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HELOISA IKEDA
2010
À flor da pele
Quando a mente se fecha e o corpo fala
Copyright © 2010 Heloisa Ikeda
Livro-Reportagem realizado como Projeto Experimental (Voo Solo), exigência parcial
para conclusão do curso de Jornalismo na Universidade de Mogi das Cruzes (UMC).
Orientador: Professor Doutor Sérsi Bardari
Coordenador: Professor Mestre Roberto Medeiros
IKEDA, Heloisa Alencar. À Flor da pele: quando a mente se fecha e o
corpo fala. Projeto Experimental (Voo Solo), Universidade de Mogi das Cru-
zes, Mogi das Cruzes, 2010, 93 p.
Gradução - Jornalismo
Área de concentração: Comunicação Social - Jornalismo
Ilustrações: Heloisa Alencar Ikeda
Diagramação: Heloisa Alencar Ikeda
1. Vitiligo 2. Psicologia 3. Dermatologia 4. Ficção
Este livro é dedicado à minha bisavó Aline, que
veio a falecer em outubro deste ano, enquanto eu
realizava o projeto Voo Solo. Ela viveu até os
90 anos de idade no Mato-Grosso e nunca tive
a oportunidade de conhecê-la, mas sei que, onde
estiver, está torcendo por mim e pelo meu sucesso.
Apresentação........................................................................... 11
O que os olhos não veem..................................................... 15
A descoberta........................................................................... 23
“O que você vai fazer com isso?.......................................... 33
Quem vê cara não vê coração.............................................. 41
O que o mundo diz................................................................ 63
A cura....................................................................................... 73
Posfácio.................................................................................... 77
Sumário
Pare e perceba o que pode estar afetando a sua saúde.
Muitas vezes...
O resfriado escorre quando o corpo não chora.
A dor de garganta entope quando não é possível comunicar as aflições.
O estômago arde quando a raiva não consegue sair.
O diabetes invade quando a solidão dói.
O corpo engorda quando a insatisfação aperta.
A dor de cabeça deprime quando as dúvidas aumentam.
A alergia aparece quando o perfeccionismo fica intolerável.
As unhas quebram quando as defesas ficam ameaçadas.
O peito aperta quando o orgulho escraviza.
A pressão sobe quando o medo aprisiona.
As neuroses paralisam quando a “criança interna” tiraniza.
A febre esquenta quando as defesas detonam as fronteiras da imunidade.
O coração desiste quando o sentido da vida parece terminar.
E as tuas dores caladas? Como elas falam no teu corpo?
Mas cuidado... escolha o que falar, com quem, onde, quando e como!
Crianças é que contam tudo, para todos, a qualquer hora, de qualquer forma.
Passar relatório é ingenuidade.
Escolha alguém que possa te ajudar a organizar as ideias, harmonizar as
sensações e recuperar a alegria.
Todos precisam saudavelmente de um ouvinte interessado.
Mas tudo depende, principalmente, do nosso esforço pessoal para fazer acontecer as
mudanças em nossas vidas!
Este alerta foi colocado na porta de um Espaço Terapêutico.
Que todos aprendam a fazer mudanças necessárias em suas vidas.
Autor desconhecido
Quando a boca cala... o corpo fala
Este livro-reportagem contém uma história fictícia, baseada na his-
tória da autora do livro, cuja vida se assemelha com a da personagem central,
Sarah. A autora escolheu escrever o livro neste formato para que pudesse
explorar o assunto de forma leve e informal, ressaltando a todo o momento
o lado psicológico e humano da doença de pele vitiligo.
Sarah, seus familiares e amigos são todos personagens fictícios. Porém
também existem personagens reais na história. São essas as fontes consulta-
das para a elaboração da reportagem. Dentre elas estão médicos dermato-
logistas, psicólogos e alguns portadores do vitiligo, que aceitaram participar
deste projeto relatando sua experiência com a doença.
Os depoimentos foram coletados pela internet, através da comunidade
“Eu tenho Vitiligo”, no Orkut. Todos responderam ao mesmo questionário
enviado por e-mail, que continha perguntas como: “Há quanto tempo possui
o vitiligo?”, “Como é pra você conviver com o vitiligo?” e “Você já sentiu
algum tipo de preconceito quanto a isso?”. Com isso, foi possível observar o
assunto de diferentes ângulos, já que havia tipos muito diferentes de pessoas
que participaram.
A narrativa apresentada a seguir nada mais é do que uma forma de
ilustrar como é a vida de alguém que possui vitiligo. Os capítulos seguem uma
sequência linear no tempo, começando pelo trauma vivido pela personagem
que deu origem à doença. Depois narram-se o aparecimento das manchas e a
Apresentação
11
descoberta da doença, seguido pela busca por tratamentos dermatológicos e
psicológicos. Seguido pela busca da personagem por mais informações sobre
sua enfermidade, onde descrevem-se os depoimentos de outros portadores e
alguns dados levantados através de pesquisas na internet e bibliográficas. Por
último vem a conclusão da própria personagem sobre tudo o que viveu.
O principal objetivo do livro A flor da pele: quando a mente se fecha e o corpo
fala, é compartilhar experiências, mostrando aspectos e opiniões de pessoas
envolvidas com a doença. O que pensam e como vivem os portadores de viti-
ligo. Quais são suas dificuldades. Também é fundamental mostrar àqueles que
conhecem e convivem, ou até mesmo não estão acostumados a lidar pessoas
que têm vitiligo, o que é e como se comporta essa doença.
O texto segue o gênero narrativo. Segundo Edvaldo Pereira Lima, o
livro-reportagem de um nível superior de complexidade temática e estilística
apresenta características semelhantes ao romance. Ambos visam ao conhe-
cimento da realidade humana e devem construir uma fórmula estética que
torne ao leitor agradável a leitura. Os capítulos têm uma ligação entre si para
que possa haver continuidade na leitura, isso porque se trata de um romance
que relata, através da história da personagem central, o vitiligo da perspectiva
psicológica. Os depoimentos e entrevistas são amarrados a essa história ao
longo da narrativa.
A propósito da leitura desta obra, é importante informar também que
apesar de tratar especificamente sobre o vitiligo, este livro não aborda somen-
te este assunto. Durante a narrativa, a autora toca em uma série de fatores que
estão atrelados ao vitiligo, mas que também podem estar presentes na vida de
pessoas saudáveis. Exemplo disso são os diferentes tipos de traumas que po-
dem levar ao aparecimento da doença. Certamente, existem outras milhares
de pessoas que passaram por situações parecidas, mas que, por não possuírem
certa característica genética, não desenvolveram a doença. Entretanto, podem
levar consigo ainda alguma marca, seja ela física ou não.
Tal aspecto nos faz pensar que o vitiligo nada mais é do que uma forma
de o corpo mostrar que existe algo de errado. Que aquilo que está guardado
dentro da gente, e que muitas vezes pensamos que já está adormecido, conti-
nua nos causando dano. E já que não nos damos conta disso, não procuramos
ajuda e não extravasamos esta angústia. Nosso corpo tenta dar sinais de que
precisa de ajuda através dessas inúmeras doenças de fundo emocional.
12
Por isso não é pretensão afirmar que muitas pessoas iram se identificar
com a história presente nas páginas seguintes. Afinal, nosso corpo reflete
tudo aquilo que somos por dentro. Se estamos tristes, se estamos felizes, se
estamos irritados ou relaxados, é possível perceber apenas num olhar. Trans-
parecemos a todo o instante aquilo sentimos, da mesma forma que estamos
vulneráveis a tudo que vem de fora. Até que um dia nos damos conta de que
não há divisão. Corpo e mente são uma coisa só. Se um não esta bem o outro
não pode estar.
13
Sarah sempre foi uma garota tímida e discreta. Poderia passar des-
percebida em um lugar cheio de gente ainda que estivesse usando um vestido
vermelho com bolinhas amarelas. Ela costumava andar com a cabeça baixa
pra todos os lados. Quando criança sempre foi muito apegada ao que era seu,
a coisas materiais, mas que para ela tinham significado muito maior. Seu co-
bertor, suas bonecas, seus livros, suas canetas e até mesmo seus sapatos. Tudo
aquilo fazia parte do que ela era, e, por isso, tinham tanta importância. Mas
não só por isso. Todas aquelas coisas, apesar de não se moverem, nem fala-
rem, sempre estariam ali com ela. Não a abandonariam. Eles não se importa-
vam se ela estava magra ou gorda. Se ela era alta ou baixa. Se ela sabia ou não
conversar, se ela sabia expressar o que sentia ou se ela gostava de conversar.
Eles eram seus e pronto, faziam companhia a ela e não reclamavam por isso.
Todas as noites, antes de dormir, Sarah unia as mãos e as levava junto
à testa. Fechava os olhos e rezava, esperando que seu anjo da guarda levasse
todos os seus pedidos até Deus. Entre eles sempre estava alguma coisa sobre
conseguir ser mais espontânea mais alegre e menos insegura. Até os seis ou
sete anos de idade, ela não fazia ideia do que eram essas coisas, então apenas
pedia para que os amiguinhos da escola não rissem mais dela, e que sua mãe
não a culpasse por tudo que acontecia de errado.
Quando seu irmão mais novo nasceu, Sarah teve um sério problema
de ciúmes. O comportamento da garota era o de quem queria chamar a aten-
O que os olhos não veem
Capítulo 1
15
ção de todos, mesmo que ela realmente não quisesse isso. Depois de alguns
anos, quando Breno se tornou uma criança travessa, Sarah sempre era culpada
por tudo que ele fazia de errado. Sem contar que ela estava constantemente
ouvindo frases do tipo: “Ê Sarah, presta atenção!” ou “Mas tinha que ser a
Sarah”, por causa de seu jeito estabanado, ela vivia deixando tudo cair no chão
e quebrando coisas.
Apesar de tornarem sua vida um pouco mais complicada, todos esses
fatos não faziam com que Sarah deixasse de ser uma criança normal. Quando
estava perto de pessoas que ela gostava e quando brincava de suas brincadei-
ras preferidas, ela era muito alegre e agitada. Se não tivesse nada que a fizesse
sentir envergonhada ou repreendida, ela não via problema nenhum em soltar
a imaginação e inventar um mundo de coisas para se divertir.
Ninguém a sua volta nunca desconfiou que todos esses pequenos ges-
tos, todas essas pequenas atitudes em relação a garota, um dia pudessem levá-
la a desenvolver uma doença, até então rara. Uma doença que até hoje não
se sabe exatamente como surge nas pessoas, mas que se sabe exatamente que
consequências pode causar na vida de alguém. Nem Sarah, nem seus pais,
nem seus amigos e parentes mais distantes podiam imaginar no que aquilo
iria dar.
16
17
Existem certas situações em nossa vida com as quais acabamos nos
acostumando. Elas acabam virando rotina. No começo, até nos incomoda-
mos com elas. Mas com o tempo, mesmo que ainda não tenham se tornado
algo bom, a gente acaba aceitando. Acaba se acostumando. Mas o que a gente
talvez não saiba, é que mesmo virando rotina, certas coisas não deixam de nos
causar dano. Por mais que estejamos preparados para enfrentar tal situação,
ela ainda nos afeta da mesma forma e com a mesma intensidade da primeira
vez. E quanto mais achamos que tal situação é normal, mais ficamos vulne-
ráveis a ela.
Durante boa parte de sua vida, Sarah acreditou que chorar era o único
meio de refúgio para os seus problemas. A única forma que sempre teve de
desafogar seus sentimentos, tanto bons como ruins. Ela nunca soube dizer,
ao certo, o que fez com que se tornasse uma criança tão tímida e reservada.
Mas sabia que isso fazia com que ela não quisesse nunca compartilhar com
ninguém o que eu estava pensando ou sentindo. Talvez por medo de rejeição.
Talvez por vergonha de ser ridicularizada. Talvez por receio de não ser com-
preendida. Mas seja por qual motivo fosse, ela preferia chorar sozinha no seu
canto a se expor.
Mesmo depois de alguns anos, quando Sarah já não era mais uma crian-
ça indefesa, quando cresceu e passou a entender melhor certos aspectos da
vida, ela ainda não encarava isso como um problema. Aquele era simplesmen-
te o seu jeito de ver as coisas, o seu jeito de lidar com tudo que lhe acontecia.
O que tinha de mal querer ficar sozinha e chorar um pouco? Parecia sempre
ser uma coisa de momento, já que, no dia seguinte, ou até mesmo algumas
horas depois, já havia se esquecido e tudo voltava ao normal.
Na adolescência, porém, as coisas pareciam até mesmo terem se tor-
nado um tanto quanto mais difíceis. Tímida e reservada ela sempre foi, e pa-
recia que sempre seria. Mas quando era criança, ao menos conseguia externar
as suas vontades e a sua criatividade em certos momentos. Por ser criança,
talvez, as pessoas não a julgavam tanto pelo que fazia, pelo que gostava e
pelo que falava. Muitas vezes até a achavam engraçadinha. Porém, depois que
passou dos 12, 13 anos de idade, Sarah tinha que lidar com um mundo que a
encarava de uma forma totalmente diferente. Esse mundo não aceitava muito
bem suas ideias. Não entendia os seus gostos. Não aceitava as suas escolhas.
Não perdoava seus fracassos. O que antes era só mais uma característica de
sua personalidade, agora se tornara um problema mais sério. Algo com o qual,
muitas vezes, ela não sabia lidar.
Parece que toda essa cobrança queria fazer dela uma pessoa que ela não
era. Queria impor a ela regras e padrões a serem seguidos, mas com os quais
ela não concordava. Sarah simplesmente não conseguia ser como a maioria
de seus amigos. Ela adorava conversar e sair, mas quando precisava falar de
si mesma alguma coisa dentro dela a fazia travar. Ela sabia que se, por acaso,
dissesse algo diferente ou incomum, corria o risco de zombarem com a cara
dela. E isso, pra ela, era o fim. A garota não sabia como lidar bem com isso
como a maioria das pessoas. Ficava magoada. E quando ficava, simplesmente
guardava toda a mágoa lá no fundo de seu coração. Tempo suficiente para
conseguir esquecê-la, ou ao menos deixá-la adormecida.
O problema é que essa situação se repetia quase que diariamente. Sarah
estava constantemente reprimindo suas emoções, com medo de se expor aos
outros. Chegava até mesmo a não saber como compartilhar momentos de
alegria com os demais. Expressar-se através da fala era um desafio para ela.
Odiava ser o centro das atenções. Fazia, cada vez mais, o possível para passar
despercebida onde quer que fosse. Ela não tinha ideia do que essa atitude
estava causando a ela mesma. Não tinha ideia do mal que estava fazendo a
si própria. Mas, para ela, era melhor assim. Estava mais segura, fechada e es-
condida dentro do seu universo particular, onde todos os seus sentimentos e
emoções faziam sentido.
Essa atitude poderia trazer segurança e até conforto a Sarah. Mas trazia
também conseqüências não tão agradáveis assim. Primeiro, porque a garota
acabava perdendo a oportunidade de conviver com as pessoas a sua volta.
Apesar de estar ali fisicamente, na maioria das vezes, ela fazia sua mente viajar
a um outro plano, como se estivesse vivendo num mundo de fantasias. Parecia
que só ali os seus sonhos eram plausíveis. Ela sabia o quanto era bom sonhar.
Mas viver sonhando acordada fechava seus olhos para o mundo real.
Quanto mais ela insistia em se fechar em seu mundo de sonhos, mais
queria se afastar do real e viver no imaginário. Com o passar dos anos, isso
acabou de tornando um vicio. Sarah cada vez mais evitava ficar perto das pes-
soas, e cada vez mais se fechava em seu mundo particular. Ela havia encon-
trado ali, o que nunca encontrara em lugar nenhum. Espaço para expressar
suas vontades, seus desejos. Formas de ilustrar e moldar os seus sonhos mais
18
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profundos e surreais. Tudo ali era só dela, ninguém poderia interferir nem
estragar o seu mundo perfeito. E ai de alguém que ousasse querer entrar.
Mais alguns anos a frente, Sarah crescia, mas insistia em continuar vi-
vendo da mesma forma que escolheu, deixando de experimentar experiências
únicas e importantes na vida para se proteger de possíveis desapontamentos.
A garota encontrou também um outro refúgio muito seguro e que pare-
cia trazer ao seu mundo um pouco mais de verdade e o tornava muito mais inte-
ressante. A internet parecia muito mais do que uma janela de comunicação com
o mundo para Sarah. Era um meio através do qual ela podia conhecer pessoas
sem ter que encará-las de frente. Um lugar onde as pessoas, pelo menos num
primeiro momento, não iriam julgá-la pela aparência nem por seus gostos. Pelo
contrário, ela percebeu que através daquela ferramenta, poderia encontrar pes-
soas que compartilhavam dos mesmos gostos, dos mesmos medos, das mesmas
angustias que ela. A internet ampliou os horizontes afetivos de Sarah, mas, por
outro lado, conseguiu afastá-la ainda mais daqueles que estavam a sua volta.
Entretanto, apesar de sempre estar ouvindo criticas sobre sua maneira
de se comportar, Sarah não queria dar ouvidos a nada disso. Afinal, o mun-
do real nunca quis aceitá-la como ela realmente era. Sempre a repreendeu e
sempre a fez sentir vergonha do que era. Então pra que ela iria dar atenção
ao que estavam dizendo agora? Ela encontrara em si mesma e em todos os
seus ‘amigos virtuais’ o que nunca tivera daqueles que estavam ali ao seu lado
o tempo todo. Não se sentia nem um pouco culpada de passar horas na fren-
te do computador nem de passar horas sonhando acordada sozinha em seu
quarto, enquanto todos se reuniam para jantar em família, ou então enquanto
todos os seus colegas de escola saiam pra se divertir.
Apesar de parecer um belo refúgio e de realmente proporcionar bons
momentos a Sarah, essa sua nova filosofia de vida estava lhe causando um
grande e irreparável dano. Algo que ninguém podia perceber. Obviamente
não iriam perceber, porque esse dano não estava visível aos olhos. Pois era um
dano na alma. E como é que se cura uma ferida na alma? Se nem ao menos
podemos vê-la. Talvez possamos senti-la ou até mesmo percebê-la através de
atitudes. Mas dificilmente nos damos conta dela. Não antes de já ter se torna-
do algo profundo e grave.
Como será que o corpo da gente reage quando percebe que algo não
está bem, mas não consegue combater isso através de nossas defesas naturais?
Como lutar contra algo que não sabemos como surgiu e muito menos onde
vai acabar? Nem Sarah, nem as pessoas ao seu redor tinham a resposta.
O tempo passava e aos poucos Sarah crescia e deixava de ser uma
criança. Sem nunca se afastar de seu mundo seguro, onde nada nem ninguém
podiam entrar, ela deixava de amadurecer certos aspectos, fazendo com que
se tornasse uma jovem séria e rancorosa. Estresse e mau-humor eram uma
constante na vida da moça. Qualquer crítica ou qualquer elogio podiam tirá-la
do sério, se ditos nos momentos errados. Ela era como uma bomba relógio.
Guardava toda a raiva e alegria para si mesma. E por isso, parecia que iria
explodir a qualquer momento.
Não importava o quanto os outros dissessem que seu comportamento
não era normal, Sarah continuava do mesmo jeito e não fazia nenhum esforço
para mudar. Nos momentos mais críticos, quando sua armadura parecia que
ia se romper, ela se trancava no quarto e chorava. Às vezes, por horas e horas.
Até que tudo passasse. Ou ao mesmo até que ela esquecesse o porquê estava
ali e o que a havia deixado tão triste.
A irmã de Sarah, Rafaela, era uma das pessoas que mais conseguia me-
xer em suas feridas. Talvez por ser tão próxima e pela pequena diferença de
idade entre as duas, ela sabia exatamente o que dizer para balançar o coração
de Sarah. Ao contrário do resto do mundo, ela vivia sobre o mesmo teto e
sabia de coisas que Sarah preferia que não fossem comentadas. Sobre seus
gostos, sobre suas manias, sobre seus segredos, sobre suas intimidades. Desde
que eram pequenas, Rafaela sempre usou disso para envergonhar a irmã na
frente dos outros.
Uma vez a irmã mais velha de Sarah, a troco de nada, contou as suas
amiguinhas da escola que ela ainda dormia de chupeta. Certo dia Sarah soube
que a irmã contou a um garoto de sua sala que Sarah gostava dele. A garota
não conseguia mais nem olhar na cara do menino, tamanha vergonha que
sentia. Sarah queria morrer cada vez que a irmã fazia isso.
Mesmo depois de mais crescidas, Rafaela não perdia uma oportunida-
de de comentar em público coisas que podiam constranger Sarah. Falava de
alguma artista que ela gostava e que não era considerada tão legal pela maioria
das pessoas; de seu jeito de se vestir e a forma engraçada como andava toda
desengonçada; de seu jeito de falar com as pessoas e como se portava em
público. Como se não bastasse, Sarah sempre foi a ovelha negra da família.
20
Todos insistiam em compará-la com a irmã “perfeita”. Mal sabiam que a úl-
tima pessoa com quem Sarah queria parecer no mundo era com a sua irmã.
Apesar de tudo, ela gostava da irmã e sabia que podia contar com sua ajuda
quando precisasse. Porém sua personalidade e o caráter sempre foram algo
que Sarah repugnava.
O mundo parecia custar a entender que as características que faltavam
a Sarah, não eram exatamente as que ela queria ter. Por exemplo, ela sempre
foi um desastre em qualquer coisa que envolvesse interação com outras pes-
soas. Falar nunca foi muito a sua praia. Era um custo para ela iniciar uma con-
versa com alguém desconhecido. Apresentar trabalhos para classe a faziam
tremer e gaguejar a todo instante. Ao contrário de outras habilidades, essa
era uma que não podia passar despercebida. Afinal, para quase tudo na vida
precisamos lidar com pessoas. Falar, nos expressar. E é por isso que pessoas
quietas demais e tímidas demais chamam tanta atenção. E, com certeza, o que
menos Sarah queria era chamar atenção pra ela mesma.
Cada vez mais o mundo parecia não querer compreender Sarah. E Sa-
rah, cada vez mais, parecia não querer compreender o mundo. Ele lhe causava
medo, e ela não tinha coragem suficiente para enfrentá-lo. Nas poucas vezes
em que tentara se arriscar, saía tão machucada, que não lhe restavam forças
para levantar e seguir em frente. Isso só fazia com que ela se recolhesse e se
fechasse ainda mais dentro de seu mundo particular. Dentro de si mesma.
Privando-se do mal que poderia afetá-la, mas, ao mesmo tempo, privando-se
de muitas experiências boas que poderiam fazê-la crescer.
21
Mesmo que passasse dias tentando se lembrar, Sarah nunca pôde
dizer ao certo quando foi que percebeu uma mancha branca, que crescia gra-
dativamente, em seu ombro direito. Provavelmente, porque no começo, ela
não incomodava nenhum pouco. Não que hoje incomode, afinal ela nunca
foi de se preocupar muito com aparência, nem mesmo com a saúde. Então,
aquela pequena e discreta mancha branca não parecia ser nada demais.
Se ninguém nunca tivesse visto, certamente Sarah não teria comentado
sobre a mancha com ninguém. Mas assim como outras coisas que ela preferia
guardar só para si, sua família acabou percebendo. Em um dia de mais calor,
quando Sarah quis usar uma roupa mais fresca e colocou uma blusa regata,
sua mãe, Tereza, percebeu a mancha em seu ombro. A mãe de Sarah sempre
reparava na aparência física da filha, e normalmente se preocupava com isso
bem mais do que a própria garota. Isso a irritava profundamente. Apesar do
comentário, Sarah insistiu em dizer que não era nada e tentou convencer a
mãe de que não precisava se preocupar.
Isso, porém, durou muito pouco tempo. Pois a mancha parecia aumen-
tar de tamanho a cada dia. E mesmo para uma pessoa tão despreocupada com
aparência e saúde como Sarah, não parecia ser uma coisa normal.
Sarah não fazia ideia de que doença era aquela. Muito menos o que po-
dia tê-la causado. Como qualquer coisa que a gente consegue perceber através
dos sentidos, a garota relacionava aquilo com algo físico. Até porque não era a
A descoberta
Capítulo 2
23
24
primeira vez que ela tinha problemas na pele. Ela teve uma alergia muito forte
por boa parte de sua infância, e fez diversos tratamentos para tentar controlar
aquilo. Mas só depois de muito tempo conseguiu algum resultado. Até que a
tal alergia nunca mais apareceu.
Nos dias seguintes Sarah ouviu constantemente sua mãe dizendo que
ela precisava ir ao médico, porque aquela mancha que crescia a cada dia não
era normal. Na maioria das vezes, a garota fingia não ouvir ou então dava um
jeito de desviar o assunto para que sua mãe esquecesse um pouco dela. Mas
aquilo já estava se tornando insuportável, então Sarah decidiu enfim, ceder às
investidas da mãe e aceitar ir ao dermatologista. Afinal, ela também já estava
ficando no mínimo curiosa para saber do que se tratava aquilo
Porém, a garota ficou na dúvida por mais um bom tempo. Adiar com-
promissos era algo que Sarah havia herdado de família. Sua mãe era expert no
assunto. A consulta com o dermatologista foi marcada apenas mais algumas
semanas depois. Quando a mancha branca de Sarah já havia atingido um ta-
manho considerável e visível.
