Nesta entrevista, Carlo Petrini, presidente do movimento Slow Food, discute:
1) A criação do movimento Slow Food na Itália na década de 1980 como resposta ao frenesi consumista e à perda das tradições alimentares locais.
2) A visão de que alimentos bons, limpos e justos são essenciais para garantir a sustentabilidade dos sistemas alimentares e o bem-estar das comunidades.
3) A importância do Brasil e do Nordeste brasileiro para a defesa da biodiversidade cultural e ambient
1. C A MPONESA
Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br
ACC /RN
Re vi s RN - A
ta da A mpo d o
s so ciaçã o d
e Apo io à s Co muni da des do Ca
Ano I - Número
01 - Novembr
o de 200
9
Soberania
Carlo Petrini
Alimentos bons, limpos e justos
alimentar
Neneide Lima
“Eu gosto de ser trabalhadora rural”
Marília Leão
Alimentação saudável é um
direito humano inviolável
1
2. Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br
Editorial
A
Revista Camponesa é uma publicação semestral, de distribuição gratuita, e
visa fortalecer o trabalho que esta instituição e seus parceiros desenvolvem
no âmbito da agroecologia, economia solidária e gênero no RN, em particu-
lar, na região do Mato Grande e no município de São Miguel do Gostoso. A
Revista proporciona debater temas essenciais para a vida das pessoas na contempo-
Esta publicação foi realizada com raneidade ao mesmo tempo em que dá visibilidade à ação realizada pela AACC/RN
apoio da Fundação Konrad Adenauer e suas parcerias, acreditando que as questões que dizem respeito aos agricultores
Fortaleza. O seu conteúdo não expressa e agricultoras familiares têm a ver com o conjunto da sociedade. Assim fortalece
necessariamente a opinião da Fundação
Konrad Adenauer. sua missão de “contribuir com a autodeterminação das agricultoras e agricultores
familiares do Rio Grande do Norte através dos processos de agroecologia, economia
solidária e convivência com o semiárido”.
Nesta primeira edição, a Revista discute o tema “Soberania Alimentar” e
conta com a colaboração dos seguintes pesquisadores, especialistas e/ou ativistas
Conselho editorial: do movimento social: Carlo Petrini, sociólogo, jornalista e presidente da Fundação
Antonia Geane Costa Bezerra Slow Food; Angela Küster, coordenadora do Projeto Agricultura Familiar, Agro-
Bethânia Lima Silva ecologia e Mercado (AFAM) desenvolvido pela Fundação Konrad Adenauer (KAS);
Emerson Inácio Cenzi Henrique Carneiro, professor do Curso de História da Universidade de São Paulo
Haroldo Gomes da Silva (USP); Francisca Eliane (Neneide), coordenadora da Rede Xique Xique de Comer-
Paulo Segundo e Silva cialização Solidária; Severina Carvalho, nutricionista; e Marília Leão, presidente
da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH) e conselheira
Textos: representante da sociedade civil no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Bethânia Lima Silva Nutricional (CONSEA).
Haroldo Gomes da Silva Além das entrevistas, a Camponesa traz uma reportagem de Bethânia
Lima sobre alguns experimentos em soberania alimentar e agricultura familiar
Fotografia: em São Miguel de Gostoso e um artigo de Emerson Cenzi sobre o Censo Agro-
Rodrigo Sena pecuário 2006, entre outros. A poesia “Cálice da Natureza”, na contracapa, é de au-
Bethânia Lima Silva toria do poeta potiguar, Janduhi Medeiros, retirada de seu livro “Mensageiro das
Haroldo Gomes da Silva Oiticicas”, de 2007.
Neste número, contamos com a colaboração especial de Mariana Gui-
Revisão: marães na tradução da entrevista a Carlo Petrini além do empenho, solidariedade e
Bethânia Lima Silva apoio de toda a equipe de trabalho da AACC/RN. Mas esta publicação não seria pos-
Haroldo Gomes da Silva sível sem a valiosa colaboração da Fundação Konrad Adenauer, a quem a AACC/RN
Ariana Lopes Correia de Paiva agradece.
Esperamos que esta Revista se constitua em alimento para a alma de espíri-
Projeto gráfico tos livres desejosos de construir relações saudáveis, harmônicas e duradouras das
e Diagramação: pessoas entre si e na relação com o meio ambiente em que vivem. Como diz Luís da
Robson Nunes Câmara Cascudo:
De todos os atos naturais, o alimentar-se foi o único que o homem cercou de
Impressão: cerimonial e transformou lentamente em expressão de sociabilidade, ritual político,
Offset Gráfica aparato de alta etiqueta. Compreendeu-lhe a significação vitalizadora e fê-la uma fun-
ção simbólica de fraternidade, um rito de iniciação para a convivência, para a confiança
Tiragem: na continuidade dos contatos (História da Alimentação no Brasil, p.36).
2000 exemplares
A todas e todos uma ótima leitura e uma passagem de ano muito feliz!
C A MPONESA
Re vi s
ta da A do RN
- AAC
C /RN
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s so ciaçã o de Apo io à s Co muni dad e s d o C
Ano I - Número
01 - Novembr
o de 200
9
Soberania
Carlo Petrini
Alimentos bons, limpos e justos
alimentar
Neneide Lima
“Eu gosto de ser trabalhadora rural”
Marília Leão
Alimentação saudável é um
direito humano inviolável
2 Foto capa: Rodrigo Sena
3. Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br
NESTA EDIÇÃO
Entrevistas
04 Carlo Petrini
Alimentos bons, limpos e justos
07 Angela Küster
O modelo é a agricultura familiar agroecológica
09 Henrique Carneiro
O modelo alimentar do fast-food é pernicioso
11 Neneide Lima
“Eu gosto de ser trabalhadora rural”
15 Severina Araújo
Alimentação equilibrada é essencial para a vida
16 Marília Leão
Alimentação saudável é um direito humano inviolável
Reportagem
20 Quando o alimento é mais gostoso
Com o apoio da AACC/RN, famílias rurais de São Miguel do Gostoso vivenciam a
agricultura familiar de forma organizada e baseada na agroecologia
Seções
19 Curtas
29 Para Aprofundar
31 Artigo: Emerson Cenzi - A agricultura familiar alimenta o Brasil
3
4. Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br
Entrevista: Carlo Petrini
Alimentos bons, limpos e justos
Na opinião de Carlo Petrini vivemos um momento de crise econômica,
energética e agrícola e o futuro da alimentação exige mudanças nos hábitos
de consumo pois a maior parte dos danos que a nossa terra sofreu até agora se
deve à produção de alimentos
O
“ poder que o consumidor possui simplesmente pelo fato de escolher dia-
riamente o próprio alimento é inacreditável: exercitá-lo com consciência e
responsabilidade é um dever, um ato de civilidade, em relação a si próprios,
às próprias famílias, às próprias comunidades e aos próprios povos”, afirma
Carlo Petrini, presidente do movimento Slow Food. Na entrevista que concedeu à Cam-
ponesa, considera que “estamos vivendo tempos muito difíceis” e que “é necessário re-
definir todo o sistema atual, baseado no consumo”. Afirma ainda que “o bom, o limpo
e o justo são os três adjetivos que definem em modo elementar as características que
deve ter um alimento para responder a exigências de nós, ecogastrônomos” e que a
principal via pela qual realiza “um percurso em relação ao bom, limpo e justo é aquela
da economia para o re-posicionamento dos consumos e das produções agrícolas”.
Carlo Petrini é italiano, estudou sociologia na Universidade de Trento e logo
se envolveu com a política local e com o trabalho associativo. Entre suas muitas cria-
ções está a Universidade de Ciências Gastronômicas, em Pollenzo e Colorno, a primeira
instituição acadêmica a oferecer um acesso multidisciplinar nos estudos da alimenta-
ção; é ele também que está por trás do Terra Madre, fabuloso encontro de 5.000 produ-
tores de todo o mundo, ocorrido em Turim, para discutir problemas comuns e suas
possíveis soluções. O seu último trabalho Buono, Pulito e Giusto. Principi di uma Nuova
Gastronomia foi publicado em 2005 pela editora Einaudi e em 2009 foi traduzido para
o português pela SENAC de São Paulo (Brasil) com o título “Slow Food, princípios da
nova gastronomia”. No livro, Petrini descreve o desenvolvimento da teoria da “ecogas-
tronomia”. O livro também foi traduzido para o inglês, francês, espanhol, alemão e po-
lonês. Em 2001, seu livro Le ragioni del gusto foi publicado pela Laterza e em 2003 foi
traduzido para o inglês como The Case for Taste pela Columbia University Press. Em
janeiro de 2008 foi o único italiano a aparecer na lista das ‘50 People Who Could Save
the World’ (50 pessoas que poderiam salvar o mundo) realizada pelo prestigiado jornal
inglês The Guardian.
