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O CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA E O INFANTICÍDIO INDÍGENA - ALGUMAS
                         CONSIDERAÇÕES

                                                      Eduardo Ribeiro Mundim
                                                      Médico endocrinologista
                                                          Belo Horizonte - MG

       Esta reflexão tem por objetivo analisar a seguinte questão: o atual
código de deontologia médica permite exceções baseadas em pressupostos
culturais? O pano de fundo é, na verdade, o chamado infanticídio indígena e as
questões que esta realidade pode trazer ao profissional da medicina.

       Chama-se infanticídio indígena a prática, de alguns povos no Brasil (o
que não quer dizer que inexista em outras localidades), de matar crianças,
principalmente em idade mais nova, por razões culturais: gemelaridade,
defeitos físicos congênitos, mãe solteira ou adúltera, sinais de que está
amaldiçoada, etc. Esta situação tem sido denunciada por missionários junto
aos índios1, em audiência pública na Câmara dos Deputados, por lideranças
indígenas2 e através de projeto de lei 1057, do deputado pelo PT do Acre,
Henrique Afonso (conhecido como “lei Muwaji”3). Segundo estas fontes, a
orientação do governo federal, através da FUNAI, é de que a questão diz
respeito somente ao índio, não devendo o homem branco interferir nesta
prática cultural.

        Os meios usados para matar estas crianças não são uniformes:
soterramento, envenenamento, flechada, desnutrição intencional, dentre
outros. É necessária a busca de registros históricos desta prática para melhor
compreendê-la. Ainda que a sociedade local imponha, em certas ocasiões
como detalhado, a morte infantil, nem sempre os responsáveis diretos pela
execução da mesma, normalmente os pais, a aceitam pacificamente. A não
aceitação da sentença de morte pode ser radical, preferindo o suicídio1. Há
registros abundantes mostrando que o processo de morrer é lento, sugerindo
profundo conflito de valores da tribo1.

      O Código de Deontologia Médica em vigor (CDM)4 afirma, no seu
primeiro artigo, que a medicina está a serviço do ser humano, tanto individual,
como coletivamente, e que deve ser exercida "sem discriminação de qualquer
natureza". O seu alvo, de acordo com o segundo artigo, é "a saúde do ser
humano". A sua prática, normatizada pelo sexto, define a vida como valor
absoluto ("guardar absoluto respeito pela vida humana"), sendo impossível o
uso do conhecimento médico "para gerar sofrimento físico ou moral, para o
extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua
dignidade e integridade".

      No Capítulo IV do CDM, onde os direitos humanos são tratados, é
expressa a proibição do médico em "participar da prática de tortura ou formas
de procedimento degradantes, desumanas ou cruéis", assim como é
expressamente vedada a conivência "com tais práticas ou não as denunciar
quando delas tiver conhecimento" (art. 49). A proibição vai desde a
perpetração do ato em si à participação indireta através do fornecimento de
"meios, instrumentos, substâncias ou conhecimentos" (art. 50). Não é aberta
exceção nem para a colaboração com a atividade policial (art. 52).

       O artigo 54 proíbe a participação claramente a participação direta ou
indireta na execução da pena de morte.

     O 55 veda o uso do conhecimento médico para "corromper os costumes,
cometer ou favorecer crime".

      Pelo exposto, o médico que atende a população indígena trabalha com
um grupo de seres humanos com uma determinada cultura e capacidade
tecnológica. Ele está, portanto, obrigado a cumprir na integridade o CDM, que,
como exposto, exige:
   1. a preservação da vida
   2. o atendimento à pessoa e a sua comunidade
   3. a denúncia de toda atitude contra a vida ou contra a sua dignidade

       A preservação da vida porque esta é a missão básica da medicina. Esta
missão tem seu fim natural quando a morte chega sem que seja possível
continuar adiando-a5. Missão que tem como alvo o ser humano onde quer que
ele se encontre, sem possibilidade de negar a nenhuma pessoa este direito.

       À preservação da vida de uma pessoa, o médico estará lutando,
indiretamente, pela preservação da cultura de onde ela vem. E se esta vem de
um grupamento em queda populacional, sua vida significará uma contribuição
para interromper esta tendência.

      Na prática, a preservação da vida no seio das comunidades indígenas
passa pela atividade médica em níveis distintos: a ordinária individual
(atendimento a situações particulares), a ordinária coletiva (melhoria do
padrão alimentar, p.ex.) e a extraordinária coletiva-individual (impedir, e caso
não seja possível, denunciar a morte intencional de crianças).