Tereza não arriscava quando o assunto era saúde, então pesquisou na
internet por algum lugar especializado, para levar a filha. Encontrou a Clínica
Rebucci de Dermatologia que fica localizada no centro de São Paulo. Ligou e
agendou uma consulta para a semana seguinte. A essa altura Sarah já estava re-
zando para que aquilo não fosse nada demais e que o médico não lhe passasse
muitos remédios. Ela tinha pavor de tratamentos médicos. Sempre foi uma
criança muito frágil e vivia com a bronquite e rinite atacadas. Mas, na verdade,
o que mais lhe preocupava era ter que aguentar a sua mãe depois lhe cobrando
quanto a melhora e ao uso dos remédios caros que comprou.
Tentou esquecer disso e, de fato, esqueceu. No dia em que sua mãe
chegou em casa muito antes da hora do almoço Sarah estranhou. Mas apenas
alguns segundos depois se lembrou da bendita consulta que haviam marcado
para ela. Fez aquela cara de total desânimo quando a mãe entrou na sala e
ela ainda estava de pijamas na frente da tevê vendo desenhos animados. Era
janeiro e as aulas de Sarah no colégio ainda não haviam recomeçado. Sarah já
preparava os ouvidos antes que a mãe começasse a dizer:
– Posso saber porque ainda está de pijama mocinha? Tenho que te
levar ao médico pra você ver essa sua mancha ai...
Sarah ensaiou um sorriso forçado enquanto se levantava do sofá e co-
25
26
locava os chinelos ao mesmo tempo. Sua mãe estava com toda a razão de
brigar com ela, mas não custava nada ter ligado para lembrá-la, ou então tê-la
acordado pela manhã quando saiu para trabalhar.
– Eu me esqueci completamente que tinha médico hoje, foi mal... Vou
lá me trocar rapidão, espera ai... - disse Sarah ao sair apressada da sala ainda
terminando de calçar os chinelos que custavam a entrar nos pés com meias.
Ela subiu as escadas correndo, como sempre fazia, mesmo quando não
estava com pressa alguma. Foi em direção a seu quarto. Pegou qualquer rou-
pa, vestiu rápido e penteou os cabelos. Deu uma rápida passada no banheiro
para se olhar no espelho. Nisso sua mãe já gritava lá de baixo, impaciente:
– Anda Sarah, vamos nos atrasar pra consulta! E você ainda vai cair
dessa escada correndo desse jeito filha!
Os comentários da mãe sempre entravam por um ouvido de Sarah e
saiam pelo outro. Mas, como sempre, tudo que a mãe dizia acabava aconte-
cendo. Certo dia, Sarah tropeçou ao subir a escada correndo e cortou o joelho
tendo que levar três pontos.
Sarah abaixou o olhar e ajeitou o cabelo, que mesmo depois de pen-
teado ainda estava meio fora do lugar. Tereza apenas se levantou do sofá e
caminhou até a porta da frente. Sarah a seguiu até o carro e entrou no banco
do carona. Mesmo já tendo seus 12 anos de idade, ela ainda achava um barato
poder andar no banco da frente do carro. Se divertia só de olhar a rua dali,
mas toda sua alegria passou quando a mãe parou o carro e ela se lembrou
para onde estavam indo. Desceu calmamente e continuou seguindo a mãe
até a entrada da clínica. Esperou que ela falasse com a recepcionista e depois
foram à sala de espera.
O consultório era bem iluminado e todo decorado. Havia inúmeras
revistas numa mesinha ao centro. Nenhuma delas despertou o interesse de
Sarah. Antes mesmo que pudesse pensar em pegar alguma para ler, o médico
chamou por seu nome: A garota e a mãe se levantaram do sofá da sala de
espera e foram até a sala do médico. O doutor Paulo Luzio, como ela ouvira
a mãe dizer diversas vezes a atendente quando chegaram, cumprimentou as
duas gentilmente e pediu para que sentássemos. Sarah, como sempre, ficou
quieta enquanto a mãe explicava para o médico qual era o problema.
Após ela falar, o médico apenas pediu para que Sarah fosse até a maca
e lhe mostrasse a mancha. Ele olhou cuidadosamente e até usou uma luzinha
para examinar melhor. Nem meio minuto depois, ele guardou a lanterninha e
olhou de Sarah para sua mãe ao dizer:
– Ela tem vitiligo.
“Viti... o que?” disse Sarah em pensamento. Nunca tinha ouvido falar
nada sobre aquilo. Pelo nome, parecia ser algo grave, e pela cara que a sua mãe
fazia, ela achava o mesmo. O médico, porém, ao perceber a expressão das
duas, deu um leve sorriso e explicou um pouco melhor.
– Não é nada grave, pode ficar tranquila.
O que ele disse, porém, não tirou a interrogação que se formara no
rosto de Sarah. Ela continuava a não saber do que se tratava. Ela queria enten-
der melhor o que estava se passando consigo mesma, então resolveu engolir
a timidez e perguntar:
– Mas o que é viti... essa doença ai? Como foi que eu peguei isso?
– Vitiligo - disse o médico, enquanto dava uma leve risada - é uma do-
ença que dá manchas brancas na pele. Existem vários tipos de vitiligo. Não é
uma doença contagiosa e nem transmitida por vírus ou bactéria. A principal
causa, para todos os tipos é o estresse. Geralmente, o vitiligo não é uma do-
ença agressiva. A maior parte das pessoas tem poucas manchas pelo corpo,
mesmo anos após descobrir a doença. O estresse funciona como um desen-
cadeador, pois a pessoa tem que ter uma genética que permita ela desenvolver
a doença. E o estresse vai fazer o gene funcionar.
Ele falava de forma clara e compreensível, mas, mesmo assim, aquilo
ainda não estava fazendo muito sentido para Sarah. “A principal causa é o es-
tresse?” Ela repetiu a frase em sua mente em forma de pergunta. Olhou para
os próprios pés, concentrada, pensativa. O médio pediu para que ela descesse
da maca e que se sentasse novamente ao lado da mãe. Certamente ele perce-
beu que tanto a garota como sua mãe ainda estavam cheias de dúvidas.
– Vou explicar melhor para que vocês possam entender - pontuou dou-
tor Paulo ao retomar o seu lugar atrás da mesa.
Ele pegou uma caneta e um papel em branco e começou a desenhar.
Sarah prestou atenção os rabiscos do médico, tentando entender que desenho
sairia dali. Ele a fez lembrar de suas aulas de Ciências. Pois os professores sempre
desenhavam as coisas para ficar mais fácil de entender. Mais tarde, Sarah desco-
briu que o médico que a consultara também era professor. Ela não tirou os olhos
da folha até que ele terminasse o desenho, depois voltou a olhar para ele.
27
28
– Essas são as três camadas da pele - explicava o médico - Na parte de
baixo da epiderme existe uma célula chamada melanócito, que são as células
responsáveis pela formação do pigmento da pele, a melanina. Em momentos
de estresse, os nervos liberam substancias que são capazes de matar os me-
lanócitos. E a pigmentação da pele não pode mais ser produzida. A morte
dessas células é um processo muito demorado, mas não temos como evitar
que isso recomece em novos períodos de estresse, por isso alguns tipos de
vitiligo não tem cura.
Sarah fez uma expressão de choque enquanto um pensamento invadia
a sua cabeça. “Legal, ele ficou explicando tudo isso só pra dizer no final que a
doença não tem cura?”. Justamente agora que Sarah já estava cogitando a pos-
sibilidade de aceitar começar um tratamento para se ver livre daquela mancha
e de todas as complicações que ela trazia, como a mãe enchendo sua cabeça
o tempo todo. Antes que Sarah pensasse em dizer qualquer coisa, Tereza se
adiantou perguntando:
– Não tem cura, mas é possível tratar, não é doutor?
– Claro que sim - disse ele, para o alivio da mãe de Sarah - Existem
vários tipos de tratamentos possíveis para o vitiligo. Há casos em que con-
seguimos repigmentar quase que 100% das áreas afetadas. No caso da Sa-
rah, o vitiligo dela é do tipo segmental. As manchas aparecem muito cedo
e espalham-se rapidamente pela área afetada, porém a atividade geralmente
cessa após determinado período. Por isso, esse tipo de vitiligo é mais fácil de
ser tratado. Ao contrário do não segmental que se espalha progressivamente
pelo corpo durante toda a vida do paciente, podendo cobrir a pele da pessoa
quase que totalmente.
Os olhos de Sarah se arregalaram ao ouvir a ultima explicação do médi-
co. Ela agora estava na dúvida se ele estava realmente querendo acalmá-la ou
assustá-la. Uma manchinha branca na pele não a incomodava, mas aquilo no
corpo todo não era uma idéia muito agradável. De fato isso seria uma coisa
que incomodaria qualquer um. A garota tentou acreditar então que seu tipo
de vitiligo não pudesse, de repente, virar o outro tipo, sempre com medo de
fazer certas perguntas que pudesse obter uma resposta indesejada.
– E quais tipos de tratamento existem? - perguntou Tereza, já que a
filha continuava calada, mas concentrada na conversa.
– Muitos. Existem tratamentos clínicos com cremes, pomadas, com-
primidos de diversos tipos. Há também o banho terapêutico, laser e cirurgia.
Porém, mais importante do que o tratamento em si, é a indicação correta
desse tratamento.
O médico dirigia-se diretamente a Sarah, o que indicava que, para ele,
o mais importante era que ela entendesse o que estava se passando. E, mais
do que isso, cabia a ela decidir começar algum tratamento e levar isso a sério,
ou não. Porém, não era bem assim que as coisas funcionavam para Sarah. Ela
normalmente não podia impor suas vontades dentro de casa. Então provavel-
mente, se a mãe quisesse, ela iria fazer o tratamento, querendo ou não.
Ela então deu um sorriso forçado enquanto virava para encarar a mãe,
que parecia estar mais aliviada. Porém, Sarah sabia que ela ainda estava muito
preocupada. Ficaram em silêncio por um momento. Como se tivessem uma
decisão muito difícil pela frente. Antes que o médico voltasse a falar de trata-
mentos, a mãe de Sarah fez uma pergunta que ela nunca iria pensar em fazer,
mas que realmente era importante. As mães sempre sabem o que dizer nas
horas certas, afinal:
– Mas ela precisa tomar algum cuidado especial com a doença?
– No dia-a-dia, nenhum especifico. Nenhum alimento ajuda ou piora
o vitiligo. Geralmente o que a pessoa tem que fazer no dia-a-dia é tomar um
pouquinho de Sol, que ajuda a pigmentar. Geralmente as pessoas fogem do
Sol, mas isso está errado.
– Certo! - disse Tereza pensativa, enquanto olhava atentamente para o
desenho que o médico fizera. - Então o que podemos ir fazendo, enquanto
não tem o diagnóstico completo dela?
Sarah ouvia a mãe falar como se entendesse muito do assunto. Mas sa-
bia o que ela queria dizer. Queria saber logo se havia algum remédio que ela já
poderia ir tomando. Como se isso fosse tirar um peso das suas costas. Dando
a sensação de “dever cumprido”. Ao menos a filha estaria tomando alguma
coisa para melhorar. O médico, muito esperto, entendeu a pergunta da mesma
forma que Sarah, então foi direto ao assunto.
– Bom primeiramente, irei receitar um remédio básico, que é recomen-
dado para todos os tipos de vitiligo e que ajuda na repigmentação - explicou
ele calmamente - E também vou indicar um creme para usar na área das man-
chas. Você deve passá-lo diariamente e expor a pele ao sol mais forte do dia,
de quinze a vinte minutos.
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Mesmo com todas as más expectativas de Sarah quanto àquela consul-
ta, ela não podia esperar uma resposta pior do médico. O tratamento que ele
indicara era tudo o que ela não queria nem precisava naquele momento, nem
em nenhum outro momento. Ela conhecia a si mesma o suficiente para saber
o quão difícil seria levar a sério um tratamento daquele. Não tinha disciplina
muito menos responsabilidade para tal. Mas que escolha ela tinha? Sabia que
a mãe iria sair do consultório direto e passar na farmácia mais próxima para
comprar tudo e, quiçá, até mais umas outras coisas, como protetores solar e o
que mais ela achasse que devesse.
Sarah ainda tinha um monte de dúvidas em sua cabeça. Mesmo com
toda aquela explicação sobre como surge o vitiligo, ela ainda não conseguia
entender como uma coisa tinha a ver com a outra. Estresse e pele. Emoções
e pigmentos. Sistema nervoso e melanócitos. E o que causara as manchas
nela, afinal? Não conseguia se lembrar de nenhum momento específico que
poderia estar relacionado a isso. Entretanto, a menina não ousara abrir a boca
para pronunciar nenhuma de suas inúmeras perguntas. Preferiu, como sem-
pre, guardar aquilo para si mesma.
– Está bem doutor, ela irá usar o remédio direitinho, eu garanto! - disse
a mulher ao dar um olhar de canto de olho a Sarah, que ela conhecia muito
bem e que significava “Não é mesmo?”. A garota apenas revirou os olhos,
mesmo sabendo que isso irritaria a mãe.
– Assim espero. - respondeu o doutor sorridente - Podem marcar o
retorno com a recepcionista para daqui a um mês, mais ou menos. É o tempo
necessário para podermos ver algum resultado!
A mãe de Sarah apertou a mão do médico ao se despedir. A garota ape-
nas deu o leve sorriso forçado de sempre, ainda se perguntando por que o médi-
co estava tão feliz. Depois de saírem da clínica com a data do retorno marcada,
para a infelicidade de Sarah, as duas entraram novamente no carro e rumaram
para casa. A menina já estava rezando para que a mãe tivesse que voltar ao tra-
balho e não fosse passar o resto do dia em casa. Queria evitar possíveis conver-
sas sobre o assunto que ela não queria mais ouvir falar: o seu vitiligo.
Todavia, Sarah não escapou de umas perguntinhas da mãe ainda no
caminho de casa. Tereza, como sempre, estava querendo saber mais da vida
da filha do que ela normalmente gostaria de compartilhar. Mesmo sabendo
desse empecilho, ela não desistia de tentar arrancar algo da garota.
– Então, você ouviu o que o médico disse. Tem que usar o remédio
direitinho se quiser ter algum resultado!
“O que? Ele não disse nada disso. Você disse! E ele apenas concor-
dou...” pensava Sarah ao ouvir o que a mãe dissera. Para tentar encurtar ao
máximo possível aquela conversa, que mais seria um monólogo, ela murmu-
rou apenas um “uhum”. Em vão, porém, a mãe continuava a falar desenfrea-
damente, esperando suas respostas.
– E você prestou atenção quando ele disse que a causa do vitiligo é o
estresse? Não entendi muito bem aquele desenho que ele fez, mas acho difícil
que, no seu caso, a causa seja essa. Você não se estressa com nada. Nunca
responde as provocações, nem nada. Não tem nada com que se preocupar na
vida. Tem tudo na mão. Como pode ter uma doença devido ao estresse?
“Talvez esse seja o meu problema, mãe!” bradava a garota quase aos
gritos. Porém, apenas em sua mente, deixando as palavras entaladas na gar-
ganta. Respirou fundo engolindo toda a raiva e desceu do carro, deixando a
mãe sem resposta. Correu na frente, para entrar em casa e subir logo para seu
quarto. Tentou não bater a porta para não deixar explicita sua revolta. Deitou
na cama e enfiou a cara no travesseiro. Tentou segurar ao máximo, mas não
aguentou. As lágrimas começaram a cair de seus olhos ao mesmo tempo em
que o aperto no peito aumentava.
Por que o mundo não a deixava em paz, afinal? Ela não via problema
nenhum em não querer falar com ninguém, e nem dividir as suas emoções. Por
que seu corpo não podia lidar com isso? Por que insistia em expô-la daquela
forma? Ninguém precisava saber que ela tinha um problema. Mas agora, com
o vitiligo, não seria possível esconder. Estava ali, exposto, marcado em sua
pele. Para quem quisesse ver. Alheio a todo e qualquer julgamento, que não
faziam falta a Sarah, mas com os quais ela iria ter que conviver a partir dali.
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Sarah nunca foi muito fã de médicos e hospitais. Talvez esse fosse
até um trauma de infância, já que devido a sua saúde debilitada passou um
tempo considerável dentro desses lugares. Mas esse não era o único motivo
pelo qual ela não se animava com nenhum dos inúmeros tratamentos que ten-
tou fazer para combater o vitiligo. Ela nunca foi responsável nem disciplinada
o bastante para levar a sério um tratamento médico tão longo como aqueles
que os médicos lhe passavam. Mas, com a insistência dos médicos e de sua
mãe, acabou fazendo, ou pode-se dizer que ao menos tentou.
Das primeiras vezes, lhe receitaram comprimidos e um creme. Tudo
feito em farmácias de manipulação. Sarah achava o máximo quando ia bus-
car os remédios e eles vinham com o seu nome escrito na embalagem. Mais
tarde, ela teve que trocar os comprimidos por um tipo de xarope, devido a
sua dificuldade de engolir as cápsulas. O mais chato era que, além de passar
o tal do creme, Sarah tinha que se expor ao Sol por 15 minutos. E não podia
ser qualquer Sol, tinha que ser o mais forte, das 11h da manhã às 2h da tarde.
Dá pra contar nos dedos as vezes que ela fez esse procedimento da maneira
correta.
Depois de quatro meses, Sarah interrompeu este tratamento, porque
era muito demorado e cansativo e não estava surtindo muito efeito. O médico
havia dito que a mancha estava começando a repigmentar, mas Sarah não
conseguiu ver nada de diferente nela. Algum tempo depois, sua mãe a levou
“O que você vai fazer com isso?”
Capítulo 3
de novo ao dermatologista. Muito contrariada, Sarah até tentou dizer à mãe
que a mancha não a incomodava tanto assim e que não ia adiantar começar
outro tratamento, já que o anterior não tinha dado resultado. Porém, de nada
adiantou, Tereza praticamente arrastou a filha até o consultório de outro mé-
dico, dizendo que a garota não sabia o que era melhor para ela.
O outro dermatologista receitou a Sarah um tratamento, muito pareci-
do com o que ela já havia feito. Em uma das consultas posteriores, ele chegou
até a aplicar nitrogênio líquido sobre a sua mancha, processo que causou certa
dor e desconforto a Sarah. Mas ela preferia algo assim, que realmente fizesse
alguma diferença significativa, do que um tratamento indolor e demorado.
Experiências anteriores faziam a garota achar que quanto mais um procedi-
mento médico doía, mais ele era eficaz. Ela aguentou a dor sem reclamar. Me-
ses depois, porém, Sarah parou de tomar os remédios devidamente e deixou
mais um tratamento de lado.
Durante o primeiro tratamento que realizou, o médico chegou a en-
caminhar Sarah para uma consulta com uma psicóloga, mesmo acreditando
que ela não se encaixassa nos perfis de quem necessita de acompanhamento
psicológico para o vitiligo. A mãe de Sarah, então, a levou para um hospital
que atendia pelo seu convênio médico. Na hora da consulta, a doutora pediu
que a garota entrasse sozinha. Sarah não sabia se achava isso bom ou não, mas
se levantou da cadeira e seguiu a moça até seu consultório. Sentou na cadeira
e ficou quieta.
Sarah não se lembra muito bem o que exatamente a psicóloga disse
a ela durante a consulta. Só se lembra que ela disse algo como: “O vitiligo é
como uma forma de seu corpo expressar que tem alguma coisa ai dentro que
não está bem. Precisamos descobrir o que é que te causa essa dor, pois não é
à toa que você está chorando, algum motivo tem que ter!”.
Pois é, ela chorou. Não sabia o porquê, mas algo que a psicóloga disse
mexeu com alguma coisa dentro dela. Sarah não conseguia mais responder
direito à doutora, apenas chorava mais e mais. Tentou respirar fundo e dizer
numa voz razoável: “Mas eu não sei o que é ‘isso’”. A psicóloga, mostrando
toda sua experiência e domínio do que estava fazendo respondeu na lata: “Se
você soubesse o que é, não teria porque nós estarmos aqui”.
Ao final da consulta, a psicóloga disse palavras de conforto e abraçou
a garota, que pediu pra que ela esperasse seu rosto deixar de ficar vermelho
34
e inchado para poder sair dali. Quando saiu, a mãe de Sarah tentou saber o
que tinha ocorrido na consulta, mas Sarah não disse absolutamente nada. A
garota se despediu da mãe e as duas foram embora por caminhos diferentes.
Agradeceu imensamente por sua mãe ter que voltar ao trabalho e ela poder ir
pra casa sozinha.
Infelizmente, essa foi a primeira e última consulta psicológica de Sarah.
Nem sua mãe, nem os dermatologistas mencionaram a hipótese novamente.
Ela também não tinha a menor coragem para dizer para mãe que queria voltar
e iniciar uma terapia, até porque como iria convencê-la de que levaria isso a
sério, quando em todos os tratamentos anteriores, ela tinha falhado? Então o
assunto morreu. Tratamentos estéticos, dermatológicos, psicológicos viraram
passado. A mancha de Sarah não aumentou nem diminuiu de tamanho, assim
como os seus problemas, tudo continuou na mesma por mais alguns anos.
[...] Alguns anos depois
Sarah foi crescendo e se tornando uma jovem de um gênio extrema-
mente difícil. A convivência com ela era algo complicado, até mesmo para
seus amigos e familiares. Mas, mesmo assim, ela conseguia levar uma vida
quase normal. O vitiligo não era nada mais do que uma mancha no ombro,
e agora na raiz do cabelo. E ele nada interferia na sua relação com as pesso-
as, nem na relação consigo mesma. Se ela tinha problemas de convivência e
autoestima era por outros motivos. Motivos dos quais ela nunca sabia muito
bem o que eram.
Por isso, vez ou outra, ela lembrava daquela sua única consulta com
uma psicóloga, quando pela primeira vez tinha tido oportunidade de falar
sobre seus tormentos, mesmo que não tivesse falado de nada. Quando, pela
primeira vez, ela teve alguém que estendeu a mão a ela e disse que a ajudaria
a encontrar o que a estava fazendo tão mal. Por diversas vezes, Sarah pensou
como teria sido se tivesse ido mais vezes àquele consultório, se tivesse pedido
a sua mãe para começar uma terapia e ter levado isso adiante.
Certo dia, quando pensava no assunto, Sarah se lembrou de um velho
e grande amigo da família que era psicólogo. O seu nome era Flávio Amorim,
ela se lembrava bem dele por seu jeito engraçado e descontraído de conversar.
Sempre a fazia rir. Um dia, ele havia comentado que uma pessoa não pode
35
se consultar com um psicólogo com quem tenha algum vínculo afetivo. En-
tretanto, ele nunca disse a ela que não poderia conversar com um psicólogo
que já conhecesse, para falar sobre alguma doença de fundo emocional e tirar
algumas dúvidas.
Ela, então, resolveu não pensar mais de uma vez, para não acabar de-
sistindo. Pegou a agenda de telefones da mãe e procurou o telefone do psicó-
logo. Depois de várias ensaiadas, digitou o número e ligou para ele. Disse que
precisava de uma ajuda com uma coisa e marcou de ir ao seu consultório na
tarde do dia seguinte. Desligou o telefone sem acreditar no que tinha acabado
de fazer.
No dia seguinte, levantou cedo, mesmo tendo marcado a visita para o
período da tarde. Estava ansiosa. Poucas horas depois do almoço pegou suas
chaves e saiu de casa, andando, rumo ao consultório do Dr. Flávio. Chegando
lá, procurou o número da sala indicada e bateu na porta. Segundos depois o
psicólogo abriu a porta e a cumprimentou de maneira alegre.
– Olá Sarah, como vai?
– Bem, e você? - respondeu a garota timidamente.
– Bem, graças a Deus! Então, a que devo a honra de sua ilustre visita?
– É... então... - Sarah pensou na melhor maneira de dizer o que queria
- Eu estava com algumas dúvidas sobre a minha doença, o vitiligo, e queria
ver se você podia me esclarecer umas coisas, é que eu estou pensando em
começar a fazer terapia - mentiu.
– Entendo, mas o que exatamente você quer saber?
– Como é que acontece a ‘terapia’? O que é feito?
– Bom, as seções terapêuticas são semanais e têm duração de cinquenta
minutos. Não são absolutamente diferentes de nenhuma outra seção terapêu-
tica. A única coisa é que se trabalha um pouco mais a imagem. Tem pessoas
que precisam trabalhar a voz, outras a impostação, outras a postura, o equilí-
brio, a assertividade. No caso do vitiligo, nós trabalhamos, primeiro de tudo,
a aceitação do próprio corpo. Ela tem que aceitar viver assim.
– E essas doenças de fundo emocional são comuns?
– Como toda doença somática, Sarah, o vitiligo pode ser originário de
situações estressantes. No quesito emocional, hoje nós temos vários dados
que comprovam que boa parte das doenças podem ter também origem emo-
cional, inclusive o câncer e a psoríase, que também é uma doença cutânea.
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Não fora uma ideia tão má, afinal, vir conversar com o psicólogo. Sarah
sentia que foi a melhor coisa que poderia ter feito. Que bom que não deixara
a timidez vencer e que tomou coragem para ligar para o doutor e vir até seu
consultório. Emendou logo outra pergunta para continuar o assunto:
– Como as pessoas reagem quando descobrem?
– Quando começa a aparecer a doença, a primeira coisa que a pessoa
tenta fazer é esconder, usando roupa, maquiagem. Chega uma hora que isso
passa a ser impossível, tendo em vista o local que ela desenvolveu a mancha.
