Este documento discute a admissibilidade da burla por omissão. Apesar de haver posições doutrinárias divergentes, o autor defende que em algumas circunstâncias o crime de burla pode ser cometido por omissão, desde que estejam preenchidos os requisitos legais para a equiparação da omissão à ação. Um silêncio doloso pode induzir alguém em erro de forma astuciosa e causar prejuízo patrimonial, obtendo o mesmo resultado de uma ação. Contudo, nem todos os tipos
1. UNIVERSIDADE LUSÓFONA DO PORTO
BURLA
Admissibilidade da comissão por omissão
Mestrado Juridico Forenses
Ciências Criminais II
Fernando Américo Magalhães Ferreira
Junho de 2011
Docente: ALEXANDRA VILELA
Coordenador: FARIA COSTA
1
3. INDICE
A BURLA COMETIDA POR OMISSÃO ................................................................... 8
A Burla no total dos crimes ( na zona da Grande Lisboa ........................................... 7
A inadmissibilidade da Burla por omissão ................................................................. 11
A Jurisprudência tem vindo no sentido da admissibilidade da Burla por omissão 17
A omissão como forma astuciosa de enganar............................................................. 16
A subsunção dos factos ao crime de burla sob a forma de omissão ......................... 15
A valoração etico-social que faz corresponder a omissão à acção ........................... 12
Abreviaturas ................................................................................................................... 4
Actos concludentes ........................................................................................................ 33
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 48
Breve referência aos tipos de Burla previstos no Direito Penal Clássico ................ 38
Burla Versus Abuso de Confiança .............................................................................. 42
Burla versus Coação moral.......................................................................................... 43
Burla versus Fraude contra segurança social ............................................................ 43
Burla versus fraude Fiscal / Burla Tributária ........................................................... 43
Burla versus Furto ........................................................................................................ 42
CAPITULO I .................................................................................................................. 8
CAPITULO II ............................................................................................................... 28
Caracterização da Burla .............................................................................................. 28
CONCLUSÕES I .......................................................................................................... 26
CONCLUSÕES II ........................................................................................................ 46
Concurso efectivo do crime de Burla e outros ( breve referência ) .......................... 44
Crime Continuado de Burla ........................................................................................ 45
Crime de Resultado Cortado ....................................................................................... 30
delicta commissiva per ommissionem ............................................................................. 9
Duplo nexo de imputação ............................................................................................. 34
Elementos constitutivos do crime de Burla ................................................................ 31
Forma de execução ....................................................................................................... 30
INTRODUÇÂO ............................................................................................................... 6
Metodologia ..................................................................................................................... 6
O bem jurídico .............................................................................................................. 28
O que têm em comum as diferentes modalidades de Burla previstas no Direito
Penal Clássico ............................................................................................................ 37
Os actos concludentes ................................................................................................... 15
Os crimes de forma vinculada e a ressalva da primeira parte do nº 1 do artigo 10º
do Código Penal ("outra intenção da lei"), ............................................................ 12
PALAVRAS CHAVE ...................................................................................................... 5
Posição tomada ............................................................................................................. 27
RESUMO ......................................................................................................................... 5
Tipos de Burla ............................................................................................................... 36
3
4. Abreviaturas
BMJ Boletim do Ministério da Justiça
CC Código Civil Português
CCCP Comentário Conimbricense ao Código Penal
CEJ Centro de Estudos Judiciários
CJ Colectânea de Jurisprudência
CP Código Penal Português
CRP Constituição da República Portuguesa
FDUC Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
FDUP Faculdade de Direito da Universidade do Porto
STJ Supremo Tribunal de Justiça
TC Tribunal Constitucional
TRC Tribunal da Relação de Coimbra
TRL Tribunal da Relação de Lisboa
TRP Tribunal da Relação do Porto
TRG Tribunal da Relação de Guimarães
ULP Universidade Lusófona do Porto
i.é isto é
p. página
ss seguintes
v.g por exemplo
4
5. RESUMO
Sendo de resultado, mas de execução vinculada, coloca-se a pertinente questão de saber
se é admissível a comissão por omissão em todas as modalidades de Burla. Como
sabemos se uma conduta é um mero ilicito civil, subsumivel na “ culpa in Contrahendo”
do art.º 227º CC, pela violação de um deveres laterais de conduta1, ou subsumivel numa
das modalidades de burla ?
Para tentar encontrar uma resposta possível, tive a oportunidade de estudar alguns
trabalhos e jurisprudência sobre este tema ou com ele relacionados, e que podem de
certa forma dar-nos algumas pistas, contudo, e dado que na realidade só perante
situações práticas se poderá dizer se a conduta é um ilícito civil ou crime de Burla, e em
que circunstâncias pode ser cometido por omissão.
Embora não seja uma posição unânime, mas tendencialmente maioritária, é meu
entendimento que nalgumas circunstâncias o crime de burla pode ser cometido por
omissão, pois nem todos os tipos de Burla são refractários à omissão.
Uma conduta pode ser astuciosamente omissiva, que transporta um dolo intencional e
específico de determinar outrém a praticar actos de disposição patrimonial que o
prejudique a si ou a terceiro.
Um omittere que obtem exactamente o mesmo resultado do faccere, o prejuizo
patrimonial do sujeito passivo e eventualmente o seu lucro ilícito.
Apesar de não ser automática a distinção, é possível estabelecer alguns critérios seguros
para diferenciar o crime de burla do ilícito civil.
PALAVRAS CHAVE
Astuciosamente omissiva, Burla, Burla por Omissão, Crimes refractários,“Culpa in
Contrahendo, Deveres laterais de prestação, Dolo específico, Duplo nexo de imputação,
Especiais deveres de garante, Execução vinculada, Ilícito Civil, Prejuízo patrimonial,
Resultado cortado, Silêncio doloso
1
ALMENO DE SÁ, defende que nem precisariamos de invocar o art.º 227º CC, pois numa relação
obrigacional complexa, para além dos deveres primários de prestação, existem os deveres laterais de
prestação, mesmo que não venha a ser celebrado contrato, como sejam a lealdade, a cooperação, o dever
de informação, o dever de protecção, que se forem violados geram responsabilidade civil obrigacional.
Esta responsabilidade pode ser; obrigacional que tanto pode ser précontratual ( art.º 227º CC), contratual
( art.º 798º CC), ou pós contratual ( art.º 239º CC ); delitual / extra contratual (art.º 483º CC )
5
6. INTRODUÇÂO
Todos os dias somos confrontados com situações que claramente se podem subsumir
numa das modalidades de burla, os mais avisados não são enganados, mas poderia
arriscar que a maioria do cidadão poderá ser levado no engodo. A situação de crise
financeira global é um claro exemplo disso, não é um mero ilicito civil, ultrapassa, no
meu entendimento, o risco ético-social permitido da convivência na sociedade do risco.
Estamos hoje todos a pagar coactivamente o prejuízo resultante, porque politicamente se
entende que a crise financeira actual não é uma burla gigantesca e não se procura
responsabilizar os culpados.2.
Muito embora o registo de crimes de burla sejam em percentagem muito inferior aos
restantes crimes, o certo é que, e é uma intuição recorrente, muitos das fraudes ficam
por punir.
Vamos principalmente debruçar-nos no tema a que me proponho, apresentando algumas
outras questões que muito embora não sejam neste trabalho aprofundadas, pois se
assume determinadada posição doutrinária3, entendo ser indispensáveis para nos ajudar
a melhor perceber as questões a que me proponho dar uma possível resposta
O Burla por Omissão tem sido um tema discutivo e polémico, havendo posições
doutrinárias divergentes quanto à admissibilidade nesta forma de realização,
principalmente porque o crime de Burla é um crime de execução vinculada, e há
doutrima que entende que sendo vinculada não pode ser cometida por omissão. Outra
Doutrina entende, e que eu partilho, que pode ser cometida por omissão desde que
cumpridos os requisitos da equiparação da omissão à acção nos termos do art.º10º CP
Tento introduzir na discussão outros pontos de vista, que reforçam a minha escolha
doutrinária.
Quanto à ténue linha divisória entre Burla por omissão ou mero ilícito civil faço uma
abordagem civilistica para melhor entendimento da distinção com o ilicito penal.
Metodologia
O trabalho está dividido em duas partes, intencionalmente de ordem invertida,
apresentando primeiro o tema e só depois as questões gerais sobre a Burla.
Iniciando o estudo pela principal obra indicada sobre o tema pela docente do curso, o
Comentário Conimbricense ao Código Penal, parti à procura de decisões dos tribunais
superiores, daí se justifica o significativo número de acórdãos citados, para poder aferir
das posições tomadas quanto ao tema da Burla. Segui depois para as obras e trabalhos
indicados, tanto nos acórdãos, como no Comentário e ainda seleccionei outros trabalhos
que me parecem poder contribuir para o objectivo do trabalho a que me proponho.
Os Acórdãos são uma fonte muito sólida para estudar este tema, pois para além da sua
própria fundamentação, as decisões invocam posições doutrinárias que nos ajudam a
perceber as questões problemáticas relativas à conduta que se pode subsumir no crime
de Burla.
2
Não é o tema a que me proponho, mas seria interessante um estudo sobre as razões reais da crise
financeira global.
3
Sobretudo as seguidas pelos autores do Comentário Conimbricense
6
7. A Burla no total dos crimes ( na zona da Grande Lisboa)
Podemos constactar que os crimes contra o património são os que têm maior incidência.
Estes números têm um significado meramente elucidativo, mas permite-nos verificar
que o furto tem um peso de 75% dos crimes e a burla 2%.
È muito provável que a Burla tenha maior incidência nas zonas rurais, onde a Boa Fé e a
Confiança nas pessoas ainda são valores muito enraizados e por isso mais susceptiveis a
serem enganadas por esquemas fraudulentos.
contra as pessoas
contra o património
Contra a paz, e
vida em sociedade
Contra o Estado
tipo de crime nº de crimes
contra as pessoas 96729
contra o património 324752
Contra a paz, evida em sociedade 50700
Contra o Estado 6212
legislação avulsa 45741
Total 524134
Fonte: INE março de 2011, para o ano de 2010
furto
agressões
dano
Ameaça tipo
crime
burla
furto 75%
injúrias
agressões 10%
outros dano 8%
ameaça 3%
burla 2%
Fonte: dissertação “modelo preditivo de criminalidade” Paulo Abel de Almeida
injúrias 1%
João, 20094
outro 1%
4
Região de Lisboa
7
8. CAPITULO I
A BURLA COMETIDA POR OMISSÃO
― há situações em que o silêncio doloso sobre um erro preexistente se assimila à
indução em erro para efeitos criminais‖
Não nos vamos ater propriamente ao conceito de omissão, mas interessa antes
estabelecer alguns parametros para podermos aferir da admissibilidade ou não Burla por
omissão, sendo certo que se trata desde já de uma omissão imprópria, que resulta de
uma equiparação entre o desvalor da acção e o desvalor do resultado, pois tanto a acção
como a omissão podem ser negação de valores jurídico-penais, mas que para a omissão
possa ser equiparada à acção, tem que obedecer a determinados requisitos
Só é possível para crimes de resultado, a existência de um especial dever de garante pela
não produção ou verificação de resultado, e segundo alguma doutrina5, não pode ser
para crimes de execução vinculada6.
