a mim, mais uma médium, Tibiriçá, Tapuinha e um grande número de guerreiros, todos armados e pintados para a guerra. Não sei o que nos espera do outro lado desse muro, mas que vai haver uma batalha, não tenho dúvidas. Quatro pessoas desconhecidas passam frente a mim e se dirigem para o muro. Pelo que vi na mão de uma delas, uma bolinha luminosa, e como sei que é uma arma altamente explosiva, devastadora mesmo, pois já a vi em ação (espécie de bomba de alto poder explosivo que afeta apenas obstáculos materiais) em outros resgates, acredito que esse muro sairá do contexto em segundos. Ocorreu o que eu disse. Tudo ruiu diante de um cogumelo luminoso. O guardião já se encontra nas mãos dos guerreiros e a tropa avança sob o comando de Tibiriçá. Ganhamos terreno, mas paramos diante de novo obstáculo. É difícil acreditar no que vejo. Tudo é espantoso. Parecemos estar em um mundo estranho, um cenário semelhante aos filmes de guerra medievais, uma ficção ou epopéia imaginada por uma mente criativa e agressiva. Se alguém me contasse sobre o que vejo aqui, certamente duvidaria. Estamos dentro de um ambiente que lembra uma grande placenta, ou útero, não sei bem. Tem vilosidades. Nos meandros dessas vilosidades se abrigam “crianças” esquartejadas, iguais as que se encontram rebeladas. Acho que é uma maneira de se protegerem contra agressões do meio e de inimigos externos. O que vejo aqui é coisa engendrada por mente humana e não um cenário formado pela natureza. Começamos a passar mal. É como se alguém nos tivesse cortado o ar, que, aliás, aqui é insuportável. Mesmo os guerreiros encontram dificuldades em meio tão hostil. Adaptar-se a esse clima de ódio e de agressão é algo que parece estar acima de nossas forças. Tibiriçá organiza a tropa, incentiva os guerreiros, manda que nos amparem, pois sente que estamos quase desfalecendo. Na verdade os dois médiuns demonstravam enorme sinal de estresse e cansaço. Ânsias de vômitos os obrigavam a levar a mão à garganta tentando aliviar a agonia que os tomara. Por nossa vez orávamos e ministrávamos passes sobre eles incentivando-os a que buscassem suas reservas de forças, pois, certamente, Tibiriçá não os levaria tão longe apenas para mostrar-lhes um cenário de guerra. Lembramos de Emmanuel, o disciplinado mentor de Chico Xavier, que deixou impresso no seu excelente livro “Paulo e Estevão”: Que cada discípulo possa entender quanto lhe compete trabalhar e sofrer, por amor a Jesus Cristo. Quando tudo parecia insuperável, que nossos guerreiros encarnados capitulariam diante da agressividade do meio em que estavam, um deles, vencendo a angustiante asfixia gritou: - Vejo uma luz que se aproxima! É forte como o Sol. É um grande risco no horizonte, formando o próprio horizonte, que se agiganta e vem em nossa direção. A luz derruba tudo ao redor; passa por cima de tudo; vem levando qualquer obstáculo que tenha a ousadia de se colocar à sua frente.