E, a partir deste momento, é que a pessoa já deveria procurar ajuda psicoló-
gica, o que não acontece. A ajuda psicológica vai vir lá na frente quando ela
esgota todas as possibilidades de cura. Já foi ao dermatologista, ela já foi ao
cirurgião plástico, já foi em tudo quanto é lugar. E ai ela vê que realmente terá
que aprender a conviver com a pele daquele jeito.
– Existe muito preconceito com quem tem a doença?
– As pessoas que convivem com os portadores de vitiligo não têm ne-
nhum problema, como os profissionais de saúde por exemplo. Agora, os lei-
gos, o senso comum, pode ser muito cruel. Como também é cruel com quem
tem qualquer outro tipo de patologia, principalmente as que são cutâneas, por
causa da suposta contaminação.
– Mas porque isso? Falta informação às pessoas?
– Os casos não tão raros, Sarah, que se você for pensar, não dá pra in-
formar. O Ministério da Saúde informa a população sobre as patologias mais
graves. Como o vitiligo é uma doença menos comum e mais amena, acaba
ficando de fora. Mas todo mundo, sem exceção, deveria ter informação para
não cometer nenhum deslize, nenhuma indelicadeza, com alguém que já está
com a sua parte psicológica, com a sua autoestima afetada, como é o caso do
vitiligo.
– Incomoda mais esteticamente né? Porque na saúde, a pessoa não tem
nada.
– Nada! – ele repetiu a última palavra dita por Sarah - O duro é você
explicar para a pessoa que aquilo é só externo. É uma despigmentação e nada
mais do que isso. Então é muito difícil a pessoa se acostumar com os olha-
res.
– É... se todos que tem vitiligo pudessem enxergar isso, seria mais fácil
de aceitarem.
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– Tudo o que é externo é mais difícil de aceitar. Mas existem vários
trabalhos para a pessoa realmente aceitar o próprio corpo, mudar de compor-
tamento. A pergunta chave que fazemos é: “O que você vai fazer com isso?”.
Você pode aceitar, ou não aceitar. Isso não vai mudar o quadro, não vai diminuir
o tamanho do problema, só vai acarretar outros problemas. Você pode, por de-
pressão profunda, quando a pessoa fica encapsulada, não quer mais sair, chegar
até ao luto. Essa mancha, que não dá nem pra medir em termos de milímetros
na espessura da sua pele, não dá para manchar o resto do seu futuro.
Sarah sorriu, o moço falava bonito, e com propriedade. Sem dúvida,
era um excelente profissional, mas, com certeza, não apenas isso. Era uma
pessoa muito boa e sensata. Não tinha o que contestar, afinal, ele estava com
toda a razão. Para não esgotar o assunto, a garota pensou em mais alguma
pergunta para fazer, algo que tivesse curiosidade. Afinal, não era todo dia que
ela tinha um psicólogo à disposição para tirar suas dúvidas.
– Desculpa minha ignorância, mas o que é estresse?
– Estresse nada mais é do que uma função adaptativa de um organismo
a uma mudança de rotina. Toda vez que um corpo é sujeito a uma mudança de
comportamento, ele sofre um estresse. Existem vários níveis, Sarah, em que
nós podemos avaliar isso. Um estresse pequeno, muitas vezes, pode ser uma
bomba na minha cabeça e na sua não.
– É verdade... - refletia a garota.
– A grande sacada é preparar as pessoas para a diversidade do ser hu-
mano. Parte-se do princípio de que as pessoas são todas iguais, mas não são!
Você não tem que achar que todo é mundo igual. Você tem que perceber as
diferenças, e, dentro daquilo que você vê, tentar se adequar, equalizar a vida
a partir daí.
–Tem pessoa que não tem conhecimento e também não quer ter, né?
Não pergunta.
– Não, mesmo! Trata isso como uma coisa horrorosa e extremamente
contaminante e infectante e não quer mais saber. Nem na cara olha. Mas a
nossa sociedade põe isso na sua cabeça. Precisa de alguém que fique debaixo
dos holofotes, para que a outra pessoa fique na sombra. As pessoas precisam
de um Judas. Uma coisa é comentar um fato, agora falar mal é dar uma opi-
nião de alguma coisa que não se conhece. E a sociedade é especialista nisso,
esta cheia de médico, engenheiro, advogado, dentista e por ai vai.
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Dessa vez Sarah soltou um riso alto e prolongado. Ao mesmo tempo
em que se divertia com o bom humor e descontração do psicólogo, ela co-
meçava a enxergar sua doença de uma forma diferente. Era interessante olhar
sob aquela perspectiva. Uma sensação de alívio tomara conta de seu corpo
e mente durante a conversa. Mesmo sabendo que poderia estar enchendo a
paciência do doutor Flávio, ela resolveu fazer mais uma pergunta:
– A psicologia é importante em todos os tipos de doença então, né?
– Sim, a psicologia vai dar, com certeza, o suporte necessário que o
médico não vai conseguir dar. O médico vai entrar com o suporte medica-
mentoso, ou seja, o remédio físico, você pega o comprimido na mão, põe na
boca e toma. Até para esse ato de pegar o remédio e por na boca tem que
haver uma aceitação do que está acontecendo. Se não fosse o preconceito da
própria sociedade e ainda um pouco da resistência da classe médica, a gente
poderia ter, com certeza, bastante sucesso num trabalho multidisciplinar entre
as profissões.
– Espero que um dia isso aconteça mesmo! - afirmou Sarah, totalmen-
te convencida com as ideias do doutor.
A garota se despediu do psicólogo e amigo, não sem antes pedir mil
desculpas pelo incômodo e pelo tempo tomado. Ele, gentilmente, disse que
tinha sido um prazer conversar com ela e que Sarah podia procurá-lo quando
precisasse. Apesar de ter adorado o papo, ela não esperava precisar voltar
àquele nem a nenhum outro consultório psicológico. Sentia que estava final-
mente encontrando o caminho para entender a si mesma.
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Como se Sarah já não tivesse problemas suficientes quanto a sua
autoestima e quanto a dificuldade de lidar com as pessoas, o vitiligo agora se
tornara um problema a mais com que se preocupar. Era difícil esconder as
manchas, ainda mais em épocas de calor. E, na verdade, a garota nunca quis
escondê-las. Não via necessidade disso. Afinal o médico já lhe dissera que o
Sol era bom para ajudar nos tratamentos. Porém, mesmo que isso não a in-
comodasse, havia outras coisas que a incomodavam. Os olhares e perguntas
pareciam vir de todas as direções.
Certa vez, Sarah estava em um almoço de família na casa se sua avó.
Muitos tios e primos por todo lado, como acontecia todos os domingos. Mais
uma reunião familiar comum e agradável. Pelo menos até Sarah resolver brin-
car com algumas priminhas mais novas que queriam pentear seus cabelos, ou
melhor, despentear. Nisso, uma delas reparou em sua mancha esbranquiçada
na pele. Como toda criança, ela era muito curiosa e, obviamente, quis saber o
que era aquilo. Então perguntou sem rodeios.
– O que é isso?
– Uma mancha - respondeu Sarah, pedindo para que ela se contentasse
com apenas isso, mas já se preparando pra próxima.
– Como foi que fez isso? - insistia ela, querendo saber mais - Você se
queimou?
– Não, Gabi! - Sarah não conseguiu segurar o riso com a suposição da
Quem vê cara não vê coração
Capítulo 4
pequena garota - Essa parte da minha pele não tem cor mesmo, é uma doença
que chama vitiligo.
– Ah! - murmurou Gabriela, que apesar da explicação, não tinha enten-
dido muita coisa. Porém decidiu parar com as perguntas antes que sua cabeça
desse um nó, tentando entender.
Sarah se deparou com essa mesma situação inúmeras vezes e até mes-
mo com as mesmas pessoas. Crianças são difíceis de conter. Sempre falam
e perguntam tudo que der na telha. Mas ao menos elas eram verdadeiras e
sinceras, então Sarah não ligava tanto de ter que ficar falando de sua doença e
explicando quantas vezes fossem necessárias.
Não podia se esquecer também, das vezes em que fora abordada por
estranhos na rua, que queriam compartilhar informações sobre o vitiligo.
Aconteceu pelo menos umas três vezes. Era curioso o quanto a mancha des-
pertava o interesse, até mesmo de quem não tinha a doença. Numa tarde
comum, quando Sarah saiu da escola e foi para o ponto de ônibus esperar a
condução que a levaria para casa, uma senhora, que devia ter por volta de uns
sessenta anos, parou perto da garota e começou a falar com ela.
– Desculpe a indelicadeza, mas essa sua mancha é vitiligo, não é?
– É sim - respondeu Sarah, pensando no que aquela senhora poderia
estar querendo.
– Ah, eu sabia, meu filho também tem isso. E você faz algum trata-
mento?
– No momento, não, mas já fiz alguns, sim.
– Você já ouviu falar em um remédio que dizem que é bom para o
vitiligo, eu não lembro o nome agora, mas é tipo um chá que você faz com a
casca de uma árvore e toma?
Sarah enrugou a testa e se concentrou no que a mulher dizia. Estaria
ela batendo bem das ideias? De qualquer forma, era interessante ver alguém
com tamanho interesse em sua doença. Mas aquilo era porque seu filho a
possuía, e ela, com certeza, se preocupava com ele o suficiente para ir atrás
de alguma cura de qualquer forma. Coitada, mal sabia ela que Sarah não tinha
muito mais conhecimento do assunto que ela.
– Nunca ouvi falar, não – respondeu a garota curta e direta, como
sempre.
A senhora disse mais algumas coisas e depois seguiu seu caminho. Sa-
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rah chegou a se sentir um pouco mal, por estar tão acomodada quanto a sua
doença. Será que ela deveria estar atrás de outras alternativas de tratamento,
como a mulher que acabara de falar com ela? Era o que o resto das pessoas
esperava dela, sem dúvidas. Mas será que era o que ela realmente queria fazer?
Afinal, já não levara a sério os últimos tratamentos indicados pelos dermato-
logistas com os quais se consultou.
Nesse momento, outro episódio parecido com os anteriores veio à
mente de Sarah. Certa vez, quando foi a um mercadinho próximo de sua
antiga casa comprar pão para tomar café da tarde, um moço jovem de pele
morena veio abordá-la para falar sobre sua mancha. Ela já estava descendo
a rampa do local e indo em direção à rua, quando o rapaz na bicicleta parou
perto dela e começou a conversa.
– Oi, desculpe te incomodar com isso, mas o que você tem ai no om-
bro é vitiligo?
“Porque será que todo mundo pedia desculpas antes de fazer alguma
pergunta sobre o vitiligo? Por acaso é pecado sentir curiosidade sobre algo e
perguntar?”, se perguntava Sarah em pensamento. Ela achava estranho como
até mesmo quem não tinha vitiligo parecia se sentir incomodado em falar no
assunto. Porém, como ela mesma também tinha a mesma postura, procurava
não julgar ninguém por isso. Respondeu calmamente ao rapaz.
– Sim é vitiligo.
– Eu também tenho vitiligo. Descobri há pouco tempo o que era - dizia
o jovem, que aparentava estar superafim de conversar e trocar experiências
sobre o assunto.
Certamente, ele esperava que Sarah tivesse a mesma vontade, porém,
a garota ainda tinha sérios problemas em conversar com desconhecidos. Por
mais que quisesse, não conseguia levar muito adiante o papo. Mais algumas
palavras, e o moço desistiu. Porém, seu último comentário ficou gravado na
mente de Sarah até hoje. Um misto de ingenuidade e ignorância por parte
dele.
– Mas é engraçado, eu achei que só gente mais escura que tivesse vitili-
go. Não sabia que pessoas branquinhas, que nem você, tinham também.
Sarah sorriu sem saber se poderia considerar aquilo um elogio, ou uma
ofensa. Apenas achou interessante o ponto de vista do rapaz. Se despediu e
continuou seu caminho. A cabeça matutando um monte de perguntas e ideias
43
que insistiam em atormentá-la. Principalmente quando tocava no assunto. A
sua doença não comprometia sua saúde física, mas estava constantemente
mexendo com suas emoções e sentimentos.
Como será que as outras pessoas que possuem vitiligo lidam com a do-
ença? Será que todas têm o mesmo problema? Definitivamente, não! Se tinha
uma coisa que Sarah sabia e acreditava, era que todas as pessoas são diferentes
e têm visões diferentes sobre as coisas. Portanto, nenhuma delas via o vitiligo
da mesma forma que ela. De certo que tiveram problemas completamente di-
ferentes dos seus para desenvolverem a doença. Assim como convivem com
outras pessoas que reagiram completamente diferente dos seus parentes e
amigos. Mesmo tendo tamanha certeza em relação a isso, Sarah ainda sentia
curiosidade por descobrir e entender como é que as outras pessoas que têm
vitiligo convivem com a doença.
Foi então que Sarah teve uma brilhante ideia. Um dos seus hobbies
favoritos era fazer amigos pela internet. Ela sabia como ninguém encontrar
pessoas interessantes e que tinham a ver com ela. Resolveu usar isso para en-
contrar outras pessoas que tinham vitiligo e que estivessem interessadas em
compartilhar a sua experiência com ela.
Sem pensar duas vezes, a garota entrou no site de relacionamentos
mais famoso e frequentado do país, o Orkut. Foi no campo de pesquisa e
digitou “vitiligo”. Apareceram na tela do computador várias comunidades
sobre a doença. Sarah olhou a que tinha mais membros e entrou nela. Deu
uma olhada nos tópicos que tinham no fórum de discussão. A maioria deles
eram de pessoas que perguntavam sobre tratamentos e remédios para o vi-
tiligo, se eram confiáveis ou não, se funcionavam ou não. Não havia nada do
tipo “Como vocês lidam com o vitiligo?” ou “Conte aqui sua experiência com
a doença”.
Sarah, então, decidiu criar um tópico com o título “Trocando experi-
ências”. No texto do tópico, ela escreveu: “Gostaria de conhecer pessoas que
tenham diferentes experiências e pontos de vista em relação ao vitiligo. Quem
quiser conversar, me adiciona no messenger, ou manda um e-mail!”. No dia,
ninguém respondeu ao seu tópico. Porém, no dia seguinte, ela tinha três no-
vos e-mails em sua caixa de entrada, e algumas pessoas solicitando aceitação
no messenger. Para suas expectativas, até que a resposta tinha sido rápida.
A primeira a responder ao tópico na comunidade foi a Roseli Luna,
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que tem 31 anos e trabalha como autônoma. Sarah a adicionou no messenger,
e, no mesmo dia, elas tiveram uma longa conversa sobre o vitiligo. Roseli
contou a ela que possui vitiligo há mais ou menos 10 anos e que já conhecia a
doença antes disso, pois sua mãe e seus irmãos também a possuíam. Mal havia
começado a interagir com outras pessoas com vitiligo e já havia descoberto
um caso que fugia ao fato de que a doença não era hereditária.
– No meu caso, a doença ocorreu após um acidente com meu irmão,
no qual tive que socorrê-lo - contou Roseli
– E logo no começo você já procurou tratamento? Quantos já fez? -
perguntava Sarah curiosa
– No começo, procurei um dermatologista em São Paulo, na esperança
de ser outro diagnóstico, pois a mancha era apenas em cima de meu dedo.
Infelizmente ele constatou vitiligo. Aí fui informada sobre um médico em
Apucarana, que tratava da vizinha de meu irmão. Fui sozinha até lá. Tratei
com 8mop, fenilanina e oxsoralem, mais acido fólico e vitamina C. Foi exce-
lente, mas tinha que ir até lá de 3 em 3 meses,e eu não tinha condições. Tentei
procurar aqui em São Paulo outros médicos. Iniciei outro tratamento do qual,
graças a Deus, tive ótimos resultados, mas como o tratamento é longo e o
vitiligo é uma caixinha de surpresas, começou a não fazer efeito em novas
manchas. Aí juntou a isso meu nervosismo, ansiedade, depressão, autoestima
baixa, preconceito e etc...
“Voltei ao médico sempre que pudia e ele ia tentando me tratar com a
medicação, mas infelizmente não obtive mais o resultado esperado. Até por-
que, nas mãos é muito difícil, me desanimei muito e larguei esse tratamento. O
médico também já estava sem esperança por ser muito tempo de tratamento.
Já tomei chá de marianinha, hibisco e nada. Ultimamente as minhas manchas
aumentaram muito rápido. Eu gostaria de saber porque algumas pomadas
como elidel e protopic, funcionam apenas no rosto, com muita eficácia, mas
não no corpo todo. Não seria interessante pesquisarem e estudarem pra mu-
dar a formula, e assim funcionem também no corpo?”
A mulher escrevia rapidamente e Sarah ia lendo conforme as men-
sagem iam aparecendo na janela de conversação. Totalmente concentrada e
interessada na história dela, mandava apenas alguns “Ahan”, “Sim” e “En-
tendi”, de vez em quando. Roseli também contou à garota sobre sua relação
com a doença.
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– Para mim, conviver com o vitiligo, é péssimo. Cada vez que me olho,
espero que não tenha aparecido nenhuma mancha nova. Torço para acharem
a cura logo, pois não quero passar o preconceito que meus familiares passa-
ram. Graças a Deus em mim, não é tão nítido e também não está pelo corpo
todo. Mas ainda assim o vitiligo interfere na minha relação com as pessoas, já
senti muito preconceito, até porque trabalho com o público em eventos nos
quais a aparência conta muito.
– Eu acho que entendo como se sente - comentou Sarah - Mas você
ainda está procurando tratamento ou já aprendeu a conviver com isso e se
aceita dessa forma?
– Não estou fazendo nenhum tratamento porque estou procurando
um especialista em São Paulo, mas ainda não achei. Estou na dúvida em usar o
viticromim, fazer fototerapia ou gastar tudo em laser. Não aprendi a conviver
com ele e nem quero. Não nasci assim, por que tenho que me conformar?
Essa última resposta de Roseli foi um tanto quanto chocante para Sa-
rah. Afinal, desde o início, ela sempre ouviu dizer que apesar de muitos tra-
tamentos, o vitiligo não tem cura. Sendo assim, parecia a ela essencial que
as pessoas aprendessem a conviver com a doença. Entretanto, acabara de se
deparar com uma pessoa que pensava exatamente o contrário. O mais interes-
sante é que nenhuma das duas estava errada, apenas tinham opiniões diferen-
tes sobre o assunto. Pontos de vistas diferentes sobre a mesma doença.
O segundo a responder ao tópico de Sarah foi Marcelo Freitas, um co-
merciante de 39 anos, morador de São Paulo também. Ele deixou seu endereço
e Sarah o adicionou no Messenger. Começou a conversa fazendo aquelas per-
guntas básicas de quando se está conhecendo alguém pela internet: “Quantos
anos?”, “Onde mora?”, “O que faz da vida?”. Depois entrou no assunto do
vitiligo, perguntando há quanto tempo ele tinha a doença e coisas do tipo.
– Tenho vitiligo há 11 anos, descobri a doença quando uma amiga mi-
nha disse que uma mancha branca em minha mão era vitiligo.
– Você já fez algum tratamento? - Sarah digitou pausadamente as pala-
vras antes de apertar “enter” e mandar a pergunta.
– Sim, método cubano, fototerapia, laser, chá de Mamacadela, mas o
que deu mais resultado foi o Protopic. Continuarei buscando a cura sempre,
pois essa doença não é minha. Hoje busco em Deus o conforto e, com isso,
as manchas estão sumindo.
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– E como é para você lidar com essa doença?
– Antes era difícil, mas hoje é tranquilo. Quando me incomodo, olho
para trás e vejo que existem pessoas com problemas mais graves. Já senti
preconceito, pois algumas pessoas, por falta de conhecimento, acham que
vitiligo “pega”.
“O mais legal disso tudo é que minha filha sempre gostou das manchas.
Quando ela tinha uns 4 anos ficava imaginando figuras nas minhas manchas
como nas nuvens. Ela sempre dizia que sou colorido e os pais das amigas só
tem uma cor. Vejo com grande otimismo a descoberta da cura para o vitiligo e
outras doenças de fundo emocional. O número de pessoas com doenças cau-
sadas por estresse tem aumentado cada vez mais e isso vai fazer com que os
olhos dos laboratórios e cientistas se voltem para esse lado. O segredo esta na
fé em Deus, tenho vivido isso, logo estarei 100% curado. Hoje, minha mente
esta curada, só falta a pele e isso é só uma questão de tempo!”
Sarah chegou a se emocionar com o que Marcelo disse ao final da
conversa. Realmente, ele estava certo quanto a isso. Mas em certo ponto ela
discordava. Pois, na verdade, não importa onde esteja o seu ponto de apoio.
Seja em Deus, seja em sua família, seja em seus amigos ou até em você mes-
mo. É muito importante sempre ter algo em que acreditar, algo que dê forçar
para seguir em frente. Já que o vitiligo é uma doença de fundo emocional,
também devemos nos preocupar em curar as feridas de dentro, se não as de
fora não irão sarar.
A terceira pessoa com quem Sarah conversou foi Mariana de Matos
Rosa. Ela tem 17 anos e mora na cidade de São Paulo. De todos com quem
Sarah trocou experiências, Mariana era a mais nova, e a que mais parecia com
ela também. Mariana mandou um e-mail contando algumas coisas sobre sua
vida e sobre como descobriu o vitiligo.
– Possuo vitiligo há 15 anos. Com 2 anos eu estava na praia e fiquei um
pouco bronzeada, como eu sou branquinha, ao ficar bronzeada o contraste
foi maior. Meus pais perceberam que, em torno dos meus olhos, havia um
esbranquiçado e como eles possuíam conhecimento da doença, pois são mé-
dicos, de cara perceberam que era vitiligo e ficaram preocupados e tristes.
“Eu nunca perco as esperanças, meu corpo pode ficar lotado de man-
chas que eu continuo na batalha. Eu sempre deixo de fazer e comprar coisas
que gosto, pois vou duas vezes por semana para Campinas, gasto com mo-
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torista, gasolina, pedágio e o laser. É muito dinheiro, porém, se é por uma
boa causa, eu deixo de comprar o que for, roupas, sapatos etc. A esperança e
persistência é essencial.”
Sarah ficou surpresa ao se deparar com a história da garota. Ela teve
vitiligo quase que durante toda a vida, e mesmo assim não desiste de tentar
encontrar a cura. Realmente, é preciso muita força de vontade para conseguir
fazer isso. Logo que terminou de ler o e-mail de Mariana, Sarah respondeu
mandando mais algumas perguntas, curiosa para saber mais. No dia seguinte
já recebeu a resposta.
– Sim, já fui em muitos médicos diferentes. Alguns pessimistas, outros
otimistas. Cada um sempre com a sua opinião sobre o tratamento adequado.
Fiz vários tratamentos, como o uso de pomadas seguido de radiação solar,
câmara UVA com oxoralem, produtos naturais como Mamacadela e vários
tipos de lasers. Hoje, com muitas contraindicações, faço o Xtrac laser, e está
surtindo efeito. Com certeza o vitiligo tem causas emocionais, não só acredito
como tenho certeza! É só eu passar um período de nervoso que lá vem as
manchinhas novas surgindo!
“Uma vez apareceu uma mancha no joelho. Passados uns 2 meses, eu
cai e ralei todo o joelho. Após a cicatrização, minha mancha sumiu, eu poderia
ralar todos meus vitiligos, quem sabe eles não somem.”
“Para mim é horrível conviver com o vitiligo! Eu acordo de mau humor
só de pensar que terei que passar aquele monte de maquiagem para esconder
as manchas. O vitiligo interfere na minha relação com as pessoas, sempre
muitas perguntas e até mesmo gozações, mas procuro mesmo ficar perto de
pessoas que sabem o que eu tenho no rosto e gostam de mim mesmo assim.
Claro que já sofri preconceito, falaram muito que eu sou “pura maquiagem”,
me perguntam sempre porque tem uma manchinha ali, outra aqui, com aquela
cara de desprezo, sabe?”
“Sei muito bem”, respondeu Sarah em pensamento, enquanto lia a ultima
frase do e-mail. Por terem aproximadamente a mesma idade, Sarah se identificou
muito com a história de Mariana. Em muitos aspectos, elas tinham visões muito
parecidas. Principalmente quanto à reação dos outros em relação as manchas.
Sarah continuou mandando e-mails à garota durante um longo tempo, e elas
chegaram a conversar sobre outros diversos assuntos e se tornaram amigas.
Uma moça loira chamada Thais foi a quarta pessoa a responder ao tó-
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pico. Sarah mandou um recado no perfil dela e assim começaram a conversar.
Thais tem 31 anos, é pedagoga e mora em São Caetano do Sul. Ela contou a
Sarah que há 21 anos atrás sofreu uma queda de bicicleta, arranhando o pé,
e que a cicatriz virou o vitiligo. Seria possível aquilo? Um machucado virar o
vitiligo? Sarah porém não perguntou nada sobre isso, quis saber se ela já tinha
tratado do vitiligo, e obteve uma longa resposta:
– Procurei o médico desde a primeira manchinha. Já fiz diversos trata-
mentos e o que mais surtiu efeito foi com o laser. Foi um tratamento que fiz
há 8 anos, e sumiram todas as manchas do meu rosto. Já nas pernas não tive
sucesso e a própria dermatologista achou melhor parar o tratamento, pois
não conseguia ter resultados satisfatório. E também porque as manchas estão
estabilizadas há 8 anos. Desde essa época, não pareceu mais nenhuma. Nesse
intervalo fiz um tratamento na faculdade de medicina do ABC com fenilalani-
na, 8mop, junto a um polivitamínico. Com esse tratamentos apareceram algu-
mas pigmentações. Fiquei sem usar nenhuma medicação por quase 2 anos.