Vamos identificar os argumentos mais relevantes que sustentam cada uma das posições
doutrinárias, analisando se a Burla, sendo um delito de execução vinculada, só possa ser
praticado por acção e averiguar por que o Legislador decidiu retirar o termo
“aproveitamento” da norma do art.º 10º CP, que constituia um dos elementos tipicos
antes da revisão de 1982
À partida nada impede que sendo a Burla um crime de resultado, pode a acção ser
cometida por omissão nos termos do art.º 10º CP7, desde que preenchidos os requisitos
do pessoal dever de garante, e que neste caso se traduz num aproveitamento de um
estado de erro.
Mas persiste ainda a questão de saber se a omissão do mero dever de informar deve ser
sempre punido.
A Doutrina divide-se, sendo que uma defende que uma conduta omissiva não pode
subsumir-se num crime de Burla, outra pugna pela admissibilidade, vejamos.
5
FERNANDA PALMA, “O crime de burla no Código Penal de 1982-95” (com a colaboração de RUI
PEREIRA), in: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. 35, 1994, p. 321 a 333
6
FARIA COSTA entende que sim, e eu pessoalmente concordo com esta posição
7
Artigo 10.º - Comissão por acção e por omissão
1. Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção
adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a
intenção da lei.
2. A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever
jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.
3. No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada.
8
9. A “Delicta commissiva per ommissionem”
Ao contrário do crime de Burla cometido por acção, por isso a Doutrina o designa de
Crime de Burla comum, o crime cometido por omissão é necessáriamente um crime
específico, é sobre aquele a quem recai um pessoal dever de garante que pode cometer o
crime de Burla, é o omitente por não ter evitado um resultado8, que se distingue da
omissão própria onde o autor desobedece a um comando, como manda o art.º 200º CP.
O art.º 10º nº1 CP apresenta-nos uma cláusula geral de equiparação mas apenas para os
crimes de resultado, que é o caso da Burla, mesmo que cortado, fazendo um extensão da
punibilidade da acção à omissão.
No entanto temos que considerar algumas restrições;
Como são o caso dos crimes refractários, que não podem ser cometidos por omissão,
cujo caso mais paradigmático é a bigamia prevista no art.º 247º CP, que também é um
crime específico, pois só o conjuge o pode cometer
Há Doutrina, por todos FERNANDA PALMA, que também defende como refractários à
omissão os crimes de execução vinculada, como é o crime de Burla, que tem descrito o
modus operandi como elemento do tipo legal, sendo por isso necessário, defende esta
Doutrina, que o agente pratique conforme a norma.
Eu entendo que apenas a Burla Informática, prevista no art.º 221º CP, pode ser
refractária à omissão. Pois aqui, o prejudicado não intervém no iter criminis, não está
em erro, não foi enganado, por isso não pode „colaborar‟ realizando actos provocado e
em consequência dos actos astuciosos, estes actos, aqui na Burla infomática, só agente
os pratica, actua sózinho, não precisa da própria vítima para o prejudicar.. Neste
entendimento, se um sujeito, por exemplo, não manipula dados informáticos, não
comete o crime de Burla informática.
Há outra Doutrina, por todos FARIA COSTA, que defende que o crime de Burla pode ser
realizado por omissão9, “uma razão de ser para que um non faccere possa merecer o
mesmo desvalor, quer de omissão, quer de resultado, que o próprio faccere” 10 11 ,
oferecendo-nos o exemplo do antiquário, que resumidamente se traduz no seguinte:
Um negociante de antiguidades, que foi a casa de um amigo avaliar arte, e vê um
prato que o amigo usa para dar de comer ao gato. O negociante verifica que o prato
é uma preciosidade da dinastia Ming, muitissimo valioso. O comerciante tem o
dever de informar o amigo do valor do prato, mas em vez disso, tendo referido ao
amigo que gostara do prato, o amigo oferece-lho pois pensa, erradamente que o
prato não vale nada. Aqui, segundo FARIA COSTA, o negociante tem uma conduta de
burla por omissão.
8
Se nos atermos ao artigo 131º CP, “ quem matar” equivale a “quem deixar morrer”, significando que o
agente não é penalmente responsável apenas pela omissão, mas também o é pelas consequências
danosas que derivarem dessa omissão.
9
Também HERBERT HART na sua obra “ O conceito de direito”, citado nos apontamentos do CEJ
10
FARIA COSTA, “Omissão (Reflexões em redor da omissão imprópria)”. Boletim da Faculdade de
Direito, Coimbra, vol. 72 (1996, publ. 1998), p. 411 e s.
11
No acordo o voto de vencido de Henriques Gaspar no acórdão de STL de 9 de Julho de 2003 ( caso do
filho que deixa a velha mãe doente sozinha por 12 dias )
9
10. No entanto o grau de censurabilidade da omissão não pode ser o mesmo da acção12
Uma segunda restrição é a exigência do especial dever de garante, que o nº2 do
art.º10º CP determina, e aqui coloca-se a questão de saber o que é este especial dever!
Desde logo o especial dever de garante derroga o dever geral de garante.
A Doutrina clásssica, por todos EDUARDO CORREIA, agrupa estes deveres de garante em
três classes de fontes; a Lei, o contrato, e a ingerência13, mas hoje estas situações são
alargadas por FIGUEIREDO DIAS e FARIA COSTA, com fundamentos um pouco diferentes,
pois para aquele professor está subjacente o dever de solidariedade, e para este professor
a existência de uma obrigação natural de efeito penal, mas que no fundo resulta em
situações idênticas, Colocando as fontes propostas por EDUARDO CORREIA cada uma
delas num plano, onde se inclui outras situações:
No plano da Lei alarga-se o âmbito para situações de comunidade de vida
No plano do Contrato, para situações de relação fáctica de confiança
No plano da Ingerência, pouco se altera, mas são identificadas as relações de senhorio e
de domínio.
Concretizando;
Para a EDUARDO CORREIA
À Lei estavam sujeitas as situações em que somos obrigados a agir por determinação da
lei, como por exemplo o poder/dever dos pais sobre os filhos.
Ao Contrato, estava subjacente a celebração de contrato com outrem, a assunção de
obrigações, como seja, por exemplo o casamento. Mas no caso do contrato ser inválido,
a doutrina tradicional não tinha resposta.
À situação de Ingerência as situações de perigo criadas pelo agente, como no caso em
que o próprio agente potencia o risco e deve ser responsabilizado penalmente.
Para FIGUEIREDO DIAS E FARIA COSTA
Alarga-se o ambito da Lei para as situações de comunidade de vida, o Contrato para
relações fácticas de confiança, como por exemplo, para o especial dever de garante,
tanto faz ser casado como ter um relação de união de facto, os estudantes que vivem
numa “República”, enfim, são as situações que embora não protegidas pela Lei ou por
contrato, subsiste um especial dever de garante. Quanto à Ingerência, são alargadas para
as situações de senhorio ou de domínio, ou seja, são situações em que o agente tem o
controlo da fonte de perigo e deve ter o cuidado de controlar esse perigo para não lesar
bens jurídicos. Mesmo quando desta situação resulte um risco, dentro da actuação do
risco permitido, desde que sobre o agente recaia um especial dever de garante.
FIGUEREDO DIAS14 ainda acrescenta as situações de monopólio,quando uma pessoa é a
única que pode intervir, evitando a produção do dano, do resultado sem que para ela
resulte qualquer situação de risco.
12
FC, Idem, p.392, “Ninguém duvida, ou melhor, para uma quase totalidade da comunidade afigura-se
líquido que, por exemplo, o homicídio levado a cabo por acção, se comparado com o perpetrado por
omissão, deve ser mais fortemente punido. há no „facere‟, um potencial, um transporte de energia e uma
realização que se cristalizam em alterações do real verdadeiro e que determinam que o valor ou o
desvalor que geram ganhem uma densidade que o „omittere‟ não pode beneficiar ou sequer reinvindicar.”
13
Podemos definir Ingerência como uma intervenção anterior causadora de perigo
14
Também TAIPA DE CARVALHO
10
11. FARIA COSTA, diz que as omissões têm como fonte do dever de garante as obrigações
naturais. Na sua óptica não pode ser a solidariedade social. Propõe a sua substituição
pelas obrigações naturais que são obrigações morais que o sujeito cumpre se entender
que deve cumprir.
A inadmissibilidade da Burla por omissão
Os seguidores desta Doutrina15 apresentam argumentos de diversa natureza, a saber:
Argumento de natureza temporal
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE entende que a Burla por omissão não deve ser punida e
argumenta essencialmente porque o legislador retirou o termo “aproveitamento” no
actual CP, depois da revisão de 1982, e por se tratar de um crime de execução vinculada.
―a invocação de um dever de garante está afastada nos termos da parte final do artigo
10º, nº 1‖ do mesmo código, concluindo que não é burla ―a mera omissão baseada no
aproveitamento astucioso do engano por parte do arguido‖ 16.
Argumento dogmático
Sendo o crime de Burla de execução vinculada, não se aplica a 1ª parte do nº1 do art.º
10º CP, não se podendo equipar a omissão à acção,
FERNANDA PALMA defende que pela interpretação conjugando o art.º 217º e 10º CP, só é
de atribuir relevância à astúcia e que esta só se exprime por acção ( faccere ), e que o
crime de Burla seria um dos casos subsumíveis na ressalva da parte final do nº1 do art.º
10º, conforme já foi referido, afastando assim a possibilidade do cometimento da Burla
por omissão.
Critica: se assim fosse, como justificar a admissibilidade da omissão no crime de
homicídio qualificado previsto no art.º 132º nº2 h)17?
O entendimento da maioria da Doutrina é que os crimes de forma vinculada não estão
incluidos na ressalva da parte final do nº1 do art.º 10º.
Argumento literal,
O desaparecimento do termo “aproveitamento” na norma actual.
Critica: teve apenas por objectivo evitar a punição daquele que não tem dever de
informação. SOUSA E BRITO aceita que é possível, desde que estejam preenchidos os
pressupostos do art.º 10º, e sustenta que o que deixou de ser possível com a retirada do
termo “aproveitamento” foi a possibilidade de realização geral18, da Burla por omissão,
e não quando sobre o omitente impende um especial dever de garante.
