Haing Ngor mentiu inúmeras vezes na vida...
Em 1975, quando ainda morava no Camboja, onde o Khmer Vermelho havia acabado de tomar o poder, Ngor foi parado e revistado por soldados dessa organização, três adolescentes da zona rural (tipo MST no Brasil). Ao encontrarem um livro, um dos rapazes se apressa em concluir: - Você é da CIA!
Haing Ngor mente. Diz que não sabe ler, que encontrou o livro jogado no chão e que o pegou porque com as folhas dele poderia embrulhar coisas. Os jovens soldados engolem a história e ele escapa com vida.
1. SOBREVIVENDO EM CAMPO DE EXTERMÍNIO
Haing Ngor mentiu inúmeras vezes na vida, ele ficou bom em dissimular.
Em maio de 1975, quando ainda morava no Camboja, onde o Khmer Vermelho havia acabado de tomar o
poder, Ngor foi parado e revistado por soldados dessa organização, três adolescentes da zona rural (tipo
MST no Brasil). Ao encontrarem um livro, um dos rapazes se apressa em concluir:
- Você é da CIA!
Haing Ngor mente. Diz que não sabe ler, que encontrou o livro jogado no chão e que o pegou porque com as
folhas dele poderia embrulhar coisas. Os jovens soldados engolem a história e ele escapa com vida.
A verdade, porém, era mais complicada.
Ele talvez pudesse ter explicado que era um livro em francês, e que seria improvável que a CIA, a agenda
de inteligência do governo norte-americano, utilizasse o francês em seus documentos. Porém, para
adolescentes ignorantes analfabetos, e ainda por cima não familiarizados com o alfabeto latino, a
distinção entre inglês e francês seria praticamente impossível, e essa resposta levaria a outra
pergunta – “O que ele estava fazendo com um livro em francês?” —, e a possível resposta talvez fosse
mais perigosa.
Aquele, afinal, era um livro de medicina. Haing Ngor era médico, formado pela universidade da capital do
Camboja, Phnom Penn, onde exercia a profissão. Aos olhos do Khmer Vermelho, profissionais da cidade
(médicos, engenheiros) e membros da CIA não eram muito diferentes: eram todos amigos do
capitalismo, logo, inimigos dos camponeses, do povo.
Ele poderia ainda ter tentado explicar mais. Poderia ter dito que na faculdade de medicina estuda-se o
funcionamento do corpo humano, como surgem as doenças e como podem ser tratadas. Que a ciência
da medicina evoluiu graças à pesquisa de pessoas de todas as partes do mundo, que publicam suas
descobertas em artigos científicos. Que esse conhecimento é muito útil para combater as doenças que
acometem o povo — mas ainda temos muito a aprender nessa área, por isso a importância dos estudos.
Haing Ngor não tentou essa linha de argumentação, mas quem poderia culpá-lo? Pelas suas contas,
anos depois, constatou que dos 527 médicos até então formados na Universidade de Phnon Penn,
apenas quarenta sobreviveram aos três anos e meio do regime do Khmer Vermelho. Haing Ngor
sobreviveu escondendo que sabia ler.
1
[Por causa do distorcido modelo de mundo em suas mentes e de suas atitudes para com os inimigos, os
soldados do Khmer Vermelho terão pouquíssimas oportunidades de aprender que estão errados. Quase
ninguém se atreverá a explicar os benefícios do entendimento da ciência para quem detém o poder. Muitos
ainda morrerão em decorrência da equivocada visão de mundo que tomou conta do pais. Defender a
verdade não é a melhor estratégia para quem busca escapar com vida.
Bem, estamos no Brasil de hoje, distanciados o suficiente, temporal e fisicamente, dessa realidade. Somos
muito mais prósperos, seguros e livres. Temos mais acesso a informação e maior capacidade de entender
o noticiário e os efeitos das políticas públicas sobre a vida do país em geral. Somos muito mais bem
informados que os soldados do Khmer Vermelho.
O ponto de partida deste livro e o fato de que, apesar de termos acesso à informação, a discussão sobre
política econômica no Brasil está mal embasada, pois o debate norteia-se por uma visão equivocada do
funcionamento da economia e dos efeitos das políticas publicas.
Felizmente são os votos, e não as armas, que decide quem dita as regras e determina os rumos do país.]
2
...
[O 17 de abril de 1975 foi um dia triste na história do Camboja, foi o dia em que o Khmer Vermelho tomou
o poder no país e ordenou que todos evacuassem as cidades, incluindo a capital. Aqueles que
desobedeciam as ordens e continuavam em suas casas eram metralhados. Caminhando de maneira
desordenada, as pessoas deixaram as cidades e acabaram alojadas nas chamadas fazendas
comunitárias, para trabalhar no cultivo do arroz.
O que se seguiu foi uma grande tragédia. A produção do país despencou vertiginosamente enquanto a
brutalidade do regime ultrapassava os limites da ficção. Estima-se que em três anos e meio, cerca de 2
milhões de pessoas (perto de um quarto da população) tenham sido mortas, por fome ou por violência.
O líder do Khmer Vermelho, Pol Pot, aos 24 anos foi estudar em Paris. Não sendo um bom aluno, não
logrou obter o diploma. Contudo, ali na capital francesa, começou a participar de uma organização
marxista, informou-se sobre a ideologia de Mao Tsé-tung e se juntou ao Partido Comunista francês,
trilhando assim o caminho que o levaria para a liderança do Partido Comunista do Camboja.]3
1
Autobiografia de Haing Ngor – livro “Survival in the killing fields” (Basic Books, 2003), escrita com Roger Warner.
2
Trecho (pg 10) do livro “Riqueza da Nação no século XXI” de Bernardo Guimarães (2015).
3
Trecho (pg 12) do livro “Riqueza da Nação no século XXI” de Bernardo Guimarães (2015).