SlideShare a Scribd company logo
1 of 9
Download to read offline
POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES DE HUSSERL E HEIDEGGER PARA A CLÍNICA
                             FENOMENOLÓGICA
                                                                                                                               *
                                                                                                              Virginia Moreira

RESUMO. Este artigo tem como objetivo descrever as possíveis contribuições das filosofias de Edmund Husserl e Martin
Heidegger para o desenvolvimento de uma clínica fenomenológica. Reconhece-se que Husserl, com sua Psicologia
Fenomenológica, inaugura uma psicologia da subjetividade que pode servir de base para a clínica fenomenológica. O artigo
também discute as contribuições e possíveis limitações das propostas clínicas de Ludwig Binswanger e Medard Boss, que
procuram fundamentar-se na Analítica do Dasein de Heidegger, e propõe a fenomenologia existencial de Merleau-Ponty, que
retoma o último pensamento de Husserl tendo como fio condutor o conceito de Lebenswelt, como um caminho fecundo para
a clínica fenomenológica.
Palavras-chave: Husserl; Heidegger; clínica psicológica.




       HUSSERL´S AND HEIDEGGER´S POSSIBLE CONTRIBUTIONS TO CLINICAL
                            PHENOMENOLOGY

ABSTRACT. This article aims to describe the possible contributions of Edmund Husserl´s and Martin Heidegger´s
philosophies to the development of a phenomenological clinic. It recognizes that Husserl, with his Phenomenological
Psychology, inaugurates a psychology of subjective, which may serve as basis to the phenomenological clinic. It
discusses the contributions and possible limitations of Ludwig Binswanger´s and Medard Boss’s clinical proposals,
which aim to be funded on Heidegger´s Analytic of the Dasein. It suggests Merleau-Ponty´s existential
phenomenology, which retakes last Husserl’s thought having as conducting wire the concept of Lebenswelt, as a
fecund way to the phenomenological clinic.
Key words: Husserl; Heidegger; psychological clinic.




    POSSIBLES CONTRIBUCIONES DE HUSSERL Y HEIDEGGER PARA LA CLÍNICA
                           FENOMENOLÓGICA

RESUMEN. Este artículo tiene como objetivo describir las posibles contribuciones de las filosofías de Edmund Husserl y
Martin Heidegger para el desarrollo de una clínica fenomenológica. Reconoce que Husserl, con su Psicología
Fenomenológica, inaugura una psicología de la subjetividad, que puede servir de base para la clínica fenomenológica. Discute
las contribuciones y posibles limitaciones de las propuestas clínicas de Ludwig Binswanger y Medard Boss, que se proponen
a tener como fundamentó la Analítica del Dasein de Heidegger. Sugiere la fenomenología existencial de Merleau-Ponty, que
retoma el pensamiento del último Husserl teniendo como hilo conductor el concepto de Lebenswelt, como un camino fecundo
para la clínica fenomenológica.
Palabras-clave: Husserl; Heidegger; clínica psicológica.



    Ainda que encontremos referências ao termo                           fenomenologia, tal como hoje a entendemos, foi
fenomenologia em pensadores do século XVIII - como                       proposta inicialmente por Edmund Husserl (1859-
Lambert (1728-1777), Kant (1724-1804) e Fichte                           1938) no fim daquele século como um novo método
(1762-1814) - ou mesmo na famosa obra de Hegel                           de fazer filosofia, uma tentativa de trazer a filosofia
Fenomenologia do Espírito, no início do século XIX a                     das especulações metafísicas abstratas para o contato


*
    Doutora em Psicologia Clinica, Pós-Doutora em Antropologia Médica (DSM-HARVARD), Professora Titular da Universidade
    de Fortaleza.



Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010
724                                                                                                                     Moreira