No entanto, outra Doutrina entende ser possível ( FARIA COSTA19 e ALMEIDA COSTA20 )
1515
Também MARQUES BORGES, citado no trabalho de FRANCISCO PEREIRA PINTO
16
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE “ Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e
da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade católica Editora, Lisboa, 2008, p. 601
17
Pode apenas um dos agentes quem realiza a acção de matar e os outros omitirem a acção de a evitar .
18
i.é por qualquer pessoa
19
FARIA COSTA, ―Omissão (Reflexões em redor da omissão imprópria)”, Boletim da Faculdade de
Direito, Coimbra, vol. LXXII (1996, publ. 1998),
20
ALMEIDA COSTA, Comentário ao artº 217º, CCCP
11
12. Pelo art.º 10º nº2 é possível incluir a comissão por omissão quando sobre o omitente
exista um dever jurídico pessoal de afastar o erro, incluindo-se os deveres de segurança
e trafico jurídico. No mesmo sentido também, por exemplo, SIMAS SANTOS defende que
nos termos do art.º 10º nº2 só é punivel a comissão de um resulado por omissão quando
sobre o omitente recaia um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse
resultado.
Os crimes de forma vinculada e a ressalva da primeira parte do nº 1 do artigo 10º
do Código Penal ("outra intenção da lei"),
Para além da exigência do resultado, a parte final do nº1 do art.º 10º CP, “ outra
intenção da lei”, defende FERNANDA PALMA que deve ser interpretada como excluir da
equiparação os crimes de execução vinculada, apresentando como exemplo o crime de
Burla. A recusa da Burla omissiva feita por FERNANDA PALMA e RUI PEREIRA assenta
na interpretação conjugada dos artigos 217º e 10º do CP, que, no entender dos autores,
só atribuem relevância à astúcia que se exprime por acção. Nos crimes de forma livre, a
posição de garante é decisiva na questão da equivalência da omissão com um faccere.
Mas nos crimes em que a lei descreve os meios de execução, a cláusula da equiparação
funciona como obstáculo à comissão por omissão, se for essa "a intenção da lei".
Neste sentido o acórdão do Supremo 21 , ( caso do filho que deixou a mãe doente e
impossibilitada de se mover por doze dias ) com voto de vencido em sentido contrário, e
que muito fundadamente apresenta argumentos para a equiparação da omissão à acção,
num caso de homicídio, e que em anexo se reproduz o essencial, no meu entender, por
merecer a pena.
A valoração etico-social que faz corresponder a omissão à acção22
Diz-nos FIGUEREDO DIAS 23 que, em certos casos, não se torna necessário "procurar
critérios sofisticados de distinção" entre crimes de omissão e acção: a solução oferecida
pela experiência comum e pelo sentimento imediato possui "o toque bom" das coisas
evidentes. Mas naqueles em que o tipo descreve uma forma vinculada de execução, ou
pelo menos torna dependente dela o desvalor da acção, a apontada restrição legal,
"só pode ter o sentido de reenviar o aplicador do direito para uma valoração
autónoma, de carácter ético-social, através da qual ele determine se, segundo as
concretas circunstâncias do caso, o desvalor da omissão corresponde ou é
equiparável ao desvalor da acção, na perspectiva própria da ilicitude. Se, atenta a
interpretação devida ao tipo legal de acção quanto à espécie e ao modo de
21
Acórdão STJ de 09-07-2003
―- O n.º1 do art.° 10° do C. Penal consagra claramente a doutrina da causalidade adequada para
resolver a imputação objectiva do resultado ao agente e a equiparação da omissão à acção.
- Para que se possa estabelecer um nexo de causalidade entre um resultado e uma acção, ou omissão, é
necessário que, em abstracto, a acção ou omissão seja idónea para causar o resultado, ou seja, que o
resultado seja uma consequência normal típica da acção, o que não se verifica no caso dos autos.
- A douta decisão recorrida coloca a relação entre a omissão e o resultado no campo apenas das
probabilidades‖
22
Segui de perto os apontamentos do CEJ
23
FIGUEIREDO DIAS, “ Pressupostos da punição”, in: Jornadas de Direito Criminal, CEJ, I, pp 53 a 55
12
13. execução ou aos meios determinados que ela supõe, o aplicador se pronunciar pela
não correspondência, deve ele então concluir que outra era no caso a intenção da
lei, nos termos e para os efeitos da cláusula geral de equiparação contida no artigo
10º-124".
Neste sentido e segundo alguns autores25, na Burla, a omissão tem significado social
idêntico à correspondente acção descrita no tipo, não está relacionada unicamente com a
produção do resultado, está igualmente implicada no modo típico da sua produção:
exige-se, não uma qualquer lesão, mas uma lesão provocada por erro ou engano. A
cláusula de equivalência tem a ver com o modo de produção do resultado, diz respeito
somente àqueles tipos que não se limitam a sancionar a simples causação do resultado
(desvalor do resultado), mas que, para além disso, exigem uma determinada modalidade
de acção (desvalor da acção). A equivalência da omissão à acção assenta, nestes tipos de
ilícito, na circunstância de a omissão não estar em relação somente com a produção do
resultado, mas também com o modo típico da sua produção. Na Burla exige-se, não uma
qualquer causação dum dano mas um dano por erro ou engano; a omissão deverá incluir
portanto a não evitação de um erro.
No código suiço há uma modalidade de Burla fundamentada no aproveitamento26 dum
erro, mesmo que não causado pelo agente.
―Estamos de novo no terreno das omissões e das acções esperadas: estando o
agente obrigado, juridicamente ou por um uso social, a clarificar a situação, se
assim não fizer estará a determinar a actuação 27 em erro do sujeito passivo‖
( CONDE-PUMPIDO )28
Na Omissão, no meu entendimento, se ainda poderiam restar dúvidas se consubstancia o
crime de burla, já não restarão dúvidas se o omitente obrigado juridicamente ou por um
uso social, a informar sobre a situação, e para além de nada dizer, ainda confirma o erro,
dando a entender que a vítima está correcta, tendo o silêncio um significado de
concordância, ou pelo menos não discordância, com um dolo intencional, é o silêncio,
o não querer intencionalmente informar, ele próprio uma forma astuciosa, um omittere
que obtem extactamente o mesmo resultado do faccere, o prejuizo patrimonial do
sujeito passivo.
Assim temos duas posições doutrinárias, uma que admite a Burla por omissão e outra
que não admite.
Sendo que a tendencia da Jurisprudência vai no sentido da admissão da Burla por
omissão, desde que cumpridos os pressupostos exigidos à equiparação da omissão à
acção, e a relevância ético-penal da conduta omissiva no caso concreto.
24
Também no ponto 4 do preâmbulo do CP de Cabo Verde de 2003, Decreto legislativo nº4 de 2003
25
HEBERT HART, citado nos apontamentos do CEJ
26
Recorde-se que também o código penal português incluia o aproveitamento , mas que foi retirado na
revisão de 1982, sendo este um dos argumentos para a Doutrina que rejeita a possibilidade da Burla por
omisão
27
Sublinhado meu
28
Autor citado no Acórdão do TRC de 07-06-2006
13
14. Neste sentido, por exemplo, o acórdão do STJ de 03-02-200529.
O agente depois de dar como extraviado um cheque, entrega-o para garantia de bom
pagamento e obter a entrega de mercadoria. Ora o agente tem que provocar o erro ou o
engano na vítima, mas este erro ou engano pode ser confirmado, reforçado ou
aumentado por omissão, ou seja, se o omitente mantém nesse estado de erro ou engano.
O mesmo é dizer que a conduta é idónea a determinar a vítima a praticar actos que o
prejudicam, que se o agente o alertasse para o erro, a vítima os não praticaria.
Também no mesmo sentido os Acórdãos da Relação do Porto de 05 de Março de 1986.
BMJ 355, 433, e STJ de 29 de Fevererio de 1996, BMJ, 454, 532, referidos naquele
acórdão.
Por vezes basta o silêncio doloso, um “dolus malus”, que mantém a vítima num erro
Ainda o acórdãode STJ de 19-12-1991
― I - Existe burla quando no primeiro momento se verifica uma conduta astuciosa
comissiva ou omissiva que, directamente, induza ou mantenha o erro ou engano, e
no segundo momento se verifique um enriquecimento ilegitimo, de que resulte
prejuizo patrimonial do sujeito passivo ou de terceira pessoa, não podendo uma
eventual culpa da vitima constituir desculpa para o agente.‖
― (…) O burlado nas hipoteses ou erro, como de engano, so age contra o seu
patrimonio ou de terceiro por que tem um falso conhecimento da realidade.
Simplesmente esse seu falso conhecimento nasce, no caso de mero engano, da
mentira que lhe e dada a conhecer pelo burlão.
A vitima, ao ser induzida em erro toma uma coisa pela outra, pertencendo ao
agente a iniciativa de causar o erro.
Na manutenção do erro a vitima desconhece a realidade; o agente perante um erro
ja existente, causa a sua persistencia, prolongando-o, ao impedir, com a sua
conduta astuciosa ou omissiva do dever de informar, que a vitima se liberte dele.
O segundo momento do crime de burla e a pratica de actos que causem prejuizo
patrimonial. (…)‖
29
STJ de 03-02-2005, processo 4745/2004
14
15. A subsunção dos factos ao crime de burla sob a forma de omissão
Impõe-se então estabelecer os requisitos essenciais para a responsabilidade criminal do
omitente.
O omitente de acordo com o artº 10º nº1 CP, para ser punido deve ocupar uma posição
de garante da não produção do resultado, em que o fundamento da punição da omissão
se alicerça na equivalência entre o desvalor da acção e o desvalor da omissão.
Sendo a Burla um crime de resultado, embora de resultado cortado, em princípio admite
a comissão por acção.
Ora a Burla é um crime de execução vinculada, pois exige que o erro que determina a
acção do sujeito passivo tem de ser astuciosamente provocada pelo agente, e ainda que
haja um nexo causal entre a conduta do agente e a conduta do sujeito passivo. É neste
aspecto que reside a diferença de posições doutrinais. Como pode haver um
comportamento astucioso na omissão ? Parece que o Legislador condiciona a a acção do
agente a um acto positivo.
No entanto, desde que seja ético-penalmente censurável no caso concreto, a conduta
intencionalmente omissiva, ela própria, é um meio astucioso de enganar, se não para
causar o erro, mas mantendo-o, quando devia libertar o sujeito passivo do erro.
Postas estas considerações, resta saber em que circunstâncias o omitente tem
pessoalmente um dever de garante, FARIA COSTA, ALMEIDA COSTA, MAIA GONÇALVES
de entre outros pugnam pela admissibilidade da Burla por Omissão.