  • 33. 33 Estou tremendo dos pés à cabeça! Mesmo porque o tropel dos cavalos faz também a terra tremer. Deve ser a luz de Deus que invade as trevas. São guerreiros luminosos! Vejo à frente da tropa uma espécie de anjo guerreiro, montado em um cavalo muito grande. Ele se destaca dos demais pela luminosidade. De espada em punho organiza a batalha, ordena que cerquem os rebeldes, dita ordens. Seus auxiliares, todos armados, atiram redes, fazem verdadeiras varreduras, capturando a horda. Isso é que é batalha! São centenas! Todos atirando redes. O general os incentiva! - Chega de rebeldia às leis divinas! Acabou a desordem! A partir de agora a bandeira do Cristo tremulará nessa região. Que toda treva seja banida! Toda violência desarticulada! Toda maldade vencida! A luz que Jesus fez brilhar no mundo reinará aqui também! Ao pronunciar tais palavras o médium agigantou-se em palavras e gestos. Seu braço erguido, como a segurar uma espada, rodopiava entre nós, ora apontando em uma direção, ora para outra. - Que a luz expulse as trevas! O bem não pode ser detido pela ignorância! Vamos meus bravos! A criação de Deus não pode se voltar contra Ele! Os limites da tolerância foram ultrapassados! Este pedaço de terra tem que refletir a bondade de Deus! O que não pertence a Ele que seja extirpado! - A voz do comandante causa verdadeiro desespero entre os habitantes da placenta. Diria que há apenas tentativa de fuga, e não resistência. O arrastão continua. Há correria, gritaria, maldições, quedas espetaculares, redes voando, espadas luzindo, cavalos que se empinam mostrando suas patas dianteiras elevadas. Os rostos dos guerreiros permanecem serenos, como se fizessem uma operação necessária não vinculada a um combate. Organizados e, certamente, em obediência a um plano pré-estabelecido, cercam tudo, derrubam obstáculos, capturam qualquer coisa móvel e a obriga a adentrar uma espécie de gaiola. Prisioneiros são libertados, mas igualmente controlados para averiguação. Um dos guerreiros passou próximo a mim! É belíssimo! Quando eles se aproximam de algo, iluminam tudo ao redor. A noite virou dia com a presença deles. Detenho-me em observação do cenário. Árvores ressequidas, lama petrificada, aves agourentas. Os guerreiros continuam aprisionando os rebeldes. Não sei quem é o comandante, mas a semelhança com a figura de São Jorge é inegável. Se tiver alguma chance pergunto se é o guerreiro da lua que comanda esta batalha. Suas feições são tão brilhantes que é preciso fixar o rosto por algum tempo para perceber algum detalhe. Suas armas à vista, armadura, lança e espada, mais servem para direcionar que para atacar, pois toda sua autoridade se reflete dele mesmo, causando medo e uma sensação de que é inútil resistir. Seu cavalo é muito branco, musculoso, ornado por um manto com bordados dourados. Todos os combatentes do batalhão estão uniformizados. Usam trajes brancos com tons azulados, e mostram alguma semelhança com os guerreiros romanos. Com eles, vieram técnicos, igualmente, capacitados, que se encarregam de colocar as “crianças” em macas. Vou descrever o que eles fazem com uma delas.
  • 34. 34 Eles a colocam em uma espécie de maca, feita de um material semelhante ao mármore branco. A criança parece um pequeno monstro ensangüentado. Quatro deles ocupam os cantos da maca e colocam as mãos seguindo os ângulos retos da mesma, de forma que vejo oito mãos com as palmas voltadas para a criança. Concentram-se como se estivessem em oração e tudo fica tão luminoso que não percebo mais a criança. Quando volto a vê-la já não é criança, mas um Espírito adulto, deformado, com o corpo semelhante ao de um escorpião. Apenas sua cabeça é humana. Posso afirmar que ele é meio homem e meio escorpião. De sua mente se projetam imagens mentais, como se houvessem sido liberadas sob a força hipnótica dos técnicos. As imagens que se projetam ao seu redor são de um feiticeiro que fazia sacrifícios humanos utilizando crianças como vítimas. Eles as esquartejava. Agora o Espírito é posto para dormir. Parece que vão empregar esta técnica com todos. Não sei exatamente o que eles fizeram, mas foi rápido. Diria, intuitivamente, que penetraram na mente do enfermo e de lá tiraram a trava, o bloqueio, a cristalização, fazendo-o mostrar-se tal qual é na realidade. O enfermo, que se mantinha perispiritualmente modificado por sua vontade ou por hipnotismo, teve o comando mental anulado e recebeu uma ordem irrecusável de assumir o “traje nupcial” compatível com seu estado evolutivo. Daqui partirão para cirurgias reparadoras, modelações perispirituais necessárias, sobretudo, educação mental visando amenizar o