com os problemas reais, com a experiência vivida e                                      HUSSERL (1859-1938)
concreta. Inspirada na Psicologia Descritiva de Franz
Brentano (1838-1917), que foi professor de Husserl, a                    Do Idealismo Transcendental à Psicologia
fenomenologia foi desenvolvida por sucessores deste,                     Fenomenológica
tornando-se uma das grandes correntes filosóficas do                          Tal como originalmente formulada na Alemanha
século XX (Moran & Mooney, 2002).                                        por seu fundador Edmund Husserl (1859-1938), a
     A fenomenologia (do grego phainesthai, aquilo                       fenomenologia pode inicialmente ser caracterizada
que se apresenta ou que se mostra, e logos, explicação,                  como o estudo descritivo “despreconceituoso” (no
estudo) afirma a importância dos fenômenos da                            sentido da palavra de “sem um conceito prévio”) do
consciência. Mais que um método, ela deve ser                            que aparece na consciência, precisamente na maneira
considerada um movimento de pensadores                                   como aparece. “A discussão de intencionalidade de
extraordinários, alguns deles assistentes pessoais de                    Brentano inspirou Husserl, que viu nela a
Husserl, como Edith Stein, Martin Heidegger, Eugene                      possibilidade de uma ciência da consciência pura,
Fink e outros como Max Scheler e Karl Jaspers, que                       removida de construções causais e naturalísticas“
desenvolveram outras ideias em fenomenologia, em                         (Moran & Mooney, 2002, p. 12).
contato direto ou em paralelo ao pensamento de                                Segundo o slogan do próprio Husserl (1985), a
Husserl na Alemanha. Levada para a França por                            fenomenologia tem como objetivo “voltar às coisas
Emmanuel Lévinas, com a tradução para o francês de                       mesmas”, sendo, em primeira instância, descritiva,
Meditações Cartesianas (1931), a fenomenologia teve                      buscando clarificar temas despojados de conceitos
aí um desenvolvimento próprio através do pensamento                      preconcebidos, tal como aparecem. Husserl fala com
de Maurice Merleau-Ponty, Jean Paul Sartre, Simone                       frequência de descrição fenomenológica como
de Bauvoir, Paul Ricoeur e Michel Henry, entre                           clarificação, iluminação, no sentido de elucidar o
outros.                                                                  significado do fenômeno em questão. Tendo em vista
     Podemos dizer que todos estes pensadores                            sua preocupação em tratar o fenômeno em sua
foram, de alguma forma, críticos “internos” da                           totalidade e concretude, a fenomenologia se opõe ao
proposta husserliana, ou seja, de uma maneira ou                         naturalismo, ao reducionismo, ao cientificismo ou
de outra partem dela. Todos eles se tornaram                             outras formas de explanação que desloquem a atenção
grandes nomes da fenomenologia, com maiores ou                           da maneira como aparece o fenômeno em questão.
menores repercussões nas teorias psicológicas e                               A fenomenologia de Husserl critica todas as
psiquiátricas. Não obstante, Martin Heidegger,                           formas de objetivismo, focalizando especificamente as
assistente de Husserl, foi seu maior crítico, de tal                     maneiras como os objetos são constituídos na
forma que alguns consideram Husserl como o                               experiência do sujeito, a estrutura e qualidade do
criador da fenomenologia e Heidegger seu                                 objeto tal como experienciado pelo sujeito. No
transformador (Moran, 2000).                                             primeiro Husserl – o das Investigações Lógicas (1901)
     Em 1939, para proteger os escritos de Husserl de                    –, estamos falando da experiência da consciência no
possíveis     destruições    nazistas,   estes    foram                  mundo, sua análise transcendental da estrutura da
clandestinamente transportados para a Universidade                       consciência pela busca das essências, que permanece,
Católica de Leuven, na Bélgica, onde foram criados os                    ainda hoje, como introdução mais popular do
Husserl-Archives. Muitos destes manuscritos foram                        pensamento husserliano. Isto explica o fato de ainda
coligidos na Husserliana, uma série de edições                           hoje,    quando     se fala de fenomenologia,
publicadas inicialmente em alemão, com traduções mais                    frequentemente se estar falando da fenomenologia
recentes para o francês e o inglês. Ou seja, no Brasil, o                transcendental de Husserl em sua busca das essências
último Husserl, o Husserl da Husserliana, base do                        na estrutura da consciência.
pensamento de Merleau-Ponty, tal como será discutido                          Para Husserl (1985), a consciência não é uma
adiante neste artigo, até muito recentemente foi pouco                   substância (alma), mas uma atividade constituída por
conhecido, tendo-se em vista a inexistência, até o                       atos (percepção, imaginação, volição, paixão etc.) com
momento, de edições desta obra em português. Isto                        os quais se visa a algo. Husserl chama a esses atos de
explica uma compreensão frequentemente restrita ao                       noesis. Aquilo que é visado pelos atos é nomeado por
primeiro Husserl, o da fenomenologia transcendental,                     Husserl de noema. Cabe à fenomenologia revelar o
quando ele mesmo, em seus últimos escritos, já                           que há de essencial nestes atos. O traço essencial da
encaminhara seu pensamento no sentido do mundo vivido                    consciência é a intencionalidade: toda consciência “é
(Lebenswelt).                                                            consciência de algo”, diz Husserl.




Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010
Husserl Heidegger clinica fenomenológica                                                                                     725