ALMEIDA COSTA distingue no entanto a omissão propriamente dita dos actos
concludentes
―condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas, a um
critério objectivo – a saber, de acordo com as regras da experiência e os
parâmetros ético-sociais vigentes no sector de actividade -, se mostram adequadas
a criar uma falsa convicção sobre certo facto passado, presente ou futuro‖
Actos concludentes
Em determinadas situações de vida, certos actos são tidos como declarações com um
significado inequivoco, e por isso são actos idóneos a provocar o erro.
Neste sentido, há uma distinção entre actos concludentes em que o agente cria ou
aumenta o erro, e a omissão em que o omitente se limita a aproveitar um erro já
existente, mantendo o sujeito passivo nesse estado, quando o devia libertar.
Havendo nos actos concludentes um “ faccere” declarativo, não se coloca a questão do
dever de garante, ao contrário do “non faccere”, em que o omitente para que veja a sua
conduta reprovada penalmente tem de ter um dever de garante.
15
16. ALMEIDA COSTA dá o exemplo do contrato e que nos leva a uma nova questão que é de
saber quando uma conduta omissiva é penalmente relevante ou um mero ilícito civil30;
―A assunção de uma obrigação contratual comporta, de forma concludente, o
significado adicional de que o indivíduo se encontra na disposição de cumpri-la,
pelo que, faltando esta última, se depara com um crime de burla.‖ (…) ―Assim, na
órbita da conclusão de um contrato, se uma das artes se abstiver de declarar que
não se encontra em condições de o cumprir, comete burla por actos concludentes,
uma vez que a celebração de um negócio leva implicada a afirmação de que
qualquer dos intervenientes tem a possibilidade de satisfazer as obrigações dele
emergentes.‖
Também PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE diz-nos que estes actos;
“ são aqueles que têm um sentido social inequivoco, que não corresponde à vontade
do agente do crime, mas que ele aproveita para enganar o burlado‖31
No fundo, na Burla, o que é importante é que esses meios sejam aptos ou idóneos a
induzir a vítima em erro ou engano e que por consequência disso a vítima pratique actos
de disposição patrimonial que o prejudique a si ou a um terceiro.
Neste sentido, por exemplo o acórdão de 25 de Outubro de 200632
A omissão como forma astuciosa de enganar
Se na comissão da Burla por acção, a vítima é induzida em erro sobre a realidade,
cabendo ao agente a iniciativa, um faccere, de causar esse erro, na comissão por
omissão, o omitente perante um erro já existente, causa a sua persitência, impedindo,
com uma conduta astuciosamente omissiva do dever de informar, que a vítima tome
consciência do erro. O sujeito passivo dispõe do património „provocado‟ pelo omittere.
De facto, se virmos bem as coisas, não deixa de ser astuciosa apenas pelo facto de ser
omissiva, a própria omissão, pode ser só por si astuciosa quando ao agente compete
informar, tem consciência que deve informar, mas não o faz. A astúcia não existe só por
acção, o silêncio é uma forma de astúcia, que ultrapassa o mero ilícito civil, se
preenchidos os requisitos do nº 2 do art.º 10º CP.
Neste sentido o Acórdão do STJ de 18 de Junho de 2008
―VIII- Contudo, pode contrapor-se que, nesta hipótese de mero aproveitamento de
um erro não provocado, a astúcia não deixará de estar presente (de forma negativa)
na dissimulação, ocultação ou sonegação dolosa de informações determinantes
para a formação de vontade do ofendido. E assim a questão estaria apenas em
saber se o agente tem ou não a obrigação de informar correctamente o ofendido, ou
seja, se tem ou não a posição de garante, consumando-se a burla por omissão no
caso afirmativo.‖
30
Vamos mais adiante debruçar-nos sobre esta questão
31
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE “ Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e
da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade católica Editora, Lisboa, 2008, p. 599,
600
32
Vide infra página 18
16
17. Nestes pressupostos, se ainda poderiam restar dúvidas se um resultado tipico obtido por
omissão, se subsume no crime de Burla, já não restarão dúvidas se o omitente obrigado
juridicamente ou por um uso ético social inequivocamente relevante, a informar sobre a
situação, e para além de nada dizer, ainda confirma o erro, dando a entender que a
vítima está correcta.
O silêncio só pode ter neste caso um significado de concordância, ou pelo menos, não
discordância, com um dolo intencional, é o silêncio, o não querer intencionalmente
informar, ele próprio uma forma astuciosa, um omittere que obtem exactamente o
mesmo resultado do faccere, o prejuizo patrimonial do sujeito passivo e eventualmente
o seu lucro ilícito.
Neste sentido o acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 199633;
―(…) há situações em que o silêncio doloso sobre um erro preexistente se assimila à
indução em erro para efeitos criminais; assim acontece quando a vítima desconhece
a realidade, o agente se apercebe desta circunstância e causa a persistência do erro,
prolongando-o e potenciando-o, ao impedir, com a sua astuciosa conduta omissiva
do dever de informar, que a vítima se liberte dele‖.
A Jurisprudência tem vindo no sentido da admissibilidade da Burla por omissão
Embora o “Dicionário de Direito Penal e Processo Penal” 34 de HENRIQUES EIRAS e
GUILHERMINA FORTES que transcreve do Acórdão de do STJ de 08-02-1996, in CJ,
Tomo I, 1996, p. 209, na parte que defende que ― O Crime de Burla não pode ser
cometido por omissão, tendo em conta que o respectivo preceito exige que o erro ou
engano seja astuciosamente provocado‖, com o devido respeito discordo
veementemente 35 , pois o fundamento me parece muito débil e que pelo contrário, o
facto é que a Jurisprudência tem vindo a confirmar o sentido da posição da doutrina que
defende a Burla por omissão e actos concludentes 36, como por exemplo as decisões
mais recentes dos Tribunais superiores, que mais adiante indicamos.
Mas o mesmo dicionário oferece um conceito de “Omissão enganosa” 37 , “(…) que
conduz ou é susceptivel de conduzir o consumidor a tomar uma decisão de transação
que não teria tomado de outro modo, porque, ou omite ou oculta uma informação (…)”,
e que remete para o “crime comissivo por omissão”, cujo conceito nos é oferecido na
página 175 a 177 da obra referida, mas que limita a admissibilidade a crimes de forma
livre, o que não é o caso da Burla que é um crime de realização vinculada.
Mas vamos então verificar qual tem vindo a ser a tendência da Jurisprudência:
33
Ac STJ de 29 de 96/02/29, BMJ 454-532
34
HENRIQUES EIRAS e GUILHERMINA FORTES, “Dicionáro de Direito Penal e Processo Penal”, Lisboa,
Quid Iuris, 2010, p. 103
35
Os autores seguem na maioria dos conceitos uma doutrina diferente da que propugna o curso de Direito
da Lusófona do Porto, mas por isso, mesmo de interesse para podermos analisar.
36
Nomeadamente, já referimos, FARIA COSTA e ALMEIDA COSTA
37
HENRIQUES EIRAS e GUILHERMINA FORTES, “Dicionáro de Direito Penal e Processo Penal”, Lisboa,
Quid Iuris, 2010, p. 531
17
18. O acórdão de 22 de Maio de 2002, que admite a burla, através de actos concludentes.
O acórdão de 20 de Março de 2003, considerou-se que o não cumprimento doloso de
um contrato-promessa, não tendo havido nunca vontade real de realizar o negócio
correspondente e funcionando o contrato apenas como elemento do engano
astuciosamente elaborado pelo agente, deve entender-se verificado um crime de burla.
O acórdão de 27 de Abril de 2005, que reconheceu a admissibilidade da prática da
burla através de actos concludentes ou por meio de omissão.
O acórdão de 12 de Outbro de 2006, que admitiu a Burla consumada por actos
concludentes, no âmbito da realização de um contrato de compra e venda.
O acórdão de 25 de Outubro de 2006, que admitiu-se também a burla através de actos
concludentes, esclarecendo:
―As regras da experiência e o princípio da boa-fé em sentido objectivo constituem
elementos primordiais para avaliar a relevância de um determinado
comportamento no contexto da tipicidade e ilicitude na execução vinculada do
crime de burla. Nesta perspectiva, a deslealdade tida por inadmissível no comércio
jurídico, o «domínio do erro» que viole os ditames da boa-fé consubstancia o
desvalor característico do ilícito da burla. A actuação do agente tem de consistir
em condutas adequadas a criar a falsa convicção sobre certo facto, e que criem ou
assegurem o engano da vítima: estão neste caso as situações em que o agente se
abstém de declarar que se não encontra em situação de cumprir, ou quando assume
uma obrigação que sabe não poder cumprir, actuando com reserva mental dolosa‖
O acórdão de 31 de Outubro de 2007, também se considerou susceptível de consumação
a burla por meio de actos concludentes ou de omissão.
O acórdão de 18 de Junho de 2008
VIII- Contudo, pode contrapor-se que, nesta hipótese de mero aproveitamento de
um erro não provocado, a astúcia não deixará de estar presente (de forma negativa)
na dissimulação, ocultação ou sonegação dolosa de informações determinantes
para a formação de vontade do ofendido. E assim a questão estaria apenas em
saber se o agente tem ou não a obrigação de informar correctamente o ofendido, ou
seja, se tem ou não a posição de garante, consumando-se a burla por omissão no
caso afirmativo.
IX - Neste sentido se tem pronunciado alguma doutrina: Maia Gonçalves (Código
Penal Português, nota 4 ao art. 217.º), embora reconhecendo que a solução não é
líquida nem pacífica, admite a omissão no crime de burla; Almeida Costa, mais
desenvolvidamente, apoiado em extensa doutrina germânica, defende a mesma
posição (Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, págs. 307-309).
X - Porém, este Autor distingue a omissão propriamente dita da prática da burla
activamente, embora não por declarações expressas, mas sim por actos
concludentes, que, segundo o mesmo, são as «condutas que não consubstanciam,
em si mesmas, qualquer declaração, mas, a um critério objectivo – a saber, de
acordo com as regras da experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes no
sector de actividade –, se mostram adequadas a criar uma falsa convicção sobre
certo facto passado, presente ou futuro».
18
19. Enfim, são exemplos que nos indicam a tendência da Jurisprudência do STJ, que admite
que a Burla pode ser também cometida não só por acção, cumprindo os requisitos do
artº 10º CP, mas também por omissão, e ainda que os actos positivos de faccere, não são
apenas os activos, mas o actos concludentes que têm um significado de declaração
expressa em certas situações de vida.