“Em novembro do ano passado comecei a fazer acupuntura para o
vitiligo, junto com terapia. Ainda não tive nenhum resultado de pigmentação,
mas a médica confirmou que o vitiligo esta estabilizado, pois, quando não está
estabilizado, a acupuntura faz a aparecer mais manchas. Eu fui pessoalmente
à faculdade de medicina de Santa Cruz, aqui em São Paulo, onde tratam o
vitiligo com acupuntura, e conversei com pacientes que estão tendo bons re-
sultados. No meu caso, acupuntura e terapia psicológica estão ajudando muito
no meu emocional, elas trabalham a aceitação da doença.”
– E como é para você conviver com o vitiligo? - perguntou Sarah
curiosa
– Para mim, é muito difícil conviver com o vitiligo, não gosto mesmo.
Mas ele não interfere nos meus relacionamentos com as pessoas. Não tenho
manchas no rosto, apenas nas pernas, e nunca deixo as manchas à mostra. As
pessoas quase não sabem que tenho a não ser se eu falar sobre o vitiligo.
– E nunca sofreu nenhum preconceito quanto a isso?
– Nunca. Acho que pelo fato de, mesmo quando criança, minha mãe
não deixava as manchas à mostra. Sempre disfarçamos. Como eu tinha algu-
mas na cabeça próximo ao cabelo, usei sempre os cabelos soltos, que cobriam
as manchas, usava franja por ter mais na testa, mas bem grudadinho ao coro
cabeludo. E quando estavam aparecendo manchas novas na sobrancelha e
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abaixo do rosto foi quando descobri o tratamento a laser e fui logo fazer.
Assim, desapareceram todas as manchas do rosto.
– Você sabe exatamente o que causou o vitiligo em você?
– Uma quase separação dos meus pais, e o medo de perder um irmão,
que na época era bebê e ia fazer uma cirurgia delicada. Acredito que seja esse
o motivo.
– E depois que você descobriu o vitiligo, o que mudou na sua vida?
– Depois do vitiligo, passei por varias experiências. Eu acredito que,
para livrar o filho de algum sofrimento, os pais são capazes de fazer qualquer
loucura. E com meus pais não foi diferente, eles corriam atrás de tudo que as
pessoas os ensinavam. Desde levar aos melhores médicos, a curandeiro, pai de
santo, muitos remédios caseiros e simpatias.
“O que mais me marcou foi comer o fígado de um cágado cru. Eu cuidei
do cágado por um tempo e um belo dia, meu avô matou o cágado, tirou o fígado
e eu comi. Eu tinha uns 11 anos. Na época, minha vontade de ter a cura era tão
grande que comi o fígado do cágado de uma só vez. Não tive a tão esperada cura,
mas acho que não fui a única a ter essa experiência. Outro dia, li em uma das
comunidades de vitiligo no Orkut um depoimento sobre a simpatia do cágado.
“Sempre sonhei e busquei a cura para o vitiligo. Me trato até hoje e
ainda não aprendi a conviver com ele. Estou trabalhando isso com a psicóloga
e já posso dizer que tive um progresso. Hoje já vou até a porta de casa de saia
e com as manchas aparecendo. Já recebo visitas com as manchas à vista, coisa
que quase nunca fazia. Até em casa ficava de calça todo o tempo, deixava ape-
nas meus pais e irmão verem as manchas. Quando ia chegando alguém logo
eu corria para vestir uma calça. Isto esta sendo muito bom pra mim, apesar de
não gostar nem um pouco de estar com o vitiligo.”
Sarah pensava e refletia sobre o quanto devia ser difícil ter que ficar
escondendo as manchas o tempo todo. Cada vez mais a garota se convencia
de que aceitar a doença era o primeiro e mais importante passo para viver uma
vida normal com vitiligo. Outra pessoa com quem conversou e que também
tinha vitiligo nas pernas foi Volney Silva. Ele a adicionou no Messenger e
depois de alguns dias eles conversaram.
– E ai beleza? Sou da comunidade Vitiligo lembra? - foi o que Sarah leu
ao clicar na janelinha que piscava em seu monitor.
– Oi, lembro, sim! Tudo bem?
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– Tudo ótimo! Me diz uma coisa, você tem vitiligo ou só se interessa
pelo assunto?
– Tenho vitiligo, sim, há alguns anos já.
– É uma barra às vezes, né? Mas, infelizmente, temos que conviver
com isso da melhor forma.
– Tem razão é preciso aprender a lidar com a doença pois ela pode te
acompanhar pelo resto da vida - comentou Sarah superinteressada na con-
versa.
– Eu tenho um blog, onde eu postei alguns textos falando sobre como
me sinto, alguns tratamentos que fá fiz e etc. Veja lá http://convivendocomvi-
tiligo.blogspot.com.
– Nossa que bacana! Vou dar uma olhada lá, sim, valeu! - mandou a
mensagem antes de clicar no link que o rapaz havia mandado. Porém, antes
de ver o blog, continuou a conversa.
– Não há de quê! - respondeu ele amigavelmente - E quanto ao vitiligo,
eu penso o seguinte, não temos um ícone de beleza. As imagens relacionadas
ao vitiligo são feias, quero melhorar esta imagem pra quando um jovem des-
cobrir que tem vitiligo, veja que existe vida, beleza e diversão, mesmo com
vitiligo.
– Estou totalmente de acordo com você! Acho que dá pra viver muito
bem tendo vitiligo - respondeu Sarah, pouco antes de o moço se despedir e
sair do messenger. Foi então que ela entrou no blog e encontrou alguns textos
bem interessantes que falavam da relação de Volney com o vitiligo. A última
postagem era assim:
“Meu nome é Volney, sou do interior de São Paulo, tenho 29 anos, sol-
teiro, formado, cursando MBA em Marketing e Vendas. Tenho uma porrada de
defeitos e uma porrada de qualidades. É claro, não sou diferente da maioria das
pessoas que sonham, buscam e lutam pela sua felicidade. Convivo com o vitili-
go desde os 14 anos e confesso esta convivência atualmente está mais tranquila.
Mas já foi muito complicada, eu não aceitava de forma alguma, ainda mais eu
sendo extremamente vaidoso, porém humano, sujeito às inconstâncias da vida.
Sonho e luto para um dia ter o prazer de me ver curado do vitiligo, porém, sei
que há uma força maior por traz de todas as coisas. Sei que o vitiligo me trouxe
muita dor, mas também me ensinou muitas coisas.Se sou o que sou hoje é devi-
do às experiências de minha vida, e o vitiligo é uma delas.”
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Sarah gostou muito da forma como ele encarava a doença. Pois mesmo
se importando muito com a aparência, ele não deixava de se aceitar como era,
nem de ter forças para buscar a cura. Enquanto algumas pessoas achavam que
o vitiligo não pertencia a elas, Volney, pelo contrário, acreditava que aquilo
fazia parte de sua vida e de sua história. Outro texto encontrado no blog
que chamou a atenção de Sarah foi o intitulado “Indescritível”. Nele, Volney
conta como é a sensação de estar quase totalmente curado do vitiligo. Como
começou o tratamento estético e que, apesar de dolorido e demorado, valeu
muito a pena tê-lo feito. O texto se encerra com um depoimento muito sin-
cero e comovente do rapaz:
“Com isso, eu consegui resgatar muitas coisas da minha vida, mas prin-
cipalmente a mim mesmo. Hoje, eu me sinto pleno novamente, é como se
eu voltasse atrás e resgatasse os sonhos daquele adolescente de 14 anos de
idade.”
Sarah também conheceu pessoas de fora do estado, como, por exem-
plo, a funcionária pública de 44 anos, Vanda Rosane Nicola, que mora em
Imbé, no Rio Grande do Sul. A mulher contou que possui vitiligo desde os
10 anos de idade e que ele surgiu após um acidente de carro que sofreu junto
com a mãe, quando teve muito medo de perdê-la.
– Que tratamentos você já fez para o vitiligo? - a garota repetia a mes-
ma pergunta que fizera aos outros.
– Fui várias vezes ao médico na adolescência, mas a partir dos 20 anos
parei de procurar tratamentos, pois sabia que não adiantava. Já usei laser, po-
madas, chás e muito remédio. Somente a Melagenina, aquele remédio cubano,
surtiu um efeito significativo, mas estava me deformando e dando pelos pelo
corpo todo, então parei. Hoje não faço mais nada.
– E você consegue conviver bem com a doença?
– Agora é normal, mas já tive dias que briguei muito com meu Deus.
Já sofri preconceito dentro até da minha própria família. Mas aprender a con-
viver com vitiligo é muito fácil é só focar a mente em outras coisas, ter metas.
Tenho dois filhos, sou casada há 22 anos, tive muitos amores. Devemos ser
felizes com o que temos, preservar as amizades, a família e o caráter. “O resto
é somente o resto” - escreveu ela entre aspas no messenger.
– É não podemos deixar de viver a nossa vida só por causa de uma
mancha na pele.
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– Claro! Quando era jovem fui até Riviera, na divisa com Paraguai, pas-
sar férias. Em um clube à noite tinha jogo de luzes, e meus vitiligos ficaram
muito à mostra. O cara que dançava comigo perguntou o que era eu respondi
“Lepra”. Ele se afastou e contou para os seguranças e eu tive de sair do clube.
Estávamos em uma turma. Saímos todos e foi uma noite muito divertida. Até
hoje, quase 20 anos depois, encontro amigas e rimos muito sobre isso!
– Ah, deve ter sido muito engraçado mesmo! - comentou Sarah, pouco
antes de se despedir da moça e encerrar a conversa.
Alguns dias depois, Sarah encontrou mais pessoas respondendo ao seu
tópico na comunidade do vitiligo no Orkut. Adicionou cada um deles no
messenger para conversar. Quem veio falar com ela primeiro foi Fernanda
Lima da Conceição. Ela tem 28 anos e mora no bairro de Diadema, São Paulo.
Antes de falar de si mesma, Fernanda se adiantou perguntando a Sarah sobre
ela e o seu vitiligo. Sarah respondeu calmamente, sem se incomodar com o
interesse da mulher. Pela internet, ao contrário de pessoalmente, ela não se
importava de responder perguntas e contar sobre suas coisas.
Depois do interrogatório, foi a vez de Sarah começar a perguntar. Quis
logo saber como e quando ela tinha descoberto que tinha vitiligo.
– A primeira lembrança de ter o vitiligo eu tinha 4 anos - respondeu
Fernanda pelo messenger - Não me lembro bem como descobri. As manchas
estavam sempre lá e, por muitos anos, porém elas eram pequenas e não cres-
ciam. Descobri de fato que se tratava de vitiligo aos 20 anos, quando fui a
primeira consulta no dermatologista, pois as manchas aumentaram.
– Já fez tratamento?
– Sim. Eu me recordo de quando tinha 8 anos. A pediatra com a qual
me consultei viu as manchas e receitou levedura de cerveja. Fiz uso do Pro-
topic. Ele fez com que algumas das manchas sumissem e outras pararam de
crescer. Parei o tratamento por motivo da gravidez e amamentação, mas te-
nho consulta agendada e irei retomar o tratamento.
– E você convive bem com a doença? Já sentiu preconceito?
– Eu sempre uso roupas que não o mostram. Mas, o fato de saber que
ele está lá nas minhas pernas me deixa triste. E já senti preconceito, sim, de
pessoas mal informadas e estúpidas, que acham que basta passar uma poma-
dinha que ele vai embora, ou que perguntam se é contagioso, ou piadas do
tipo: “Ah, é aquela doença do Michael Jackson?”.
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– Sempre tem uns engraçadinhos, né? - comentou Sarah, para tentar
confortar a moça. – Mas sabe dizer o que desencadeou o aparecimento do
vitiligo em você?
– Falta de estrutura familiar, abandono e indiferença por parte dos
meus pais desde quando ainda era bebê. Em certos momentos, as manchas
ficam mais discretas. Agora em momentos de muitos problemas que se esten-
dem por um longo período e que me causam estresse, as manchas se mostram
mais brancas e evidentes e a pele fica mais ressecada na área. Lamento a falta
de interesse, divulgação e tratamento mais acessível pelo SUS. Uma vez, acon-
teceu uma situação engraçada: meu filho Murilo, de 5 anos, quando tinha 3
anos, pegou uma toalha para “limpar” as manchas nas minhas pernas.
A moça falava sem parar, as mensagens apareciam uma atrás da outra
na tela, Sarah mal tinha tempo para comentar alguma coisa. Fernanda parecia
estar realmente muito interessada em compartilhar suas experiências, e, ao
contrário de Sarah, não continha a língua, ou melhor, os dedos, na hora de
dizer o que estava pensando.
Quanto mais Sarah conversava com outros portadores de vitiligo, mais
ela queria continuar compartilhando experiências e conhecendo mais sobre sua
doença. Quando Adriana da Silva Diel a adicionou no messenger, dizendo que
era da comunidade do vitiligo, Sarah a aceitou na hora e já logo iniciou a conver-
sa. Nem dois minutos se passaram e o assunto já se desviou naturalmente para a
doença que tinham em comum. Adriana, que tem 28 anos e mora em Santa Ca-
tarina, é empresária, professora universitária e economista. Não se importou em
responder as perguntas da curiosa Sarah e contou um pouco de sua história.
– Em novembro de 2008, estava me preparando para ir a um show de
Victor e Léo. Fui fazer a maquiagem e percebi que, na minha testa e no canto
do olho esquerdo, havia duas pequenas manchas brancas, menores que um
grão de arroz. Dali em diante. comecei a perceber a evolução das manchas
que foram se espalhando por toda minha testa e lado esquerdo do rosto. Há
seis meses elas estão estabilizadas.
– Já tentou algum tratamento?
– Sim, já fui em quatro dermatologistas, um patologista e um acupun-
turista. Já fiz tratamentos com cetoconazol, com viticromim, com Elidel, com
Protopic, acupuntura. Mas nenhum deles teve resultado significativo. Hoje,
não faço mais nada, apenas esqueço que tenho a doença.
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– Então você aprendeu a conviver bem com isso?
– Hoje, após quase 2 anos, posso dizer que convivo bem. Obvio que
não queria ter, mas se desenvolvi a doença, agora tenho que aprender a lidar
com ela, e não deixar de viver, de ser feliz por causa dela. Sou muito mais que
manchas brancas. No começo, achava que todos me olhavam por causa disso,
mas hoje consigo encarar numa boa, pelo menos as manchas estão estagnadas
e nenhuma nova tem surgido. Acredito que o preconceito está muito mais em
nós que nos outros.
– Nisso tenho que concordar com você! Às vezes acabamos criando
paranóias e achamos que todos a nossa volta estão olhando pras manchas,
achando esquisito, quando na verdade nem estão olhando pra isso, ou então
estão apenas curiosos - comentou Sarah - E você tem idéia do que pode ter
causado o vitiligo em você?
– No meu caso, o que causou o vitiligo foram duas perdas na família,
bem próximas. Dois avós tiveram câncer, e, logo depois desse choque, surgi-
ram as manchas. Mas com o vitiligo aprendi a dar mais valor às coisas e à vida,
tem tanta doença pior que vitiligo. Aprendi a não ser tão egoísta em relação
à doença, poderia ter algo que me limitasse a viver, mas realmente o vitiligo
nunca te impossibilita de realizar nada, basta que você assuma, acredite e
pense. Me considero curada, as manchas surgiram por algum motivo, tive que
repensar muitas coisas, aprendi a dar mais importância e valorizar mais minha
vida. Percebi que cada ser humano tem, de alguma forma, problemas, uns
maiores outros menores. Existem doenças que realmente limitam as pessoas
de viver, de ser feliz. No meu caso, não, apenas tenho manchas na face que, se
quiser, cubro-as com maquiagem. Acredito que a cura vem do nosso interior.
Os que, como eu, estão desacreditados nos tratamentos oferecidos, deviam
parar de gastar e não obter resultados, e começar a cuidar mais do corpo e da
mente, porque, talvez assim, tenham mais sucesso.
– É, seria bom se todos pensassem assim como você! - afirmou Sarah,
após ler o que Adriana havia dito, pois realmente concordava com seu ponto
de vista.
A próxima pessoa com quem Sarah conversou foi Susi Carine Almeida
Nobre Góes. Ela é da Bahia, tem 33 anos, e é Assistente Social. Susi contou
à garota que possui vitiligo há uns 17 anos, e que já tentou vários tipos de
tratamentos.
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– Usei viticromin um tempo. Depois não consegui achar mais o remé-
dio. Já tomei vários chás de cajá, que ajudaram a repigmentar. Agora estou
usando uma pomada que vi nas comunidades, mas não estou vendo muitos
resultados. Passei a mentalizar a filosofia japonesa, Seicho-no-ie, que me en-
sinaram e, por incrível, que pareça minhas manchas sumiram quase todas.
Porém, depois das minhas outras duas gravidezes, minha imunidade baixa
voltou e reapareceram várias manchas.
– Hoje, como você convive com o vitiligo?
– Não gosto muito, porque eu não era assim, minha pele era muito
bonita e saudável. Eu era bem diferente, não só a pele, mas meus cabelos,
meu corpo, dentes. Então eu me transformei, fiquei diferente. Moro em uma
cidade pequena e todo mundo me conhece. As pessoas que não moram mais
aqui quando me veem, às vezes, nem me reconhecem. Isso para mim é cons-
trangedor, tem gente indiscreta que fala: “A Susi era tão bonita”. Eu estava
acostumada a todo mundo me elogiar desde pequena. Mas eu não deixo isso
me abater sabe? Eu tento levar sem problemas, mas é difícil.
– Entendo completamente, mesmo que a gente se aceite e tente convi-
ver bem com a doença, ainda é difícil lidar com a reação das pessoas a nossa
volta - disse Sarah, ao se lembrar do quanto não gostava de ser criticada - Já
sofreu preconceito por conta do vitiligo?
– Não, na verdade nunca soube de nada. Ninguém nunca me falou
nada, nem percebi. A gente mesmo é que pode sentir um pouco excluída às
vezes. Meus filhos até me ajudam a passar a pomada. Fico um pouco cons-
trangida com meu marido, mas ele não fala nada, eu é que sinto um pouco de
vergonha. Só é mais difícil com crianças, de 2 a 4 anos de idade, que quando
eu brinco ou tento me aproximar, elas não gostam, acho que têm medo. Fico
péssima por isso, pois adoro crianças, mas não demonstro, porque sei que elas
não têm maldade.
– Você acha que o vitiligo tem mesmo causas emocionais?
– Sim, porque de todos os médicos em que já fui, nenhum falou real-
mente o que causa o vitiligo. Mas também não sei dizer que tipo de emoção
exatamente é essa, porque muita gente passa por momentos de estresse e não
desenvolve vitiligo. Por exemplo, minha mãe é super nervosa e não tem vitili-
go. Mas ela descarrega o nervoso dela e eu não. Sou igual ao meu pai, eu fico
quieta, não sei soltar a raiva, eu guardo.
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O queixo de Sarah caiu ao ler a última frase de Susi. Era a primeira, das
pessoas com quem conversou, que se assemelhava a ela quanto ao que po-
deria ter causado o vitiligo. Calar as emoções. Guardar a raiva. Ela até soltou
um suspiro de alívio. Não era a única, afinal. Todos os outros, em sua grande
maioria, sofreram traumas muito fortes, como perda de parentes e acidentes
graves. Mesmo ainda achando seus problemas pequenos diante disso, Sarah
se sentia um pouco melhor por saber que não era a única com vitiligo por
esse motivos.
Após encerrar mais essa conversa, agradecendo imensamente a atenção
de Susi, Sarah viu uma nova janela de solicitação em seu messenger. Aceitou
o pedido, ao reconhecer, pelo nome, outra moça da comunidade do Orkut.
Luciana da Rosa Castanho, uma dona de casa de 28 anos, que mora São José
dos Campos. Compartilhando experiências, e Sarah já estava ficando craque
nisso, descobriu que Luciana possui vitiligo desde os 7 anos de idade, quando
observou uma pequena mancha na perna direita e os pais a levaram à farmácia
achando que era uma alergia ou micose.
– O farmacêutico falou que era vitiligo, mas que deveríamos consultar
um dermatologista. O dermatologista, então, confirmou a suspeita do farma-
cêutico: era vitiligo.
– Que tratamentos você já fez? - Sarah já não perguntava mais “se” a
pessoa tinha feito tratamento, pois certamente sempre obteria uma resposta
positiva.
– Fui ao dermatologista apenas uma vez. Ele indicou Viticromim, po-
mada e comprimidos. Usei por mais ou menos 5 anos e surtiu efeito. Depois,
meus pais descobriram um tratamento que não tinha nem registro no Minis-
tério da Saúde. Eu usei até os 16 anos. Tomava o remédio mais um complexo
vitamínico e também fazia uma dieta alimentar. Não comia enlatados, embu-
tidos, nem carne vermelha nem comida gordurosa ou frita.
– Nossa, que barra! Esse tratamento deve ter sido difícil - Sarah co-
mentou já imaginando como seria fazer aquele tratamento. Nunca que iria
conseguir ficar sem comer tudo aquilo. Ela já não era muito fã de comidas
saudáveis. - Como você lida com o vitiligo?
– Meu maior problema sempre foi ter que parar pra explicar o que era,
principalmente quando eu era criança, já que a doença não era tão conhecida.
Mas nunca tive vergonha e nem fui discriminada. Nunca tive problemas nem
58
com relacionamentos, nem com trabalho ou estudo. Acho que tudo gira mais
em torno da segurança e capacidade da pessoa em relação a si mesma do que
em torno da doença, que não interfere em nada além da aparência.
– Você tem ideia do que pode ter te causado o vitiligo?
– Acredito que existam formas diferentes da manifestação do vitiligo -
Luciana continuava a enfatizar suas opiniões a cada resposta - No meu caso,
pode até ser que o início tenha sido desencadeado por algum trauma emo-
cional. Eu não me lembro de nada nesse sentido na época. Mas percebo que
nunca tive alterações nas manchas nas situações mais estressantes da minha
vida como morte de parentes. Não acredito que as razões para o surgimento
do vitiligo em todas as pessoas sejam de fundo emocional. Em algumas pes-
soas, é esse o caso, em outras, não.
“As minhas manchas de vitiligo estacionaram aos 16 anos, quando parei
o tratamento que era um tanto penoso, devido à dieta que eu precisava fazer.
Em quase 13 anos sem tratamento algum, não apareceram novas manchas e
nem as antigas aumentaram. Penso muitas vezes em iniciar novamente algum
tratamento, mas penso, ao mesmo tempo, que seria um pouco desgastante.
Hoje, o único temor que tenho é que a doença se manifeste em minhas filhas.
Eu soube lidar muito bem com a doença desde a infância e ela não afetou
minha vida, mas não sei como minhas filhas lidariam com isso, até porque não
se sabe o tanto de manchas que cada pessoa pode ter.”
Sarah também conheceu a dona de casa Kátia Andréa de Morais Nas-
cimento, de 38 anos, que mora na Praia Grande. Portadora do vitiligo há 26
anos, ela contou que descobriu a doença por acaso, quando a mãe foi prender
seu cabelo e viu uma mancha em seu pescoço.
– Eu tinha também manchas nos joelhos, mas minha mãe achava que era
marca de algum machucado. - ressaltou Kátia ao contar sua história - Desde que
descobri as manchas, imediatamente procurei tratamento. O primeiro foi com
umas pomadinhas que não me lembro mais os nomes. Sem resultados, procurei
um tratamento que, segundo o charlatão do médico, vinha de Cuba, aquele “me-
lagenina”, e em seguida tomava banho de luz. Gastei uma nota preta e nada de
resultados. O que me deu alguma esperança foi um tratamento que fiz com tri-
soralem, com cápsulas e em seguida sol moderado. Esse foi o único tratamento
que deu certo para mim na época. Usei por cerca de uns 10 anos. Mas parava um
pouco, pois o remédio é muito forte, pode trazer diversos efeitos colaterais.
59
“Agora iniciei um tratamento com corticóides. Esse, sem dúvida, foi o
que me deu mais resultados até hoje. Chama-se predsin comprimidos, e clob-x
gel, mas como são muito potentes só pode ser usado durante 4 semanas, dar
um descanso e depois retomar. Mas faço o uso por conta pois apareceu nas
minhas mãos. São pequenas, mas muitas manchas.E comecei a tomar também
Viticromin, faz 5 dias.”
Sarah ainda se espantava cada vez que as pessoas listavam os inúmeros
tratamentos que já haviam feito. Era de se admirar a tamanha força de von-
tade dessas pessoas que passavam tanto tempo em um mesmo tratamento, e
iam atrás de tudo o que fosse preciso para, enfim, se verem livres do vitiligo.
Exatamente por não ter tais características, é que Sarah ficava tão impressio-
nada.
– Depois de tanto tempo, como é que você convive com o vitiligo
hoje?