Camponesa – O que é o movimento Slow a beneficiar-se deste prazer: uma atitude Camponesa – Como tem sido a aceitação no
Food? Como surgiu? que chamamos de ecogastronomia, capaz Brasil e, em particular, no Nordeste?
Na metade dos anos 80, o frenesi de unir o respeito e o estudo da cultura O Brasil - um país que possui uma
consumista tinha invadido totalmente a enogastronômica sustentando aqueles que extraordinária biodiversidade agrícola, gas-
Itália, de tal forma que se estava perden- atuam em todo o mundo para defender a tronômica, cultural e lingüística – há diversos
do o contato com a terra, as tradições, as biodiversidade agroalimentar. anos tornou-se um interlocutor fundamental
próprias receitas, em poucas palavras, as Partimos de 1986 do Piemonte, na do Slow Food. Em 2003 o Prêmio Slow Food
raízes da identidade de cada um de nós. Itália, para nos tornarmos em 1989 uma asso- para a Biodiversidade foi concedido à tribo
Quisemos iniciar da mesa, do alimento não ciação internacional que conta hoje com 100 indígena Krahô, na Amazônia nasceu uma das
visto simplesmente como nutrimento, mas mil sócios em 130 países. primeiras Fortalezas internacionais (o Guaraná
como elemento de prazer decorrente da Nativo dos Sateré-Mawé) e em 2004 o Ministé-
possibilidade de apreciar as diversas recei- rio do Desenvolvimento Agrário do Brasil assi-
tas e sabores, reconhecer as variedades dos
“Para garantir alimentos nou um acordo que oficializou uma longa rela-
locais de produção e dos artesãos, respeitar bons, limpos e justos, o con- ção de amizade e colaboração. Mas o grande
os ritmos das estações e a convivência. Hoje desafio do Slow Food no Brasil é a mobilização
estamos convencidos da necessidade de as-
sumidor deve começar a se de todos os setores da sociedade, e temos con-
sociar um novo sentido de sensibilidade ao sentir co-produtor” seguido superar este desafio com a criação de
prazer e à reivindicação do direito de todos novos Convivia, os núcleos locais de sócios, e o
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5. Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br
envolvimento cada vez maior de chefs, jovens “Comer torna-se um ‘ato dos sistemas produtivos agroalimentares – as
e acadêmicos que juntos poderão permitir a comunidades do alimento representam um
inserção do pequeno produtor na própria co- agrário’, e selecionando exemplo brilhante do que poderia significar
munidade. Hoje temos no Brasil cerca de 600
sócios e este número vem crescendo exponen-
alimentos de boa qualidade, pronunciar as palavras “economia local” ou
“economia da natureza”.
cialmente. No Nordeste, temos importantes produtos com critérios de Trata-se de pequenos produtores,
projetos para a defesa da sua biodiversidade
ambiental e cultural, como a Fortalezas do Ar-
respeito pelo ambiente criadores, pescadores, coletores de produtos
silvestres, artesãos do mundo agroalimentar
roz Vermelho do Vale do Piancó na Paraíba e e pelas tradições locais, que a cada dois anos apresentam os seus tra-
do Umbu no sertão baiano. Chefs de Fortaleza
e Salvador estão se unindo a acadêmicos do podemos favorecer a biodi- balhos em nível local na grande sede mundial
de Terra Madre4, em Turim (www.terramadre.
Maranhão e sócios espalhados ao longo de es- versidade e uma agricultura org). As comunidades do alimento geral-
tados do Nordeste brasileiro promovendo uma mente atual na cadeia curta, ou em cadeias
área com uma riqueza ainda pouco reconhe- igualitária e sustentável” longas altamente sustentáveis e baseadas
cida e valorizada. no conhecimento recíproco dos envolvidos.
complexa esfera de sentimentos, recorda- A comunidade é o local, o contexto, no qual
Camponesa – Na visão do movimento Slow ções e aspectos determinantes de identidade, pode-se realizar o conceito de “adaptação lo-
Food, qual o futuro da alimentação? decorrentes do valor afetivo do alimento; cal” que teorizou Wendell Berry5. É necessário
Estamos vivendo tempos muito limpo, ou seja, produzido sem estressar a pressionar o quanto for possível para re-posi-
difíceis, a crise que estamos atravessando é terra, respeitando os ecossistemas e o ambi- cionar produções e consumos, vida social e
ao mesmo tempo econômica, energética e ente; justo, que quer dizer conforme com os tradições sem renunciar ao comércio e à troca
agrícola. Não podemos considerá-la e en- conceitos de justiça social nos ambientes de que nos garantem a rede, mas fortalecendo as
frentá-la como se fosse um momento de pas- produção e de comercialização. comunidades locais e as suas características
sagem. É necessário redefinir todo o sistema de funcionamento.
atual, baseado no consumo. É muito recente a 1A Global Footprint Network foi criada em 2003 e
dedica-se a estimular o surgimento de um mundo no qual todas as
notícia do Global Footprint Network1 de que pessoas tenham oportunidade de viver satisfeitas, dentro das possibi-
4 A rede Terra Madre é constituída por todos aqueles
que querem agir para preservar, encorajar e promover métodos de
o overshoot day2 aconteceu no dia 25 setem- lidades da capacidade ecológica da Terra. É responsável pela “Pegada
produção alimentar sustentáveis, em harmonia com a natureza, a
Ecológica”, que mede o grau em que as demandas ecológicas das eco-
bro, ou seja, o dia que teremos terminado de nomias humanas respeitam ou ultrapassam a capacidade da biosfera
paisagem e a tradição.
5 Wendell Berry é um ensaísta americano, autor de
consumir as reservas que a natureza nos dis- de fornecer bens e serviços.
livros como Know That What You Eat You Are (“Saiba que o que Você
2 Uma semana após o estouro da bolha econômi-
ponibilizou para o ano em curso. A cada ano, co-financeira, no dia 23 de setembro, ocorreu o assim chamado
Come, Você É”) e Life is a Miracle (“A Vida é um Milagre”).
o dia no qual entramos em débito ecológico e Earth Overshoot Day, quer dizer, “o dia da ultrapassagem da Terra”.
de excesso de consumo antecipa-se no calen- Grandes institutos que acompanham sistematicamente o estado da
Terra anunciaram: a partir deste dia o consumo da humanidade, em
Camponesa – Qual o papel do consumidor
dário. Em 1986, ano do primeiro alarme, o 2008, ultrapassou em 40% a capacidade de suporte e regeneração na promoção de uma cultura do gosto e da
overshoot aconteceu em 31 de dezembro. Em do sistema-Terra. Ou seja, a humanidade está consumindo um pla-
neta inteiro e mais 40% dele que não existe.
convivência?
