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Mutações no comportamento e na
cultura
Os Loucos Anos 20
Por Raul Silva
Em 1918, quando termina a Primeira Guerra Mundial, o mundo não será mais o mesmo.
Uma nova ordem internacional cresce, assente no direito dos povos a disporem de si próprios.
É a ordem política dos estados-nação. A democracia liberal regista progressos no Ocidente e o
socialismo marxista consolida-se na Rússia soviética. Nas grandes urbes do mundo ocidental,
questionam-se os valores tradicionais e manifesta-se o feminismo. Novas teorias, como a da
relatividade, obrigam a ciência a rever os seus fundamentos. Nas artes plásticas e na literatura,
as vanguardas rompem com as regras seculares que perseguiam o Belo. Mas pesadas pairam
sobre esse mundo novo do primeiro pós-guerra. Crises deflacionistas, turbulência social,
radicalismos de esquerda e de direita minam governos e a confiança política no
parlamentarismo, abrindo caminho ao autoritarismo.
CADERNODIÁRIO
EXTERNATO LUÍS DE
CAMÕES
N.º 17
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28deAbrilde2015
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CADERNODIÁRIO28deAbrilde2015
A vida urbana
e a crise dos
valores
tradicionais
Nas vésperas da 1.ª guerra mundial
havia cerca de 180 grandes centros
urbanos com mais de 1000 mil
habitantes, nomeadamente Londres,
Paris, Moscovo e Berlim. Esta crescente
concentração populacional provocou
significativas alterações na vida e nos
valores tradicionais do mundo
ocidental: um novo de viver e de
convívio no meio da multidão.
Ao vir para as cidades, a população
chegada do campo deixa para trás os
hábitos e vínculos sociais anteriores e
adquire novas formas de sociabilidade,
num ambiente estranho e, muitas
vezes, hostil.
Este desenraizamento individual
desumaniza e despersonaliza a vida
urbana que segue um modelo
estandartizado, isto é, atinge a
massificação. A vida das pessoas
resume-se a normas estandardizadas,
como por exemplo, a saída para o
emprego, o uso de meios de transporte,
bem como viver em apartamentos,
comprar os mesmos produtos e até fazer
tarefas iguais. Surge uma nova visão do
ócio e forma de organizar os tempos e
espaços dedicados ao lazer e lugares
públicos de convívio: jardim, clubes
noturnos, esplanadas, etc. A
racionalização e consequente redução
do tempo de trabalho, assim como a
melhoria do nível de vida, permitiram
dispor de tempo e dinheiro para o
divertimento e o prazer. Abriu-se um
outro ciclo de solidariedade humana e
convivência entre sexos, de modo mais
ousado e livre, que rompeu com todas
as regras sociais impostas até aqui. O
ritmo de vida torna-se frenético e o
gosto pela ação e pela velocidade é
visível pela prática desportiva e uso do
automóvel.
A superioridade que o mundo ocidental
detinha na viragem do século, foi posta
em causa pelo primeiro conflito
mundial e toda a moral burguesa
oitocentista se desmorona, como
provam as mudanças nos
comportamentos. A morte de milhões
de soldados, a miséria e a destruição
visíveis a cada passo gerou um
sentimento de desalento e descrença no
futuro, afectando toda a sociedade,
desde trabalhadores a inteletuais. Por
outro lado, a massificação da vida
urbana, a laicização social que
terminara com a influência da Igreja e
as novas concepções científicas e
culturais são, igualmente, responsáveis
por esta ruptura no padrão de valores e
comportamentos sociais vigentes.
Deu-se uma profunda crise de
consciência que atinge todos os setores
da vida: na família, no casamento, na
moral sexual, na religião, no papel da
mulher, enfim, em toda a conduta
social. Trata-se da anomia social, onde a
alienação visível em comportamentos
desviantes, devido ao alheamento das
regras impostas pela sociedade, e o
distanciamento do indivíduo em relação
a tudo o que o rodeia é tal que já não
distingue o certo do errado.
O pós-guerra
e a crise de consciência
por Oswald Spengler, 1922
“O último século foi o inverno do
Ocidente, a vitória do materialismo, do
cepticismo, do socialismo, do
parlamento e do capital. Mas neste
século, o poder do instinto e da
violência recuperarão o seu ascendente
sobre o poder do inteleto e do dinheiro.
A era do individualismo, liberalismo e
democracia, do humanitarismo e da
liberdade está no fim. As massas
aceitarão com resignação a vitória dos
Césares, dos homens fortes, e
obedecer-lhes-ão. A vida tenderá para
um uniformidade generalizada, uma
nova forma de primitivismo. (...)”
Responder:
a) Caraterize a vida urbana no
mundo ocidental no início do
século XX.
b) Explique a crise dos valores
tradicionais.