– Olha, fico bem tranquila, desde que não apareça no meu rosto e nem
nas minhas mãos. Não que eu goste das manchas, mas, no resto do corpo,
tento manter a calma. Por enquanto, não me escondo do mundo, não. As
pessoas ainda olham muito, principalmente quando estou na praia. Quando
eu tinha uns 14 anos, um vizinho me perguntou se o que eu tinha era AIDS.
Nossa, isso acabou comigo. Mas hoje não sinto mais nenhum preconceito,
por não ter muitas manchas.
– Você sabe dizer o que lhe causou o vitiligo?
– Um tio meu, muito querido, faleceu, na época. Acho que foi isso.
Eu também tive uma infância muito conturbada, acredito que isso também
mexeu muito com meu emocional. Meus pais brigavam demais, se separavam
e voltavam de uma hora para outra, se agrediam entre eles. Eu e meus irmãos
apanhávamos muito. Nossa, era horrível.
“Ás vezes fico desencanada e não uso nada para o vitiligo, mas às vezes
trato durante uns dois anos. Nunca vou aprender a conviver com o vitiligo.
Não nasci com ele, não aceito. Às vezes, desistimos do tratamento, pois são
muito demorados. Mas temos que ter paciência e determinação se quisermos
ver os resultados.”
– Tem toda razão! - concordou Sarah, mesmo não sendo possuidora
de tais qualidades.
Em um fim de tarde, Sarah decidiu passar mais um vez em seu tópico
60
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Livro - À flor da pele

  • 1.
  • 2. HELOISA IKEDA 2010 À flor da pele Quando a mente se fecha e o corpo fala
  • 3. Copyright © 2010 Heloisa Ikeda Livro-Reportagem realizado como Projeto Experimental (Voo Solo), exigência parcial para conclusão do curso de Jornalismo na Universidade de Mogi das Cruzes (UMC). Orientador: Professor Doutor Sérsi Bardari Coordenador: Professor Mestre Roberto Medeiros IKEDA, Heloisa Alencar. À Flor da pele: quando a mente se fecha e o corpo fala. Projeto Experimental (Voo Solo), Universidade de Mogi das Cru- zes, Mogi das Cruzes, 2010, 93 p. Gradução - Jornalismo Área de concentração: Comunicação Social - Jornalismo Ilustrações: Heloisa Alencar Ikeda Diagramação: Heloisa Alencar Ikeda 1. Vitiligo 2. Psicologia 3. Dermatologia 4. Ficção
  • 4. Este livro é dedicado à minha bisavó Aline, que veio a falecer em outubro deste ano, enquanto eu realizava o projeto Voo Solo. Ela viveu até os 90 anos de idade no Mato-Grosso e nunca tive a oportunidade de conhecê-la, mas sei que, onde estiver, está torcendo por mim e pelo meu sucesso.
  • 5.
  • 6. Apresentação........................................................................... 11 O que os olhos não veem..................................................... 15 A descoberta........................................................................... 23 “O que você vai fazer com isso?.......................................... 33 Quem vê cara não vê coração.............................................. 41 O que o mundo diz................................................................ 63 A cura....................................................................................... 73 Posfácio.................................................................................... 77 Sumário
  • 7.
  • 8. Pare e perceba o que pode estar afetando a sua saúde. Muitas vezes... O resfriado escorre quando o corpo não chora. A dor de garganta entope quando não é possível comunicar as aflições. O estômago arde quando a raiva não consegue sair. O diabetes invade quando a solidão dói. O corpo engorda quando a insatisfação aperta. A dor de cabeça deprime quando as dúvidas aumentam. A alergia aparece quando o perfeccionismo fica intolerável. As unhas quebram quando as defesas ficam ameaçadas. O peito aperta quando o orgulho escraviza. A pressão sobe quando o medo aprisiona. As neuroses paralisam quando a “criança interna” tiraniza. A febre esquenta quando as defesas detonam as fronteiras da imunidade. O coração desiste quando o sentido da vida parece terminar. E as tuas dores caladas? Como elas falam no teu corpo? Mas cuidado... escolha o que falar, com quem, onde, quando e como! Crianças é que contam tudo, para todos, a qualquer hora, de qualquer forma. Passar relatório é ingenuidade. Escolha alguém que possa te ajudar a organizar as ideias, harmonizar as sensações e recuperar a alegria. Todos precisam saudavelmente de um ouvinte interessado. Mas tudo depende, principalmente, do nosso esforço pessoal para fazer acontecer as mudanças em nossas vidas! Este alerta foi colocado na porta de um Espaço Terapêutico. Que todos aprendam a fazer mudanças necessárias em suas vidas. Autor desconhecido Quando a boca cala... o corpo fala
  • 9.
  • 10. Este livro-reportagem contém uma história fictícia, baseada na his- tória da autora do livro, cuja vida se assemelha com a da personagem central, Sarah. A autora escolheu escrever o livro neste formato para que pudesse explorar o assunto de forma leve e informal, ressaltando a todo o momento o lado psicológico e humano da doença de pele vitiligo. Sarah, seus familiares e amigos são todos personagens fictícios. Porém também existem personagens reais na história. São essas as fontes consulta- das para a elaboração da reportagem. Dentre elas estão médicos dermato- logistas, psicólogos e alguns portadores do vitiligo, que aceitaram participar deste projeto relatando sua experiência com a doença. Os depoimentos foram coletados pela internet, através da comunidade “Eu tenho Vitiligo”, no Orkut. Todos responderam ao mesmo questionário enviado por e-mail, que continha perguntas como: “Há quanto tempo possui o vitiligo?”, “Como é pra você conviver com o vitiligo?” e “Você já sentiu algum tipo de preconceito quanto a isso?”. Com isso, foi possível observar o assunto de diferentes ângulos, já que havia tipos muito diferentes de pessoas que participaram. A narrativa apresentada a seguir nada mais é do que uma forma de ilustrar como é a vida de alguém que possui vitiligo. Os capítulos seguem uma sequência linear no tempo, começando pelo trauma vivido pela personagem que deu origem à doença. Depois narram-se o aparecimento das manchas e a Apresentação 11
  • 11. descoberta da doença, seguido pela busca por tratamentos dermatológicos e psicológicos. Seguido pela busca da personagem por mais informações sobre sua enfermidade, onde descrevem-se os depoimentos de outros portadores e alguns dados levantados através de pesquisas na internet e bibliográficas. Por último vem a conclusão da própria personagem sobre tudo o que viveu. O principal objetivo do livro A flor da pele: quando a mente se fecha e o corpo fala, é compartilhar experiências, mostrando aspectos e opiniões de pessoas envolvidas com a doença. O que pensam e como vivem os portadores de viti- ligo. Quais são suas dificuldades. Também é fundamental mostrar àqueles que conhecem e convivem, ou até mesmo não estão acostumados a lidar pessoas que têm vitiligo, o que é e como se comporta essa doença. O texto segue o gênero narrativo. Segundo Edvaldo Pereira Lima, o livro-reportagem de um nível superior de complexidade temática e estilística apresenta características semelhantes ao romance. Ambos visam ao conhe- cimento da realidade humana e devem construir uma fórmula estética que torne ao leitor agradável a leitura. Os capítulos têm uma ligação entre si para que possa haver continuidade na leitura, isso porque se trata de um romance que relata, através da história da personagem central, o vitiligo da perspectiva psicológica. Os depoimentos e entrevistas são amarrados a essa história ao longo da narrativa. A propósito da leitura desta obra, é importante informar também que apesar de tratar especificamente sobre o vitiligo, este livro não aborda somen- te este assunto. Durante a narrativa, a autora toca em uma série de fatores que estão atrelados ao vitiligo, mas que também podem estar presentes na vida de pessoas saudáveis. Exemplo disso são os diferentes tipos de traumas que po- dem levar ao aparecimento da doença. Certamente, existem outras milhares de pessoas que passaram por situações parecidas, mas que, por não possuírem certa característica genética, não desenvolveram a doença. Entretanto, podem levar consigo ainda alguma marca, seja ela física ou não. Tal aspecto nos faz pensar que o vitiligo nada mais é do que uma forma de o corpo mostrar que existe algo de errado. Que aquilo que está guardado dentro da gente, e que muitas vezes pensamos que já está adormecido, conti- nua nos causando dano. E já que não nos damos conta disso, não procuramos ajuda e não extravasamos esta angústia. Nosso corpo tenta dar sinais de que precisa de ajuda através dessas inúmeras doenças de fundo emocional. 12
  • 12. Por isso não é pretensão afirmar que muitas pessoas iram se identificar com a história presente nas páginas seguintes. Afinal, nosso corpo reflete tudo aquilo que somos por dentro. Se estamos tristes, se estamos felizes, se estamos irritados ou relaxados, é possível perceber apenas num olhar. Trans- parecemos a todo o instante aquilo sentimos, da mesma forma que estamos vulneráveis a tudo que vem de fora. Até que um dia nos damos conta de que não há divisão. Corpo e mente são uma coisa só. Se um não esta bem o outro não pode estar. 13
  • 13.
  • 14. Sarah sempre foi uma garota tímida e discreta. Poderia passar des- percebida em um lugar cheio de gente ainda que estivesse usando um vestido vermelho com bolinhas amarelas. Ela costumava andar com a cabeça baixa pra todos os lados. Quando criança sempre foi muito apegada ao que era seu, a coisas materiais, mas que para ela tinham significado muito maior. Seu co- bertor, suas bonecas, seus livros, suas canetas e até mesmo seus sapatos. Tudo aquilo fazia parte do que ela era, e, por isso, tinham tanta importância. Mas não só por isso. Todas aquelas coisas, apesar de não se moverem, nem fala- rem, sempre estariam ali com ela. Não a abandonariam. Eles não se importa- vam se ela estava magra ou gorda. Se ela era alta ou baixa. Se ela sabia ou não conversar, se ela sabia expressar o que sentia ou se ela gostava de conversar. Eles eram seus e pronto, faziam companhia a ela e não reclamavam por isso. Todas as noites, antes de dormir, Sarah unia as mãos e as levava junto à testa. Fechava os olhos e rezava, esperando que seu anjo da guarda levasse todos os seus pedidos até Deus. Entre eles sempre estava alguma coisa sobre conseguir ser mais espontânea mais alegre e menos insegura. Até os seis ou sete anos de idade, ela não fazia ideia do que eram essas coisas, então apenas pedia para que os amiguinhos da escola não rissem mais dela, e que sua mãe não a culpasse por tudo que acontecia de errado. Quando seu irmão mais novo nasceu, Sarah teve um sério problema de ciúmes. O comportamento da garota era o de quem queria chamar a aten- O que os olhos não veem Capítulo 1 15
  • 15. ção de todos, mesmo que ela realmente não quisesse isso. Depois de alguns anos, quando Breno se tornou uma criança travessa, Sarah sempre era culpada por tudo que ele fazia de errado. Sem contar que ela estava constantemente ouvindo frases do tipo: “Ê Sarah, presta atenção!” ou “Mas tinha que ser a Sarah”, por causa de seu jeito estabanado, ela vivia deixando tudo cair no chão e quebrando coisas. Apesar de tornarem sua vida um pouco mais complicada, todos esses fatos não faziam com que Sarah deixasse de ser uma criança normal. Quando estava perto de pessoas que ela gostava e quando brincava de suas brincadei- ras preferidas, ela era muito alegre e agitada. Se não tivesse nada que a fizesse sentir envergonhada ou repreendida, ela não via problema nenhum em soltar a imaginação e inventar um mundo de coisas para se divertir. Ninguém a sua volta nunca desconfiou que todos esses pequenos ges- tos, todas essas pequenas atitudes em relação a garota, um dia pudessem levá- la a desenvolver uma doença, até então rara. Uma doença que até hoje não se sabe exatamente como surge nas pessoas, mas que se sabe exatamente que consequências pode causar na vida de alguém. Nem Sarah, nem seus pais, nem seus amigos e parentes mais distantes podiam imaginar no que aquilo iria dar. 16
  • 16. 17 Existem certas situações em nossa vida com as quais acabamos nos acostumando. Elas acabam virando rotina. No começo, até nos incomoda- mos com elas. Mas com o tempo, mesmo que ainda não tenham se tornado algo bom, a gente acaba aceitando. Acaba se acostumando. Mas o que a gente talvez não saiba, é que mesmo virando rotina, certas coisas não deixam de nos causar dano. Por mais que estejamos preparados para enfrentar tal situação, ela ainda nos afeta da mesma forma e com a mesma intensidade da primeira vez. E quanto mais achamos que tal situação é normal, mais ficamos vulne- ráveis a ela. Durante boa parte de sua vida, Sarah acreditou que chorar era o único meio de refúgio para os seus problemas. A única forma que sempre teve de desafogar seus sentimentos, tanto bons como ruins. Ela nunca soube dizer, ao certo, o que fez com que se tornasse uma criança tão tímida e reservada. Mas sabia que isso fazia com que ela não quisesse nunca compartilhar com ninguém o que eu estava pensando ou sentindo. Talvez por medo de rejeição. Talvez por vergonha de ser ridicularizada. Talvez por receio de não ser com- preendida. Mas seja por qual motivo fosse, ela preferia chorar sozinha no seu canto a se expor. Mesmo depois de alguns anos, quando Sarah já não era mais uma crian- ça indefesa, quando cresceu e passou a entender melhor certos aspectos da vida, ela ainda não encarava isso como um problema. Aquele era simplesmen- te o seu jeito de ver as coisas, o seu jeito de lidar com tudo que lhe acontecia. O que tinha de mal querer ficar sozinha e chorar um pouco? Parecia sempre ser uma coisa de momento, já que, no dia seguinte, ou até mesmo algumas horas depois, já havia se esquecido e tudo voltava ao normal. Na adolescência, porém, as coisas pareciam até mesmo terem se tor- nado um tanto quanto mais difíceis. Tímida e reservada ela sempre foi, e pa- recia que sempre seria. Mas quando era criança, ao menos conseguia externar as suas vontades e a sua criatividade em certos momentos. Por ser criança, talvez, as pessoas não a julgavam tanto pelo que fazia, pelo que gostava e pelo que falava. Muitas vezes até a achavam engraçadinha. Porém, depois que passou dos 12, 13 anos de idade, Sarah tinha que lidar com um mundo que a encarava de uma forma totalmente diferente. Esse mundo não aceitava muito bem suas ideias. Não entendia os seus gostos. Não aceitava as suas escolhas. Não perdoava seus fracassos. O que antes era só mais uma característica de
  • 17. sua personalidade, agora se tornara um problema mais sério. Algo com o qual, muitas vezes, ela não sabia lidar. Parece que toda essa cobrança queria fazer dela uma pessoa que ela não era. Queria impor a ela regras e padrões a serem seguidos, mas com os quais ela não concordava. Sarah simplesmente não conseguia ser como a maioria de seus amigos. Ela adorava conversar e sair, mas quando precisava falar de si mesma alguma coisa dentro dela a fazia travar. Ela sabia que se, por acaso, dissesse algo diferente ou incomum, corria o risco de zombarem com a cara dela. E isso, pra ela, era o fim. A garota não sabia como lidar bem com isso como a maioria das pessoas. Ficava magoada. E quando ficava, simplesmente guardava toda a mágoa lá no fundo de seu coração. Tempo suficiente para conseguir esquecê-la, ou ao menos deixá-la adormecida. O problema é que essa situação se repetia quase que diariamente. Sarah estava constantemente reprimindo suas emoções, com medo de se expor aos outros. Chegava até mesmo a não saber como compartilhar momentos de alegria com os demais. Expressar-se através da fala era um desafio para ela. Odiava ser o centro das atenções. Fazia, cada vez mais, o possível para passar despercebida onde quer que fosse. Ela não tinha ideia do que essa atitude estava causando a ela mesma. Não tinha ideia do mal que estava fazendo a si própria. Mas, para ela, era melhor assim. Estava mais segura, fechada e es- condida dentro do seu universo particular, onde todos os seus sentimentos e emoções faziam sentido. Essa atitude poderia trazer segurança e até conforto a Sarah. Mas trazia também conseqüências não tão agradáveis assim. Primeiro, porque a garota acabava perdendo a oportunidade de conviver com as pessoas a sua volta. Apesar de estar ali fisicamente, na maioria das vezes, ela fazia sua mente viajar a um outro plano, como se estivesse vivendo num mundo de fantasias. Parecia que só ali os seus sonhos eram plausíveis. Ela sabia o quanto era bom sonhar. Mas viver sonhando acordada fechava seus olhos para o mundo real. Quanto mais ela insistia em se fechar em seu mundo de sonhos, mais queria se afastar do real e viver no imaginário. Com o passar dos anos, isso acabou de tornando um vicio. Sarah cada vez mais evitava ficar perto das pes- soas, e cada vez mais se fechava em seu mundo particular. Ela havia encon- trado ali, o que nunca encontrara em lugar nenhum. Espaço para expressar suas vontades, seus desejos. Formas de ilustrar e moldar os seus sonhos mais 18
  • 18. 19 profundos e surreais. Tudo ali era só dela, ninguém poderia interferir nem estragar o seu mundo perfeito. E ai de alguém que ousasse querer entrar. Mais alguns anos a frente, Sarah crescia, mas insistia em continuar vi- vendo da mesma forma que escolheu, deixando de experimentar experiências únicas e importantes na vida para se proteger de possíveis desapontamentos. A garota encontrou também um outro refúgio muito seguro e que pare- cia trazer ao seu mundo um pouco mais de verdade e o tornava muito mais inte- ressante. A internet parecia muito mais do que uma janela de comunicação com o mundo para Sarah. Era um meio através do qual ela podia conhecer pessoas sem ter que encará-las de frente. Um lugar onde as pessoas, pelo menos num primeiro momento, não iriam julgá-la pela aparência nem por seus gostos. Pelo contrário, ela percebeu que através daquela ferramenta, poderia encontrar pes- soas que compartilhavam dos mesmos gostos, dos mesmos medos, das mesmas angustias que ela. A internet ampliou os horizontes afetivos de Sarah, mas, por outro lado, conseguiu afastá-la ainda mais daqueles que estavam a sua volta. Entretanto, apesar de sempre estar ouvindo criticas sobre sua maneira de se comportar, Sarah não queria dar ouvidos a nada disso. Afinal, o mun- do real nunca quis aceitá-la como ela realmente era. Sempre a repreendeu e sempre a fez sentir vergonha do que era. Então pra que ela iria dar atenção ao que estavam dizendo agora? Ela encontrara em si mesma e em todos os seus ‘amigos virtuais’ o que nunca tivera daqueles que estavam ali ao seu lado o tempo todo. Não se sentia nem um pouco culpada de passar horas na fren- te do computador nem de passar horas sonhando acordada sozinha em seu quarto, enquanto todos se reuniam para jantar em família, ou então enquanto todos os seus colegas de escola saiam pra se divertir. Apesar de parecer um belo refúgio e de realmente proporcionar bons momentos a Sarah, essa sua nova filosofia de vida estava lhe causando um grande e irreparável dano. Algo que ninguém podia perceber. Obviamente não iriam perceber, porque esse dano não estava visível aos olhos. Pois era um dano na alma. E como é que se cura uma ferida na alma? Se nem ao menos podemos vê-la. Talvez possamos senti-la ou até mesmo percebê-la através de atitudes. Mas dificilmente nos damos conta dela. Não antes de já ter se torna- do algo profundo e grave. Como será que o corpo da gente reage quando percebe que algo não está bem, mas não consegue combater isso através de nossas defesas naturais?
  • 19. Como lutar contra algo que não sabemos como surgiu e muito menos onde vai acabar? Nem Sarah, nem as pessoas ao seu redor tinham a resposta. O tempo passava e aos poucos Sarah crescia e deixava de ser uma criança. Sem nunca se afastar de seu mundo seguro, onde nada nem ninguém podiam entrar, ela deixava de amadurecer certos aspectos, fazendo com que se tornasse uma jovem séria e rancorosa. Estresse e mau-humor eram uma constante na vida da moça. Qualquer crítica ou qualquer elogio podiam tirá-la do sério, se ditos nos momentos errados. Ela era como uma bomba relógio. Guardava toda a raiva e alegria para si mesma. E por isso, parecia que iria explodir a qualquer momento. Não importava o quanto os outros dissessem que seu comportamento não era normal, Sarah continuava do mesmo jeito e não fazia nenhum esforço para mudar. Nos momentos mais críticos, quando sua armadura parecia que ia se romper, ela se trancava no quarto e chorava. Às vezes, por horas e horas. Até que tudo passasse. Ou ao mesmo até que ela esquecesse o porquê estava ali e o que a havia deixado tão triste. A irmã de Sarah, Rafaela, era uma das pessoas que mais conseguia me- xer em suas feridas. Talvez por ser tão próxima e pela pequena diferença de idade entre as duas, ela sabia exatamente o que dizer para balançar o coração de Sarah. Ao contrário do resto do mundo, ela vivia sobre o mesmo teto e sabia de coisas que Sarah preferia que não fossem comentadas. Sobre seus gostos, sobre suas manias, sobre seus segredos, sobre suas intimidades. Desde que eram pequenas, Rafaela sempre usou disso para envergonhar a irmã na frente dos outros. Uma vez a irmã mais velha de Sarah, a troco de nada, contou as suas amiguinhas da escola que ela ainda dormia de chupeta. Certo dia Sarah soube que a irmã contou a um garoto de sua sala que Sarah gostava dele. A garota não conseguia mais nem olhar na cara do menino, tamanha vergonha que sentia. Sarah queria morrer cada vez que a irmã fazia isso. Mesmo depois de mais crescidas, Rafaela não perdia uma oportunida- de de comentar em público coisas que podiam constranger Sarah. Falava de alguma artista que ela gostava e que não era considerada tão legal pela maioria das pessoas; de seu jeito de se vestir e a forma engraçada como andava toda desengonçada; de seu jeito de falar com as pessoas e como se portava em público. Como se não bastasse, Sarah sempre foi a ovelha negra da família. 20
  • 20. Todos insistiam em compará-la com a irmã “perfeita”. Mal sabiam que a úl- tima pessoa com quem Sarah queria parecer no mundo era com a sua irmã. Apesar de tudo, ela gostava da irmã e sabia que podia contar com sua ajuda quando precisasse. Porém sua personalidade e o caráter sempre foram algo que Sarah repugnava. O mundo parecia custar a entender que as características que faltavam a Sarah, não eram exatamente as que ela queria ter. Por exemplo, ela sempre foi um desastre em qualquer coisa que envolvesse interação com outras pes- soas. Falar nunca foi muito a sua praia. Era um custo para ela iniciar uma con- versa com alguém desconhecido. Apresentar trabalhos para classe a faziam tremer e gaguejar a todo instante. Ao contrário de outras habilidades, essa era uma que não podia passar despercebida. Afinal, para quase tudo na vida precisamos lidar com pessoas. Falar, nos expressar. E é por isso que pessoas quietas demais e tímidas demais chamam tanta atenção. E, com certeza, o que menos Sarah queria era chamar atenção pra ela mesma. Cada vez mais o mundo parecia não querer compreender Sarah. E Sa- rah, cada vez mais, parecia não querer compreender o mundo. Ele lhe causava medo, e ela não tinha coragem suficiente para enfrentá-lo. Nas poucas vezes em que tentara se arriscar, saía tão machucada, que não lhe restavam forças para levantar e seguir em frente. Isso só fazia com que ela se recolhesse e se fechasse ainda mais dentro de seu mundo particular. Dentro de si mesma. Privando-se do mal que poderia afetá-la, mas, ao mesmo tempo, privando-se de muitas experiências boas que poderiam fazê-la crescer. 21
  • 21.