1995 a falência ecológica aconteceu no dia 21 3 O Millennium Ecosystem Assessment (Avaliação A esfera sensorial do homem con-
do Milênio de Ecossistemas, MA) foi pensado para fornecer parte
de novembro. Dez anos depois as contas com da informação científica necessária para a implementação da Con-
temporâneo claramente empobreceu. O tato,
a natureza entraram no vermelho já no dia 2 venção da Diversidade Biológica, da Convenção do Combate à De- o gosto e o odor sofreram uma profunda re-
sertificação e da Convenção das Áreas Húmidas. O MA foi lançado
de outubro. Agora retrocedemos até o dia 25 a nível mundial pelo Secretário Geral das Nações Unidas em Junho
gressão. O tempo cada vez mais escasso e a
de setembro: consumimos 40% a mais do que de 2001. É uma avaliação multi-escala, consistindo em avaliações velocidade das nossas vidas nos estão privan-
interligadas aos níveis global, sub-global e local. Existem cerca de
a terra pode gerar. Em 2050, se a crise ener- 15 avaliações sub-globais aprovadas, entre as quais as da Noruega,
do dos instrumentos que nos podem consen-
gética não nos tiver obrigado a adotar a sa- do Sul de África, da América Central e da China. A Avaliação Portu- tir um conhecimento mais profundo, variado
guesa foi iniciada em Maio passado e irá decorrer até meados de
bedoria ecológica para manter as contas em 2005. É liderada pelo Centro de Biologia Ambiental da Faculdade
e autêntico do mundo que está à nossa volta.
paridade, teremos necessidade de um pla- de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL). Por isso, treinar novamente os nossos senti-
neta gêmeo para usar como supermercado dos e aguçar a percepção, são os principais
e retirar as matérias-primas, água, florestas e Camponesa – Como se vinculam os con- instrumentos que pequenos e grandes con-
energia. ceitos de soberania alimentar e economia sumidores devem possuir para se re-apropriar
Se pensarmos ainda que a maior solidária? De que forma o movimento Slow da própria capacidade de decidir com qual ali-
parte dos danos que a nossa terra sofreu até Food se relaciona com eles? mento nutrir-se. Destas considerações, nasce
agora se deve à produção de alimento, como A principal via pela qual realizar um o projeto de Educação do Gosto, destinado a
se nota no relatório da ONU Millennium Eco- percurso em relação ao bom, limpo e justo é educar as crianças para desenvolver a sensori-
system Assesment3, entendemos que a forma aquela da economia para o re-posicionamen- alidade, fazendo-as compreender a importân-
como nos relacionamos com a gastronomia é to dos consumos e das produções agríco- cia dos produtos alimentares como parte inte-
central para o nosso futuro. las. A economia de mercado, assim como a grante da cultura das sociedades.
Comer torna-se um “ato agrário”, e conhecemos e como está organizada graças Com relação ao grande público, a
selecionando alimentos de boa qualidade, também às dinâmicas da globalização, está melhor ideia foi sem dúvida a dos Laboratóri-
produtos com critérios de respeito pelo am- revelando enormes limites econômicos. Seja os do Gosto, que recolhem exigências do con-
biente e pelas tradições locais, podemos fa- do ponto de vista da sustentabilidade das suas sumidor contemporâneo: o desejo do contato
vorecer a biodiversidade e uma agricultura atividades, seja por seu modo de gerar rique- direto, da prova em uma degustação guiada,
igualitária e sustentável. Bom, limpo e justo za. Os seus maiores expoentes são conscientes enfim, a recuperação da sensorialidade; a
são os três adjetivos que definem em modo que “anti-ecologia” começa evidenciar-se cada aproximação do alimento como diversão e
elementar as características que deve ter um vez mais como uma “anti-economia”. ato gratificante mais do que necessidade ou
alimento para responder às exigências de nós, Em um quadro deste tipo – cujas obrigação nutricional; o suprimento da curio-
eco-gastrônomos. Bom, relaciona-se com as causas devem ser identificadas também nas sidade em relação aos alimentos, às vezes rara
sensações de prazer derivadas das qualidades mudanças que sofreram o sistema agrícola e preciosa, unido à gratificação intelectual de
sensoriais de um alimento, mas também à mundial, na industrialização, na centralização conhecer a história e a particularidade.
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6. Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br
Para garantir alimentos bons, lim- “A esfera sensorial do homem do. Conferências, laboratórios, degustações,
pos e justos, o consumidor deve começar a atividades de educação do gosto para crian-
se sentir co-produtor. O tempo do consumi- contemporâneo claramente ças e adultos e, sobretudo a possibilidade de ir
dor terminou: ele literalmente consome o a fundo nos argumentos ligados ao alimento
mundo e é figura chave da sociedade base-
empobreceu” que hoje se encontram nos discursos de todo o
ada na economia de mercado resultando, mundo mas somente em nível superficial, sem
para sua infelicidade, em ser o cúmplice prin- mais estão na base do nosso futuro produtivo aprofundamento. No entanto, o movimento de
cipal do massacre que a terra está sofrendo. se quisermos frear as mudanças climáticas. As ideias que lançamos não se limita somente à
Educando-nos, conhecendo os produtos, os notícias que nos chegam são, no entanto muito estrutura associativa, com Terra Madre nasceu
próprios produtores, as técnicas para alimen- mais preocupantes e, sobretudo, relacionam-se uma rede mundial de pessoas que valorizam a
tar-se melhor e poluir menos, o co-produ- menos com este simples compartimento mas diversidade do nosso planeta e que atuam para
tor, inserido em sua comunidade, torna-se com a modalidade abrangente de produção preservá-lo, para nós e para as gerações futuras.
concretamente e individualmente o motor e de fluidez das reservas. Deve-se então não No próximo 10 de dezembro, para celebrar os 20
de uma verdadeira mudança. O poder que o reiniciar como se nada acontecesse, não in- anos do nascimento do Slow Food, uma grande
consumidor possui simplesmente pelo fato sistir no relançamento de consumos que não jornada de mobilização acontecerá em todo o
de escolher diariamente o próprio alimento podem ser a solução para esta crise. É ne- mundo envolvendo sócios e líderes de todos os
é inacreditável: exercitá-lo com consciência e cessário repensar o modelo de produção que convivia, pequenos produtores, criadores e pes-
responsabilidade é um dever, um ato de civi- todos nós escolhemos e que acreditamos ser cadores de todas as comunidades do alimento
lidade, em relação a si próprios, às próprias único e indiscutível e ter a coragem de confiar e das Fortalezas, professores e estudantes de
famílias, às próprias comunidades e aos novamente nas economias de pequena esca- hortas escolares. Cada um poderá promover o
próprios povos. la, as únicas em condição de dar uma resposta tema central da filosofia do Slow Food: o acesso
eficaz e radical à situação atual, as únicas em a um alimento bom, limpo e justo; a biodiver-
Camponesa – Há quem diga que as raízes da condição de serem auto-suficientes porque sidade; a produção em pequena escala; a so-
fome e da desnutrição no Brasil associam- mantêm uma estreita relação com a própria berania alimentar; o conhecimento das línguas,
se a duas dimensões interdependentes de terra, as próprias tradições, os próprios ali- das culturas e das tradições; a produção que
uma mesma crise de nosso modelo de de- mentos. respeita o meio ambiente; o comércio équo e
senvolvimento: baixo poder aquisitivo da sustentável. Em programa haverá pequenos
população e insuficiência de produção de Camponesa – Como as pessoas podem par- encontros e grandes eventos: degustações e
alimentos para o consumo interno. À luz ticipar do movimento Slow Food? jantares, filmes e concertos que ressaltam a im-
da experiência do movimento Slow Food, Slow Food é uma associação, então portância de um alimento bom, limpo e justo;
como enfrentar essas questões? o primeiro passo é tornar-se sócio, desta forma visita a produtores de Terra Madre, campanhas
O respeito pelo meio ambiente, a cada um pode participar das iniciativas do de sensibilização, atividades de educação ali-
tutela dos territórios, a pureza das águas, a de- próprio Convivium, os grupos locais nos quais mentar e do gosto; encontros entre produtores,
Visite o site da AACC/RN
fesa das variedades vegetais e das raças ani- a associação está organizada em todo o mun- cozinheiros, jovens e outros.
www.aaccrn.org.br
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7. Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br
Entrevista: Angela Küster
O modelo é a agricultura
familiar agroecológica
É preciso fortalecer a soberania alimentar optando pelo consumo de produtos
advindos da agricultura familiar, agroecológicos e da própria região
O
modelo econômico adotado no Brasil parte do pressuposto de que a natureza
está disponível por tempo indeterminado e os custos da degradação dos solos,
da água e do ar ficam para a sociedade enquanto uns poucos enriquecem. Um
novo modelo de desenvolvimento deve “optar mais claramente pela agricultura
familiar agroecológica”, diz Angela Küster. A agricultura familiar deve produzir comida e
não agrocombustíveis, as sementes crioulas devem ser protegidas, o consumidor deve
ser mais seletivo e preferir produtos advindos da agricultura familiar, agroecológicos e da
própria região. O Brasil precisa de mais envolvimento de todos e todas, desde as pequenas
ações que cada um deve fazer no cotidiano – gastar menos água, produzir menos lixo, an-
dar mais a pé – até o envolvimento nas questões políticas”, conclui.