Pesquisar:
https://www.youtube.com/watch?v=g-
RQfaoqdy8
“Os cafés, cheios de
consumidores. Os
passeios, cheios de
transeuntes. As salas de
espera dos médicos
famosos, cheias de
doentes. Os espetáculos,
cheios de espectadores.
As praias, cheias de
banhistas. (...)
Mas o facto é que antes
nenhum destes
estabelecimentos
costumava estar cheio, e
agora transbordam, fica
fora gente sôfrega por
usufruí-los.”
J. Ortega y Gasset, 1930
Otto Dix e a brutalidade da guerra
A Primeira Guerra trouxera, para todos, muitas
interrogações. A arte expressava a forma
como cada um de nós via e sentia a realidade
observada, ou seja, refletia o seu estado de
alma e o “drama interior de cada Homem”.
3. 3
CADERNODIÁRIO28deAbrilde2015
A emancipação
feminina
e o confronto de
gerações
O novo papel que a mulher vai ocupar
na sociedade é bem o exemplo das
alterações verificadas. Nos Loucos
Anos 20, fruto da euforia do
pós-guerra, da procura de prazer e
evasão, as jovens sobem as saias até ao
tornozelo e ajustam-nas, cortam o
cabelo à rapaz, desafiam todas as
convenções sociais.
Mas este foi, apenas, o lado
escandaloso do nascente feminismo ou
da emancipação da mulher. Este
movimento, que teve início já nos finais
do século XIX, começa por reivindicar
certos direitos das mulheres casadas:
propriedade dos bens, tutela dos filhos,
acesso à educação e a uma carreira
profissional, isto é, o reconhecimento
social de modo a tirar a mulher da
posição secundária e subalterna que a
obrigavam a ter na sociedade burguesa.
Já no século XIX, a mulher lutou pelo
direito à participação política, através
do voto. É, então, que surgem as
sufragistas (defensoras do alargamento
do voto às mulheres). Na Europa,
destacam-se o nome Emmeline
Pankhurst, na Inglaterra, onde as
sufragistas atraíram a atenção do
grande público através de diversas ações
de rua, na imprensa, manifestações e
greves de fome.
Em Portugal, em 1909, aparece a Liga
Republicana das Mulheres Portuguesas
e, em 1911, a Associação de
Propaganda Feminina com os mesmos
objetivos, salientando-se nomes como
Ana Castro Osório e Carolina Beatriz
Ângelo, entre outras.
Mas o feminismo utilizou outras formas
de chamar a atenção como sejam a
moda e o vestuário, valorizando o corpo
e a aparência: novos cortes e tecidos
mais leves, saias mais curtas,
substituição do espartilho pelo soutien,
etc. Enfim, tudo o que significasse uma
libertação da mulher em relação aos
preceitos tradicionais. Alvo de censura e
de escárnio, na maior parte dos países,
até à Primeira Guerra, após esta, as
mulheres rapidamente conquistaram as
suas reivindicações.
Esta mudança deveu-se, principalmente,
ao facto demonstrado durante a guerra
de que as mulheres tinham sido capazes
de substituir o sexo forte em
praticamente todas as tarefas,
nomeadamente no sustento da família,
trabalho na fábricas, reparações
elétricas, transporte de objetos pesados,
tarefas agrícolas e até na frente das
batalhas, como enfermeiras. Esta
situação valorizou as pretensões das
mulheres e deu-lhes autoconfiança.
Assim, ao terminar o conflito, na
maioria dos países, tinham já
conseguido tudo aquilo porque haviam
lutado antes.
Embora hoje em dia, existam ainda
algumas resistências, sobretudo na
prática, a realidade é que a mulher
possui igualdade legal e jurídica para
todos os domínios da vida atual.
O confronto
de gerações
por Ellen Welles Page, 1922
“Se me julgam pelas aparências, acho
que sou uma flapper. Estou dentro da
idade. Uso cabelo curto, escorrido, o
emblema da flapper. Ponho pó de arro
no nariz. Uso saias com franjas,
sweaters berrantes, écharpes, (...)
sapatos se alto baixo. Adoro dançar. (...)
Quero pedir-vos, a todos vós, pais e
avós, e amigos e professores e clérigos, a
vós que constituis a geração mais velha,
que esqueçais as nossas fraquezas, pelo
menos de momento, e que aprecieis as
nossas qualidades. (...)
A Guerra destruiu os nossos alicerces
espirituais e desafiou a nossa fé.
Estamos a lutar para readquirir o
equilíbrio. E não temos ninguém para
quem nos voltar (...).”
Responder:
a) Defina o movimento de
emancipação feminina.
Refletir:
http://externatohistoria.blogspot.pt/
2014/02/a-emancipacao-feminina.html
“Nós debatemo-nos com
um terrível problema.
Têm de ajudar-nos.
Dêem-nos confiança, não
desprezo. Dêem-nos
ajuda e conselho, não
críticas. Elogiem-nos
quando merecemos.