  • 22. Mesmo que passasse dias tentando se lembrar, Sarah nunca pôde dizer ao certo quando foi que percebeu uma mancha branca, que crescia gra- dativamente, em seu ombro direito. Provavelmente, porque no começo, ela não incomodava nenhum pouco. Não que hoje incomode, afinal ela nunca foi de se preocupar muito com aparência, nem mesmo com a saúde. Então, aquela pequena e discreta mancha branca não parecia ser nada demais. Se ninguém nunca tivesse visto, certamente Sarah não teria comentado sobre a mancha com ninguém. Mas assim como outras coisas que ela preferia guardar só para si, sua família acabou percebendo. Em um dia de mais calor, quando Sarah quis usar uma roupa mais fresca e colocou uma blusa regata, sua mãe, Tereza, percebeu a mancha em seu ombro. A mãe de Sarah sempre reparava na aparência física da filha, e normalmente se preocupava com isso bem mais do que a própria garota. Isso a irritava profundamente. Apesar do comentário, Sarah insistiu em dizer que não era nada e tentou convencer a mãe de que não precisava se preocupar. Isso, porém, durou muito pouco tempo. Pois a mancha parecia aumen- tar de tamanho a cada dia. E mesmo para uma pessoa tão despreocupada com aparência e saúde como Sarah, não parecia ser uma coisa normal. Sarah não fazia ideia de que doença era aquela. Muito menos o que po- dia tê-la causado. Como qualquer coisa que a gente consegue perceber através dos sentidos, a garota relacionava aquilo com algo físico. Até porque não era a A descoberta Capítulo 2 23
  • 23. 24
  • 24. primeira vez que ela tinha problemas na pele. Ela teve uma alergia muito forte por boa parte de sua infância, e fez diversos tratamentos para tentar controlar aquilo. Mas só depois de muito tempo conseguiu algum resultado. Até que a tal alergia nunca mais apareceu. Nos dias seguintes Sarah ouviu constantemente sua mãe dizendo que ela precisava ir ao médico, porque aquela mancha que crescia a cada dia não era normal. Na maioria das vezes, a garota fingia não ouvir ou então dava um jeito de desviar o assunto para que sua mãe esquecesse um pouco dela. Mas aquilo já estava se tornando insuportável, então Sarah decidiu enfim, ceder às investidas da mãe e aceitar ir ao dermatologista. Afinal, ela também já estava ficando no mínimo curiosa para saber do que se tratava aquilo Porém, a garota ficou na dúvida por mais um bom tempo. Adiar com- promissos era algo que Sarah havia herdado de família. Sua mãe era expert no assunto. A consulta com o dermatologista foi marcada apenas mais algumas semanas depois. Quando a mancha branca de Sarah já havia atingido um ta- manho considerável e visível. Tereza não arriscava quando o assunto era saúde, então pesquisou na internet por algum lugar especializado, para levar a filha. Encontrou a Clínica Rebucci de Dermatologia que fica localizada no centro de São Paulo. Ligou e agendou uma consulta para a semana seguinte. A essa altura Sarah já estava re- zando para que aquilo não fosse nada demais e que o médico não lhe passasse muitos remédios. Ela tinha pavor de tratamentos médicos. Sempre foi uma criança muito frágil e vivia com a bronquite e rinite atacadas. Mas, na verdade, o que mais lhe preocupava era ter que aguentar a sua mãe depois lhe cobrando quanto a melhora e ao uso dos remédios caros que comprou. Tentou esquecer disso e, de fato, esqueceu. No dia em que sua mãe chegou em casa muito antes da hora do almoço Sarah estranhou. Mas apenas alguns segundos depois se lembrou da bendita consulta que haviam marcado para ela. Fez aquela cara de total desânimo quando a mãe entrou na sala e ela ainda estava de pijamas na frente da tevê vendo desenhos animados. Era janeiro e as aulas de Sarah no colégio ainda não haviam recomeçado. Sarah já preparava os ouvidos antes que a mãe começasse a dizer: – Posso saber porque ainda está de pijama mocinha? Tenho que te levar ao médico pra você ver essa sua mancha ai... Sarah ensaiou um sorriso forçado enquanto se levantava do sofá e co- 25
  • 25. 26 locava os chinelos ao mesmo tempo. Sua mãe estava com toda a razão de brigar com ela, mas não custava nada ter ligado para lembrá-la, ou então tê-la acordado pela manhã quando saiu para trabalhar. – Eu me esqueci completamente que tinha médico hoje, foi mal... Vou lá me trocar rapidão, espera ai... - disse Sarah ao sair apressada da sala ainda terminando de calçar os chinelos que custavam a entrar nos pés com meias. Ela subiu as escadas correndo, como sempre fazia, mesmo quando não estava com pressa alguma. Foi em direção a seu quarto. Pegou qualquer rou- pa, vestiu rápido e penteou os cabelos. Deu uma rápida passada no banheiro para se olhar no espelho. Nisso sua mãe já gritava lá de baixo, impaciente: – Anda Sarah, vamos nos atrasar pra consulta! E você ainda vai cair dessa escada correndo desse jeito filha! Os comentários da mãe sempre entravam por um ouvido de Sarah e saiam pelo outro. Mas, como sempre, tudo que a mãe dizia acabava aconte- cendo. Certo dia, Sarah tropeçou ao subir a escada correndo e cortou o joelho tendo que levar três pontos. Sarah abaixou o olhar e ajeitou o cabelo, que mesmo depois de pen- teado ainda estava meio fora do lugar. Tereza apenas se levantou do sofá e caminhou até a porta da frente. Sarah a seguiu até o carro e entrou no banco do carona. Mesmo já tendo seus 12 anos de idade, ela ainda achava um barato poder andar no banco da frente do carro. Se divertia só de olhar a rua dali, mas toda sua alegria passou quando a mãe parou o carro e ela se lembrou para onde estavam indo. Desceu calmamente e continuou seguindo a mãe até a entrada da clínica. Esperou que ela falasse com a recepcionista e depois foram à sala de espera. O consultório era bem iluminado e todo decorado. Havia inúmeras revistas numa mesinha ao centro. Nenhuma delas despertou o interesse de Sarah. Antes mesmo que pudesse pensar em pegar alguma para ler, o médico chamou por seu nome: A garota e a mãe se levantaram do sofá da sala de espera e foram até a sala do médico. O doutor Paulo Luzio, como ela ouvira a mãe dizer diversas vezes a atendente quando chegaram, cumprimentou as duas gentilmente e pediu para que sentássemos. Sarah, como sempre, ficou quieta enquanto a mãe explicava para o médico qual era o problema. Após ela falar, o médico apenas pediu para que Sarah fosse até a maca e lhe mostrasse a mancha. Ele olhou cuidadosamente e até usou uma luzinha
  • 26. para examinar melhor. Nem meio minuto depois, ele guardou a lanterninha e olhou de Sarah para sua mãe ao dizer: – Ela tem vitiligo. “Viti... o que?” disse Sarah em pensamento. Nunca tinha ouvido falar nada sobre aquilo. Pelo nome, parecia ser algo grave, e pela cara que a sua mãe fazia, ela achava o mesmo. O médico, porém, ao perceber a expressão das duas, deu um leve sorriso e explicou um pouco melhor. – Não é nada grave, pode ficar tranquila. O que ele disse, porém, não tirou a interrogação que se formara no rosto de Sarah. Ela continuava a não saber do que se tratava. Ela queria enten- der melhor o que estava se passando consigo mesma, então resolveu engolir a timidez e perguntar: – Mas o que é viti... essa doença ai? Como foi que eu peguei isso? – Vitiligo - disse o médico, enquanto dava uma leve risada - é uma do- ença que dá manchas brancas na pele. Existem vários tipos de vitiligo. Não é uma doença contagiosa e nem transmitida por vírus ou bactéria. A principal causa, para todos os tipos é o estresse. Geralmente, o vitiligo não é uma do- ença agressiva. A maior parte das pessoas tem poucas manchas pelo corpo, mesmo anos após descobrir a doença. O estresse funciona como um desen- cadeador, pois a pessoa tem que ter uma genética que permita ela desenvolver a doença. E o estresse vai fazer o gene funcionar. Ele falava de forma clara e compreensível, mas, mesmo assim, aquilo ainda não estava fazendo muito sentido para Sarah. “A principal causa é o es- tresse?” Ela repetiu a frase em sua mente em forma de pergunta. Olhou para os próprios pés, concentrada, pensativa. O médio pediu para que ela descesse da maca e que se sentasse novamente ao lado da mãe. Certamente ele perce- beu que tanto a garota como sua mãe ainda estavam cheias de dúvidas. – Vou explicar melhor para que vocês possam entender - pontuou dou- tor Paulo ao retomar o seu lugar atrás da mesa. Ele pegou uma caneta e um papel em branco e começou a desenhar. Sarah prestou atenção os rabiscos do médico, tentando entender que desenho sairia dali. Ele a fez lembrar de suas aulas de Ciências. Pois os professores sempre desenhavam as coisas para ficar mais fácil de entender. Mais tarde, Sarah desco- briu que o médico que a consultara também era professor. Ela não tirou os olhos da folha até que ele terminasse o desenho, depois voltou a olhar para ele. 27
  • 27. 28 – Essas são as três camadas da pele - explicava o médico - Na parte de baixo da epiderme existe uma célula chamada melanócito, que são as células responsáveis pela formação do pigmento da pele, a melanina. Em momentos de estresse, os nervos liberam substancias que são capazes de matar os me- lanócitos. E a pigmentação da pele não pode mais ser produzida. A morte dessas células é um processo muito demorado, mas não temos como evitar que isso recomece em novos períodos de estresse, por isso alguns tipos de vitiligo não tem cura. Sarah fez uma expressão de choque enquanto um pensamento invadia a sua cabeça. “Legal, ele ficou explicando tudo isso só pra dizer no final que a doença não tem cura?”. Justamente agora que Sarah já estava cogitando a pos- sibilidade de aceitar começar um tratamento para se ver livre daquela mancha e de todas as complicações que ela trazia, como a mãe enchendo sua cabeça o tempo todo. Antes que Sarah pensasse em dizer qualquer coisa, Tereza se adiantou perguntando: – Não tem cura, mas é possível tratar, não é doutor? – Claro que sim - disse ele, para o alivio da mãe de Sarah - Existem vários tipos de tratamentos possíveis para o vitiligo. Há casos em que con- seguimos repigmentar quase que 100% das áreas afetadas. No caso da Sa- rah, o vitiligo dela é do tipo segmental. As manchas aparecem muito cedo e espalham-se rapidamente pela área afetada, porém a atividade geralmente cessa após determinado período. Por isso, esse tipo de vitiligo é mais fácil de ser tratado. Ao contrário do não segmental que se espalha progressivamente pelo corpo durante toda a vida do paciente, podendo cobrir a pele da pessoa quase que totalmente. Os olhos de Sarah se arregalaram ao ouvir a ultima explicação do médi- co. Ela agora estava na dúvida se ele estava realmente querendo acalmá-la ou assustá-la. Uma manchinha branca na pele não a incomodava, mas aquilo no corpo todo não era uma idéia muito agradável. De fato isso seria uma coisa que incomodaria qualquer um. A garota tentou acreditar então que seu tipo de vitiligo não pudesse, de repente, virar o outro tipo, sempre com medo de fazer certas perguntas que pudesse obter uma resposta indesejada. – E quais tipos de tratamento existem? - perguntou Tereza, já que a filha continuava calada, mas concentrada na conversa. – Muitos. Existem tratamentos clínicos com cremes, pomadas, com-
  • 28. primidos de diversos tipos. Há também o banho terapêutico, laser e cirurgia. Porém, mais importante do que o tratamento em si, é a indicação correta desse tratamento. O médico dirigia-se diretamente a Sarah, o que indicava que, para ele, o mais importante era que ela entendesse o que estava se passando. E, mais do que isso, cabia a ela decidir começar algum tratamento e levar isso a sério, ou não. Porém, não era bem assim que as coisas funcionavam para Sarah. Ela normalmente não podia impor suas vontades dentro de casa. Então provavel- mente, se a mãe quisesse, ela iria fazer o tratamento, querendo ou não. Ela então deu um sorriso forçado enquanto virava para encarar a mãe, que parecia estar mais aliviada. Porém, Sarah sabia que ela ainda estava muito preocupada. Ficaram em silêncio por um momento. Como se tivessem uma decisão muito difícil pela frente. Antes que o médico voltasse a falar de trata- mentos, a mãe de Sarah fez uma pergunta que ela nunca iria pensar em fazer, mas que realmente era importante. As mães sempre sabem o que dizer nas horas certas, afinal: – Mas ela precisa tomar algum cuidado especial com a doença? – No dia-a-dia, nenhum especifico. Nenhum alimento ajuda ou piora o vitiligo. Geralmente o que a pessoa tem que fazer no dia-a-dia é tomar um pouquinho de Sol, que ajuda a pigmentar. Geralmente as pessoas fogem do Sol, mas isso está errado. – Certo! - disse Tereza pensativa, enquanto olhava atentamente para o desenho que o médico fizera. - Então o que podemos ir fazendo, enquanto não tem o diagnóstico completo dela? Sarah ouvia a mãe falar como se entendesse muito do assunto. Mas sa- bia o que ela queria dizer. Queria saber logo se havia algum remédio que ela já poderia ir tomando. Como se isso fosse tirar um peso das suas costas. Dando a sensação de “dever cumprido”. Ao menos a filha estaria tomando alguma coisa para melhorar. O médico, muito esperto, entendeu a pergunta da mesma forma que Sarah, então foi direto ao assunto. – Bom primeiramente, irei receitar um remédio básico, que é recomen- dado para todos os tipos de vitiligo e que ajuda na repigmentação - explicou ele calmamente - E também vou indicar um creme para usar na área das man- chas. Você deve passá-lo diariamente e expor a pele ao sol mais forte do dia, de quinze a vinte minutos. 29
  • 29. 30 Mesmo com todas as más expectativas de Sarah quanto àquela consul- ta, ela não podia esperar uma resposta pior do médico. O tratamento que ele indicara era tudo o que ela não queria nem precisava naquele momento, nem em nenhum outro momento. Ela conhecia a si mesma o suficiente para saber o quão difícil seria levar a sério um tratamento daquele. Não tinha disciplina muito menos responsabilidade para tal. Mas que escolha ela tinha? Sabia que a mãe iria sair do consultório direto e passar na farmácia mais próxima para comprar tudo e, quiçá, até mais umas outras coisas, como protetores solar e o que mais ela achasse que devesse. Sarah ainda tinha um monte de dúvidas em sua cabeça. Mesmo com toda aquela explicação sobre como surge o vitiligo, ela ainda não conseguia entender como uma coisa tinha a ver com a outra. Estresse e pele. Emoções e pigmentos. Sistema nervoso e melanócitos. E o que causara as manchas nela, afinal? Não conseguia se lembrar de nenhum momento específico que poderia estar relacionado a isso. Entretanto, a menina não ousara abrir a boca para pronunciar nenhuma de suas inúmeras perguntas. Preferiu, como sem- pre, guardar aquilo para si mesma. – Está bem doutor, ela irá usar o remédio direitinho, eu garanto! - disse a mulher ao dar um olhar de canto de olho a Sarah, que ela conhecia muito bem e que significava “Não é mesmo?”. A garota apenas revirou os olhos, mesmo sabendo que isso irritaria a mãe. – Assim espero. - respondeu o doutor sorridente - Podem marcar o retorno com a recepcionista para daqui a um mês, mais ou menos. É o tempo necessário para podermos ver algum resultado! A mãe de Sarah apertou a mão do médico ao se despedir. A garota ape- nas deu o leve sorriso forçado de sempre, ainda se perguntando por que o médi- co estava tão feliz. Depois de saírem da clínica com a data do retorno marcada, para a infelicidade de Sarah, as duas entraram novamente no carro e rumaram para casa. A menina já estava rezando para que a mãe tivesse que voltar ao tra- balho e não fosse passar o resto do dia em casa. Queria evitar possíveis conver- sas sobre o assunto que ela não queria mais ouvir falar: o seu vitiligo. Todavia, Sarah não escapou de umas perguntinhas da mãe ainda no caminho de casa. Tereza, como sempre, estava querendo saber mais da vida da filha do que ela normalmente gostaria de compartilhar. Mesmo sabendo desse empecilho, ela não desistia de tentar arrancar algo da garota.
  • 30. – Então, você ouviu o que o médico disse. Tem que usar o remédio direitinho se quiser ter algum resultado! “O que? Ele não disse nada disso. Você disse! E ele apenas concor- dou...” pensava Sarah ao ouvir o que a mãe dissera. Para tentar encurtar ao máximo possível aquela conversa, que mais seria um monólogo, ela murmu- rou apenas um “uhum”. Em vão, porém, a mãe continuava a falar desenfrea- damente, esperando suas respostas. – E você prestou atenção quando ele disse que a causa do vitiligo é o estresse? Não entendi muito bem aquele desenho que ele fez, mas acho difícil que, no seu caso, a causa seja essa. Você não se estressa com nada. Nunca responde as provocações, nem nada. Não tem nada com que se preocupar na vida. Tem tudo na mão. Como pode ter uma doença devido ao estresse? “Talvez esse seja o meu problema, mãe!” bradava a garota quase aos gritos. Porém, apenas em sua mente, deixando as palavras entaladas na gar- ganta. Respirou fundo engolindo toda a raiva e desceu do carro, deixando a mãe sem resposta. Correu na frente, para entrar em casa e subir logo para seu quarto. Tentou não bater a porta para não deixar explicita sua revolta. Deitou na cama e enfiou a cara no travesseiro. Tentou segurar ao máximo, mas não aguentou. As lágrimas começaram a cair de seus olhos ao mesmo tempo em que o aperto no peito aumentava. Por que o mundo não a deixava em paz, afinal? Ela não via problema nenhum em não querer falar com ninguém, e nem dividir as suas emoções. Por que seu corpo não podia lidar com isso? Por que insistia em expô-la daquela forma? Ninguém precisava saber que ela tinha um problema. Mas agora, com o vitiligo, não seria possível esconder. Estava ali, exposto, marcado em sua pele. Para quem quisesse ver. Alheio a todo e qualquer julgamento, que não faziam falta a Sarah, mas com os quais ela iria ter que conviver a partir dali. 31
  • 31.
  • 32. 33 Sarah nunca foi muito fã de médicos e hospitais. Talvez esse fosse até um trauma de infância, já que devido a sua saúde debilitada passou um tempo considerável dentro desses lugares. Mas esse não era o único motivo pelo qual ela não se animava com nenhum dos inúmeros tratamentos que ten- tou fazer para combater o vitiligo. Ela nunca foi responsável nem disciplinada o bastante para levar a sério um tratamento médico tão longo como aqueles que os médicos lhe passavam. Mas, com a insistência dos médicos e de sua mãe, acabou fazendo, ou pode-se dizer que ao menos tentou. Das primeiras vezes, lhe receitaram comprimidos e um creme. Tudo feito em farmácias de manipulação. Sarah achava o máximo quando ia bus- car os remédios e eles vinham com o seu nome escrito na embalagem. Mais tarde, ela teve que trocar os comprimidos por um tipo de xarope, devido a sua dificuldade de engolir as cápsulas. O mais chato era que, além de passar o tal do creme, Sarah tinha que se expor ao Sol por 15 minutos. E não podia ser qualquer Sol, tinha que ser o mais forte, das 11h da manhã às 2h da tarde. Dá pra contar nos dedos as vezes que ela fez esse procedimento da maneira correta. Depois de quatro meses, Sarah interrompeu este tratamento, porque era muito demorado e cansativo e não estava surtindo muito efeito. O médico havia dito que a mancha estava começando a repigmentar, mas Sarah não conseguiu ver nada de diferente nela. Algum tempo depois, sua mãe a levou “O que você vai fazer com isso?” Capítulo 3
  • 33. de novo ao dermatologista. Muito contrariada, Sarah até tentou dizer à mãe que a mancha não a incomodava tanto assim e que não ia adiantar começar outro tratamento, já que o anterior não tinha dado resultado. Porém, de nada adiantou, Tereza praticamente arrastou a filha até o consultório de outro mé- dico, dizendo que a garota não sabia o que era melhor para ela. O outro dermatologista receitou a Sarah um tratamento, muito pareci- do com o que ela já havia feito. Em uma das consultas posteriores, ele chegou até a aplicar nitrogênio líquido sobre a sua mancha, processo que causou certa dor e desconforto a Sarah. Mas ela preferia algo assim, que realmente fizesse alguma diferença significativa, do que um tratamento indolor e demorado. Experiências anteriores faziam a garota achar que quanto mais um procedi- mento médico doía, mais ele era eficaz. Ela aguentou a dor sem reclamar. Me- ses depois, porém, Sarah parou de tomar os remédios devidamente e deixou mais um tratamento de lado. Durante o primeiro tratamento que realizou, o médico chegou a en- caminhar Sarah para uma consulta com uma psicóloga, mesmo acreditando que ela não se encaixassa nos perfis de quem necessita de acompanhamento psicológico para o vitiligo. A mãe de Sarah, então, a levou para um hospital que atendia pelo seu convênio médico. Na hora da consulta, a doutora pediu que a garota entrasse sozinha. Sarah não sabia se achava isso bom ou não, mas se levantou da cadeira e seguiu a moça até seu consultório. Sentou na cadeira e ficou quieta. Sarah não se lembra muito bem o que exatamente a psicóloga disse a ela durante a consulta. Só se lembra que ela disse algo como: “O vitiligo é como uma forma de seu corpo expressar que tem alguma coisa ai dentro que não está bem. Precisamos descobrir o que é que te causa essa dor, pois não é à toa que você está chorando, algum motivo tem que ter!”. Pois é, ela chorou. Não sabia o porquê, mas algo que a psicóloga disse mexeu com alguma coisa dentro dela. Sarah não conseguia mais responder direito à doutora, apenas chorava mais e mais. Tentou respirar fundo e dizer numa voz razoável: “Mas eu não sei o que é ‘isso’”. A psicóloga, mostrando toda sua experiência e domínio do que estava fazendo respondeu na lata: “Se você soubesse o que é, não teria porque nós estarmos aqui”. Ao final da consulta, a psicóloga disse palavras de conforto e abraçou a garota, que pediu pra que ela esperasse seu rosto deixar de ficar vermelho 34
  • 34. e inchado para poder sair dali. Quando saiu, a mãe de Sarah tentou saber o que tinha ocorrido na consulta, mas Sarah não disse absolutamente nada. A garota se despediu da mãe e as duas foram embora por caminhos diferentes. Agradeceu imensamente por sua mãe ter que voltar ao trabalho e ela poder ir pra casa sozinha. Infelizmente, essa foi a primeira e última consulta psicológica de Sarah. Nem sua mãe, nem os dermatologistas mencionaram a hipótese novamente. Ela também não tinha a menor coragem para dizer para mãe que queria voltar e iniciar uma terapia, até porque como iria convencê-la de que levaria isso a sério, quando em todos os tratamentos anteriores, ela tinha falhado? Então o assunto morreu. Tratamentos estéticos, dermatológicos, psicológicos viraram passado. A mancha de Sarah não aumentou nem diminuiu de tamanho, assim como os seus problemas, tudo continuou na mesma por mais alguns anos. [...] Alguns anos depois Sarah foi crescendo e se tornando uma jovem de um gênio extrema- mente difícil. A convivência com ela era algo complicado, até mesmo para seus amigos e familiares. Mas, mesmo assim, ela conseguia levar uma vida quase normal. O vitiligo não era nada mais do que uma mancha no ombro, e agora na raiz do cabelo. E ele nada interferia na sua relação com as pesso- as, nem na relação consigo mesma. Se ela tinha problemas de convivência e autoestima era por outros motivos. Motivos dos quais ela nunca sabia muito bem o que eram. Por isso, vez ou outra, ela lembrava daquela sua única consulta com uma psicóloga, quando pela primeira vez tinha tido oportunidade de falar sobre seus tormentos, mesmo que não tivesse falado de nada. Quando, pela primeira vez, ela teve alguém que estendeu a mão a ela e disse que a ajudaria a encontrar o que a estava fazendo tão mal. Por diversas vezes, Sarah pensou como teria sido se tivesse ido mais vezes àquele consultório, se tivesse pedido a sua mãe para começar uma terapia e ter levado isso adiante. Certo dia, quando pensava no assunto, Sarah se lembrou de um velho e grande amigo da família que era psicólogo. O seu nome era Flávio Amorim, ela se lembrava bem dele por seu jeito engraçado e descontraído de conversar. Sempre a fazia rir. Um dia, ele havia comentado que uma pessoa não pode 35
  • 35. se consultar com um psicólogo com quem tenha algum vínculo afetivo. En- tretanto, ele nunca disse a ela que não poderia conversar com um psicólogo que já conhecesse, para falar sobre alguma doença de fundo emocional e tirar algumas dúvidas. Ela, então, resolveu não pensar mais de uma vez, para não acabar de- sistindo. Pegou a agenda de telefones da mãe e procurou o telefone do psicó- logo. Depois de várias ensaiadas, digitou o número e ligou para ele. Disse que precisava de uma ajuda com uma coisa e marcou de ir ao seu consultório na tarde do dia seguinte. Desligou o telefone sem acreditar no que tinha acabado de fazer. No dia seguinte, levantou cedo, mesmo tendo marcado a visita para o período da tarde. Estava ansiosa. Poucas horas depois do almoço pegou suas chaves e saiu de casa, andando, rumo ao consultório do Dr. Flávio. Chegando lá, procurou o número da sala indicada e bateu na porta. Segundos depois o psicólogo abriu a porta e a cumprimentou de maneira alegre. – Olá Sarah, como vai? – Bem, e você? - respondeu a garota timidamente. – Bem, graças a Deus! Então, a que devo a honra de sua ilustre visita? – É... então... - Sarah pensou na melhor maneira de dizer o que queria - Eu estava com algumas dúvidas sobre a minha doença, o vitiligo, e queria ver se você podia me esclarecer umas coisas, é que eu estou pensando em começar a fazer terapia - mentiu. – Entendo, mas o que exatamente você quer saber? – Como é que acontece a ‘terapia’? O que é feito? – Bom, as seções terapêuticas são semanais e têm duração de cinquenta minutos. Não são absolutamente diferentes de nenhuma outra seção terapêu- tica. A única coisa é que se trabalha um pouco mais a imagem. Tem pessoas que precisam trabalhar a voz, outras a impostação, outras a postura, o equilí- brio, a assertividade. No caso do vitiligo, nós trabalhamos, primeiro de tudo, a aceitação do próprio corpo. Ela tem que aceitar viver assim. – E essas doenças de fundo emocional são comuns? – Como toda doença somática, Sarah, o vitiligo pode ser originário de situações estressantes. No quesito emocional, hoje nós temos vários dados que comprovam que boa parte das doenças podem ter também origem emo- cional, inclusive o câncer e a psoríase, que também é uma doença cutânea. 36