Angela Küster é doutora em Ciência Política pela Universidade Livre de Berlim. Foi as-
sistente de coordenação e informação das organizações ambientalistas no “Fórum Clima”, em
1995. Em 1989 e 1992 realizou pesquisas em Angola e desde 1996 reside no Brasil, em Fortaleza,
Ceará, onde desenvolveu sua tese de doutorado com apoio da Fundação Heinrich Böll. Desde
2001, coordena projetos da Fundação Konrad Adenauer, escritório Fortaleza. É autora do livro
Democracia e Sustentabilidade – experiências no Ceará, Nordeste do Brasil, publicado pela Funda-
ção Konrad Adenauer, em 2003.
Camponesa – O que é o Projeto Agricultura de políticas públicas; articulação de redes agro- assistencia técnica, falta de infraestrutura e de
Familiar, Agroecologia e Mercado (AFAM) e ecológicas e certificação participativa. organização social.
quais os resultados alcançados por ele até Dentre os resultados alcançados
o presente momento? pelo Projeto AFAM destacamos os indicado- Camponesa – Que avanços a senhora visu-
O Projeto Agricultura Familiar, Agro- res de análise relacionados diretamente ao aliza no fortalecimento da agricultura fa-
ecologia e Mercado – AFAM é co-financiado processo de formação de multiplicadores: 182 miliar e na reforma agrária no Nordeste? O
pela União Europeia e coordenado pela agricultores/as familiares, jovens e técnicos que ainda falta fazer no âmbito das políti-
Fundação Konrad Adenauer Stiftung, tendo formados como agentes multiplicadores em cas públicas?
atualmente como parceiros o Núcleo de Inicia- agroecologia, difundindo e multiplicando No país estão em curso dois modelos
tivas Comunitárias – NIC, o Instituto Sesemar, conhecimentos agroecológicos; 880 agricul- de agricultura – a agroindústria e a agricultura
a Agência de Desenvolvimento Local – ADEL e tores familiares usando tecnologias agroecológi- familiar. Houve avanços no apoio a agricultura
o Centro de Ciências Agrárias da Universidade cas na produção; reflorestamente de três áreas; familiar, mas a agroindústria recebe um inves-
Federal do Ceará - UFC. O Projeto tem por ob- 3 unidades demonstrativas implementadas nos timento muito maior. O Brasil precisa optar
jetivo contribuir com a melhoria da qualidade territórios; 3 cartilhas utilizadas em 09 estados mais claramente pela agricultura familiar agro-
de vida de agricultores(as) familiares no nor- do Nordeste em cursos e outros eventos. ecológica como novo modelo, forçando a agro-
deste do Brasil, com o fortalecimento da orga- indústria a abandonar a produção aos custos da
nização social da agricultura familiar ecológica Camponesa – Que desafios a experiência saúde e do meio ambiente, exportando os bens
e sustentável, viabilizando o acesso aos mer- deste projeto identifica para o fortaleci- públicos para outros países, deixando a devasta-
cados, apoiar processos de sistemas de garan- mento da agricultura familiar no Nordeste? ção dos solos e a poluição da água para trás.
tia participativos e a construção participativa Um dos maiores desafios é a descon- O mesmo vale para a reforma
de conhecimentos agroecológicos. tinuidade de programas governamentais e de agrária. Ela não foi feita de forma decisiva, com
O Estado do Ceará é composto por projetos da sociedade civil, além da precária a integração das políticas públicas para viabi-
184 municípios. Deste total, o projeto AFAM lizar a sustentabilidade dos assentamentos.
atua diretamente em 39 municípios, em três Hoje consta, que a maioria é improdutiva, mas
territórios no Ceará que são: Maciço de Batu- “O desenvolvimento é en- isso porque demora muito tempo para colocar
rité, que congrega 13 municípios; Sertão Cen- tendido como ‘crescimento’ a infraestrutura necessária nos assentamen-
tral, com 07 municípios; e Vales do Curu e Ara- tos. Às vezes, as comunidades esperam 5, 10
catiaçu, com 18 municípios. Trabalhamos nos e assim ainda estamos longe ou 20 anos para receber água, luz, estradas,
eixos de ação: fortalecimento da organização
solidária dos agricultores familiares; construção
de um outro modelo de escolas e outros equipamentos. Assim mesmo,
depois da regularização, as terras continuam
participativa do conhecimento agroecológico; desenvolvimento” improdutivas. E ainda existem muitas terras na
melhoria do acesso aos mercados; formulação mão de poucos empresários.
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8. Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br
Camponesa – Em sua opinião, a agricultura “O Brasil precisa optar mais 19 da Lei nº 10.696 e regulamentado pelo
familiar deve produzir energia usando plan- Decreto 4.772, ambos de 02 de julho de
tas e sementes? Por quê? claramente pela agricultura 2003, tendo como objetivo incentivar a
A opção por agrocombustíveis é in- agricultura familiar. Suas ações envolvem
coerente, primeiro porque ainda tem milhões
familiar agroecológica como a aquisição de produtos da agricultura fa-
de pessoas sofrendo de fome, enquanto se novo modelo” miliar, que são distribuídos para pessoas
destinam áreas enormes para a plantação de em situação de insegurança alimentar ou
cana de açucar e sementes oleosas com o ob- qual a senhora é uma das elaboradoras, a formam estoques estratégicos. Compon-
jetivo de locomover automóveis. obra “História da Alimentação no Brasil”, do o Fome Zero, essas ações integram-
Segundo porque não teve um in- de Luís da Câmara Cascudo, é citada como se a um leque mais amplo de políticas
vestimento maior em tecnologias alternati- referência do tema. Em que medida esta voltadas ao fortalecimento da segurança
vas, nem no transporte público, pois o Brasil obra ajuda a pensar a soberania alimentar alimentar e nutricional do país. Em sua
optou pelo transporte rodoviário ao invés no Brasil? opinião, qual o alcance e o impacto desse
de investir em outros meios como a ferro- O livro “História da Alimentação no Programa na agricultura familiar da
via. Agora, com a descoberta de petróleo Brasil” aborda de uma maneira bastante clara região Nordeste?
no fundo do mar, o agrocombustível voltou a relação da alimentação com a cultura de um O PAA teve um impacto significa-
ao segundo plano, mas não se discute como grupo, evocando a dualidade entre o banal e tivo para a agricultura familiar. Ele incen-
mudar o sistema de transporte de forma que o sagrado contido nela. Certamente esta é a tivou os agricultores a se organizar melhor
se viabilize a mobilidade da sociedade de grande contribuição de Câmara Cascudo para para poderem comercializar coletivamente.
forma coletiva e sem poluir o ambiente, nem a compreensão da soberania alimentar. A compra direta oferece uma oportunidade
explorar as terras. Existem alternativas a es- para acessar o mercado ao mesmo tempo
sas duas opções. Mas o transporte não é dis- Camponesa – Atualmente, muitos governos, em que estimula as prefeituras a comprar
cutido de forma objetiva, o carro não é um têm declarado o seu interesse em preservar produtos dos seus municípios e da região.
meio de transporte, é um fetiche da individu- o ecossistema global e construir um novo Além disso, oferece uma alimentação mais
alidade moderna, um objeto de desejo, que equilíbrio, aderindo ao chamado “desen- saudável para os alunos nas escolas. Ainda é
se procura manter a todo custo. volvimento sustentável”. No plano teóri- difícil para muitos agricultores se organizar
co, é quase consensual a tese de que é e vencer as burocracias para entrar no Pro-
Camponesa – Na região Nordeste do Bra- necessário um novo modelo de desen- grama, mas é importante e como já virou lei,
sil, as sementes crioulas – sementes com volvimento. Por outro lado, há quem se que as prefeituras têm que comprar 30% da
uma grande variedade genética, por serem pergunte: se é desenvolvimento, pode merenda escolar no município, espera-se que
selecionadas nos plantios ao longo de gera- ser sustentável? Como a senhora se posi- o PAA continue nos próximos governos.