      O Código claramente não deixa abertura para considerações de motivos
de ordem cultural. Exige respeito pela crença, pudor, intimidade, mas não
permite ao profissional a omissão de socorro.

       O exemplo mais bem explorado é a transfusão de sangue para os
pertencentes às Testemunhas de Jeová. Por razões de fé eles entendem ser
este procedimento contrário às leis divinas, de modo absoluto. Esta oposição
tornou-se famosa, a ponto do grupo ser identificado quase que baseado
apenas nesta conduta. Frente a uma lei divina específica, como eles entendem,
a vida humana, que tem valor incomensurável (ao ponto das Testemunhas de
Jeová se recusarem a prestar serviço militar), não é superior ao mandamento.
A classe médica respondeu, até certo ponto, com algumas opções ditadas pela
tecnologia, mas não subscreveu em momento algum o direito de alguém
negar-se uma transfusão emergencial ou urgente (ou seja, em situações
extremas de risco de vida)6,7.

      O Código não é um tratado sociológico, mas um normatizador ético para
o profissional médico, que não tem a opção de não segui-lo. Portanto, o
médico que atende às populações indígenas não pode colaborar com a
execução do infanticídio (seja tornando-o mais rápido, ou indolor, seja
cometendo-o), com a sua defesa (pois a sobrevivência da tribo não mais está
em jogo) nem com seu acobertamento (já que tem a obrigação de denunciá-lo
as autoridades competentes).

      Os médicos investidos do cargo de direção também estão debaixo do
mesmo código, enquanto estiverem atuando como profissionais da medicina.
Portanto, eles estão obrigados às mesmas atitudes apontadas acima, sendo-
lhes vedado, pelo artigo 85, "utilizar-se de sua posição hierárquica para
impedir que seus subordinados atuem dentro dos princípios éticos".


Referências bibliográficas:
1. www.hakani.org/pt/
2.www.conplei.org/index.php?
view=article&id=60%3Ainfanticidio&option=com_content
3. http://crerpensar.blogspot.com/2008/07/lei-muwaji.html
4. Conselho Federal de Medicina, Código de Ética Médica, 4a edição, Brasília, DF, 1986
5. Conselho Federal de Medicina, Resolução 1826/2007, de 24/10/07, disponível em
http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2007/1826_2007.htm
6. Conselho Federal de Medicina, Resolução 1021/80, de 26/09/80, disponível em
http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/1980/1021_1980.htm
7. Conselho Regional de Medicina do Paraná, Parecer 1072/98, de 29/06/08, disponível
em http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CRMPR/resolucoes/1986/20_1986.htm