  • 36. 37
  • 37. Não fora uma ideia tão má, afinal, vir conversar com o psicólogo. Sarah sentia que foi a melhor coisa que poderia ter feito. Que bom que não deixara a timidez vencer e que tomou coragem para ligar para o doutor e vir até seu consultório. Emendou logo outra pergunta para continuar o assunto: – Como as pessoas reagem quando descobrem? – Quando começa a aparecer a doença, a primeira coisa que a pessoa tenta fazer é esconder, usando roupa, maquiagem. Chega uma hora que isso passa a ser impossível, tendo em vista o local que ela desenvolveu a mancha. E, a partir deste momento, é que a pessoa já deveria procurar ajuda psicoló- gica, o que não acontece. A ajuda psicológica vai vir lá na frente quando ela esgota todas as possibilidades de cura. Já foi ao dermatologista, ela já foi ao cirurgião plástico, já foi em tudo quanto é lugar. E ai ela vê que realmente terá que aprender a conviver com a pele daquele jeito. – Existe muito preconceito com quem tem a doença? – As pessoas que convivem com os portadores de vitiligo não têm ne- nhum problema, como os profissionais de saúde por exemplo. Agora, os lei- gos, o senso comum, pode ser muito cruel. Como também é cruel com quem tem qualquer outro tipo de patologia, principalmente as que são cutâneas, por causa da suposta contaminação. – Mas porque isso? Falta informação às pessoas? – Os casos não tão raros, Sarah, que se você for pensar, não dá pra in- formar. O Ministério da Saúde informa a população sobre as patologias mais graves. Como o vitiligo é uma doença menos comum e mais amena, acaba ficando de fora. Mas todo mundo, sem exceção, deveria ter informação para não cometer nenhum deslize, nenhuma indelicadeza, com alguém que já está com a sua parte psicológica, com a sua autoestima afetada, como é o caso do vitiligo. – Incomoda mais esteticamente né? Porque na saúde, a pessoa não tem nada. – Nada! – ele repetiu a última palavra dita por Sarah - O duro é você explicar para a pessoa que aquilo é só externo. É uma despigmentação e nada mais do que isso. Então é muito difícil a pessoa se acostumar com os olha- res. – É... se todos que tem vitiligo pudessem enxergar isso, seria mais fácil de aceitarem. 38
  • 38. – Tudo o que é externo é mais difícil de aceitar. Mas existem vários trabalhos para a pessoa realmente aceitar o próprio corpo, mudar de compor- tamento. A pergunta chave que fazemos é: “O que você vai fazer com isso?”. Você pode aceitar, ou não aceitar. Isso não vai mudar o quadro, não vai diminuir o tamanho do problema, só vai acarretar outros problemas. Você pode, por de- pressão profunda, quando a pessoa fica encapsulada, não quer mais sair, chegar até ao luto. Essa mancha, que não dá nem pra medir em termos de milímetros na espessura da sua pele, não dá para manchar o resto do seu futuro. Sarah sorriu, o moço falava bonito, e com propriedade. Sem dúvida, era um excelente profissional, mas, com certeza, não apenas isso. Era uma pessoa muito boa e sensata. Não tinha o que contestar, afinal, ele estava com toda a razão. Para não esgotar o assunto, a garota pensou em mais alguma pergunta para fazer, algo que tivesse curiosidade. Afinal, não era todo dia que ela tinha um psicólogo à disposição para tirar suas dúvidas. – Desculpa minha ignorância, mas o que é estresse? – Estresse nada mais é do que uma função adaptativa de um organismo a uma mudança de rotina. Toda vez que um corpo é sujeito a uma mudança de comportamento, ele sofre um estresse. Existem vários níveis, Sarah, em que nós podemos avaliar isso. Um estresse pequeno, muitas vezes, pode ser uma bomba na minha cabeça e na sua não. – É verdade... - refletia a garota. – A grande sacada é preparar as pessoas para a diversidade do ser hu- mano. Parte-se do princípio de que as pessoas são todas iguais, mas não são! Você não tem que achar que todo é mundo igual. Você tem que perceber as diferenças, e, dentro daquilo que você vê, tentar se adequar, equalizar a vida a partir daí. –Tem pessoa que não tem conhecimento e também não quer ter, né? Não pergunta. – Não, mesmo! Trata isso como uma coisa horrorosa e extremamente contaminante e infectante e não quer mais saber. Nem na cara olha. Mas a nossa sociedade põe isso na sua cabeça. Precisa de alguém que fique debaixo dos holofotes, para que a outra pessoa fique na sombra. As pessoas precisam de um Judas. Uma coisa é comentar um fato, agora falar mal é dar uma opi- nião de alguma coisa que não se conhece. E a sociedade é especialista nisso, esta cheia de médico, engenheiro, advogado, dentista e por ai vai. 39
  • 39. Dessa vez Sarah soltou um riso alto e prolongado. Ao mesmo tempo em que se divertia com o bom humor e descontração do psicólogo, ela co- meçava a enxergar sua doença de uma forma diferente. Era interessante olhar sob aquela perspectiva. Uma sensação de alívio tomara conta de seu corpo e mente durante a conversa. Mesmo sabendo que poderia estar enchendo a paciência do doutor Flávio, ela resolveu fazer mais uma pergunta: – A psicologia é importante em todos os tipos de doença então, né? – Sim, a psicologia vai dar, com certeza, o suporte necessário que o médico não vai conseguir dar. O médico vai entrar com o suporte medica- mentoso, ou seja, o remédio físico, você pega o comprimido na mão, põe na boca e toma. Até para esse ato de pegar o remédio e por na boca tem que haver uma aceitação do que está acontecendo. Se não fosse o preconceito da própria sociedade e ainda um pouco da resistência da classe médica, a gente poderia ter, com certeza, bastante sucesso num trabalho multidisciplinar entre as profissões. – Espero que um dia isso aconteça mesmo! - afirmou Sarah, totalmen- te convencida com as ideias do doutor. A garota se despediu do psicólogo e amigo, não sem antes pedir mil desculpas pelo incômodo e pelo tempo tomado. Ele, gentilmente, disse que tinha sido um prazer conversar com ela e que Sarah podia procurá-lo quando precisasse. Apesar de ter adorado o papo, ela não esperava precisar voltar àquele nem a nenhum outro consultório psicológico. Sentia que estava final- mente encontrando o caminho para entender a si mesma. 40
  • 40. 41 Como se Sarah já não tivesse problemas suficientes quanto a sua autoestima e quanto a dificuldade de lidar com as pessoas, o vitiligo agora se tornara um problema a mais com que se preocupar. Era difícil esconder as manchas, ainda mais em épocas de calor. E, na verdade, a garota nunca quis escondê-las. Não via necessidade disso. Afinal o médico já lhe dissera que o Sol era bom para ajudar nos tratamentos. Porém, mesmo que isso não a in- comodasse, havia outras coisas que a incomodavam. Os olhares e perguntas pareciam vir de todas as direções. Certa vez, Sarah estava em um almoço de família na casa se sua avó. Muitos tios e primos por todo lado, como acontecia todos os domingos. Mais uma reunião familiar comum e agradável. Pelo menos até Sarah resolver brin- car com algumas priminhas mais novas que queriam pentear seus cabelos, ou melhor, despentear. Nisso, uma delas reparou em sua mancha esbranquiçada na pele. Como toda criança, ela era muito curiosa e, obviamente, quis saber o que era aquilo. Então perguntou sem rodeios. – O que é isso? – Uma mancha - respondeu Sarah, pedindo para que ela se contentasse com apenas isso, mas já se preparando pra próxima. – Como foi que fez isso? - insistia ela, querendo saber mais - Você se queimou? – Não, Gabi! - Sarah não conseguiu segurar o riso com a suposição da Quem vê cara não vê coração Capítulo 4
  • 41. pequena garota - Essa parte da minha pele não tem cor mesmo, é uma doença que chama vitiligo. – Ah! - murmurou Gabriela, que apesar da explicação, não tinha enten- dido muita coisa. Porém decidiu parar com as perguntas antes que sua cabeça desse um nó, tentando entender. Sarah se deparou com essa mesma situação inúmeras vezes e até mes- mo com as mesmas pessoas. Crianças são difíceis de conter. Sempre falam e perguntam tudo que der na telha. Mas ao menos elas eram verdadeiras e sinceras, então Sarah não ligava tanto de ter que ficar falando de sua doença e explicando quantas vezes fossem necessárias. Não podia se esquecer também, das vezes em que fora abordada por estranhos na rua, que queriam compartilhar informações sobre o vitiligo. Aconteceu pelo menos umas três vezes. Era curioso o quanto a mancha des- pertava o interesse, até mesmo de quem não tinha a doença. Numa tarde comum, quando Sarah saiu da escola e foi para o ponto de ônibus esperar a condução que a levaria para casa, uma senhora, que devia ter por volta de uns sessenta anos, parou perto da garota e começou a falar com ela. – Desculpe a indelicadeza, mas essa sua mancha é vitiligo, não é? – É sim - respondeu Sarah, pensando no que aquela senhora poderia estar querendo. – Ah, eu sabia, meu filho também tem isso. E você faz algum trata- mento? – No momento, não, mas já fiz alguns, sim. – Você já ouviu falar em um remédio que dizem que é bom para o vitiligo, eu não lembro o nome agora, mas é tipo um chá que você faz com a casca de uma árvore e toma? Sarah enrugou a testa e se concentrou no que a mulher dizia. Estaria ela batendo bem das ideias? De qualquer forma, era interessante ver alguém com tamanho interesse em sua doença. Mas aquilo era porque seu filho a possuía, e ela, com certeza, se preocupava com ele o suficiente para ir atrás de alguma cura de qualquer forma. Coitada, mal sabia ela que Sarah não tinha muito mais conhecimento do assunto que ela. – Nunca ouvi falar, não – respondeu a garota curta e direta, como sempre. A senhora disse mais algumas coisas e depois seguiu seu caminho. Sa- 42
  • 42. rah chegou a se sentir um pouco mal, por estar tão acomodada quanto a sua doença. Será que ela deveria estar atrás de outras alternativas de tratamento, como a mulher que acabara de falar com ela? Era o que o resto das pessoas esperava dela, sem dúvidas. Mas será que era o que ela realmente queria fazer? Afinal, já não levara a sério os últimos tratamentos indicados pelos dermato- logistas com os quais se consultou. Nesse momento, outro episódio parecido com os anteriores veio à mente de Sarah. Certa vez, quando foi a um mercadinho próximo de sua antiga casa comprar pão para tomar café da tarde, um moço jovem de pele morena veio abordá-la para falar sobre sua mancha. Ela já estava descendo a rampa do local e indo em direção à rua, quando o rapaz na bicicleta parou perto dela e começou a conversa. – Oi, desculpe te incomodar com isso, mas o que você tem ai no om- bro é vitiligo? “Porque será que todo mundo pedia desculpas antes de fazer alguma pergunta sobre o vitiligo? Por acaso é pecado sentir curiosidade sobre algo e perguntar?”, se perguntava Sarah em pensamento. Ela achava estranho como até mesmo quem não tinha vitiligo parecia se sentir incomodado em falar no assunto. Porém, como ela mesma também tinha a mesma postura, procurava não julgar ninguém por isso. Respondeu calmamente ao rapaz. – Sim é vitiligo. – Eu também tenho vitiligo. Descobri há pouco tempo o que era - dizia o jovem, que aparentava estar superafim de conversar e trocar experiências sobre o assunto. Certamente, ele esperava que Sarah tivesse a mesma vontade, porém, a garota ainda tinha sérios problemas em conversar com desconhecidos. Por mais que quisesse, não conseguia levar muito adiante o papo. Mais algumas palavras, e o moço desistiu. Porém, seu último comentário ficou gravado na mente de Sarah até hoje. Um misto de ingenuidade e ignorância por parte dele. – Mas é engraçado, eu achei que só gente mais escura que tivesse vitili- go. Não sabia que pessoas branquinhas, que nem você, tinham também. Sarah sorriu sem saber se poderia considerar aquilo um elogio, ou uma ofensa. Apenas achou interessante o ponto de vista do rapaz. Se despediu e continuou seu caminho. A cabeça matutando um monte de perguntas e ideias 43
  • 43. que insistiam em atormentá-la. Principalmente quando tocava no assunto. A sua doença não comprometia sua saúde física, mas estava constantemente mexendo com suas emoções e sentimentos. Como será que as outras pessoas que possuem vitiligo lidam com a do- ença? Será que todas têm o mesmo problema? Definitivamente, não! Se tinha uma coisa que Sarah sabia e acreditava, era que todas as pessoas são diferentes e têm visões diferentes sobre as coisas. Portanto, nenhuma delas via o vitiligo da mesma forma que ela. De certo que tiveram problemas completamente di- ferentes dos seus para desenvolverem a doença. Assim como convivem com outras pessoas que reagiram completamente diferente dos seus parentes e amigos. Mesmo tendo tamanha certeza em relação a isso, Sarah ainda sentia curiosidade por descobrir e entender como é que as outras pessoas que têm vitiligo convivem com a doença. Foi então que Sarah teve uma brilhante ideia. Um dos seus hobbies favoritos era fazer amigos pela internet. Ela sabia como ninguém encontrar pessoas interessantes e que tinham a ver com ela. Resolveu usar isso para en- contrar outras pessoas que tinham vitiligo e que estivessem interessadas em compartilhar a sua experiência com ela. Sem pensar duas vezes, a garota entrou no site de relacionamentos mais famoso e frequentado do país, o Orkut. Foi no campo de pesquisa e digitou “vitiligo”. Apareceram na tela do computador várias comunidades sobre a doença. Sarah olhou a que tinha mais membros e entrou nela. Deu uma olhada nos tópicos que tinham no fórum de discussão. A maioria deles eram de pessoas que perguntavam sobre tratamentos e remédios para o vi- tiligo, se eram confiáveis ou não, se funcionavam ou não. Não havia nada do tipo “Como vocês lidam com o vitiligo?” ou “Conte aqui sua experiência com a doença”. Sarah, então, decidiu criar um tópico com o título “Trocando experi- ências”. No texto do tópico, ela escreveu: “Gostaria de conhecer pessoas que tenham diferentes experiências e pontos de vista em relação ao vitiligo. Quem quiser conversar, me adiciona no messenger, ou manda um e-mail!”. No dia, ninguém respondeu ao seu tópico. Porém, no dia seguinte, ela tinha três no- vos e-mails em sua caixa de entrada, e algumas pessoas solicitando aceitação no messenger. Para suas expectativas, até que a resposta tinha sido rápida. A primeira a responder ao tópico na comunidade foi a Roseli Luna, 44
  • 44. 45
  • 45. que tem 31 anos e trabalha como autônoma. Sarah a adicionou no messenger, e, no mesmo dia, elas tiveram uma longa conversa sobre o vitiligo. Roseli contou a ela que possui vitiligo há mais ou menos 10 anos e que já conhecia a doença antes disso, pois sua mãe e seus irmãos também a possuíam. Mal havia começado a interagir com outras pessoas com vitiligo e já havia descoberto um caso que fugia ao fato de que a doença não era hereditária. – No meu caso, a doença ocorreu após um acidente com meu irmão, no qual tive que socorrê-lo - contou Roseli – E logo no começo você já procurou tratamento? Quantos já fez? - perguntava Sarah curiosa – No começo, procurei um dermatologista em São Paulo, na esperança de ser outro diagnóstico, pois a mancha era apenas em cima de meu dedo. Infelizmente ele constatou vitiligo. Aí fui informada sobre um médico em Apucarana, que tratava da vizinha de meu irmão. Fui sozinha até lá. Tratei com 8mop, fenilanina e oxsoralem, mais acido fólico e vitamina C. Foi exce- lente, mas tinha que ir até lá de 3 em 3 meses,e eu não tinha condições. Tentei procurar aqui em São Paulo outros médicos. Iniciei outro tratamento do qual, graças a Deus, tive ótimos resultados, mas como o tratamento é longo e o vitiligo é uma caixinha de surpresas, começou a não fazer efeito em novas manchas. Aí juntou a isso meu nervosismo, ansiedade, depressão, autoestima baixa, preconceito e etc... “Voltei ao médico sempre que pudia e ele ia tentando me tratar com a medicação, mas infelizmente não obtive mais o resultado esperado. Até por- que, nas mãos é muito difícil, me desanimei muito e larguei esse tratamento. O médico também já estava sem esperança por ser muito tempo de tratamento. Já tomei chá de marianinha, hibisco e nada. Ultimamente as minhas manchas aumentaram muito rápido. Eu gostaria de saber porque algumas pomadas como elidel e protopic, funcionam apenas no rosto, com muita eficácia, mas não no corpo todo. Não seria interessante pesquisarem e estudarem pra mu- dar a formula, e assim funcionem também no corpo?” A mulher escrevia rapidamente e Sarah ia lendo conforme as men- sagem iam aparecendo na janela de conversação. Totalmente concentrada e interessada na história dela, mandava apenas alguns “Ahan”, “Sim” e “En- tendi”, de vez em quando. Roseli também contou à garota sobre sua relação com a doença. 46
  • 46. – Para mim, conviver com o vitiligo, é péssimo. Cada vez que me olho, espero que não tenha aparecido nenhuma mancha nova. Torço para acharem a cura logo, pois não quero passar o preconceito que meus familiares passa- ram. Graças a Deus em mim, não é tão nítido e também não está pelo corpo todo. Mas ainda assim o vitiligo interfere na minha relação com as pessoas, já senti muito preconceito, até porque trabalho com o público em eventos nos quais a aparência conta muito. – Eu acho que entendo como se sente - comentou Sarah - Mas você ainda está procurando tratamento ou já aprendeu a conviver com isso e se aceita dessa forma? – Não estou fazendo nenhum tratamento porque estou procurando um especialista em São Paulo, mas ainda não achei. Estou na dúvida em usar o viticromim, fazer fototerapia ou gastar tudo em laser. Não aprendi a conviver com ele e nem quero. Não nasci assim, por que tenho que me conformar? Essa última resposta de Roseli foi um tanto quanto chocante para Sa- rah. Afinal, desde o início, ela sempre ouviu dizer que apesar de muitos tra- tamentos, o vitiligo não tem cura. Sendo assim, parecia a ela essencial que as pessoas aprendessem a conviver com a doença. Entretanto, acabara de se deparar com uma pessoa que pensava exatamente o contrário. O mais interes- sante é que nenhuma das duas estava errada, apenas tinham opiniões diferen- tes sobre o assunto. Pontos de vistas diferentes sobre a mesma doença. O segundo a responder ao tópico de Sarah foi Marcelo Freitas, um co- merciante de 39 anos, morador de São Paulo também. Ele deixou seu endereço e Sarah o adicionou no Messenger. Começou a conversa fazendo aquelas per- guntas básicas de quando se está conhecendo alguém pela internet: “Quantos anos?”, “Onde mora?”, “O que faz da vida?”. Depois entrou no assunto do vitiligo, perguntando há quanto tempo ele tinha a doença e coisas do tipo. – Tenho vitiligo há 11 anos, descobri a doença quando uma amiga mi- nha disse que uma mancha branca em minha mão era vitiligo. – Você já fez algum tratamento? - Sarah digitou pausadamente as pala- vras antes de apertar “enter” e mandar a pergunta. – Sim, método cubano, fototerapia, laser, chá de Mamacadela, mas o que deu mais resultado foi o Protopic. Continuarei buscando a cura sempre, pois essa doença não é minha. Hoje busco em Deus o conforto e, com isso, as manchas estão sumindo. 47
  • 47. – E como é para você lidar com essa doença? – Antes era difícil, mas hoje é tranquilo. Quando me incomodo, olho para trás e vejo que existem pessoas com problemas mais graves. Já senti preconceito, pois algumas pessoas, por falta de conhecimento, acham que vitiligo “pega”. “O mais legal disso tudo é que minha filha sempre gostou das manchas. Quando ela tinha uns 4 anos ficava imaginando figuras nas minhas manchas como nas nuvens. Ela sempre dizia que sou colorido e os pais das amigas só tem uma cor. Vejo com grande otimismo a descoberta da cura para o vitiligo e outras doenças de fundo emocional. O número de pessoas com doenças cau- sadas por estresse tem aumentado cada vez mais e isso vai fazer com que os olhos dos laboratórios e cientistas se voltem para esse lado. O segredo esta na fé em Deus, tenho vivido isso, logo estarei 100% curado. Hoje, minha mente esta curada, só falta a pele e isso é só uma questão de tempo!” Sarah chegou a se emocionar com o que Marcelo disse ao final da conversa. Realmente, ele estava certo quanto a isso. Mas em certo ponto ela discordava. Pois, na verdade, não importa onde esteja o seu ponto de apoio. Seja em Deus, seja em sua família, seja em seus amigos ou até em você mes- mo. É muito importante sempre ter algo em que acreditar, algo que dê forçar para seguir em frente. Já que o vitiligo é uma doença de fundo emocional, também devemos nos preocupar em curar as feridas de dentro, se não as de fora não irão sarar. A terceira pessoa com quem Sarah conversou foi Mariana de Matos Rosa. Ela tem 17 anos e mora na cidade de São Paulo. De todos com quem Sarah trocou experiências, Mariana era a mais nova, e a que mais parecia com ela também. Mariana mandou um e-mail contando algumas coisas sobre sua vida e sobre como descobriu o vitiligo. – Possuo vitiligo há 15 anos. Com 2 anos eu estava na praia e fiquei um pouco bronzeada, como eu sou branquinha, ao ficar bronzeada o contraste foi maior. Meus pais perceberam que, em torno dos meus olhos, havia um esbranquiçado e como eles possuíam conhecimento da doença, pois são mé- dicos, de cara perceberam que era vitiligo e ficaram preocupados e tristes. “Eu nunca perco as esperanças, meu corpo pode ficar lotado de man- chas que eu continuo na batalha. Eu sempre deixo de fazer e comprar coisas que gosto, pois vou duas vezes por semana para Campinas, gasto com mo- 48
  • 48. torista, gasolina, pedágio e o laser. É muito dinheiro, porém, se é por uma boa causa, eu deixo de comprar o que for, roupas, sapatos etc. A esperança e persistência é essencial.” Sarah ficou surpresa ao se deparar com a história da garota. Ela teve vitiligo quase que durante toda a vida, e mesmo assim não desiste de tentar encontrar a cura. Realmente, é preciso muita força de vontade para conseguir fazer isso. Logo que terminou de ler o e-mail de Mariana, Sarah respondeu mandando mais algumas perguntas, curiosa para saber mais. No dia seguinte já recebeu a resposta. – Sim, já fui em muitos médicos diferentes. Alguns pessimistas, outros otimistas. Cada um sempre com a sua opinião sobre o tratamento adequado. Fiz vários tratamentos, como o uso de pomadas seguido de radiação solar, câmara UVA com oxoralem, produtos naturais como Mamacadela e vários tipos de lasers. Hoje, com muitas contraindicações, faço o Xtrac laser, e está surtindo efeito. Com certeza o vitiligo tem causas emocionais, não só acredito como tenho certeza! É só eu passar um período de nervoso que lá vem as manchinhas novas surgindo! “Uma vez apareceu uma mancha no joelho. Passados uns 2 meses, eu cai e ralei todo o joelho. Após a cicatrização, minha mancha sumiu, eu poderia ralar todos meus vitiligos, quem sabe eles não somem.” “Para mim é horrível conviver com o vitiligo! Eu acordo de mau humor só de pensar que terei que passar aquele monte de maquiagem para esconder as manchas. O vitiligo interfere na minha relação com as pessoas, sempre muitas perguntas e até mesmo gozações, mas procuro mesmo ficar perto de pessoas que sabem o que eu tenho no rosto e gostam de mim mesmo assim. Claro que já sofri preconceito, falaram muito que eu sou “pura maquiagem”, me perguntam sempre porque tem uma manchinha ali, outra aqui, com aquela cara de desprezo, sabe?” “Sei muito bem”, respondeu Sarah em pensamento, enquanto lia a ultima frase do e-mail. Por terem aproximadamente a mesma idade, Sarah se identificou muito com a história de Mariana. Em muitos aspectos, elas tinham visões muito parecidas. Principalmente quanto à reação dos outros em relação as manchas. Sarah continuou mandando e-mails à garota durante um longo tempo, e elas chegaram a conversar sobre outros diversos assuntos e se tornaram amigas. Uma moça loira chamada Thais foi a quarta pessoa a responder ao tó- 49