ções e adaptadas às condições locais – foram ciona nesse debate?
substituídas por sementes compradas ou Realmente, o conceito de “de- Camponesa – Que papel joga o consumi-
distribuídas pelos governos. Quais as con- senvolvimento sustentável” foi mais um dor na afirmação do princípio da sobera-
seqüências disso e como os agricultores compromisso para conseguir acordos entre nia alimentar?
familiares têm enfrentado essa situação? os governos e empresas, mas o desenvolvi- O papel do consumidor é decisivo
Precisamos urgentemente de um mento é entendido como “crescimento” porque ele tem o poder de comprar ou não
movimento nacional e internacional para sal- e assim ainda estamos longe de um outro um produto. Optando por alimentos industri-
var as sementes crioulas, que estão se perden- modelo de desenvolvimento. As mudanças alizados e/ou importados fragiliza a sobera-
do. De acordo com a FAO (1989), os agricultores são lentas e o processo dos acordos interna- nia alimentar. Ao contrário, para fortalecer a
utilizavam cerca de dez mil espécies de plantas cionais está tomando já décadas, sem que soberania alimentar deve-se optar pelo con-
na agricultura. Atualmente, se estima que 90% vejamos medidas mais drásticas para preve- sumo de frutas, verduras e outros produtos,
da produção agrícola fazem uso de apenas nir as mudanças climáticas e a degradação de preferência da agricultura familiar, agro-
120 espécies. Dessa forma, o agroecossistema ambiental. O problema é que construímos ecológicos, da própria região e considerando
fica vulnerável, favorecendo pragas e doenças, um modelo econômico na hipótese de que as épocas de safra.
alterações climáticas locais e globais, intensifi- a natureza – a terra, a água e o ar – está eter-
cado a erosão e o declínio da produtividade. namente disponível e só entram nos custos Camponesa – Como a senhora tem visto a
Estamos, como muitas outras inicia- de produção a chamada matéria-prima e o participação das mulheres nas experiên-
tivas no Nordeste, procurando conscientizar trabalho. Os custos da poluição dos solos, cias de agricultura familiar no Nordeste?
os agricultores sobre as desvantagens das se- da água e do ar ficam para a sociedade e Que significado tem esta participação?
mentes híbridas e transgênicas. Um exemplo é todos estamos pagando por isso de alguma A participação das mulheres au-
a rede de sementes na Paraíba, as sementes da forma, enquanto poucos enriqueceram. O mentou consideravelmente e muitas vezes
paixão, como são chamados por lá, são guarda- desenvolvimento poderia até ser susten- são elas, que iniciam a produção agro-
das. Muitas comunidades têm construído casas tável, mas seguramente não dessa forma. ecológica nos seus quintais, garantem a se-
de sementes ou bancos de sementes, onde es- E na palavra em português, poderíamos gurança alimentar da família e ainda levam
tocam e trocam as sementes. Na Paraíba avan- deixar o “des” fora, que é até negativo, e os produtos para as feiras. As mulheres são
çaram também com uma lei, que reconhece as falar mais de um envolvimento. Precisamos cada vez mais reconhecidas como agriculto-
sementes crioulas como sementes, e não como do envolvimento de todos e todas desde ras e a agroecologia mudou a vida de muitas
grãos. Assim se viabiliza que o Governo possa as pequenas ações que cada um deve fazer delas, mostrou perspectivas para a sua eman-
distribuir as sementes crioulas. Precisamos no cotidiano – gastar menos água, produzir cipação. Precisamos, agora, também aumen-
de iniciativas como essas nos outros estados menos lixo, andar mais a pé – até o envolvi- tar a participação dos jovens, para que eles
nordestinos. mento nas questões políticas. tenham também orgulho de serem agricul-
tores e agricultoras e não deixar mais as suas
Camponesa – Na cartilha “Agroecologia Camponesa – O Programa de Aquisição de terras para tentar sobreviver nas grandes ci-
– garantindo a segurança alimentar”, da Alimentos – PAA foi instituído pelo Artigo dades superlotadas.
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9. Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br
Entrevista: Henrique Carneiro
O modelo alimentar do
fast-food é pernicioso
Comer é um ato social na medida em que o alimento revela
a forma como as sociedades se abastecem e se organizam
política, social e culturalmente
O
“ modelo alimentar do fast-food derivado de uma cadeia
alimentar agroindustrial é pernicioso do ponto de vista da
saúde e da autonomia e identidade cultural dos povos da ter-
ra”, afirma Henrique Carneiro, que considera o livro “História
da Alimentação no Brasil”, de Luís da Câmara Cascudo, o “mais impor-
tante, pela amplitude e erudição” na historiografia da alimentação no
Brasil apesar do “ecletismo teórico” e de “um excessivo empirismo”.
Nesta entrevista à Revista AACC/RN, Henrique Carneiro afirma ainda
a condição onívora do ser humano embora, no século XX, as popula-
ções dos países ocidentais tenham retomado o vegetarianismo por in-
fluências orientais mas, também, como “atitude de crítica ao modelo
agroindustrial devido a suas conseqüências nefastas do ponto de vista
socioambiental”.
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo
(USP), com a tese Afrodisíacos e alucinógenos nos herbários modernos:
a história moral da botânica e da farmácia séculos XVI ao XVIII, Henrique
Carneiro é professor de História Moderna da USP, tem experiência na
área de História, onde leciona e desenvolve pesquisas em História da
Alimentação, das Bebidas e das Drogas. Entre suas principais publicações
estão os livros: Comida e sociedade. Uma história da alimentação. Rio de
Janeiro: Campus, 2003, e Pequena enciclopédia de história das drogas e
bebidas. 1. ed. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2005.
Camponesa – Qual a finalidade do ato um excessivo empirismo, não diminuem a ausência de liberdades durante o próprio
de comer? Em que medida “somos o que importância desta obra. regime militar.
comemos”?
Obviamente, os organismos vi- Camponesa – Como esta obra pode ajudar a Camponesa – Historicamente, que relação
vos se alimentam para repor a energia pensar a soberania alimentar no Brasil? se estabelece entre o consumo de alimen-
perdida e constituir os seus corpos. Mas Este aspecto é menos presente tos de origem animal e a dieta vegetari-
esse ato biológico nutritivo se torna o mais no livro de Cascudo, mais voltado para ana? O ser humano é, por essência, um ser
importante socialmente, revelando tanto a os aspectos socioculturais do que para a carnívoro? Quais as conseqüências disso?
capacidade econômica das sociedades se elaboração de políticas concretas relativas O ser humano, desde a domesti-
abastecerem, como a forma social e política ao tempo presente, no sentido político o cação dos grãos e dos animais, na chamada
de dividirem a comida e os demais produtos autor foi bastante conservador e vincu- revolução neolítica, viveu predominante-
e, de forma talvez ainda mais significativa, lado aos poderes vigentes, sem grande mente de cereais e outros produtos vegetais.
plasmando um conjunto de hábitos e regras crítica aos aspectos de injustiça social e de A carne sempre foi alimento de luxo, aris-
culturais sobre os alimentos. tocrático. Apenas no século XX que os deriva-
“O modelo agroindustrial dos da carne se tornaram um consumo pre-
Camponesa – Que lugar ocupa a obra dominante em certos países industrializados,
“História da Alimentação no Brasil”, de globalizado traz danos so- como os EUA, causando diversos problemas
Luís da Câmara Cascudo, na historiogra- de saúde, tais como obesidade e males car-
fia da alimentação no Brasil?
cioambientais irreparáveis, diovasculares.
É até hoje, certamente, o livro mais devido ao uso excessivo O ser humano é onívoro. O debate
importante, pela amplitude e erudição. Suas sobre o consumo de carne é muito antigo.
debilidades: um ecletismo teórico e mesmo
de fertilizantes” Os hinduístas condenam a carne. Pitágoras
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10. Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br
“O modelo alimentar do
fast-food derivado de uma
cadeia alimentar agroindus-
trial é pernicioso do ponto
de vista da saúde e da auto-
nomia e identidade cultural
dos povos da terra”
no Ocidente, e depois Plutarco e, na Idade
Média, os cátaros, hereges combatidos e
massacrados pela Igreja, foram todos vege-
tarianos. No século XX, houve uma retoma-
da do vegetarianismo nos países ocidentais
devido a mudanças culturais, abertura à in-
fluências orientais e uma atitude de crítica
ao modelo agroindustrial devido a suas
conseqüências nefastas do ponto de vista
socioambiental.