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  • 1. O CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA E O INFANTICÍDIO INDÍGENA - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Eduardo Ribeiro Mundim Médico endocrinologista Belo Horizonte - MG Esta reflexão tem por objetivo analisar a seguinte questão: o atual código de deontologia médica permite exceções baseadas em pressupostos culturais? O pano de fundo é, na verdade, o chamado infanticídio indígena e as questões que esta realidade pode trazer ao profissional da medicina. Chama-se infanticídio indígena a prática, de alguns povos no Brasil (o que não quer dizer que inexista em outras localidades), de matar crianças, principalmente em idade mais nova, por razões culturais: gemelaridade, defeitos físicos congênitos, mãe solteira ou adúltera, sinais de que está amaldiçoada, etc. Esta situação tem sido denunciada por missionários junto aos índios1, em audiência pública na Câmara dos Deputados, por lideranças indígenas2 e através de projeto de lei 1057, do deputado pelo PT do Acre, Henrique Afonso (conhecido como “lei Muwaji”3). Segundo estas fontes, a orientação do governo federal, através da FUNAI, é de que a questão diz respeito somente ao índio, não devendo o homem branco interferir nesta prática cultural. Os meios usados para matar estas crianças não são uniformes: soterramento, envenenamento, flechada, desnutrição intencional, dentre outros. É necessária a busca de registros históricos desta prática para melhor compreendê-la. Ainda que a sociedade local imponha, em certas ocasiões como detalhado, a morte infantil, nem sempre os responsáveis diretos pela execução da mesma, normalmente os pais, a aceitam pacificamente. A não aceitação da sentença de morte pode ser radical, preferindo o suicídio1. Há registros abundantes mostrando que o processo de morrer é lento, sugerindo profundo conflito de valores da tribo1. O Código de Deontologia Médica em vigor (CDM)4 afirma, no seu primeiro artigo, que a medicina está a serviço do ser humano, tanto individual, como coletivamente, e que deve ser exercida "sem discriminação de qualquer natureza". O seu alvo, de acordo com o segundo artigo, é "a saúde do ser humano". A sua prática, normatizada pelo sexto, define a vida como valor absoluto ("guardar absoluto respeito pela vida humana"), sendo impossível o uso do conhecimento médico "para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade". No Capítulo IV do CDM, onde os direitos humanos são tratados, é expressa a proibição do médico em "participar da prática de tortura ou formas de procedimento degradantes, desumanas ou cruéis", assim como é expressamente vedada a conivência "com tais práticas ou não as denunciar
  • 2. quando delas tiver conhecimento" (art. 49). A proibição vai desde a perpetração do ato em si à participação indireta através do fornecimento de "meios, instrumentos, substâncias ou conhecimentos" (art. 50). Não é aberta exceção nem para a colaboração com a atividade policial (art. 52). O artigo 54 proíbe a participação claramente a participação direta ou indireta na execução da pena de morte. O 55 veda o uso do conhecimento médico para "corromper os costumes, cometer ou favorecer crime". Pelo exposto, o médico que atende a população indígena trabalha com um grupo de seres humanos com uma determinada cultura e capacidade tecnológica. Ele está, portanto, obrigado a cumprir na integridade o CDM, que, como exposto, exige: 1. a preservação da vida 2. o atendimento à pessoa e a sua comunidade 3. a denúncia de toda atitude contra a vida ou contra a sua dignidade A preservação da vida porque esta é a missão básica da medicina. Esta missão tem seu fim natural quando a morte chega sem que seja possível continuar adiando-a5. Missão que tem como alvo o ser humano onde quer que ele se encontre, sem possibilidade de negar a nenhuma pessoa este direito. À preservação da vida de uma pessoa, o médico estará lutando, indiretamente, pela preservação da cultura de onde ela vem. E se esta vem de um grupamento em queda populacional, sua vida significará uma contribuição para interromper esta tendência. Na prática, a preservação da vida no seio das comunidades indígenas passa pela atividade médica em níveis distintos: a ordinária individual (atendimento a situações particulares), a ordinária coletiva (melhoria do padrão alimentar, p.ex.) e a extraordinária coletiva-individual (impedir, e caso não seja possível, denunciar a morte intencional de crianças). O Código claramente não deixa abertura para considerações de motivos de ordem cultural. Exige respeito pela crença, pudor, intimidade, mas não permite ao profissional a omissão de socorro. O exemplo mais bem explorado é a transfusão de sangue para os pertencentes às Testemunhas de Jeová. Por razões de fé eles entendem ser este procedimento contrário às leis divinas, de modo absoluto. Esta oposição tornou-se famosa, a ponto do grupo ser identificado quase que baseado apenas nesta conduta. Frente a uma lei divina específica, como eles entendem, a vida humana, que tem valor incomensurável (ao ponto das Testemunhas de Jeová se recusarem a prestar serviço militar), não é superior ao mandamento. A classe médica respondeu, até certo ponto, com algumas opções ditadas pela tecnologia, mas não subscreveu em momento algum o direito de alguém
  • 3. negar-se uma transfusão emergencial ou urgente (ou seja, em situações extremas de risco de vida)6,7. O Código não é um tratado sociológico, mas um normatizador ético para o profissional médico, que não tem a opção de não segui-lo. Portanto, o médico que atende às populações indígenas não pode colaborar com a execução do infanticídio (seja tornando-o mais rápido, ou indolor, seja cometendo-o), com a sua defesa (pois a sobrevivência da tribo não mais está em jogo) nem com seu acobertamento (já que tem a obrigação de denunciá-lo as autoridades competentes). Os médicos investidos do cargo de direção também estão debaixo do mesmo código, enquanto estiverem atuando como profissionais da medicina. Portanto, eles estão obrigados às mesmas atitudes apontadas acima, sendo- lhes vedado, pelo artigo 85, "utilizar-se de sua posição hierárquica para impedir que seus subordinados atuem dentro dos princípios éticos". Referências bibliográficas: 1. www.hakani.org/pt/ 2.www.conplei.org/index.php? view=article&id=60%3Ainfanticidio&option=com_content 3. http://crerpensar.blogspot.com/2008/07/lei-muwaji.html 4. Conselho Federal de Medicina, Código de Ética Médica, 4a edição, Brasília, DF, 1986 5. Conselho Federal de Medicina, Resolução 1826/2007, de 24/10/07, disponível em http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2007/1826_2007.htm 6. Conselho Federal de Medicina, Resolução 1021/80, de 26/09/80, disponível em http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/1980/1021_1980.htm 7. Conselho Regional de Medicina do Paraná, Parecer 1072/98, de 29/06/08, disponível em http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CRMPR/resolucoes/1986/20_1986.htm