O entendimento do Tribunal Constitucional
Proponho que analisemos o acórdão38 referente ao processo nº 24 de 1997, do Cons.º
LUÍS NUNES ALMEIDA, e que tratava de aferir da inconstitucionalidade da norma do art.º
313º CP ( hoje art.º 217º ) alegada pelo recorrente.
Não querendo entrar na discussão, refira-se que o que TC decidiu foi a
inconstitucionalidade da decisão recorrida e não da norma, mantendo em aberto a
admissibilidade da Burla por omissão, nos pressupostos que já identificamos.
Burla Omissiva ou Ilícito Civil
― é muito ténue a linha divisória entre a fraude penal e o simples ilicito civil‖
SIMAS SANTOS39,
Uma conduta omissiva em muitos das situações está ainda dentro do risco permitido,
dos actos ético socialmente não censuráveis, ainda dentro do mero dolus bonus aceite
pelo trafico e usus do comércio, mas nem sempre é assim. Há situações em que o
omittere é axiologico-penalmente relevante.
De facto, o direito penal é um direito fragmentário. Nem todos as situações de vida, nem
todos os bens juridicos são axiologico-penalmente relevantes 40 , e estamos numa
fragmentariedade de 1º grau, e outros bens podem ser parcialmente protegidos e
estamos numa fragmentariedade de 2º grau41. ( por todos FARIA COSTA42 ). Há ainda
crime refractários, como é o caso paradigmático da bigamia, que não pode ser praticada
por omissão43.
Se há situações em que a conduta fraudulenta, constitutiva da Burla não suscitam
dúvidas, outras há em que a situação está num limiar entre a Burla e o ilícito civil, pois
a “culpa in contrahendo” ( art.º 227º CC ), ou a violação dos deveres laterais de
38
TC, de 15-12-1999, nº 674/99, Proc. nº 24/97, 2ª Secção
39
Acórdão do STJ de 03-02-2005, e STJ de 08-11-2007
40
Neste sentido por exempo o Acórdão do STJ de 4 de Outubro de 2007 ( SIMAS SANTOS )
41
Como o caso da vida intrauterina,, que só é protegida depois das 10 semanas de gestação, ou como o
“furto de uso de veículo”, onde apenas algumas espécies do bem jurídico propriedade estão abranguios.
42
FARIA COSTA, ―Noções fundamentais de direito penal”, Coimbra, Coimbra Editora, 2009.
43
E qunato à Burla, na minha opinião, apenas a Burla informática é refractária à omissão.
19
20. prestação44, como o dever de lealdade, de informação, de cooperação e de protecção,
que pode levar à nulidade do contrato, ou até mesmo sem chegar a existir contrato, nas
situações de relação obrigacional complexa sem obrigação primária de prestação 45 ,
muito idênticas ao engano na Burla, e que se estiverem presentes os restantes elementos
típicos, facilmente o ilícito civil se subsume num crime de Burla. Na realidade, muitos
ilícitos civis, podem resvalar para o ilícito penal, quando estão presentes os outros
elementos constitutivos do crime de burla.
No Comentário Conimbricense46, ALMEIDA COSTA no essencial refere que o ilícito para
se subsumir no crime de burla tem de ser jurídico penalmente relevante47.
Na realidade o que temos muitas das vezes é um ilícito civil, que poderá dar lugar à
anulação do negócio.
Acontece que na prática é o prejudicado que ao decidir ressarcir-se apenas civilmente
ou intentando uma acção penal, que vai determinar a classificação da conduta. Muitas
vezes fica-se pelo civil, o que o prejudicado quer primeiramente é ser ressarcido dos
seus prejuízos, mas tal não significa que a conduta não poderia subsumir-se num ilicio
penal. Neste sentido;
―Na verdade; não há diferença de natureza, ontológica, entre a fraude civil e a
penal; Não há fraude penal e fraude civil, a fraude é uma só. Pretendida distinção
sobre o assunto é supérflua, arbitrária e fonte de danosíssimas confusões
(JTACrSP58/210; RT423/401). O que importa verificar, pois, é se, em determinado
facto, se configuram todos os requisitos do estelionato, caso em que o facto é
sempre punível, sejam quais forem as relações, a modalidade e a contingência do
mesmo (RT 543/347-348).E acrescenta este Autor: «tem-se entendida que há fraude
penal quando o escopo do agente é o lucro ilícito e não o do negócio‖48
Vejamos:
Por um lado, na fraude penal o agente/omitente tem uma intenção “ab initio” de não
realizar a contraprestação, e o dano que causa não é apenas no plano da relação
individual mas verifica-se um dano ético-social, axiologico-penalmente relevante.
Ou seja, o agente obtém um benefício patrimonial não resultante de negócio licito, mas
tem a intenção de lucro ilícito, não cumprindo a sua obrigação de contraprestar, ou
intencionalmente defeituosa, para além do admitido pelo tráfico e usus do comércio.
44
ALMENO DE SÁ, ―Direito Bancário‖, Coimbra Editora, Coimbra, 2008
45
idem
46
Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, sob a direcção de JORGE DE
FIGUEIREDO DIAS, Coimbra, Coimbra Editora, 1999
47
A Burla do mendigo
A conduta do mendigo para enganar é socialmente tolerável, e por isso não se subsume no crime de
burla se o mendigo consegue “sacar” do transeunte uma substancial esmola, através de uma história de
fazer chorar as pedras da calçada. Normalmente a pretensa vítima que dá a esmola, não lha dá porque
está em erro, dá para se ver livre dele, ou apenas por solidariedade com o pobre coitado. Por outro lado
não se tem conhecimento que alguém tenha apresentado queixa porque foi realmente enganado por um
mendigo.
48
HUNGRIA, Apud FRANCISCO PEREIRA PINTO, “ Crime de Burla e emissão de Cheques sem Provisão”
20
21. Partilho do entendimento da Doutrina que defende que também os casos em que o
agente usa de expedientes fraudulentos com o intuito de mediatamente obter um lucro
legítimo, como é o caso dos “ Foi premiado com viagem” e depois afinal é apenas o
engodo para uma subscrição dissimulada de um serviço que de outra forma não seria
subscrito pela vítima do engodo.
Neste caso o relevante é o desvalor da acção, pois o resultado em si é licito e não cria
prejuízo, pois a vitima afinal tem uma contrapartida da disposição do seu património, o
certo é que no fundo a vítima está em erro, não queria o negócio, consubstanciando um
vício na formação da vontade criado pelo engodo, e que civilmente pode ser anulado, e
penalmente deve ser punido a título Burla, mas que tem ficado impune penalmente.
São conhecidos casos deste tipo de situação, que se ficam pelo ilícito civil porque a
vitima se contenta em ser reembolsado do prejuízo49, e salvo o crime do art.º 218º e do
222º, que são públicos, e que mesmo assim podem ficar por punir cumpridos os termos
do artº 206º, o crime de Burla depende de queixa do ofendido, e o facto fica por ai.50
De acordo com o princípio da ofensividade51, esta violação é de tal forma ofensiva da
ordem jurídica que merece uma pena para o agente ( principio da necessidade da pena 52).
Ainda quando os actos são idóneos a produzir no ofendido uma falsa representação da
realidade e que por isso pratica actos de disposição patrimonial que lhe causam prejuízo
ou a terceiro.
Sendo um crime contra o património, estamos no âmbito daqueles negócios jurídicos, à
partida de direito civil, mas que pela conduta de uma das partes que não é aceite pelo
tráfico e usus do comércio, ultrapassa o mero ilícito civil e por ser axiológico
penalmente relevante, deve passar a um ilicito penal.
A questão está precisamente em saber quando deixa de ser um mero ilícito civil e passa
a ser um ilícito penal.
Por outro lado, o burlado só age contra o seu património ou de terceiro porque tem uma
falsa percepção da realidade, se assim não fosse não se auto prejudicava.
Por vezes a teoria da adequação não oferece uma resposta clara para a imputação de
deterrminada conduta, e precisa de ser complementada.
Comportamentos licitos alternativos
Muito embora esteja em questão saber se a conduta omissiva é ou não ilícita, vamos,
por razão de raciocínio assumir que é ilícita.
Assim, colocando a hipótese do sujeito agir licitamente, informando o sujeito passivo
do erro que está, pergunta-se se o sujeito passivo sendo esclarecido se teria praticado o
acto que o lesou no seu património.
49
Quando o lesado reclama, por regra a empresa reembolsa voluntáriamente, evitando o tribunal, pois o
histórial é de que este tipo de actuação é de condenação por tribunal civil a reembolsar o lesado.
50
Esta é uma situação em que o Legislador beneficia o infractor. Vale a pena ao que tem um
comportamento fraudulento tentar o facto ilícito penal, pois ao fim e ao cabo pode porventura ser
punido por um crime, por muitos outros o não será.
51
Vide FARIA COSTA
52
idem
21
22. Ora é bom de ver, que se a vítima se não estivesse em erro não praticaria o acto lesivo
do seu património ou de terceiro, a conduta do omitente confirma-se ilícita. Pelo
contrário, se o sujeito passivo mesmo depois do agente o ter informado, continuasse a
praticar o acto de disposição do património, então a conduta do agente seria licita.
Risco dimínuido / permitido / aumentado
Se o agente actua dentro do risco ético-social, ou seja um risco que é aceite como licito,
embora de per si fosse um ilícito, não pode o agente ser incriminado.
Como poderemos então aferir se estamos perante um crime de burla ou um “mero”
ilícito civil ?
―O que verdadeiramente distingue o dolo civil do dolo criminal, na esteira de
Chauveau e Hélie - citados por Beleza dos Santos, RLJ, Ano 76, n.º 2760, 1943, p.
275 - é que no dolo civil se compreendem as manhas e artifícios que, embora, de
per si, censuráveis, são no entanto empregados, menos com o intuito de prejudicar
outrem, do que no interesse de quem faz uso deles. É nessa categoria que se vêm a
integrar os actos mentirosos nos contratos, o exagero do preço ou das qualidades
do objecto da venda. A lei penal não atingiu essa imoralidade; o dolo criminal não
se manifesta somente pela simulação, pela manha, pois na burla procura-se
enganar, enredar, prejudicar terceiros. A astúcia é algo que acresce à mentira, à
dissimulação, ao silêncio, com carácter artificioso, reforçado habilmente com
factos, atitudes e aproveitamento de circunstâncias que a tornem particularmente
credível. ―53
A doutrima e a Jurisprudência propõem alguns indicadores distintivos54
- quando há a intenção ab initio do agente em não cumprir a sua contraprestação da
obrigação como refere JÚLIO MIRABETE 55 ( manual de direito penal II, 19º edição pp
297,298 )
- quando é ultrapassado o risco permitido socialmente.