Camponesa – Nesses tempos de globaliza-
ção, observa-se a ocorrência de uma pa-
dronização cada vez maior dos produtos
consumidos, dos comportamentos alimen-
tares e dos gostos. Caminhamos para for-
mas de alimentação idênticas entre dife-
rentes povos? Que implicações têm isso?
O modelo agroindustrial globalizado
traz danos socioambientais irreparáveis, devi-
do ao uso excessivo de fertilizantes, alterando
o ciclo do nitrogênio e produzindo eutrofia
nas águas, e também do uso de agrotóxicos,
monocultura e sementes transgênicas, que,
diferentemente da agricultura familiar, levam
a desigualdade social, concentração de renda,
poluição, aumento do aquecimento global.
Além disso tudo, o modelo alimentar do fast-
food derivado de uma cadeia alimentar agro-
industrial é pernicioso do ponto de vista da
saúde e da autonomia e identidade cultural dos
povos da terra.
Camponesa – Que desafios se apresentam
à pesquisa historiográfica no campo da
alimentação?
A maior de todas é obter fontes,
Próximo número da
pois quanto mais remoto o período histórico
mais as fontes são escassas. Depois é pre-
ciso diferenciar os grupos sociais internos
a cada sociedade, pois as suas práticas e
representações alimentares não são as mes-
mas. Finalmente, é preciso comparar sempre
Camponesa:
Eleições 2010:
e o máximo possível para tentar escapar dos
particularismos e tentar alcançar descrições
mais dinâmicas e abrangentes que devem
ir em direção de uma história “total”, como
dizia Lucien Febvre1, fugindo de uma histo-
o que vem lá?
riografia que faça dos próprios alimentos um
sujeito histórico.
1 Lucien Febvre, nascido em 22 de julho de 1878 e
falecido em 11 de setembro de 1956, foi um historiador francês,
co-fundador da chamada “Escola dos Annales”.
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11. Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br
Entrevista: Neneide Lima
“Eu gosto de ser trabalhadora rural”
Francisca Eliane de Lima conta como surgiu a experiência produtiva do Grupo de
Mulheres Decididas a Vencer, do Assentamento Mulunguzinho, em Mossoró, e
mostra as mudanças que este acontecimento provocaram em sua vida e na vida
de outras mulheres da região
N
“ o início, a gente não pensava em grupo de
produção. A gente pensava em ir atrás dos direi-
tos. Por que as mulheres eram tão isoladas das
discussões do Assentamento?”, afirma Neneide
Lima, em entrevista concedida à Camponesa, na sede da
Rede Xique Xique de Comercialização Solidária, em Mos-
soró (RN). Neneide fala de onde vem a alimentação das
pessoas que vivem no Assentamento Mulunguzinho, de
como surgiu o grupo produtivo, o que e como produz, o
destino da produção do grupo, a distribuição dos resul-
tados do trabalho, as dificuldades, os apoios recebidos,
as influências que marcam sua trajetória, as mudanças
ocorridas em sua vida e na própria comunidade a partir
dessa experiência. Diz do seu prazer em trabalhar com a
terra e com firmeza acrescenta “não queríamos produzir
só para livrar as hortaliças de produtos químicos e não ter
mais nenhuma preocupação com nada. A gente queria ir
além disso. A gente queria ter um produto agroecológi-
co, não pensar só no valor monetário mas noutras rela-
ções de economia solidária, de agroecologia, da questão
do meio ambiente.”
Neneide Lima é assentada do Assentamento
Mulunguzinho, em Mossoró (RN), onde vivem 112
famílias e cerca de 500 habitantes, e é integrante da
coordenação da Rede Xique Xique de Comercializa-
ção Solidária.
Camponesa – O Assentamento Mulun- compra fora do assentamento são produtos cebolinha, cenoura, beterraba... Só não temos
guzinho, em Mossoró/RN, é constituído que a gente não produz, como arroz, massas o que não é de nossa região, como a batatinha.
por 112 famílias. De onde vem a alimenta- (o macarrão, por exemplo). Têm pessoas que ainda compram batatinha,
ção dessas famílias? O que é produzido e E têm as hortaliças. Como eu sou chuchu, mas o que a gente tem no assenta-
consumido no próprio assentamento? do grupo de mulheres, onde a gente produz mento dá conta. Têm pessoas que têm a di-
A alimentação do assentamento também hortaliças, o Assentamento também versidade no seu quintal. Minha mãe mesmo
vem muito de produtos adquiridos na cidade disponibiliza hortaliça. Tanto eu tenho pra tem a horta dela no quintal. Também é muito
de Mossoró. Como Mulunguzinho fica neste consumo como também o pessoal do As- raro as pessoas no Assentamento comprarem
município, as pessoas vêm fazer feira aqui, em sentamento compra lá na horta. Do coentro à ovo, tem muita galinha lá, tanto se consome a
Mossoró. Só que tem muita coisa que é produ- carne quanto o ovo.
zida lá no Assentamento. Por exemplo: eu não “A gente queria ter um
compro fruta porque hoje, nessa época, eu Camponesa – Você participa do Grupo de
tenho sirigüela, caju, mamão, manga, goiaba,
produto agroecológico, não Mulheres Decididas a Vencer, constituído
acerola. Tudo isso tem no Assentamento, além pensar só no valor monetário por mulheres do assentamento Mulun-
dos produtos que são de sequeiro, de roçado. guzinho. Como surgiu o grupo?
Só compra feijão quem não planta ou quem mas noutras relações de O grupo surgiu a partir da partici-
planta mas tem uma colheita pequena. Quan- economia solidária, de agro- pação de algumas mulheres num evento que
do o meu lote não dá milho, eu compro milho teve aqui em Mossoró, há alguns anos, pro-
do vizinho. Milho e feijão, que são de sequeiro, ecologia, da questão do meio movido pelo Centro Feminista 8 de Março1 e
a gente compra dentro do próprio assenta- ambiente” pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais. E,
mento quando não planta. O que a gente nesse encontro, elas perceberam que existiam
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12. Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br
vários outros grupos de mulheres organizados “O grupo de mulheres surgiu 2 A Marcha Mundial das Mulheres é uma ação do
movimento feminista internacional de luta contra a pobreza e a violên-
e que no Assentamento Mulunguzinho não cia sexista. Sua primeira etapa foi uma campanha entre 8 de março e
existia grupo. Isso foi por volta de 1994. Minha a partir dessa concepção de 17 de outubro de 2000. Aderiram à Marcha 6000 grupos de 159 países
e territórios. As manifestações de encerramento desta primeira fase da
mãe participou dessa atividade, ela era presi-
dente do Assentamento, eu não era inserida
auto-organização e da von- Marcha no dia 17 de outubro de 2000 mobilizaram milhares de mulheres
em todo o mundo, nesta ocasião foi entregue a ONU um abaixo assinado
no processo ainda. tade de dar visibilidade às com cerca de 5 milhões de assinaturas em apoio às reivindicações da
Marcha. Maiores informações: www.sof.org.br/marcha/.
Elas voltaram desse evento decidi-
das a formar um grupo de mulheres dentro
mulheres dentro do Assenta- 3 O Grito dos Excluídos é uma manifestação popu-
lar carregada de simbolismo, é um espaço de animação e profecia,
do Assentamento. Nessa época, não tínhamos mento na luta por direitos” sempre aberto e plural de pessoas, grupos, entidades, igrejas e movi-
mentos sociais comprometidos com as causas dos excluídos. Maiores
ainda nem agrovila. Cada qual morava nos informações: www.gritodosexcluidos.org/.
seus lotes, nas suas casas, e elas andaram a pé sa que fosse iniciativa nossa, que dependesse
nos lotes, de carroça, e conseguiram juntar um do nosso esforço e que também não nos ti- Camponesa – Como se dá a organização do
número de mulheres, e convidaram o Centro rasse de nossas raízes, que era ser trabalha- trabalho no grupo produtivo?