Sejam pacientes e
compreensivos perante
os nossos erros. Nós
somos a geração mais
nova.”
Ellen Welles Page, 1922
A loucura dos anos 20
O ritmo do jazz e as frenéticas danças como o
foxtrot e charleston tornaram-se uma febre
nos EUA e invadiram a Europa, tornando-se o
símbolo da vida moderna e trepidante do
pós-guerra.
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CADERNODIÁRIO28deAbrilde2015
As novas
concepções
científicas
e o seu impacto
O Positivismo impusera a ideia de que
a ciência, através do método
experimental, tinha respostas para
todos os problemas da Humanidade.
Mas, no início do século XX, verifica-
se uma reação anti-positivista e anti-
racionalista, devido às novas
perspetivas de alguns cientistas face ao
conhecimento e à ciência.
Em 1893, Benedectto Croce, contesta
a aplicação das teses positivistas à
História, visto as ciências humanas
terem um caráter muito subjetivo, pois
a recriação dos factos do passado
depende do esforço imaginativo do
historiador.
Bergson, filósofo alemão, defende que
há certas realidades que não
demonstráveis ou perceptíveis pela
experiência ou pela evidência racional
mas apenas pela intuição, uma outra via
do raciocínio comparável ao instinto,
com ligações ao transcendente. O
Intuicionismo é a corrente que liberta o
conhecimento das regras rígidas do
racionalismo e do cientismo.
Em 1905, Albert Einstein revolucionou
a Física. Demonstrou que o espaço, o
tempo e o movimento não são
absolutos, mas relativos entre si (por
exemplo: a massa do corpo depende do
movimento) e ao observador. Os objetos
não têm apenas três dimensões
(comprimento, altura e espessura) mas
quatro, acrescentando-se a dimensão do
tempo. Esta concepção afasta o
determinismo e a previsibilidade dos
factos e reconhece que o Universo é
instável e misterioso, por isso não têm
regras fixas mas probabilidades de
resposta científica.
A partir de 1897, Sigmund Freud
elaborou uma nova teoria, chamada de
Psicologia Analítica ou Psicanálise,
segundo a qual a mente humana está
dividida em Id, o inconsciente (zona
profunda e significativa mas quase
impenetrável); Ego, o Consciente,
racional (a extremidade visível do
iceberg); Superego, o pré-consciente ou
subconsciente, inibor do ego com
sentimentos de culpa (sexo, sonhos,
religião) que podem passar para o
consciente. Esta teoria explicava,
também, que as neuroses são resultado
de recalcamentos (traumas), isto é,
impulsos, sentimentos, desejos, instintos
naturais, aprisionados no inconsciente
pelas restrições da moral social. As
explicações psicanalíticas (lado
irracional da natureza humana) forma
conhecidas e muito apreciadas pelo
público, em geral, e por inteletuais, em
particular, contribuindo
significativamente para justificar os
novos comportamentos socais (loucos
anos 20) e inspirar alguns movimentos
artísticos, como o surrealismo.
Na década de 30, a crise material e
moral vivida após a crise económica,
fará surgir uma corrente irracional: o
existencialismo. Heidegger defendeu
que a liberdade do homem de nada
serve, pois a sua existência é uma fonte
de angústia e de desespero para ele.
A psicanálise
na vida e cultura
por Sigmund Freud, 1928
“Como era possível que os doentes
tivessem esquecido tantos factos da sua
vida exterior e interior e que não
obstante pudessem lembrar-se deles
quando se lhes aplicava a técnica
referida? A observação respondeu a
estas questões. Tudo quanto fora
esquecido tinha sido penoso ou
pavoroso ou doloroso ou vergonhoso
relativamente às pretensões da
personalidade. (...) Justamente por isso
havia sido esquecido, isto é, não tinha
permanecido consciente. (...) A fim de
voltar a trazê-lo à consciência, era
preciso vencer algo no doente, algo que
se defendia, era necessário empregar
esforços para fazer pressão sobre este e
obrigá-lo. (...)”
Responder:
a) Descreva o impacto das novas
concepções científicas no
quotidiano e na cultura.
Pesquisar:
https://www.youtube.com/watch?
v=UnSA27a00To
“Antes de Einstein, desde
o início da ciência grega
até ao século XXI, o
espaço e o tempo eram
concebidos como sendo
absolutos, quer dizer, era
suposto existirem
independentemente da
matéria e dos
observadores.
Pensava-se que o tempo
se escoava
uniformemente, não
dependendo da
percepção humana ou da
medição do relógio.”
Thibault Damour
A teoria da relatividade
Einstein negou o caráter absoluto do tempo e
do espaço. O Universo era mais instável do
que se pensava e a verdade científica menos
universal do que se tinha acreditado. O
Relativismo aceita o mistério e a desordem.