- quando há uma intenção de obter um lucro ilegítimo e não o mero lucro de um negócio
– no mundo dos negócios é aceitável que a diligência de uns, ou a impreparação de
53
Transcrição de “Apontamentos do CEJ”
54
Acórdão STJ de 08-11-2007 ( SIMAS SANTOS )
(…) 8 - Há fraude penal:
1. quando há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico:
2. quando se verifica dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um
perigo social, mediato ou indirecto;
3. quando se verifica um violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige
como única sanção adequada a pena;
4. quando há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura,
má fé, mise-en-scène para iludir;
5. quando há uma impossibilidade de se reparar o dano; - quando há intuito de um lucro ilícito e
não do lucro do negócio
55
Obra citada nos apontamentos de aluno do CEJ
22
23. outros possa fazer pender mais para um lado que para outro, é assim que funciona a
economia
―O enriquecimento obtido pelo agente à custa dos sucessivos erros cometidos por
falta de diligência e/ou má organização da entidade bancária lesada elide o crime
de burla: não há erro nem engano quando o queixoso não procede com a diligência
mínima que lhe é exigível no tráfego comercial.‖56
- quando a intensidade ou gravidade não são de tal forma que só uma sanção penal
restabelece o equilíbrio
- quando um homem médio seria de igual forma induzido em erro ou engano.
- quando há a impossibilidade de reparar o dano
Para elucidar sobre as diferentes soluções de um facto, vamos partir de uma situação
base da celebração de um contrato, e que conforme a conduta do sujeito infractor, se
poderá subsumir num facto ilícito penal, civil ou mesmo dentro dos limites da licitude.
O dolus bonus, a simples argúcia e inteligência de uma parte de um negócio e a
impreparação ou falta de diligência da outra parte, é afinal a razão do sucesso
empresarial, mas esta argúcia está ainda dentro do que é aceite pela comunidade, e nem
sequer é ilicito civil.
No entanto, esta actuação pode consubstanciar um dolus malus, quando ultrapassa os
limites da aceitação dos usus do trafico do comércio.
Proponho que analisemos algums situações elucidativas
Vejamos uma situação que consoante as circunsatâncias pode nem ser um ilícito civil,
pode ser um ilícito civil ou mesmo um ilícito penal.
É diferente, se eu pergunto a um vendedor se o carro é bom e económico e ele me
responde que sim, eu compro o carro e depois venho a constactar que afinal gasta
imenso combustivel e faz barulho por todos os lados. Não o posso incriminar, nem
sequer resolver o contrato, ou pedir indemnização, os nossos conceitos de bom e
económico podem ser diferentes, e competia-me a mim ser minimamente diligente e
fazer outras perguntas.
Mas pelo contrário, se eu pergunto ao vendedor se é económico e quanto consume aos
100Km e ele me diz que gasta apenas 5 litros e afinal gasta 8 litros, trata-se agora de um
ilicito civil, passivel de resolução do contrato e eventual indemnização, ( teoria da
diferença57 ) se provar que houve dolo malus da parte do vendedor, e que tive prejuizo.
Mas ainda diferente é a situação em que o vendedor, com o intuito de me convencer que
o motor está em bom estado, usa lubrificantes que ocultam o real estado do motor, por
exemplo, reduzindo o número de km, e eu convencido que o carro tinha aqueles km, e
só assim o comprar, afinal, uns dias depois o motor manifesta problemas graves e
56
Acórdão do TRP, de 02-12-2010, RP201012028861/07.6TDPRT.P1
57
A diferença entre o que eu gastei a mais entre o que o vendedor disse que gastava e o que eu gastei de
facto )
23
24. dirigindo-me a uma oficina eles garantem que aquele motor terá mais do dobro dos km
que indica. Aqui, deixa de ser argúcia, ou um dolus malus ainda dentro do ilicito civil
mas já subsumível no ilicito penal.
Num contrato de compra e venda de um automóvel, o vendedor comporta-se como se
fosse o representante do proprietário, iniciando e intervindo activamente nas
negociações para a venda do veículo, e celebra um contrato de promessa de compra e
venda, como sócio gerente da sociedade que no contrato declara ser a proprietária do
referido bem.
A representação é um instituto de direito civil, e pode ser voluntária, previsto e regulado
no código civil pelos art.ºs 262º e ss do CC. O contrato promessa também, nos art.ºs
410º e ss do CC do mesmo código, e desde que cumpridos os pressupostos, são
negócios jurídicos licitos.
1. O vendedor afinal não é representante, e de má fé agiu como se o fosse, muito
embora nunca tivesse dito expressamente que era o representante, mas
comportou-se como se fosse o proprietário do bem, através de actos
concludentes, e que o comprador só podia concluir que o vendedor era de facto o
proprietário e agiu sempre como se fosse o gerente da sociedade proprietária, e
que por consequência tinha poderes de disposição sobre esse bem patrimonial, e
por isso lhe entregou uma verba a título de sinal.
Ou seja, os actos tiveram a mesma força de declarações expressas.
O comprador entrega várias verbas, a título de sinal com o contrato promessa e
depois como pagamentos por conta do negócio.
Ora o vendedor sabia que não era o representante, que não podia celebrar o
negócio e mesmo assim, induziu em erro o comprador através do seu
comportamento, que lhe possibilitou locupletar-se de verbas entregues pelo
comprador, que só o fez convencido de que estava a tratar com o proprietário.
Não restam dúvidas que a conduta do vendedor se subsume no crime de burla, pois
estão preenchidos os requisitos do art.º 217º CP ( e eventualmente 218º se preenchidos
os pressuposto do art.º 202º), uma conduta astuciosa realizada através de actos
concludentes, essa conduta determinou o erro do sujeito passivo, que por consequência
directa desses actos pratica actos que lhe causam prejuizo patrimonial, havendo pois
objectivamente uma conduta astuciosa, um duplo nexo de causalidade, o prejuizo
patrominial, e subjectivamente a intenção do agente de enriquecer ilicitamente.
2. Vamos agora supor que o vendedor até era o representante legal da sociedade
proprietária, mas omite ao comprador que sobre o veículo recaia uma garantia
real, uma hipoteca, e que o preço contratado não o fazia prever, resultando que o
comprador estava em erro quanto a esse facto, disposto a pagar o preço pedido, e
tendo feito entregas no pressuposto do bem livre de ónus e encargos, pois nunca
lhe passaria pela cabeça que o automóvel tivesse uma hipoteca.
O vendedor não esclarece o comprador, omitindo intencionalmente uma informação
crucial para o negócio, tendo desde o início a intenção de enriquecer ilicitamente, pois
sabendo da situação do bem, foi recebendo verbas que ultrapassavam o seu efectivo
valor. Neste caso, o crime de Burla consuma-se por omissão.
24
25. 3. Imaginemos que o vendedor é o proprietário do veiculo, e que o veículo está
livre de ónus ou encargos. O comprador pergunta ao vendedor se o carro é
económico, ao que o vendedore responde que sim. O comprador adquire o bem e
vem a constactar que afinal gasta mais de 10 litros ao 100 km.
Neste caso, não há ilicito nenhum, nem sequer civil, pois o conceito de “económico”
depende de quem interpreta e depende até do tipo de veículo. Por exemplo, para um
veiculo de alta cilindrada, 10 litros aos 100 km é económico , mas para um veículo
utilitário é um consumo não “económico”
4. Imaginemos agora que o comprador pergunta para além do facto de ser
económico quanto gasta aos 100km, ao que o vendedor afirma que “não chega a
gastar os 6 litros, e afinal o comprador vem a constactar que gasta mais de 8.
Aqui já entramos na ilicitude da conduta do vendedor, que por declaração expressa
induziu o comprador em erro e que por isso comprou o veículo.
Esta ilicitude para além de civil é penal, e subsume-se no tipo de burla comum.
5. Se o comprador acha que o veículo tem um motor de 110 CV e dá a entender ao
vendedor que acha que o veículo tem essa potência e o vendedor, sabendo que
não tem e nada diz, mantendo o comprador em erro, com a intenção de vender o
carro e obter assim uma comissão mais elevada por vender o bem por um preço
mais alto do que deveria vender, caso o comprador continuasse interessado num
veículo de potencia mais baixa.
Não é um mero ilícito civil, é também um ilicito penal, uma burla por omissão. O
vendedor estava numa das posições de dever de garante e devia informar o comprador.
6. Mas se o vendedor, também não sabia a potencia do veículo, mas deveria sabê-
lo, ou seja, omite essa informação.
Aqui já não é um ilícito penal, nem um ilicito civil, mas que deve ser reparado58
7. Se pelo contrário a omissão se deve a culpa do vendedor, estamos perante um
acto ilicito civil, que gera responsabilidade delitual previsto no art.º 483º CC
58
ARTIGO 486.º CC - Omissões
As simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros
requisitos legais, havia, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido.
25
26. CONCLUSÕES I
Sendo a Burla um crime de resultado, nada impede, à partida, que possa ser cometido
por omissão e o facto de também ser um crime de execução vinculada, é de defender a
posição de que dependendo das circunstâncias o desvalor da omisão equivale ao
desvalor da acção, cumpridos os requisitos do rt.º 10º CP, sendo de indiscutível
relevância a exigência do especial e pessoal dever de garante que tem de recair sobre o
omitente para que esse desvalor da omissão na Burla possa equivaler so desvalor da
acção.
Certo é que o desvalor da acção seja ético-socialmente censurável, ou seja, axiológico-
penalmente relevante, para que no caso da Burla possa ser equiparada à acção.
Os argumentos contrários relativos a supressão pelo legislador do termo
“ aproveitamento”; da execução vinculada do cometimento do crime de Burla, que no
entender dessa Doutrina só pode ser realizada por um faccere ou acto positivo; e da
inclusão da execução vinculada na ressalva da parte final do art.º10 CP, são rebatidos de
forma sustentada, sendo também tendencialmente esta a posição da Jurisprudência.
1º porque o que o Legislador pretendeu ao retirar o termo “Aproveitamento”, foi afatsar
a possibilidade do cometimento por omissão por qualquer pessoa, o que significaria que
não seria necessário o art.º 10º, possibilitaria que qualquer pessoa se aproveitasse do
erro, e não apenas aquelas específica pessoas obrigadas ao dever de garante. O crime de
Burla por omissão é um crime específicco.
2º porque a execução vinculada não pode estar incluída na ressalva da parte final do nº1
do art.º 10º CP, se assim fosse então outros crimes de execução vinculada que se aceita
pacificamente que possam ser cometidos por omissão, também não poderiam ser
cometidos por omissão.
3º porque nem todos os tipos de crime de Burla são refráctários à omissão, e o
argumento de que o crime de Burla é refractário, apenas é válido para a Burla
Informática e a Burla Tributária, estes sim, exigem acto positivos do agente.