sofrimento moral de que são portadores. A lei do progresso parece ter chegado a este pedaço de mundo enegrecido, mostrando claramente que ninguém zomba da Lei por muito tempo. A batalha ainda se desenrola sem nenhuma chance de vitória para os rebeldes. Há centenas deles adormecidos em macas, em espécies de gaiolas, na verdade, prisões temporárias para que sejam retirados de combate e aguardem o tratamento que lhe falei. Aproximo-me de uma das “crianças” aprisionadas. Sua forma infantil não tem a meiguice desses pequenos seres. É tão escura que não há nitidez em seu rosto. São sombras, hematomas, pústulas, sangue. Aqui só o amor, com suas mãos cariciosas, conseguirá modificar tão apavorante quadro. Ainda há muito movimento por aqui. Tibiriçá diz que devemos dormir cedo e nos prepararmos para mais trabalho durante o sono. O choque da batalha passou, mas seus efeitos vão continuar durante dias. Nessa reunião comunicaram-se prisioneiros apavorados, escravizados pelos que chamavam de “demônios da escuridão”. Demonstraram medo profundo, esgotamento, sinais de loucura em meio a um pouco de lucidez desesperada. Foi a nossa maneira de participarmos da batalha, epopéia difícil de descrever, e para muitos, de acreditar. Mas estamos no Espiritismo a serviço. Se nossos instrutores, no afã de ajudar a superar as dores do mundo, nos levam a tais cenários e nos autorizam divulgar o que ocorre além de nossas pedreiras materiais, alguma utilidade deve haver. Como atuamos e pesquisamos nos campos da mediunidade e da obsessão, e como não somos os únicos, muito provavelmente, outros grupos têm a chance de encontros semelhantes aos nossos. Tais relatos são testemunhos de que a vida no além continua em sua diversidade sem fronteiras. Confirmam que, através dos seus
  • 35. 35 auxiliares, Deus se faz presente em qualquer recanto do universo. Que em nenhum lugar a ignorância domina soberana, pois as rédeas do universo sempre estiveram nas mãos Dele. Por outro lado incentiva a que novos grupos mediúnicos se aperfeiçoem para que sejam utilizados como auxiliares dos bons Espíritos em seus trabalhos de resgates. A seara de Jesus é imensa e diversificada. Há trabalho para todos, em qualquer nível de evolução. Candidate-se e verá. O estranho e compreensível sentimento materno Um filho é uma evocação muito forte. Não é propriedade da mãe, mas prioridade em sua bonança e amargura em seu sofrimento. Por um filho ela enfrenta exércitos e desertos; planta jardins, limpa fontes e aplaina caminhos. Um filho é como a linha do horizonte, cuja função é impulsionar o caminhante para novos passos. O coração de uma mãe é como o coração de um guerreiro. Está sempre pronto para uma nova batalha. Quão estranho, compreensível e maravilhoso é o sentimento materno. Já se tornaram comuns, cenas de mães desesperadas diante de presídios, enquanto seus filhos queimam colchões, agridem vigilantes, ameaçam matar quem lhes evite a fuga. Elas sabem que eles estão errados, que violaram leis justas, que são, às vezes, ladrões e assassinos, mas os amam como se fossem anjos imaculados. Mas o sacrifício materno não se contenta com apenas isso. Desde que o filho é gerado, ainda no útero, procuram fazer o melhor que sabem, sacrificam-se, e se dependesse da vontade dessas heroínas, optariam por morrer no parto, conquanto seus filhos fossem salvos. Quando eles nascem, elas ficam sem comer, se o alimento é pouco, pois preferem alimentá-los que a si próprias. E ainda mais. Se o alimento é suficiente, a melhor parte é para eles. Por isso estabeleci como definição para minha mãe, já desencarnada, uma frase com cheiro de sertão cearense que bem define a sua garra ao criar dezessete filhos, multiplicando o alimento de cada dia qual Jesus fez com pães e peixes: Minha mãe era uma mulher muito bonita. Chorava sem botar água e achava graça sem fazer barulho. Mas tenho a certeza absoluta de que esta frase define todas, pois todas são reflexos da bondade de Deus na Terra. Concordo com Chico Xavier, quando disse: Mãe que abandona os filhos é caso patológico. Não há quem não se emocione com elas. Sejam encarnadas ou desencarnadas esse sentimento não muda. Encarnadas e abandonadas pelos maridos, não largam os filhos nem na fome nem na doença, preferindo morrer ao lado deles tentando ajudá-los. Desencarnadas, os buscam desesperadas sem se deter diante de qualquer perigo para tê- los em seus braços. O amor materno é tão forte que o doutrinador, diante de uma mãe que por algum desespero esteja perseguindo alguém, pode perguntar: Prefere continuar nessa briga inglória ou abraçar seu filho? Ela é tomada por uma onda avassaladora de ternura e