  • 49. pico. Sarah mandou um recado no perfil dela e assim começaram a conversar. Thais tem 31 anos, é pedagoga e mora em São Caetano do Sul. Ela contou a Sarah que há 21 anos atrás sofreu uma queda de bicicleta, arranhando o pé, e que a cicatriz virou o vitiligo. Seria possível aquilo? Um machucado virar o vitiligo? Sarah porém não perguntou nada sobre isso, quis saber se ela já tinha tratado do vitiligo, e obteve uma longa resposta: – Procurei o médico desde a primeira manchinha. Já fiz diversos trata- mentos e o que mais surtiu efeito foi com o laser. Foi um tratamento que fiz há 8 anos, e sumiram todas as manchas do meu rosto. Já nas pernas não tive sucesso e a própria dermatologista achou melhor parar o tratamento, pois não conseguia ter resultados satisfatório. E também porque as manchas estão estabilizadas há 8 anos. Desde essa época, não pareceu mais nenhuma. Nesse intervalo fiz um tratamento na faculdade de medicina do ABC com fenilalani- na, 8mop, junto a um polivitamínico. Com esse tratamentos apareceram algu- mas pigmentações. Fiquei sem usar nenhuma medicação por quase 2 anos. “Em novembro do ano passado comecei a fazer acupuntura para o vitiligo, junto com terapia. Ainda não tive nenhum resultado de pigmentação, mas a médica confirmou que o vitiligo esta estabilizado, pois, quando não está estabilizado, a acupuntura faz a aparecer mais manchas. Eu fui pessoalmente à faculdade de medicina de Santa Cruz, aqui em São Paulo, onde tratam o vitiligo com acupuntura, e conversei com pacientes que estão tendo bons re- sultados. No meu caso, acupuntura e terapia psicológica estão ajudando muito no meu emocional, elas trabalham a aceitação da doença.” – E como é para você conviver com o vitiligo? - perguntou Sarah curiosa – Para mim, é muito difícil conviver com o vitiligo, não gosto mesmo. Mas ele não interfere nos meus relacionamentos com as pessoas. Não tenho manchas no rosto, apenas nas pernas, e nunca deixo as manchas à mostra. As pessoas quase não sabem que tenho a não ser se eu falar sobre o vitiligo. – E nunca sofreu nenhum preconceito quanto a isso? – Nunca. Acho que pelo fato de, mesmo quando criança, minha mãe não deixava as manchas à mostra. Sempre disfarçamos. Como eu tinha algu- mas na cabeça próximo ao cabelo, usei sempre os cabelos soltos, que cobriam as manchas, usava franja por ter mais na testa, mas bem grudadinho ao coro cabeludo. E quando estavam aparecendo manchas novas na sobrancelha e 50
  • 50. abaixo do rosto foi quando descobri o tratamento a laser e fui logo fazer. Assim, desapareceram todas as manchas do rosto. – Você sabe exatamente o que causou o vitiligo em você? – Uma quase separação dos meus pais, e o medo de perder um irmão, que na época era bebê e ia fazer uma cirurgia delicada. Acredito que seja esse o motivo. – E depois que você descobriu o vitiligo, o que mudou na sua vida? – Depois do vitiligo, passei por varias experiências. Eu acredito que, para livrar o filho de algum sofrimento, os pais são capazes de fazer qualquer loucura. E com meus pais não foi diferente, eles corriam atrás de tudo que as pessoas os ensinavam. Desde levar aos melhores médicos, a curandeiro, pai de santo, muitos remédios caseiros e simpatias. “O que mais me marcou foi comer o fígado de um cágado cru. Eu cuidei do cágado por um tempo e um belo dia, meu avô matou o cágado, tirou o fígado e eu comi. Eu tinha uns 11 anos. Na época, minha vontade de ter a cura era tão grande que comi o fígado do cágado de uma só vez. Não tive a tão esperada cura, mas acho que não fui a única a ter essa experiência. Outro dia, li em uma das comunidades de vitiligo no Orkut um depoimento sobre a simpatia do cágado. “Sempre sonhei e busquei a cura para o vitiligo. Me trato até hoje e ainda não aprendi a conviver com ele. Estou trabalhando isso com a psicóloga e já posso dizer que tive um progresso. Hoje já vou até a porta de casa de saia e com as manchas aparecendo. Já recebo visitas com as manchas à vista, coisa que quase nunca fazia. Até em casa ficava de calça todo o tempo, deixava ape- nas meus pais e irmão verem as manchas. Quando ia chegando alguém logo eu corria para vestir uma calça. Isto esta sendo muito bom pra mim, apesar de não gostar nem um pouco de estar com o vitiligo.” Sarah pensava e refletia sobre o quanto devia ser difícil ter que ficar escondendo as manchas o tempo todo. Cada vez mais a garota se convencia de que aceitar a doença era o primeiro e mais importante passo para viver uma vida normal com vitiligo. Outra pessoa com quem conversou e que também tinha vitiligo nas pernas foi Volney Silva. Ele a adicionou no Messenger e depois de alguns dias eles conversaram. – E ai beleza? Sou da comunidade Vitiligo lembra? - foi o que Sarah leu ao clicar na janelinha que piscava em seu monitor. – Oi, lembro, sim! Tudo bem? 51
  • 51. – Tudo ótimo! Me diz uma coisa, você tem vitiligo ou só se interessa pelo assunto? – Tenho vitiligo, sim, há alguns anos já. – É uma barra às vezes, né? Mas, infelizmente, temos que conviver com isso da melhor forma. – Tem razão é preciso aprender a lidar com a doença pois ela pode te acompanhar pelo resto da vida - comentou Sarah superinteressada na con- versa. – Eu tenho um blog, onde eu postei alguns textos falando sobre como me sinto, alguns tratamentos que fá fiz e etc. Veja lá http://convivendocomvi- tiligo.blogspot.com. – Nossa que bacana! Vou dar uma olhada lá, sim, valeu! - mandou a mensagem antes de clicar no link que o rapaz havia mandado. Porém, antes de ver o blog, continuou a conversa. – Não há de quê! - respondeu ele amigavelmente - E quanto ao vitiligo, eu penso o seguinte, não temos um ícone de beleza. As imagens relacionadas ao vitiligo são feias, quero melhorar esta imagem pra quando um jovem des- cobrir que tem vitiligo, veja que existe vida, beleza e diversão, mesmo com vitiligo. – Estou totalmente de acordo com você! Acho que dá pra viver muito bem tendo vitiligo - respondeu Sarah, pouco antes de o moço se despedir e sair do messenger. Foi então que ela entrou no blog e encontrou alguns textos bem interessantes que falavam da relação de Volney com o vitiligo. A última postagem era assim: “Meu nome é Volney, sou do interior de São Paulo, tenho 29 anos, sol- teiro, formado, cursando MBA em Marketing e Vendas. Tenho uma porrada de defeitos e uma porrada de qualidades. É claro, não sou diferente da maioria das pessoas que sonham, buscam e lutam pela sua felicidade. Convivo com o vitili- go desde os 14 anos e confesso esta convivência atualmente está mais tranquila. Mas já foi muito complicada, eu não aceitava de forma alguma, ainda mais eu sendo extremamente vaidoso, porém humano, sujeito às inconstâncias da vida. Sonho e luto para um dia ter o prazer de me ver curado do vitiligo, porém, sei que há uma força maior por traz de todas as coisas. Sei que o vitiligo me trouxe muita dor, mas também me ensinou muitas coisas.Se sou o que sou hoje é devi- do às experiências de minha vida, e o vitiligo é uma delas.” 52
  • 52. Sarah gostou muito da forma como ele encarava a doença. Pois mesmo se importando muito com a aparência, ele não deixava de se aceitar como era, nem de ter forças para buscar a cura. Enquanto algumas pessoas achavam que o vitiligo não pertencia a elas, Volney, pelo contrário, acreditava que aquilo fazia parte de sua vida e de sua história. Outro texto encontrado no blog que chamou a atenção de Sarah foi o intitulado “Indescritível”. Nele, Volney conta como é a sensação de estar quase totalmente curado do vitiligo. Como começou o tratamento estético e que, apesar de dolorido e demorado, valeu muito a pena tê-lo feito. O texto se encerra com um depoimento muito sin- cero e comovente do rapaz: “Com isso, eu consegui resgatar muitas coisas da minha vida, mas prin- cipalmente a mim mesmo. Hoje, eu me sinto pleno novamente, é como se eu voltasse atrás e resgatasse os sonhos daquele adolescente de 14 anos de idade.” Sarah também conheceu pessoas de fora do estado, como, por exem- plo, a funcionária pública de 44 anos, Vanda Rosane Nicola, que mora em Imbé, no Rio Grande do Sul. A mulher contou que possui vitiligo desde os 10 anos de idade e que ele surgiu após um acidente de carro que sofreu junto com a mãe, quando teve muito medo de perdê-la. – Que tratamentos você já fez para o vitiligo? - a garota repetia a mes- ma pergunta que fizera aos outros. – Fui várias vezes ao médico na adolescência, mas a partir dos 20 anos parei de procurar tratamentos, pois sabia que não adiantava. Já usei laser, po- madas, chás e muito remédio. Somente a Melagenina, aquele remédio cubano, surtiu um efeito significativo, mas estava me deformando e dando pelos pelo corpo todo, então parei. Hoje não faço mais nada. – E você consegue conviver bem com a doença? – Agora é normal, mas já tive dias que briguei muito com meu Deus. Já sofri preconceito dentro até da minha própria família. Mas aprender a con- viver com vitiligo é muito fácil é só focar a mente em outras coisas, ter metas. Tenho dois filhos, sou casada há 22 anos, tive muitos amores. Devemos ser felizes com o que temos, preservar as amizades, a família e o caráter. “O resto é somente o resto” - escreveu ela entre aspas no messenger. – É não podemos deixar de viver a nossa vida só por causa de uma mancha na pele. 53
  • 53. – Claro! Quando era jovem fui até Riviera, na divisa com Paraguai, pas- sar férias. Em um clube à noite tinha jogo de luzes, e meus vitiligos ficaram muito à mostra. O cara que dançava comigo perguntou o que era eu respondi “Lepra”. Ele se afastou e contou para os seguranças e eu tive de sair do clube. Estávamos em uma turma. Saímos todos e foi uma noite muito divertida. Até hoje, quase 20 anos depois, encontro amigas e rimos muito sobre isso! – Ah, deve ter sido muito engraçado mesmo! - comentou Sarah, pouco antes de se despedir da moça e encerrar a conversa. Alguns dias depois, Sarah encontrou mais pessoas respondendo ao seu tópico na comunidade do vitiligo no Orkut. Adicionou cada um deles no messenger para conversar. Quem veio falar com ela primeiro foi Fernanda Lima da Conceição. Ela tem 28 anos e mora no bairro de Diadema, São Paulo. Antes de falar de si mesma, Fernanda se adiantou perguntando a Sarah sobre ela e o seu vitiligo. Sarah respondeu calmamente, sem se incomodar com o interesse da mulher. Pela internet, ao contrário de pessoalmente, ela não se importava de responder perguntas e contar sobre suas coisas. Depois do interrogatório, foi a vez de Sarah começar a perguntar. Quis logo saber como e quando ela tinha descoberto que tinha vitiligo. – A primeira lembrança de ter o vitiligo eu tinha 4 anos - respondeu Fernanda pelo messenger - Não me lembro bem como descobri. As manchas estavam sempre lá e, por muitos anos, porém elas eram pequenas e não cres- ciam. Descobri de fato que se tratava de vitiligo aos 20 anos, quando fui a primeira consulta no dermatologista, pois as manchas aumentaram. – Já fez tratamento? – Sim. Eu me recordo de quando tinha 8 anos. A pediatra com a qual me consultei viu as manchas e receitou levedura de cerveja. Fiz uso do Pro- topic. Ele fez com que algumas das manchas sumissem e outras pararam de crescer. Parei o tratamento por motivo da gravidez e amamentação, mas te- nho consulta agendada e irei retomar o tratamento. – E você convive bem com a doença? Já sentiu preconceito? – Eu sempre uso roupas que não o mostram. Mas, o fato de saber que ele está lá nas minhas pernas me deixa triste. E já senti preconceito, sim, de pessoas mal informadas e estúpidas, que acham que basta passar uma poma- dinha que ele vai embora, ou que perguntam se é contagioso, ou piadas do tipo: “Ah, é aquela doença do Michael Jackson?”. 54
  • 54. – Sempre tem uns engraçadinhos, né? - comentou Sarah, para tentar confortar a moça. – Mas sabe dizer o que desencadeou o aparecimento do vitiligo em você? – Falta de estrutura familiar, abandono e indiferença por parte dos meus pais desde quando ainda era bebê. Em certos momentos, as manchas ficam mais discretas. Agora em momentos de muitos problemas que se esten- dem por um longo período e que me causam estresse, as manchas se mostram mais brancas e evidentes e a pele fica mais ressecada na área. Lamento a falta de interesse, divulgação e tratamento mais acessível pelo SUS. Uma vez, acon- teceu uma situação engraçada: meu filho Murilo, de 5 anos, quando tinha 3 anos, pegou uma toalha para “limpar” as manchas nas minhas pernas. A moça falava sem parar, as mensagens apareciam uma atrás da outra na tela, Sarah mal tinha tempo para comentar alguma coisa. Fernanda parecia estar realmente muito interessada em compartilhar suas experiências, e, ao contrário de Sarah, não continha a língua, ou melhor, os dedos, na hora de dizer o que estava pensando. Quanto mais Sarah conversava com outros portadores de vitiligo, mais ela queria continuar compartilhando experiências e conhecendo mais sobre sua doença. Quando Adriana da Silva Diel a adicionou no messenger, dizendo que era da comunidade do vitiligo, Sarah a aceitou na hora e já logo iniciou a conver- sa. Nem dois minutos se passaram e o assunto já se desviou naturalmente para a doença que tinham em comum. Adriana, que tem 28 anos e mora em Santa Ca- tarina, é empresária, professora universitária e economista. Não se importou em responder as perguntas da curiosa Sarah e contou um pouco de sua história. – Em novembro de 2008, estava me preparando para ir a um show de Victor e Léo. Fui fazer a maquiagem e percebi que, na minha testa e no canto do olho esquerdo, havia duas pequenas manchas brancas, menores que um grão de arroz. Dali em diante. comecei a perceber a evolução das manchas que foram se espalhando por toda minha testa e lado esquerdo do rosto. Há seis meses elas estão estabilizadas. – Já tentou algum tratamento? – Sim, já fui em quatro dermatologistas, um patologista e um acupun- turista. Já fiz tratamentos com cetoconazol, com viticromim, com Elidel, com Protopic, acupuntura. Mas nenhum deles teve resultado significativo. Hoje, não faço mais nada, apenas esqueço que tenho a doença. 55
  • 55. – Então você aprendeu a conviver bem com isso? – Hoje, após quase 2 anos, posso dizer que convivo bem. Obvio que não queria ter, mas se desenvolvi a doença, agora tenho que aprender a lidar com ela, e não deixar de viver, de ser feliz por causa dela. Sou muito mais que manchas brancas. No começo, achava que todos me olhavam por causa disso, mas hoje consigo encarar numa boa, pelo menos as manchas estão estagnadas e nenhuma nova tem surgido. Acredito que o preconceito está muito mais em nós que nos outros. – Nisso tenho que concordar com você! Às vezes acabamos criando paranóias e achamos que todos a nossa volta estão olhando pras manchas, achando esquisito, quando na verdade nem estão olhando pra isso, ou então estão apenas curiosos - comentou Sarah - E você tem idéia do que pode ter causado o vitiligo em você? – No meu caso, o que causou o vitiligo foram duas perdas na família, bem próximas. Dois avós tiveram câncer, e, logo depois desse choque, surgi- ram as manchas. Mas com o vitiligo aprendi a dar mais valor às coisas e à vida, tem tanta doença pior que vitiligo. Aprendi a não ser tão egoísta em relação à doença, poderia ter algo que me limitasse a viver, mas realmente o vitiligo nunca te impossibilita de realizar nada, basta que você assuma, acredite e pense. Me considero curada, as manchas surgiram por algum motivo, tive que repensar muitas coisas, aprendi a dar mais importância e valorizar mais minha vida. Percebi que cada ser humano tem, de alguma forma, problemas, uns maiores outros menores. Existem doenças que realmente limitam as pessoas de viver, de ser feliz. No meu caso, não, apenas tenho manchas na face que, se quiser, cubro-as com maquiagem. Acredito que a cura vem do nosso interior. Os que, como eu, estão desacreditados nos tratamentos oferecidos, deviam parar de gastar e não obter resultados, e começar a cuidar mais do corpo e da mente, porque, talvez assim, tenham mais sucesso. – É, seria bom se todos pensassem assim como você! - afirmou Sarah, após ler o que Adriana havia dito, pois realmente concordava com seu ponto de vista. A próxima pessoa com quem Sarah conversou foi Susi Carine Almeida Nobre Góes. Ela é da Bahia, tem 33 anos, e é Assistente Social. Susi contou à garota que possui vitiligo há uns 17 anos, e que já tentou vários tipos de tratamentos. 56
  • 56. – Usei viticromin um tempo. Depois não consegui achar mais o remé- dio. Já tomei vários chás de cajá, que ajudaram a repigmentar. Agora estou usando uma pomada que vi nas comunidades, mas não estou vendo muitos resultados. Passei a mentalizar a filosofia japonesa, Seicho-no-ie, que me en- sinaram e, por incrível, que pareça minhas manchas sumiram quase todas. Porém, depois das minhas outras duas gravidezes, minha imunidade baixa voltou e reapareceram várias manchas. – Hoje, como você convive com o vitiligo? – Não gosto muito, porque eu não era assim, minha pele era muito bonita e saudável. Eu era bem diferente, não só a pele, mas meus cabelos, meu corpo, dentes. Então eu me transformei, fiquei diferente. Moro em uma cidade pequena e todo mundo me conhece. As pessoas que não moram mais aqui quando me veem, às vezes, nem me reconhecem. Isso para mim é cons- trangedor, tem gente indiscreta que fala: “A Susi era tão bonita”. Eu estava acostumada a todo mundo me elogiar desde pequena. Mas eu não deixo isso me abater sabe? Eu tento levar sem problemas, mas é difícil. – Entendo completamente, mesmo que a gente se aceite e tente convi- ver bem com a doença, ainda é difícil lidar com a reação das pessoas a nossa volta - disse Sarah, ao se lembrar do quanto não gostava de ser criticada - Já sofreu preconceito por conta do vitiligo? – Não, na verdade nunca soube de nada. Ninguém nunca me falou nada, nem percebi. A gente mesmo é que pode sentir um pouco excluída às vezes. Meus filhos até me ajudam a passar a pomada. Fico um pouco cons- trangida com meu marido, mas ele não fala nada, eu é que sinto um pouco de vergonha. Só é mais difícil com crianças, de 2 a 4 anos de idade, que quando eu brinco ou tento me aproximar, elas não gostam, acho que têm medo. Fico péssima por isso, pois adoro crianças, mas não demonstro, porque sei que elas não têm maldade. – Você acha que o vitiligo tem mesmo causas emocionais? – Sim, porque de todos os médicos em que já fui, nenhum falou real- mente o que causa o vitiligo. Mas também não sei dizer que tipo de emoção exatamente é essa, porque muita gente passa por momentos de estresse e não desenvolve vitiligo. Por exemplo, minha mãe é super nervosa e não tem vitili- go. Mas ela descarrega o nervoso dela e eu não. Sou igual ao meu pai, eu fico quieta, não sei soltar a raiva, eu guardo. 57
  • 57. O queixo de Sarah caiu ao ler a última frase de Susi. Era a primeira, das pessoas com quem conversou, que se assemelhava a ela quanto ao que po- deria ter causado o vitiligo. Calar as emoções. Guardar a raiva. Ela até soltou um suspiro de alívio. Não era a única, afinal. Todos os outros, em sua grande maioria, sofreram traumas muito fortes, como perda de parentes e acidentes graves. Mesmo ainda achando seus problemas pequenos diante disso, Sarah se sentia um pouco melhor por saber que não era a única com vitiligo por esse motivos. Após encerrar mais essa conversa, agradecendo imensamente a atenção de Susi, Sarah viu uma nova janela de solicitação em seu messenger. Aceitou o pedido, ao reconhecer, pelo nome, outra moça da comunidade do Orkut. Luciana da Rosa Castanho, uma dona de casa de 28 anos, que mora São José dos Campos. Compartilhando experiências, e Sarah já estava ficando craque nisso, descobriu que Luciana possui vitiligo desde os 7 anos de idade, quando observou uma pequena mancha na perna direita e os pais a levaram à farmácia achando que era uma alergia ou micose. – O farmacêutico falou que era vitiligo, mas que deveríamos consultar um dermatologista. O dermatologista, então, confirmou a suspeita do farma- cêutico: era vitiligo. – Que tratamentos você já fez? - Sarah já não perguntava mais “se” a pessoa tinha feito tratamento, pois certamente sempre obteria uma resposta positiva. – Fui ao dermatologista apenas uma vez. Ele indicou Viticromim, po- mada e comprimidos. Usei por mais ou menos 5 anos e surtiu efeito. Depois, meus pais descobriram um tratamento que não tinha nem registro no Minis- tério da Saúde. Eu usei até os 16 anos. Tomava o remédio mais um complexo vitamínico e também fazia uma dieta alimentar. Não comia enlatados, embu- tidos, nem carne vermelha nem comida gordurosa ou frita. – Nossa, que barra! Esse tratamento deve ter sido difícil - Sarah co- mentou já imaginando como seria fazer aquele tratamento. Nunca que iria conseguir ficar sem comer tudo aquilo. Ela já não era muito fã de comidas saudáveis. - Como você lida com o vitiligo? – Meu maior problema sempre foi ter que parar pra explicar o que era, principalmente quando eu era criança, já que a doença não era tão conhecida. Mas nunca tive vergonha e nem fui discriminada. Nunca tive problemas nem 58
  • 58. com relacionamentos, nem com trabalho ou estudo. Acho que tudo gira mais em torno da segurança e capacidade da pessoa em relação a si mesma do que em torno da doença, que não interfere em nada além da aparência. – Você tem ideia do que pode ter te causado o vitiligo? – Acredito que existam formas diferentes da manifestação do vitiligo - Luciana continuava a enfatizar suas opiniões a cada resposta - No meu caso, pode até ser que o início tenha sido desencadeado por algum trauma emo- cional. Eu não me lembro de nada nesse sentido na época. Mas percebo que nunca tive alterações nas manchas nas situações mais estressantes da minha vida como morte de parentes. Não acredito que as razões para o surgimento do vitiligo em todas as pessoas sejam de fundo emocional. Em algumas pes- soas, é esse o caso, em outras, não. “As minhas manchas de vitiligo estacionaram aos 16 anos, quando parei o tratamento que era um tanto penoso, devido à dieta que eu precisava fazer. Em quase 13 anos sem tratamento algum, não apareceram novas manchas e nem as antigas aumentaram. Penso muitas vezes em iniciar novamente algum tratamento, mas penso, ao mesmo tempo, que seria um pouco desgastante. Hoje, o único temor que tenho é que a doença se manifeste em minhas filhas. Eu soube lidar muito bem com a doença desde a infância e ela não afetou minha vida, mas não sei como minhas filhas lidariam com isso, até porque não se sabe o tanto de manchas que cada pessoa pode ter.” Sarah também conheceu a dona de casa Kátia Andréa de Morais Nas- cimento, de 38 anos, que mora na Praia Grande. Portadora do vitiligo há 26 anos, ela contou que descobriu a doença por acaso, quando a mãe foi prender seu cabelo e viu uma mancha em seu pescoço. – Eu tinha também manchas nos joelhos, mas minha mãe achava que era marca de algum machucado. - ressaltou Kátia ao contar sua história - Desde que descobri as manchas, imediatamente procurei tratamento. O primeiro foi com umas pomadinhas que não me lembro mais os nomes. Sem resultados, procurei um tratamento que, segundo o charlatão do médico, vinha de Cuba, aquele “me- lagenina”, e em seguida tomava banho de luz. Gastei uma nota preta e nada de resultados. O que me deu alguma esperança foi um tratamento que fiz com tri- soralem, com cápsulas e em seguida sol moderado. Esse foi o único tratamento que deu certo para mim na época. Usei por cerca de uns 10 anos. Mas parava um pouco, pois o remédio é muito forte, pode trazer diversos efeitos colaterais. 59
  • 59. “Agora iniciei um tratamento com corticóides. Esse, sem dúvida, foi o que me deu mais resultados até hoje. Chama-se predsin comprimidos, e clob-x gel, mas como são muito potentes só pode ser usado durante 4 semanas, dar um descanso e depois retomar. Mas faço o uso por conta pois apareceu nas minhas mãos. São pequenas, mas muitas manchas.E comecei a tomar também Viticromin, faz 5 dias.” Sarah ainda se espantava cada vez que as pessoas listavam os inúmeros tratamentos que já haviam feito. Era de se admirar a tamanha força de von- tade dessas pessoas que passavam tanto tempo em um mesmo tratamento, e iam atrás de tudo o que fosse preciso para, enfim, se verem livres do vitiligo. Exatamente por não ter tais características, é que Sarah ficava tão impressio- nada. – Depois de tanto tempo, como é que você convive com o vitiligo hoje? – Olha, fico bem tranquila, desde que não apareça no meu rosto e nem nas minhas mãos. Não que eu goste das manchas, mas, no resto do corpo, tento manter a calma. Por enquanto, não me escondo do mundo, não. As pessoas ainda olham muito, principalmente quando estou na praia. Quando eu tinha uns 14 anos, um vizinho me perguntou se o que eu tinha era AIDS. Nossa, isso acabou comigo. Mas hoje não sinto mais nenhum preconceito, por não ter muitas manchas. – Você sabe dizer o que lhe causou o vitiligo? – Um tio meu, muito querido, faleceu, na época. Acho que foi isso. Eu também tive uma infância muito conturbada, acredito que isso também mexeu muito com meu emocional. Meus pais brigavam demais, se separavam e voltavam de uma hora para outra, se agrediam entre eles. Eu e meus irmãos apanhávamos muito. Nossa, era horrível. “Ás vezes fico desencanada e não uso nada para o vitiligo, mas às vezes trato durante uns dois anos. Nunca vou aprender a conviver com o vitiligo. Não nasci com ele, não aceito. Às vezes, desistimos do tratamento, pois são muito demorados. Mas temos que ter paciência e determinação se quisermos ver os resultados.” – Tem toda razão! - concordou Sarah, mesmo não sendo possuidora de tais qualidades. Em um fim de tarde, Sarah decidiu passar mais um vez em seu tópico 60