4º Quanto à questão de que a Astúcia só se exprime por acção, é um argumento que não
tem sustentabilidade. A própria omissão, o omittere, em si pode ser uma forma de
Astúcia, o silêncio pode ser afinal uma forma de ocultar o dolo da conduta e o dolo
específico da intenção de enriquecer ilegitimamente. É este um silêncio doloso.
Para além da omissão, e também contrariando a posição dos avessos à admissibilidade,
há condutas que preenchem o tipo através de actos não omissos mas concludentes, e são
até característica do tipo de crime previsto no art.º 220º59, actos que têm um significado
equivalente ao faccere, pois têm um equivalente e inequivoco significado atribuido pela
sociedade, resultante da experiência, dos usus e da convivência em sociedade.
Não deixando de ser complexo, é possível estabecer alguns critérios seguros de
distinção entre o ilícito civil e o ilícito penal.
59
Mas não só.
26
27. Posição tomada
A conduta pode ser astuciosamente omissiva e ocultar o dolo da conduta e o dolo
específico da intenção de enriquecimento, e os argumentos da doutrina que pugna pela
inadmissibilidade da Burla por omissão são contrariados.
Embora não seja uma posição unânime, mas tendencialmente maioritária, seja pela
Doutrina seja pela Jurisprudência, é também meu entendimento que nalgumas
circunstâncias o crime de Burla pode ser cometido por omissão, salvo a Burla
Informática, prevista no art.º 221º CP, e a Burla Tributária, crime previsto D/L 140/95
de 14 de Junho, no que no meu entender são refractários à omissão
A não ser assim, por punir ficariam demasiadas condutas omissivas, e aqueles que
enriqueceriam iligitimamente à custa do prejuízo de outrem por lhes ter criado ou
mantido um erro que os determinou a praticar actos de disposição que os prejudicam.
Defendo que é de se entender como a mais correcta, a posição que pugna pela admissibilidade
da Burla cometida por Omissão
27
28. CAPITULO II
―(…) A inverosímil ingenuidade do ofendido não pode constituir desculpa para o
agente (…)
Caracterização da Burla
Interessa fazer uma breve incursão sobre o crime de Burla quanto aos seus aspectos
gerais e essenciais.
Na Doutrina do Comentário Conimbricense do Código Penal, o crime de Burla simples,
previsto no artº 217.º CP é classificado como um crime de execução vinculada, de dano,
de resultado parcial ou cortado.
«Com os seus variadíssimos processos, a fraude é bem o atestado do poder de
inventiva e perspicácia do homo sapiens. Tem espécies e subespécies, padrões
clássicos e expedientes de acaso. Há a fraude reconhecível a olho nu como
infracção penal e a parva calliditas, que se abriga à sombra de uma proclamada
naturalis licentia decipiendi. Há a fraude corriqueira dos clientes habituais da
prisão e a fraude subtil daquela gente que sabe tangenciar a lei penal e constitui a
legião dos "criminosos astutos e afortunados" de que nos conta FERRIANI»
(Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal, VII, pág. 168)60.
O bem jurídico
Sistematicamente, no nosso Código Penal, o crime de Burla, está tipificado no artº
217º61, e aparece-nos como o primeiro dos crimes contra o património em geral.
Não sendo objecto deste trabalho uma discusão sobre o concepção mais correcta de
património para efeitos de prejuizo patrimonial, não nos vamos debruçar sobre a
discussão dos diferentes conceitos 62 , vamos desde já assumir o conceito jurídico
económico.
Apesar de não haver unanimidade quanto ao conceito de património, no entanto a
maioria esmagadora da doutrina é pois o património no seu conjunto
60
HUNGRIA citado por SIMAS SANTOS no Acórdão d2 03-02-2005, SJ200502030047455
61
Artigo 217.º
Burla
1 — Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro
ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe
causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou
com pena de multa.
2 — A tentativa é punível.
3 — O procedimento criminal depende de queixa.
4 — É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 206.º e 207.
62
Como breve referência: O conceito económico como a soma de todos os bens avaliáveis em dinheiro
depois de subtraídas as dívidas. O conceito jurídico como Conceito jurídica: “soma de todos os seus
direitos e obrigações patrimoniais” ( BINDING ). Prejuízo patrimonial neste caso seria a perda de direitos
28
29. Nas palavras de CATARINA ALEXANDRA AMARAL DA COSTA63, o conceito económico-
jurídico de património, traduz-se no conjunto de todas as situações e posições com valor
económico detidas por uma pessoa ( individual ou colectiva ). De fora deste conceito
estão as situações que sendo lícitas enquanto puramente económicas o não são em
termos penais, ou seja, é inaceitavel que o direito penal tutelasse situações que apesar de
envolver uma vantagem económica são ilícitas.
Está pois posta de parte a ideia de que o bem protegido na Burla seria a Confiança, a
Boa Fé, ou mesmo a Verdade.
Neste sentido o acórdão da Relação do Porto de 15 de Outubro de 200764
―O bem jurídico protegido é o património, apontando a generalidade da doutrina
contemporânea no sentido da consagração de um específico conceito económico-
jurídico que reconduz o património ao conjunto de todas as «situações» e
«posições» com valor económico, detidas por uma pessoa e protegidas pela ordem
jurídica ou, pelo menos, cujo exercício não é desaprovado pela ordem jurídica
patrimonial[2]. Esta concepção implica a limitação dos bens e direitos patrimoniais
aos economicamente avaliáveis e exige, por outro lado, que sejam possuídos pelo
sujeito por causa de uma relação reconhecida pelo ordenamento jurídico.
Não se adere, portanto, às concepções que, de forma isolada ou em conjunto com o
património, reconduzem o bem jurídico da burla à lealdade, transparência, boa fé
ou verdade nas transacções ou, numa outra perspectiva, à confiança da
comunidade nessa mesma lealdade, transparência, boa fé ou verdade das
transacções.‖
Na Burla Informática, prevista no art.º 221º CP, para além do bem jurídico património é
a integridade patrimonial.65, os programos informáticos, o respectivo processameto e os
dados, na sua fiabilidade e segurança.66
. ―IX - O bem jurídico protegido é essencialmente o património: o crime de burla
informática configura um crime contra o património, por comparação e delimitação
relativamente aos bens jurídicos protegidos em outras incriminações, referidas à
tutela de valores de natureza patrimonial ou de protecção da própria
funcionalidade dos sistemas informáticos (cf. José de Faria Costa e Helena Moniz,
Algumas reflexões sobre a criminalidade informática em Portugal, in BFDUC, Vol.
LXXIII, 1997, págs. 323-324‖
Diferente dos crimes contra a propriedade, pois estes são crimes em que há
desapossamento do bem do detentor da posse e a integração na esfera patrimonial do
agente. Na Burla tem de haver o prejuízo patrimonial que é um elemento do tipo de
crime, a vítima tem de ver o seu património lesado, ou por diminuição do activo ou
aumento do passivo, é pois uma concepção juridico-económica.
63
CATARINA ALEXANDRA AMARAL DA COSTA, auditora de Justiça no âmbito do XXIV Curso de
Formação de magistrados, para a área Penall II- 1ª fase de formação
64
TRP, de 15-10-2007, recurso penal nº 3325/07 – 4ª secção
65
Acórdão do STJ de 06-10-2005
66
Acórdão do TRC de 10-06-2005
29
30. Execução Vinculada
A Burla é um crime de execução vinculada na medida em que os actos de disposição
têm que ser motivados por erro ou engano que o agente astuciosamente provocou.
Daqui decorre desde logo uma característica essencial, que distingue de outros crimes,
por exemplo o furto, é que é a própria vítima que, em erro ou engano, dispõe do bem,
sendo que o erro ou engano é uma consequência causal da conduta do agente, e a
disposição do bem por parte da vítima é uma consequência directa desse erro. É o
agente que determina a vítima a praticar actos der disposição, que se não estivesse em
erro nãos os praticaria.
De execução vinculada porque a ofensa ao bem jurídico decorre como consequência de
uma determinada forma de comportamento, não um qualquer, é o tipificado na norma, e
que em termos sintéticos se traduz na utilização pelo agente de um meio enganoso que
visa provocar no sujeito passivo uma falsa percepção da realidade, e que por
consequência dessa falsa percepção provocada pelo agente, o sujeito passivo é levado a
praticar actos que resultam em prejuízo para si ou paa terceiro.
Por outras palavras, não basta um meio enganoso, é necessário que o sujeito passivo
pratique actos por consequência desse meio enganoso, ou seja, o meio em que ser apto
ou idóneo a causar no sujeito passivo um estado de falsa representação da realidade, e
que só por ter a intervenção do agente ele os pratica e que de outro modo os não
praticaria.
Crime de Resultado Cortado
É um crime de resultado, uma vez que o tipo legal nos exige um prejuízo patrimonial,
mas é um resultado cortado ou parcial, como se esclarece neste trabalho.
Também assim é entendido pela Jurisprudência, por exemplo;
―O crime de burla é um crime de dano, que se consuma quando existe um prejuízo
efectivo no património do sujeito passivo, mas também de resultado, pois apenas se
consuma com a saída do valor da esfera patrimonial do sujeito passivo,
consubstanciada num prejuízo efectivo‖67
De resultado parcial ou cortado porque se caracteriza por um lado, pela incongruência
entre o tipo objectivo e subjectivo, ou seja, a burla consuma-se independentemento de o
elemento subjecivo de intenção de enriquecimento iligítimo por parte do agente não se
concretizar, o que é determinante é o empobrecimento da vítima.
Neste sentido o Acórdão;
― I - O crime de fraude fiscal é um crime de resultado cortado, pois não é
necessário que o resultado seja alcançado, bastando que o agente tenha em mente
consegui-lo.
67
Acórdão do TRG de 6 de Janeiro de 2010
30
31. Elementos constitutivos do crime de Burla
Sem nos debruçarmos profundamente sobre a discussão quanto à definição de cada um
dos elementos constitutivos, ou sobre o significado de astúcia, erro, ou prejuízo
patrimonial, pois não é essa a tarefa a que nos propomos, do texto da norma do artº 217º,
ressalta desde logo que no crime de Burla há quatro elementos objectivo constitutivos
do tipo e dois elementos subjectivos;
―Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo,
1
# por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou,
2
# determinar outrem à prática de actos
3
# que lhe causem, ou causem a outra pessoa,
4
# prejuízo patrimonial (…).´
Uma primeira nota sobre a obtenção do enriquecimento ilegítimo para o agente ou
terceiro.