Feminista 8 de Março pra fazer uma reunião dora rural, lutar com a terra, produzir. Foi aí O grupo surgiu com a horta e hoje
com as mulheres. E foi aí que tivemos a nossa que chegamos nas hortaliças, que também nós temos um sistema de produção integrado.
primeira reunião, pra realmente ter um grupo iriam servir pra nossa alimentação. Mas qual Trabalhamos com três produtos ou três ca-
de mulheres no Assentamento. hortaliça? Dessa hortaliça convencional? deias: apicultura, hortifrutigranjeiro e capri-
No início, a gente não pensava em Na época, hortaliça estava no auge, as hor- novinocultura. O grupo de caprino envolve
grupo de produção. A gente pensava em ir taliças orgânicas. Era 8% mais caro no mer- o grupo de mulheres e outras pessoas do as-
atrás dos direitos. Por que as mulheres eram cado e nós pensávamos em ganhar dinheiro, sentamento, trabalha desde a parte de abate
tão isoladas das discussões do Assentamento? em melhorar de vida. E foi aí que a gente até o beneficiamento. O grupo de apicultura é
Da discussão de crédito, de ser sócia da asso- chegou na horta orgânica. Se queremos hor- só o nosso grupo de mulheres. Como a apicul-
ciação porque só quem podia se associar eram ta orgânica, vamos ver no grupo de mulheres tura tem uma demanda pontual, não é perma-
os homens, raramente se tinha uma mulher (30 mulheres), quem se interessa, quem nente, a gente faz a revisão de 15 em 15 dias,
como titular, apenas aquelas que não tinham quer participar. Eu sei que ficamos com nove e faz a colheita no tempo da colheita, três por
marido. Minha mãe foi presidente porque ela mulheres. Começamos nesse projeto, cercar ano. Que é nisso que hoje eu estou participan-
era titular do lote mas a maioria das outras o terreno, adubação natural e as primeiras do porque eu estou liberada pelo grupo para a
mulheres ficavam só em casa, não participa- sementes. Tivemos cursos de formação em coordenação da Rede Xique Xique de Comer-
vam das reuniões. agricultura orgânica porque a gente era acos- cialização Solidária4.
Depois de muito tempo de orga- tumada ao padrão convencional; e cursos de Tem a parte de hortifrutigranjeiros.
nização, a gente percebeu que vinha crédito contabilidade, como fazer a gerência. Hoje, trabalha-se de 6h:30 até 11h e de 15h:30
pras famílias, que era dito que era pra famí- No decorrer do processo, percebe- até às 17h:30. Tem todo um calendário de
lia, mas só quem tinha direito de comprar, de mos que não queríamos produzir só para atividades: desde ações que fazemos juntas
mexer com o dinheiro eram os homens. E foi livrar as hortaliças de produtos químicos e (canteiro, limpar a área...) até outras individu-
aí que reivindicamos ao Centro Feminista 8 de não ter mais nenhuma preocupação com alizadas. Toda terça-feira é dia de plantar can-
Março um encontro de trabalhadoras rurais nada. A gente queria ir além disso. A gente teiro pois trabalhamos no sistema de entrega
onde o tema fosse “Geração de Renda para as queria ter um produto agroecológico, não de cestas, tem que ter planejamento semanal
Mulheres”. E aí foi quando a gente veio para pensar só no valor monetário mas noutras para que todo mês tenha aquela cesta. Tem as
esse encontro e foram convidados vários gru- relações de economia solidária, de agroeco- mulheres que raleiam, as que plantam mudas,
pos de mulheres e várias agências financiado- logia, da questão do meio ambiente. Che- a que cuida da bandeja. E, além da produção
ras. E teve uma agência que se interessou pelo gamos a ter mais de 60 variedades de coisas em si, a gente é quem faz a gestão, aí tem a
grupo de Mulunguzinho. dentro da horta. Ficou um negócio muito contabilidade, tomar de conta dos recibos, das
1 Centro Feminista 8 de Março é uma organização
cheio, muito diverso. Teve um período que notas. Esse manejo é feito entre essas cinco
feminista que acompanha grupos de mulheres e jovens mulheres resolvemos trabalhar só com 15 produtos mulheres.
da periferia de Mossoró, assentamentos da zona rural da cidade e
municípios vizinhos da região. Articula também atividades, cursos,
porque não tínhamos condições de ficar com A horta produz alface, coentro, ce-
seminários e palestras junto aos movimentos sociais rurais e urbanos. tanta produção. bolinha, beterraba, cenoura, jerimum, rúcula,
Maiores informações no site: www.cf8.org.br.
berinjela, pimentão, toda essa variedade.
Camponesa – O grupo produtivo: o que e Camponesa – Quantas mulheres partici- Além disso tem as frutas, temos mamão, goia-
para quem produzir? pam do grupo atualmente e o que o grupo ba, manga, acerola. E outras coisas, como a
Tivemos muita reunião pra dis- produz? macaxeira.
cutir o que a gente queria. A gente pensou Nós temos o grupão e o grupo produ- 4 A Rede Xique-Xique de Comercialização Soli-
daria constituída em 2003, é resultante de um processo de con-
em beneficiar uma fábrica de doces porque tivo. O grupão discute essa parte organizacio- strução coletiva com participação de grupos produtivos de áreas
existia um megaprojeto de irrigação lá em nal, essa parte que discute direitos, saúde, rei- reformadas de nove municípios: Apodi, Baraúna, Grossos, Gover-
nador Dix-Sept Rosado, Janduis, São Miguel do Gostoso, Mossoró,
Mulunguzinho, que até hoje ainda existe. vindicações para o Assentamento, participa da Serra do Mel e Touros. Em sua maioria, esses grupos são formados
Como estava no início, pensamos em fazer Marcha Mundial das Mulheres2, do Grito dos Ex- por mulheres, que produzem mel de abelha, castanha de caju,
artesanato de palha, sisal e sementes, marisco, além de derivados
doces das frutas que vinham desse projeto cluídos3, do Encontro dos Trabalhadores Rurais, da caprinocultura e hortifrutigrangeiros, seguindo os princípios
e, também, desse recurso a gente ia comprar que está muito na discussão política e do As- da agroecologia. A Rede tem sede em Mossoró, cidade-pólo da
Região Oeste do Estado do Rio Grande do Norte.
freezers, uma estrutura e tal. Depois refle- sentamento, e temos o grupo produtivo. Hoje o
timos: “Ora, vamos começar uma coisa pra grupo produtivo tem só 5 mulheres e o grupão Camponesa – Qual o destino da produção
depender dos outros, dos homens?”. A gente tem pouco mais de 20 mulheres. do grupo?
continuaria dependendo dos homens. E ain- O grupo de mulheres surgiu a par- A alimentação no próprio Assenta-
da bem que a gente desistiu disso porque até tir dessa concepção de auto-organização e da mento e a Rede Xique Xique de Comercialização
hoje ainda não vi fruta desse projetão. vontade de dar visibilidade às mulheres dentro Solidária, para o grupo de consumidores que te-
Depois pensamos em criar galinhas do Assentamento na luta por direitos, por igual- mos, a quem fazemos a entrega de cestas.
mas logo desistimos. A gente queria uma coi- dade. Só depois é que surgiu o grupo produtivo. Quando decidimos produzir hor-
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13. Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br
taliças já pensamos em pra quem íamos “Se hoje nós temos crédito, ria técnica com as agrônomas. Hoje, até a Pre-
vender. O Centro Feminista 8 de Março, a Terra feitura disponibiliza um agrônomo que está lá,
Viva5, a AACC/RN, a COOPERVIDA6 começaram como trabalhadoras rurais, é também, junto.
a convidar pessoas que gostariam de con-
sumir hortaliças. Marcavam uma reunião
porque alguém se organizou 8 A Visão Mundial é uma organização não governa-
mental cristã, brasileira, de desenvolvimento, promoção de justiça
com essas pessoas e nós vínhamos. Era uma e foi buscar isso” e assistência, que, combatendo as causas da pobreza, trabalha com
crianças, famílias e comunidades a fim de que alcancem seu poten-
festa. A gente vinha para o que chamávamos cial pleno. Dedica-se a trabalhar lado a lado com as populações mais
de “assembleias” pra discutir a quem iríamos pelas hortaliças não pensamos nisto. Hoje nos vulneráveis e a servir a todas as pessoas, sem distinção de religião,
raça, etnia ou gênero. Nos mais de 100 países onde atua, a Visão
entregar essas verduras. Antes da Rede Xique preocupamos muito em como poupar, como Mundial trabalha com uma ferramenta chamada Programa de De-
Xique, criamos a “Associação dos Parceiros da reduzir, a história das “coberturas mortas”7, senvolvimento de Área – PDA. A tecnologia do PDA fortalece nas
comunidades as noções de cidadania, mobilização comunitária e
Terra – APT”. A gente produzia o que as pes- todo esse manejo. Essa é uma dificuldade pela defesa de direitos, com foco nas áreas de educação, saúde e segu-
soas queriam, entregávamos a cesta padrão qual a gente paga caro. Por isso que hoje a rança alimentar, desenvolvimento econômico, agroecologia, orga-
nização comunitária, promoção de justiça, formação sociopolítica e
e, nessas assembleias, discutíamos o preço. horta não tem um rendimento melhor. compromisso cristão, além de socorro e reabilitação em situações
Toda semana a pessoa recebia uma cesta, que Outra coisa é a mão-de-obra de emergência. É a esta ferramenta que Neneide está se referindo.
Maiores informações: www.visaomundial.org.br/.
tinha tudo o que produzíamos no Assenta- porque nós escolhemos uma atividade, que
mento e a gente entregava nas entidades. Es- a maioria das mulheres dentro do assenta- Camponesa – A Rede Xique Xique de Co-
sas pessoas do grupo de consumidores eram mento não tem condições de trabalhar, por mercialização Solidária, que atualmente
de classe média, pessoas da universidade, serem idosas ou terem muitos filhos. Por conta com mais de 50 grupos participantes,
médicos etc. Chegamos a entregar de 50 a 60 mais que as pessoas pensem que a igual- teve seu início na experiência de organiza-
cestas por semana. As pessoas vinham pegar dade já existe mas a gente sabe que ainda ção, produção e comercialização do Grupo
nas entidades. tem muita desigualdade, as mulheres não de Mulheres Decididas a Vencer. Como a
Atualmente, o grupo de consumi- tem com quem deixar os filhos. Como a Rede Xique Xique fortaleceu o trabalho do
dores tem cerca de 30 a 40 participantes. Varia horta necessita de mão-de-obra diária, te- Grupo de Mulheres Decididas a Vencer?
muito. Algumas pessoas se mudam, outras mos muita dificuldade. Tentamos agora en- Quando a gente começou com a “As-
saem do grupo e depois voltam. volver algumas jovens mas o trabalho é muito sociação de Parceiros da Terra – APT”, tivemos
5 O Centro de Apoio ao Desenvolvimento da Agri- pesado. A gente disse que elas ficariam na muitos intercâmbios. Fomos visitar uma ex-
cultura Familiar - Terra Viva, foi constituído em 03 de outubro de parte mais maneira de limpar os canteiros, periência em Fortaleza, juntos com outros
1997, por um grupo multidisciplinar de profissionais autônomos,
inicialmente sob o nome de Cooperativa de Trabalho para a Agricul- limpar com a mão, ralear, mas elas não grupos de Apodi, e lá nessa visita, percebemos
tura Familiar do Oeste Potiguar - Terra Viva. O Centro Terra Viva vem conseguiram. Não queríamos funcionárias, que existia também entrega de cestas e que
desenvolvendo, ao longo desses anos, ações baseadas em metodo-
logias sintonizadas com as características dos trabalhadores e das queríamos pessoas que se sentissem donas, não era só hortaliça. Tinha queijo, galinha,
trabalhadoras dos assentamentos da Reforma Agrária e comunidades parte do processo. outras coisas. E a gente veio com a ideia de
rurais, nos mais diversos programas e projetos de assessoria técnica e
capacitação. Maiores informações: www.terravivarn.org.br/. Um dos critérios que a gente usa criar isso aqui em Mossoró. De deixar de ser o
6 A Cooperativa de Assessoria e Serviços Múltiplos para entrar no grupo de produção é que, grupo de Mulunguzinho, que entregava cestas,
ao Desenvolvimento Rural – COOPERVIDA é uma entidade que
desenvolve suas ações voltadas para o desenvolvimento rural, numa pelo menos, a pessoa passe pelo grupo de e pensar em algo maior, que envolvesse outros
perspectiva agroecológica, pautada na equidade de gênero e gera- mulheres pra ter o convívio de trabalho com grupos, outras cooperativas, outras pessoas.
ção, que tem como missão “trabalhar atividades que promovam o
desenvolvimento sustentável, considerando a cultura e os recursos outras pessoas. Junto a isso, o PDA (da Visão Mun-
naturais existentes, promovendo/potencializando a transformação
7 “Cobertura morta “ é a prática agrícola de cobrir a dial) estavam pensando em construir uma
da sociedade, mediante a construção de novos valores que pos-
sibilitem a igualdade de gênero e etnia, melhorando a qualidade
superfície do solo com uma camada de material orgânico, como a Central de Comercialização para os grupos
palha ou cascas que sobraram de outros cultivos. Visa proteger o solo
de vida e o exercício da cidadania”. Maiores informações: http://
do impacto direto das chuvas e da radiação solar mediante a colo- e famílias que acompanhavam. Existia uma
coopervidarn.org/?pagina=acoopervida.
cação de materiais diversos sobre a sua superfície. Ajuda também a produção e não tinha onde as pessoas escoar
manter a umidade do solo, dificulta o aparecimento do mato, evita
Camponesa – Como o resultado da a evaporação da água e mantém o ponto de aeração do solo que é a esta produção. Decidimos somar com a ideia
produção se distribui entre as partici- circulação do ar nos espaços do solo, essencial a respiração das raízes do PDA, chamar outras entidades e construir
das plantas e demais organismos vivos.
pantes? essa Central juntos. Achamos o nome Central
Cada pessoa tira, durante o dia, o Camponesa – O grupo conta com algum muito pesado e juntos pensamos em construir
que necessita pra se alimentar. Isso é uma tipo de assistência ou apoio? Como isso algo que estivesse a altura dos trabalhadores
coisa. acontece? e trabalhadoras, artesãos, grupos urbanos e
A outra coisa, o dinheiro que a gente Nós nunca ficamos sem assessoria. rurais. Não queríamos um mercado conven-
apura vendendo hortaliças, em primeiro lugar, Por mais que as entidades passem por dificul- cional, queríamos uma coisa diferente, onde
é destinado às despesas da horta. Não temos dades, a gente sempre teve apoio ou direta- as relações fossem diferentes. Aí pensamos no
subsídio, a horta se mantém com os próprios mente em assessorias ou em projetos especi- espaço de comercialização solidária e numa
recursos. A gente paga energia, que é altís- ais dessas entidades que eu citei. A AACC/RN carta de princípios que regulasse a participa-
sima porque temos um poço de 1.500m, um sempre contribuiu com tudo que nós temos ção nessa construção.
poço que estava desativado e nós reativamos. e somos. O Centro Feminista 8 de Março tem Nasce a Rede Xique Xique de Co-
Energia do poço e da irrigação da horta. Paga- duas agrônomas que acompanham o grupo. mercialização Solidária
mos esterco (antes a gente ia buscar no cur- O Centro Terra Viva teve um período que dava Começamos a construir isso. O PDA
ral), hoje um carro vem direto deixar; o frete assessoria no Assentamento e também tinha tinha um projeto que bancava o aluguel de
do carro. Terminou isso, tirou o dinheiro das a preocupação de passar lá na horta, de saber um espaço e começamos a ter essa dinâmica
despesas, o que sobra a gente divide em par- como a gente estava. Tem o PDA Margarida de formação e, também, de comercialização.
tes iguais entre as cinco mulheres. Alves8 que sempre está por lá. E a gente tem Surgiu o espaço. Como a gente não perdeu
até consumidores mesmo que ajudam, dando essa dinâmica de se reunir, de dialogar, dis-
Camponesa – Quais as principais dificul- assessoria quando a gente precisa. semos: “Não queremos só o espaço”. Não adi-
dades enfrentadas pelo grupo, atualmente? Relação com as Universidades, visi- anta trazer os produtos de Apodi, São Miguel
Já passamos por muitas dificuldades. tas de alunos. Atualmente, a assessoria vem do Gostoso e não ter uma dinâmica em cada
Por estarmos no semiárido, a necessidade de mais diretamente do Centro Feminista 8 de município. Foi aí, depois de um ano, em 2004,
água é muito grande e quando nos decidimos Março, na parte de organização e de assesso- que construímos a Rede Xique Xique. O es-
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