Há uma incongruência entre o tipo objectivo e o tipo subjectivo, pois neste exige-se
quer o dolo de prejudicar a vítima quer o de enriquecimento, no entanto podemos ter um
crime de burla consumado ainda que não tenha existido o enriquecimento do agente,
pelo que o tipo subjectivo é mais abrangente que o objectivo, pois basta a intenção de
enriquecimento.
dois elementos subjectivos.
O dolo da conduta e a intenção de enriquecimento que é um dolo específico. Basta a
intenção de enriquecimento e não que esse enriquecimento se verifique.
Este dolo da conduta respeita a todos os quatro elementos objectivos do tipo. Não se
vislumbra como possível que alguém cometa o crime de Burla de forma negligente.
Acontecendo um prejuizo patrimonial nestas circunstâncias, quando muito pode levar a
responsabilidade civil, por exemplo de restituição ou reposição, mas nunca ao crime de
burla. Por outro lado, a não existência de dolo num dos elementos afasta a tipicidade do
crime de Burla, o mesmo é dizer que por exemplo não basta ter a intenção de enriquecer
iligitimamente e ter dolo quanto a querer prejudicar outrém se não tem dolo no seu
comportamento.
O dolo específico – a intenção de enriquecimento
O tipo subjectivo do crime de burla ainda prevê um dolo específico, um elemento
subjectivo específico, que é a intenção de enriquecimento ( FERNANDA PALMA ) , Este
dolo de intenção de enriquecimento não se confunde com o dolo intencional, pois este
corresponderia ao enriquecimento do agente, mas o que o tipo objectivo nos diz é que
basta a intenção de enriquecimento, e não que o agente enriqueça, por outras palavras,
31
32. pode um facto subsumir-se num crime de burla e o agente não ter enriquecido 68 ,
consumando o crime de Burla. Mesmo assim consumado pois o que é determinante para
a consumação, é bom de ver, é a produção do prejuízo patrimonial do sujeito passivo,
ou sujeitos passivos, pois o prejudicado tanto pode ser o burlado, como terceiro, ou os
dois. Sendo que havendo uma pluralidade de vitimas resultantes do mesmo acto do
agente/omitente, estamos perante um só crime de burla.
O crime de Burla exige pois um dolo específico de intenção de enriquecimento,
bastando quanto a este elemento a intenção, não é necessário que o agente ou omitente
enriqueça.
Neste sentido já o Acórdão do Tribunal Constitucional de 15 de Dezembro de 199969, e
mais o mais recentemente, por exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa,
de 6 de Fevereiro de 200870
―4. Acresce que o tipo exige ainda dolo específico o que faz com que, na ausência
de intenção de enriquecimento, não resulte que exista o crime do art. 217.º n.º 1 do
C. Penal.‖
Quanto aos elementos objectivos:
1º Astúcia – “ (…) que astuciosamente provocou (…)
Esta astúcia não se refere à capacidade individual do agente, mas a actos exteriorizados
pelo agente. Na realidade não tem a ver com a inteligência do agente, ou com a
imprudência da vítima. Um mentecapto instruído por outro com experiência no facto,
tem o mesmo resultado, é pois a conduta em si que é astuciosa, e que tem que ser
necessariamente idónea para produzir o erro ou o engano.
Neste sentido, por exemplo, o Acórdão do STJ de 8 de Novembro de 200771, no seu
ponto 8 do sumário.
Não é pois uma atitude psicológica mas um modo de ser objectivo da acção. É pois um
dolo específico, é o agente que tem o domínio da situação de erro.
Tem que ser idónea, como referi, mas no entender de alguma doutrina 72 basta uma
simples mentira, desde que a vítima não tenha a possibilidade de ver esclarecida antes
de se prejudicar.
Mas se o ardil for de tal forma claro para a hipotética vítima, que esta se aperceba da
intenção do agente, e mesmo assim decidir agir, não há burla
Resta saber se esta astúcia tem que ser uma acção ou pode ser uma omissão
68
Poderiamos ir um pouco mais longe e questionarmo-nos se o agente não tem intenção se enriquecer
ilegítimamante, mas apenas pretender o prejuízo da vítima ou de terceiro, estaremos ainda no âmbito do
crime de Burla?
69
Acórdão do Tribunal Constitucional nº674/99 de 15 de Dezembro de 1999
70
71
Acórdão do STJ, SJ200711080032965
72
MARQUES BORGES, “ crimes contra o património em geral”, in “apontamentos do CEJ”
32
33. A Doutrina divide-se, uma, sustentada essencialmente pelo facto de que a Burla é uma
forma vinculada de crime, deve ser afastada a omissão.
FERNANDA PALMA entende que a Burla não cabe no artº 10º mas apenas na parte final
do artº 10º , que remete para os caso previstos na lei.
SOUSA E BRITO entende, e que a maioria da Doutrina e Jurisprudência defende, que pode
ser cometido por omissão, mas uma comissão por omissão nos termos do artº 10º, ou
seja, se sobre o autor impende um dever de garante, e que a omissão provoque na vítima
o erro ou engano, determinando-a a praticar a disposição, porque se convence de uma
realidade que não corresponde à verdade, e que decorre da conduta do agente, seja por
acção seja por omissão. Não é pois uma qualquer omissão, mas uma omissão com um
significado social inequívoco.
Mas a Astúcia não se consubstancia apenas num acto positivo 73 , neste sentido os
Acórdãos do STJ de 18 de Junho de 2008 ( a omissão como astúcia ) e 29 de Fevereiro
de 1996 ( o silêncio como astúcia )
2º por meio de erro ou engano
O agente provoca na vítima uma representação de uma realidade que não corresponde à
verdade. Esta falsa realidade tem que ter sido provocada astuciosamente, ou seja, a
conduta do agente teve que ser idónea a produzir o erro na vítima.
Não se trata de uma conduta dentro do risco permitido no mundo dos negócios, mas o
agente teve que criar ou aumentar um risco não permitido, que o levou a praticar o acto
de disposição patrimonial, que de contrário o não praticaria.
Actos concludentes
São condutas idóneas a provocar uma falsa representação da realidade. PAULO PINTO DE
ALBUQUERQUE diz-nos que estes actos “ são aqueles que têm um sentido social
inequivoco, que não corresponde à vontade do agente do crime, mas que ele aproveita
para enganar o burlado”74
ALMEIDA COSTA dá o exemplo do contrato e que nos leva a uma nova questão que é de
saber quando uma conduta omissiva é penalmente relevante ou um mero ilícito civil75.
―A assunção de uma obrigação contratual comporta, de forma concludente, o
significado adicional de que o indivíduo se encontra na disposição de cumpri-la,
pelo que, faltando esta última, se depara com um crime de burla.‖ (…) ―Assim, na
órbita da conclusão de um contrato, se uma das artes se abstiver de declarar que
não se encontra em condições de o cumprir, comete burla por actos concludentes,
uma vez que a celebração de um negócio leva implicada a afirmação de que
qualquer dos intervenientes tem a possibilidade de satisfazer as obrigações dele
emergentes.‖
73
Vide supra página 16 e 17
74
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE “ Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e
da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Univ. Católica Editora, Lisboa, 2008, p. 599, 600
75
Já nos debruçamos sobre esta questão no Capítulo I
33
34. No fundo o que é importante é que esses meios sejam aptos ou idóneos a induzir a
vítima em erro ou engano. Neste sentido por exemplo os acórdão do STJ de 18 de Junho
de 2008, e STJ de 8 de Novembro de 200776
3º e 4º. prática de actos de disposição que causem prejuízo e o prejuízo
É a própria vitima num segundo momento, que pratica os actos que causem prejuízo a si
ou a outrem. se assim não fosse estariamos perante um crime de furto e não de burla.
O sujeito passivo pratica os actos de disposição porque tem uma falsa representaçao da
relaidade causada pelos actos do agente, ou porque estando em erro, o agente o não
libertou dessa falsa representação da realidade. Os actos como entende FERNANDA
PALMA77, tanto podem ser de disposição como de administração.
O prejuízo tanto pode ser um acto de disposição, pode ser uma renúncia a um crédito.
No fundo o que está em causa é o empobrecimento do lesado78.
Não tem de haver coincidência entre a vítima do erro e a vítima da burla, o lesado
patrimonialmente, o que é necessário é que a vitima do erro ou engano tenha poder de
disposição sobre o património lesado79, sendo que este poder basta que seja um poder de
facto e não jurídico.
Duplo nexo de imputação
Decorre ainda da norma que temos dois momentos; um a actuação do agente, que
através de astúcia, provoca ou mantém o erro ou engano na vítima; num outro momento
é a própria vítima que determinada pelo erro ou engano pratica actos que o prejudicam
ou a terceiro. Por outro lado tem que haver uma relação causal entre os dois momentos,
a actuação do agente/ omitente e a da vítima, ou seja, a vitima tem que ser determinda
pela conduta do agente. Há por conseguinte um duplo nexo de imputação.
Por outras palavras para que se possa subsumir um facto ao crime de burla comum, tem
que haver dois resultados causados directamente por duas condutas adequadas a
produzi-los, sendo que uma conduta e o resultadao correspondente é consequência da
conduta e do resultado da primeira.
Estruturalmente a Burla, verifica-se ser um crime de relação, uma relação causal, que
envolve dois comportamentos, mas só o que causa ou mantém o erro ou engano é
punido. Assim a figura da vítima é indispensável para o iter criminis da Burla.
76
STJ de 08-11-2007, SJ200711080032965
77
FERNANDA PALMA, “O crime de burla no Código Penal de 1982-95” (com a colaboração de Rui
Pereira), in: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. 35, 1994, p. 321 a 333
78
Acórdão do TRP de 15 de Outubro de 2007, “No crime de burla a disposição que o enganado deve
fazer tanto pode consistir num fazer (realizar um pagamento) como num omitir (renunciar a um
crédito)”.
79
No caso da propriedade, vide o que nos diz FARIA COSTA, no seu comentário, sobre o crime de furto no
Comentário Conimbricense
34
35. O certo é que tem de haver um relação causal entre o engano e o acto de disposição,
Tem pois de haver num primeiro momento uma relação causal entre os meios enpregues
pelo agente e o erro e o engano, e num segundo momento entre estes e o acto de auto
lesão patrimonial, sendo certo que havendo um enriquecimento ilegítimo do agente por
consequência dos actos praticados, presume-se em abstracto, que os meios são idóneos.
Neste caso, do enriquecimento ilegítimo, já não interessa apurar se o meio é ou não
idóneo para fazer cair em erro o homem médio, de facto, a culpa da vítima não pode
constituir desculpa para o agente.
―(…) A inverosímil ingenuidade do ofendido não pode constituir desculpa para o
agente (…)―80
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Acórdão do STJ de 19 de Dezembro de 1991, BMJ 412, p. 234.
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