     Entendendo a fenomenologia como a ciência                                Na última obra de Husserl, a Crise das Ciências
fundamental para todas as ciências, Husserl (1985)                       Europeias e a Fenomenologia Transcendental
insistia em que esta deveria ser um método sem                           (1936/1970), a análise do “mundo vivido”
pressuposições, ou seja, as descrições deveriam evitar                   (Lebenswelt) aparece como indissoluvelmente ligada e
pressupostos da filosofia moderna ou das tradições                       enraizada na experiência humana, o que oferece um
científicas. Obviamente, é problemático não ter como                     “corretivo” para o reducionismo científico do
ponto de partida nenhum pressuposto, tal como                            idealismo transcendental, inicialmente ambicionado
formula Husserl em seu idealismo transcendental,                         por ele e tão criticado por todos os fenomenólogos
tendo-se em vista o enraizamento histórico do                            existencialistas (em especial os existencialistas
conhecimento humano, que torna impossível sua                            radicais franceses: Lévinas, Sartre, Merleau-Ponty,
proposta radical “pura” na psiquiatria e na psicologia,                  Simone de Bauvoir) que o sucederam.
que tem como objeto de trabalho e de estudo o ser                             Em seus últimos escritos Husserl focaliza o que
humano em seu mundo.                                                     ele chamou de experiência predicativa, ou seja, a
     O termo consciência passou a ser evitado por                        experiência antes de ser formulada em julgamentos e
Heidegger (1989) e outros fenomenólogos                                  expressada linguisticamente. A noção de Lebenswelt
existencialistas, porquanto consciência remete ao                        (mundo vivido) torna possível a “passagem” da
caráter dualista da relação entre homem e mundo:                         fenomenologia transcendental à fenomenologia
tenho consciência de algo – a análise intencional e                      existencial, que é aquela que pode contribuir para a
descritiva da consciência definirá as relações                           psicoterapia. É esta última fase, a do Husserl da Crise,
essenciais entre atos mentais e mundo externo – o que                    que, revisada por Goto (2007), mostra que, na
remete ao fantasma da dicotomia sujeito-objeto, cuja                     verdade, Husserl foi o primeiro a falar de uma
superação sempre foi o objetivo primeiro dos                             Psicologia Fenomenológica, o que se deu na primeira
fenomenólogos.                                                           metade do século XX. Ele concebeu esta nova
     Gradualmente, na medida em que o conceito de                        disciplina com o objetivo de falar da vida “interna”
mundo vai ganhando espaço em sua obra, Husserl                           tanto na filosofia como na psicologia empírica já
(1985) propõe o conceito de redução fenomenológica,                      estabelecida desde o final do século IX. A psicologia
que passa a ser central na fenomenologia. O filósofo                     de sua época estudava o observável, o “externo” – o
acreditava que a estrutura e os conteúdos da                             objetivo. A concepção de Psicologia Fenomenológica
consciência são profundamente distorcidos pela                           passou a compor o projeto fenomenológico de Husserl
maneira do nos engajarmos na vida cotidiana. No                          na sua busca de um fundamento para a subjetividade.
sentido de se assegurar contra teorizações, Husserl                      Esta psicologia descreveria as estruturas psíquicas
propôs a epoché fenomenológica, ou suspensão da                          como tal para assim se chegar às estruturas
atitude natural. A redução é a operação pela qual a                      transcendentais da subjetividade (Goto, 2007).
existência efetiva do mundo exterior é “posta entre                           É possível afirmar, com o último Husserl, que a
parênteses” para que a investigação se ocupe apenas                      autêntica e genuína concepção de psicologia
com as operações realizadas pela consciência, sem se                     fenomenológica é importante para a psicologia clínica
perguntar se as coisas visadas por ela realmente                         e para a psiquiatria, porque é com o desenvolvimento
existem ou não. Através da redução, Husserl pretende                     desta disciplina que se poderá resgatar a subjetividade
“suspender” a tese do mundo natural.                                     como fonte originária da vida humana e sua correlação
     Conquanto seu comprometimento oficial seja com                      com o Lebenswelt. Segundo Goto (2007, p. 187),
o idealismo transcendental da análise da estrutura da                    apesar de Husserl ter criticado a psicologia
consciência, ao longo de sua obra Husserl caracterizou                   convencional e ter refutado o psicologismo existente
a essência do fenômeno de distintas maneiras,                            na filosofia moderna, manteve sempre a
passando, em sua etapa mais madura, a dar mais                           fenomenologia ligada a ela.
atenção à corporeidade e intersubjetividade (ainda que                        Husserl conclui que a psicologia fenomenológica
esta preocupação já estivesse presente anteriormente).                   e a fenomenologia transcendental são inseparáveis,
Estas ideias serão retomadas enfaticamente na                            visto que, de maneiras distintas, percorrem o mesmo
fenomenologia mundana de Merleau-Ponty, bem                              caminho até a subjetividade. Em sua última obra
como na experiência do outro ou de alteridade,                           Husserl define a psicologia fenomenológica como
desenvolvida na ética da alteridade radical pela                         uma ciência a priori e universal da vida anímica. Uma
fenomenologia de Emmanuel Lévinas.                                       ciência que se ocupa exclusivamente das estruturas
                                                                         internas, ou seja, das estruturas subjetivas puras, que
Psicologia Fenomenológica                                                são, para o filósofo, estruturas proto-originárias da



Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010
726                                                                                                                      Moreira

própria vida. Deste modo a psicologia não deve se                        Husserl. Para Merleau-Ponty (1945), a fenomenologia
ocupar de experiências externas como faz a psicologia                    não é um idealismo transcendental, como afirmava o
científica, seguindo o modelo da física e da fisiologia,                 primeiro Husserl: seu destino é tematizar a existência,
mas ao contrário, deve orientar-se exclusivamente para                   o ser-no-mundo. Ele ressitua a existência na essência e
a vida interna, experiência anímica interna,                             não pensa que seja possível compreender o homem e o
constituídas pelas vivencias intencionais (Goto, 2007,                   mundo de outra forma que não a partir de sua
p. 187).                                                                 facticidade. Coloca, assim, a fenomenologia
                                                                         husserliana com “os pés no chão”. Buscando uma
     O último Husserl, que propõe o conceito de                          fenomenologia existencial, de cunho eminentemente
Lebenswelt, apresenta então, claramente, uma nova                        antropológico, Merleau-Ponty abole verdades
psicologia, diferente da psicologia científica, que deve                 herméticas e pensamentos idealistas. Sustenta que o
cuidar da subjetividade humana em vez de se                              conhecimento é sempre incompleto, uma vez que não
preocupar com a observação de comportamentos                             existe um saber absoluto e a verdade é um movimento
objetivos. Deste modo, Husserl inaugura uma                              que vai se constituindo no campo perceptivo,
psicologia da subjetividade, o solo fecundo no qual se                   caracterizando-se como um mistério inesgotável, uma
desenvolverão mais tarde as fenomenologias                               gênese perpétua, sempre aberta (Moreira, 2007, 2009).
existenciais, que serão, por sua vez, desenvolvidas em                        A filosofia de Merleau-Ponty, na sua busca por
diferentes pensamentos psiquiátricos e psicológicos                      permanecer no plano do pensamento pré-reflexivo,
ligados a uma clínica fenomenológica.                                    desenvolve uma fenomenologia que se mantém aquém
     Para a clínica fenomenológica não faz sentido                       da dicotomia sujeito-objeto. Como assinala Claude
uma fenomenologia “não existencial”, porquanto o                         Lefort, editor da sua obra póstuma Le visible et l’
psicólogo clínico ou o psiquiatra estará sempre a                        invisible (1964), este título, por si só, evoca um
serviço do outro, em uma relação intersubjetiva.                         pensamento livre das categorias sujeito-objeto
Assim, na fenomenologia fundada por Edmund                               (Moreira, 2001, 2007, 2009), superando o pensamento
Husserl estão os germes dos vários caminhos (e                           dualista ocidental, sendo sempre movido em uma
descaminhos) do desenvolvimento contemporâneo da                         dialética cíclica, que nunca se fecha. A realidade é
clínica psicológica e psiquiátrica de base                               opaca, não existem verdades absolutas. O mundo tem
fenomenológica e existencial via conceituação de                         contornos múltiplos, assim como a pintura de
psicologia fenomenológica, que tem como foco a                           Cézanne. Merleau-Ponty (1964, 1970) supera
subjetividade; porém, embora não se possam esquecer                      definitivamente a dicotomia entre o mundo natural e o
outros grandes nomes da fenomenologia - como                             mundo cultural através da priorização do significado
Scheler, Jaspers, Stein, Sartre, Beauvoir, Patocha e                     do Lebenswelt (mundo vivido), conceito que,
outros - é importante sublinhar aqui os                                  consistindo no entrelaçamento da experiência
desdobramentos deste movimento no que se refere,                         subjetiva com a experiência objetiva, foi o fio
mais especificamente, ao caráter existencial da                          condutor de todo o pensamento ambíguo merleau-
fenomenologia, ou à relação entre homem e mundo,                         pontyano (Moreira, 2009).
através de dois grandes momentos, com Heidegger e                             A fenomenologia de Merleau-Ponty dá
Merleau-Ponty. É sua fenomenologia existencial que                       continuidade direta ao pensamento do último Husserl.
pode ser utilizada com mais sucesso na clínica, seja na                  Neste sentido, é possível encontrar no pensamento de
psiquiatria, seja na psicologia. Apesar de entendermos                   Merleau-Ponty, via conceito de Lebenswelt, um
Husserl como o iniciador de todo este movimento e de                     caminho fecundo para se pensar a clínica
ainda no último Husserl encontrarmos a sua psicologia                    fenomenológica (Moreira, 2001, 2007, 2009).
fenomenológica que inaugura a psicologia subjetiva,
sua contribuição contemporânea para a clínica
fenomenológica se destaca, principalmente, em seu                                     HEIDEGGER (1889-1976)
caráter metodológico.
                                                                         Do Dasein A Daseinsanalyse
A retomada do “Lebenswelt” por Merleau-Ponty                                 Martin Heidegger (1889-1976), ao criticar
     O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-                     Husserl de ser intelectualista e cartesiano, abandonou
1961), contemporâneo de Sartre e Lacan, realiza, no                      os termos consciência e intencionalidade, centrais na
seu famoso prefácio da Fenomenologia da Percepção,                       fenomenologia transcendental de Husserl. O
sua tese de doutorado publicada em 1945, uma                             desenvolvimento próprio da fenomenologia de
releitura existencialista da fenomenologia do último                     Heidegger era motivado por uma profunda



Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010
Husserl Heidegger clinica fenomenológica                                                                                      727

insatisfação com o tom metafísico husserliano em sua                     ontológico é o plano da apresentação das estruturas
busca das essências da consciência. Para Heidegger, a                    existenciais do ser. As estruturas existenciais –
fenomenologia husserliana era mais um projeto que                        denominadas        de    Existenciais     fundamentais
havia perdido a historicidade essencial da natureza                      constituintes do Dasein - são: a temporalidade, a
humana. Em sua obra O ser e o tempo (1927), para                         espacialidade, o ser-com-o-outro, a disposição, a
descontentamento de Husserl, Heidegger supera o                          compreensão, o cuidado (Sorge), a queda e o ser-para-
conceito de consciência e propõe o conceito de Dasein                    a-morte. A existência do Dasein, caracterizada pela
(Moran, 2000).                                                           abertura do mundo e do sentido do ser e pela
                                                                         liberdade, se dá dentro destes existenciais, de maneira
                 Em sua terminologia [de Heidegger] Dasein               que as condições de possibilidade de uma existência
                 deve substituir ‘sujeito’ ou ‘eu’, devido ao            dependerão dos horizontes da própria condição
                 sentido de ser simplesmente dado que estes              humana (Pereira, 2001). Assim, Heidegger, que se
                 termos adquiriram na filosofia da consciência
                                                                         propusera a abordar o problema do ser utilizando-se
                 e da subjetividade do período moderno,
                 incluindo aí a própria concepção husserliana            do método fenomenológico de Husserl, na verdade o
                 de sujeito (Gonçalves, Garcia, Dantas &                 supera quando substitui o conceito de consciência pelo
                 Edwald, 2008, p. 430).                                  de Dasein.
                                                                              A leitura da filosofia de Heidegger estrutura-se
     Ainda como assistente de Husserl, na assim                          sobre conceitos fundamentais para a fenomenologia
chamada “década fenomenológica” (1919-1929)                              existencial tais como Dasein, ser-no-mundo, angústia,
Heidegger sempre rejeitara sua busca das essências                       decisão. Todo o seu trabalho gira em torno do sentido
através do método fenomenológico, chegando,                              de ser, seus modos e maneiras de enunciação e
inclusive, a ridicularizar a concepção de ego                            expressão. Desta forma ele explicita o engano da
transcendental e outros aspectos centrais do                             tradição de uma compreensão ôntica (do ente), em
pensamento de Husserl (Moran & Mooney, 2002). A                          detrimento de uma compreensão ontológica (do ser).
contribuição do pensamento de Heidegger é                                Estes temas, incialmente colocados em Ser e Tempo,
inquestionável e inaugura – via fenomenologia do                         são desenvolvidos ao longo de toda a sua obra através
Dasein - a assim chamada fenomenologia existencial,                      de sua analítica do Dasein, uma teoria que se funda na
base de escolas e linhas de pensamento                                   “destruição” das teorias sobre a subjetividade do
contemporâneas        em     psicologia,   psiquiatria,                  sujeito, particularmente das teorias de Husserl e de
psicoterapia e psicopatologia, ainda que ele mesmo                       Kant. No contexto deste pensamento desconstrutivo
não se definisse como existencialista, no sentido de                     não existe a cisão entre o sujeito e o objeto (Loparic,
não pertencer ao Existencialismo enquanto                                2002).
movimento.                                                                    É nos Seminários de Zollikon (Heidegger, 2001)
     Em sua monumental obra Ser e Tempo, de 1927,                        que é possível aproximar a analítica do Dasein de
Heidegger (1989) desenvolve uma interpretação                            Heidegger da clínica - psiquiátrica ou psicológica -
ontológica do sentido do ser através de sua analítica                    psicoterapêutica. Este seminários foram organizados
do Dasein, focalizando sua análise no ser dos entes                      durante 10 anos, a partir de 1959, pelo médico
enquanto tal. Foge, assim, à via da metafísica clássica                  psiquiatra Medard Boss em sua casa em Zollikon, na
que recore à descrição e classificação das                               Suiça, para cerca de 50 a 70 psiquiatras e estudantes
características definidoras do existir dos entes. O                      de psiquiatria. Nesta obra, que conta com a tradução
termo Dasein, nesta perspectiva, refere-se ao existir                    de Medard Boss, dos seminários e de cartas trocadas
humano que se dá como um acontecer (sein) que se                         com ele, Heidegger discorre sobre Ser e Tempo e,
realiza aí (Da), no mundo, sendo o próprio existir que                   especificamente, sobre a Analítica do Dasein ou
consitui o aí em que se dá a existência. Nesse sentido,                  Daseinsanalyse, termo que virá a ser adotado como
tendo-se em vista a “finitude” humana, a                                 uma abordagem psiquiátrica por Binswanger e Boss.
temporalidade e a historicidade serão fundamentais na
análise heideggeriana do Dasein, já que que toda                         Daseinsanlyse Psiquiátrica x Analítica do Dasein em
possibilidade de compreensão do existir humano                           Psicologia e Psiquiatria
dependerá justamente da temporalidade enquanto
historicidade e finitude (Pereira, 2001).                                   Ludwig Binswanger
     Em Ser e Tempo, Heidegger (1989) distingue dois                         O termo Daseinsananalítica, utilizado por
planos: o ôntico e o ontológico. O ôntico é o plano                      Heidegger em Ser e tempo para também designar sua
relacionado à elucidação da existência do Dasein; o                      Analítica do Dasein, foi utilizado pelo psiquiatra suíço



Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010
728                                                                                                                     Moreira

Ludwig        Binswanger       (1881-1966)       como                         Embora a proposta de Binswanger tenha sido
Daseinsanalyse. Na época sua proposta ficou                              extensamente criticada até pelo próprio Heidegger
conhecida como Daseinsanalyse Psiquiátrica. De                           (2001), devido “não somente a enganos conceituais,
formação psicanalítica, Binswanger criticava Freud                       mas também à mistura de considerações ônticas, no
por suas teorizações a respeito do inconsciente ou de                    caso psicológicas, com as ontológicas” (Loparic,
um aparelho psíquico que reduziam o homem a um                           2002, p. 396), sua contribuição para a Psiquiatria e a
sistema ou esquema.                                                      Psicologia foi fundamental no sentido de criar uma
     Ao longo da vasta obra de Binswanger (1961,                         nova perspectiva – a vertente clínica fenomenológica
1970, 1971), o que de fato se pode observar é que a                      existencial. Binswanger pode não ter realizado o que
teorização de sua clínica fenomenológica não                             se propôs: desenvolver uma Daseinsanalyse
consegue se desprender do conceito de consciência, tal                   Psiquiátrica; mas, seguindo um caminho próprio,
como pretendia, influenciado pela leitura de Ser e                       passou a ser comumente conhecido como o criador da
Tempo de Heidegger. Assim, conquanto se utilize do                       Psicologia Existencial e o “pai da Psicopatologia
termo Dasein e cite Heidegger em vários de seus                          Fenomenológica” (Van Den Berg, 1994).
livros, seu pensamento permanece mais próximo de
Husserl do que de Heidegger (Gonçalves et al., 2008;                        Medard Boss
Loparic, 2002; Mattar & Sá, 2008; Tatossian, 2006).                           Medard Boss (1903-1990), médico psiquiatra
O próprio Binswanger chegou a reconhecer este fato                       também suíço, foi o responsável pelos seminários
(Boss, 2001), e por ocasião do I Congresso de                            conduzidos por Heidegger em Zollikon de 1959 a
Psiquiatria, em 1950, em Paris, propôs o termo                           1969, editados no livro Seminários de Zollikon,
“Análise     Antropológico-Fenomenológica”.       Não                    fundamento da Daseinsanalyse, e presidente da
obstante, foi sob a denominação “Análise existencial”                    Associação Internacional de Daseinsanalyse, fundada
que seu trabalho passou a ser divulgado mais                             em 1971, em Zurique. A convite do médico e
recentemente, agora com a sua concordância. Em                           psicoterapeuta Sólon Spanoudis, Medard Boss
1950, no mesmo congresso, ele rejeitara esta                             participou, a partir de 1973, de alguns seminários em
denominação, por sua associação da palavra                               São Paulo, fundamentais para a introdução da
“existencial” ao existencialismo de Jean Paul Sartre                     Daseiseinsanalyse no Brasil.
que, em seu livro O Ser e o Nada, criticara Heidegger                         Embora Boss e Binswanger estejam de acordo no
por este tomar como seu ponto de partida o Dasein, e                     que se refere aos princípios centrais da assim chamada
não a consciência: “Ora [diz Binswanger], é                              Daseinsanalyse Psiquiátrica, Boss permaneceu mais
justamente a ideia de Dasein que é importante para a                     perto das ideias originais de Heidegger. Enquanto
psiquiatria, e não a de ‘consciência’” (Verdeaux &                       Binswanger se utiliza dos conceitos heideggerianos de
Khun, 1971, p. 30).                                                      Umwelt, Mitwelt e Eigenwelt, Boss prefere os
     Na esteira do pensamento de Binswanger, mas                         existenciais de Heidegger. Assim, ele se interessou,
também resgatando, eventualmente, o pensamento de                        por exemplo, em saber como as pessoas viviam o
Heidegger e de Boss, bem como de outros psiquiatras                      corpo, o espaço e o tempo para além do tempo
fenomenólogos europeus da primeira metade do                             cronológico, por exemplo. Concorda com Binswanger
século XX, não se pode deixar de mencionar a                             no que se refere à importância de nossas relações com
importante contribuição de Rollo May, introduzindo                       os outros e entende que não somos indivíduos
este pensamento nos Estados Unidos e criando o que                       trancados em nossos corpos, mas vivemos em um
passou a se chamar de Psicologia Existencial (May,                       mundo compartilhado, “iluminando” uns aos outros.
1986). A publicação do livro Existence, organizado                            O interesse de Boss pelo pensamento de
por May, Angel e Ellenberger (1967), contando com                        Heidegger era eminentemente clínico. Acreditava que
capítulos do próprio Binswanger, tornou-se um marco                      as considerações filosóficas da Analítica do Dasein
na história da Psicologia Existencial norte-americana,                   poderiam ser úteis para a psicoterapia, tendo em vista
que, naquele país, assumiu características específicas                   que adoecer é uma constituição fundamental, comum a
relacionadas ao próprio contexto. Seguiu, então, um                      todos os homens (Mattar & Sá, 2008). Neste sentido,
caminho singular, entrelaçada ao movimento do                            Boss e Condreau (1976, p. 26) definem a
potencial humano, que, por sua vez, contou com                           Daseinsanalyse       como     “antes    de    tudo   e
grandes nomes da Psicologia Humanista como Carl                          primordialmente, uma abordagem do conjunto dos
Rogers, Abraham Maslow, Gordon Allport, entre                            fenômenos chamados normais e patológicos do existir
outros.                                                                  humano. Mas esta abordagem não é mais que um




Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010
Husserl Heidegger clinica fenomenológica                                                                                      729

caminho, um meio de acesso. Não leva a um tesouro                                     do Dasein’. No decorrer desta Analítica do
de conclusões cientificas”.                                                           Dasein en Ser e Tempo eu também falo de
                                                                                      Dasinsanalyse, com o que quero dizer o
    Daseinsanalyse x Analítica do Dasein                                              exercer da analítica.
     Mattar e Sá (2008) lembram a diferença entre
                                                                              É público o fato de que Heidegger discordou, em
análise e analítica, assinalando que a escolha do termo
                                                                         vários aspectos, da forma como Binswanger
por parte de Heidegger em sua obra Ser e Tempo, de
                                                                         desenvolveu uma Daseinsanálise Psiquiátrica
1927, foi “analítica” (Analytik) e não “análise”
                                                                         supostamente baseada no conceitos de Ser e Tempo.
(Analyse). O moderno significado de “análise” o reduz
                                                                         Em especial discordou do entendimento de
a uma decomposição em elementos, em analogia com
                                                                         Binswanger do seu conceito fundamental: o Dasein. A
a química; no entanto, análise vem do grego analisein.
                                                                         compreensão de Binswanger lhe parecia permanecer
Como historiado por Heidegger no Seminário de
                                                                         no plano do ôntico, aniquilando o que para ele era
Zollikon de 23 de novembro de 1965, o primeiro
                                                                         fundamental, o ontológico. Em manuscrito confiado a
registro desta palavra foi na Odisseia de Homero, ao
                                                                         Medard Boss em Zollikon, em 8 de março de 1965,
descrever aquilo que Penélope fazia todas as noites:
                                                                         Heidegger (2001) afirma: “A ‘Daseinsanalyse
desfazer a trama que tecera durante o dia. Análise,
                                                                         Psiquiátrica’   retirou da      Análise Ontológica-
então,
                                                                         Fundamental do Dasein a constituição fundamental
                 significa o destecer de uma trama, ou libertar,         que em Ser e Tempo chama-se ser-no-mundo e a
                 soltar alguém ou alguma coisa das amarras.              utilizou, baseando sua ciência unicamente nela”
                 O termo analítica, utilizado por Kant e                 (Binswanger, 1970, p. 205). E no seminário de 23 de
                 retomado por Heidegger, não conduz a uma                novembro do mesmo ano Heidegger (2001, p. 146)
                 desintegração do fenômeno, mas sim, ao seu              explicita:
                 caráter orginário, ao seu sentido, sua
                 condição de possibilidade. A analítica tece e                        No fim desta primeira aula precisamos voltar
                 destece, para libertar o sentido que possibilita                     à pergunta da diferença entre analítica do
                 o tecido, para vislumbrar o próprio tecer e                          Dasein e análise do Dasein. Isto sem levar
                 retecer. Esta é a via pela qual Heidegger irá                        em     consideração     a     ‘Daseinsanlyse
                 compreender a analítica. A Daseinanalyse,                            Psiquiátrica’ de Ludwig Binswanger. A
                 análise da existência, é definida por ele em                         fenomenologia de Husserl, que ainda o
                 “Seminários de Zollikon” como o exercicio                            influencia, a qual permanece fenomenologia
                 ôntico da analítica ontológica empreendida                           da consciência, impede a visão clara da
                 em ‘Ser e Tempo’ (Mattar & Sá, 2008,                                 hermenêutica fenomenológica do Dasein.
                 p.189).
                                                                              Conquanto Boss seja considerado o autor que se
     A analítica não pretende uma desintegração do                       manteve bem mais próximo da proposta heideggeriana
fenômeno, não o divide, o que faria perder de vista o                    (Gonçalves et al., 2008), Loparic (2002) defende a
fenômeno como um todo, “a qual” deixaria de ser,                         ideia de que, como Binswanger, e, inclusive
metodologicamente, fenomenológico. Busca o caráter                       influenciado por ele em seu início, Boss também
originário do fenômeno, sua unidade ontológica                           confundiu o ôntico e o ontológico, tal como Heidegger
originária, os caracteres existenciais que constituem                    identificara em Binswanger (1970, p. 407): “Daí
seu ser geral: temporalidade, espacialidade,                             decorre uma suspeita adicional: a de que Boss, assim
corporeidade, cuidado, angústia, disposição ou humor                     como Binswanger, não soube dar a sua daseinsanálise
e ser-para-a-morte. Nas palavras de Heidegger (2001,                     o caráter de ciência factual, ôntica, em contraposição à
p. 141),                                                                 analítica existencial de Heidegger, de natureza
                                                                         ontológica”.
                 A finalidade analítica é, pois, evidenciar a
                                                                              Com tantos possíveis “enganos” quando da
                 unidade original da função da capacidade de
                 compreensão. A analítica trata de um                    utilização do pensamento de Heidegger na Psiquiatria,
                 retroceder a ‘uma conexão em um sistema’.               o lembrete de Mattar e Sá (2008) a respeito da
                 A analítica tem a tarefa de mostrar o todo de           diferenciação entre análise e analítica é importante no
                 uma unidade de condições ontológicas. A                 sentido de pensarmos as tantas vertentes psiquiátricas
                 analítica como analítica ontológica não é um            e psicológicas na contemporaneidade que se intitulam
                 decompor em elementos, mas a articulação                como clínicas fenomenológicas, tendo como base
                 de uma unidade, uma estrutura. Este é o                 tanto Freud como Heidegger, Husserl, Binswanger e
                 fator essencial no meu conceito de ‘analítica
                                                                         outros     autores.    “Juntar”     a    Daseinsanalyse


Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010
730                                                                                                                                     Moreira

heideggeriana com o método psicanalítico pareceria                       uma contribuição importante para a clínica
complicado para Heidegger (2001, p. 146), visto que                      fenomenológica.
ele entende que em seu método “não se retrocede,                              As filosofias de Husserl e de Heidegger
como fazia Freud, os sintomas aos elementos. Antes,                      representam contribuições fundamentais, mas muito
pergunta-se por aquelas determinações que                                há para caminhar no âmbito da clínica. Sem estes
caracterizam o ser do Dasein com referência à sua                        grandes pensadores da nossa história não teríamos
relação com o ser de modo geral”. No entanto,                            chegado até aqui. Como psicoterapeutas, psicólogos
Binswanger o fez de uma forma magistral, embora,                         clínicos ou psiquiatras, chegou o momento de
“desvirtuando” o pensamento de Heidegger, tenha                          transcendermos não apenas uma clínica que se
criado uma outra vertente.                                               perpetua pensando em termos dualistas de
                                                                         subjetividade x objetividade (interno x externo, corpo
                                                                         x mente, somático x emocional, consciente x
                         CONCLUSÃO                                       inconsciente), mas também em termos, unicamente de
                                                                         sujeito-sujeito (intersubjetividade), que, ainda que
     Husserl e Heidegger, cada um à sua maneira, têm,                    avance muito em relação à psicologia da relação
sem dúvida, um grande potencial de pensamento a ser                      sujeito-objeto, ainda se mantém dualista.
usufruído pela clínica fenomenológica nas Psicologias                         Muitos são os meios para esta tarefa. Um caminho
e Psiquiatrias; e quando mencionamos a Psicologia,                       interessante para a clínica fenomenológica, no sentido
estamos falando desta psicologia inaugurada por                          de transcender a intersubjetividade, mostra-se possível
Husserl como uma psicologia da subjetividade, em                         via noção de intercorporeidade, que desemboca no
detrimento da tradicional psicologia científica                          conceito de carne do último Merleau-Ponty: uma pista
objetivista.                                                             fecunda para se pensar uma clínica fenomenológica
     No que se refere à contribuição específica de                       pré-reflexiva, do humano e do sensível; uma clínica
Heidegger à clínica fenomenológica, vale a sugestão                      fenomenológica       do    Lebenswelt,     que busca
de Loparic (2002) de novas tentativas, que partam                        compreender os significados do mundo vivido para
diretamente do Dasein de Heidegger sem,                                  aquém da dicotomia sujeito-objeto.
necessariamente, seguir o caminho de Binswanger ou
Boss, que, como vimos, tem lá seus “atalhos”, sem                        Agradecimento
que com isso suas contribuições à clinica
                                                                            Agradeço a Célio Freire, pelos valiosos
fenomenológica sejam menos importantes. No sentido
                                                                         comentários sobre a versão original deste artigo.
da criação de novas perspectivas para a clinica
fenomenológica, é interessante mencionar Mattar e Sá
(2008), que, realizando um exercicio de pensar como
                                                                                                 REFERÊNCIAS
se desdobraria clinicamente a atitude fenomenológica
em uma psicoterapia de inspiração daseinsanalítica,                      Binswanger, L. (1961). Psiquiatría existencial. Santiago:
descrevem as propostas brasileiras de Sá (2002) e                            Universitária.
Feijó (2004) como possíveis atuações do                                  Binswanger, L. (1970). Analyse existencielle et psychanalyse
psicoterapeuta com atitudes que se relacionam aos                            freudienne. Paris: Gallimard.
princípios fundamentais colocados pela Analítica do                      Binswanger, L. (1971). Introduction à l’Analyse Existentielle. Paris:
Dasein de Heidegger.                                                         Éditions de Minuit.
     Com relação à possível contribuição de Husserl à                    Boss, M. & Condreau, G. (1976). Daseinanalyse: como a
clínica fenomenológica, esta parece encontrar um                            Daseinsanalise entrou na psiquiatria. Revista Daseinsanlyse, 2, 5-
importante lastro no pensamento do primeiro Merleau-                        23.
Ponty, onde a noção de intersubjetividade, nascida                       Boss, M. (2001). Prefácio à primeira edição. In M. Heidegger
com Husserl, se expande. Posteriormente, traçando um                        (Editado por Medard Boss, Seminários de Zollikon. (pp. 9-16).
caminho próprio, a partir do último Husserl, via                            Petrópolis, RJ: Vozes.
conceito de Lebenswelt, o último Merleau-Ponty                           Feijó, A. (2004). Psicologia clínica e o pensamento de Heidegger em
acaba, com sua ontologia da carne – que tira o foco do                       Seminários de Zollikon. Revista Fenômeno Psi, 2 (1), 9-16.
sujeito, ou mesmo da intersubjetividade –                                Gonçalves, R., Garcia, F., Dantas, J. & Edwald, A. (2008). Merleau-
                                                                            Ponty, Sartre e Heidegger: três concepções de fenomenologia, três
aproximando-se do pensamento de Heidegger em sua
                                                                            grandes filósofos. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 8 (2), 402-
Analítica do Dasein, o Ser-aí, o Ser-no-mundo (ainda                        435.
que Merleau-Ponty raramente mencione Heidegger,
                                                                         Goto, T. (2007). A (re)constituição da psicologia fenomelógica em
partindo diretamente do pensamento do último                                Edmund Husserl. Tese de Doutorado, Curso de Pós-Graduação
Husserl). É esta fenomenologia existencial que tem


Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010
Husserl Heidegger clinica fenomenológica                                                                                                       731

    em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas,          Moran, D. & Mooney, T. (Ed.), (2002). The phenomenology reader.
    Campinas, SP.                                                            London: Routledge.
Heidegger, M. (1983) Heidegger (Col. Os Pensadores). São Paulo:           Moran, D. (2000). Introduction to phenomenology. London:
    Abril Cultural.                                                          Routledge.
Heidegger, M. (1989). Ser e tempo (Vols. 1-2). Petrópolis, RJ: Vozes.     Moreira, V. (2001). Más allá de Ia personna. Hacia une psicoterapia
Heidegger, M. (Editado por Medard Boss). (2001). Seminários de               fenomenológica mundana. Santiago de Chile: Editorial
    Zollikon. Petrópolis, RJ: Vozes.                                         Universidad de Santiago.
Heidegger, Martin (2001). (Editado por Medard Boss), Seminários de        Moreira, V. (2007). De Carl Rogers a Merleau-Ponty: a pessoa
    Zollikon. Petrópolis, RJ: Vozes.                                         mundana em psicoterapia. São Paulo: Annablume.
Husserl, E. (1936-1970). The Crisis of European Sciences and              Moreira, V. (2009). Clínica humanista fenomenológica: estudos em
   Transcendental Phenomenology. Evanston: Northwestern                      psicoterapia e psicopatologia crítica. São Paulo: Annablume.
   University Press.                                                      Pereira, M. (2001). Sobre os fundamentos da psicoterapia de base
Husserl, E. (1985) Husserl (Col. Os Pensadores). São Paulo: Abril             analítico-existencial, segundo Ludwig Binswanger. Revista
   Cultural.                                                                  Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 4(1), 137-142.
Loparic, Z. (2002). Binswanger, leitor de Heidegger: um equívoco          Sá, R. (2002). A psicoterapia e a questão da técnica. Arquivos
   produtivo? Natureza Humana, 4 (2), 383-413.                                Brasileiros de Psicologia, 54 (4), 348-362.
Mattar, C. & Sá, R. (2008). Os sentidos de “análise” e “analítica” no     Tatossian, A. (2006). Fenomenologia das psicoses. São Paulo: Escuta.
   pensamento de Heidegger e suas implicações para a psicoterapia.        Van den Berg, J. H. (1994). O paciente psiquiátrico. Campinas:
   Estudos e Pesquisas em Psicologia, 8 (2), 189-200.                        Editorial Psy II.
May, R. (Org.), (1986). Psicologia Existencial. Porto Alegre: Globo.      Verdeaux, J., & Khun R. (1971). Glossaire. In Binswanger, L.
May, R., Angel, E. & Ellenberger, H. (1967). Existencia. Madrid:             Introduction à l’Analyse Existentielle. (pp. 27-37). Paris: Les
   Gredos.                                                                   Éditions de Minuit.
Merleau-Ponty, M. (1964). Le visible et l’ invisible. Paris: Gallimard.
Merleau-Ponty, M. (1945). Phénoménologie de la perception. Paris:                                                 Recebido em 31/07/2009
   Gallimard.                                                                                                       Aceito em 12/08/2010
Merleau-Ponty, M. (1970). La doute de Cezánne. In M. Merleau-
   Ponty, Sens et non sens. (pp.15-44). Paris: Nagel.


Endereço para correspondência:            Virginia Moreira. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. APHETO - Laboratório de
                                          Psicopatologia e Psicoterapia Humanista-Fenomenológica Crítica. Universidade de Fortaleza –
                                          UNIFOR. Av. Washington Soares, 1321, CEP 60.811-905, Fortaleza-CE, Brasil.
                                          E-mail: virginiamoreira@unifor.br.




Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010

More Related Content

What's hot

Psicologia Geral - Introdução ao Estudo da Psicologia
Psicologia Geral - Introdução ao Estudo da PsicologiaPsicologia Geral - Introdução ao Estudo da Psicologia
Psicologia Geral - Introdução ao Estudo da PsicologiaRafael Wanderley
 
Psicoterapia fenomenologica existencial
Psicoterapia fenomenologica existencialPsicoterapia fenomenologica existencial
Psicoterapia fenomenologica existencialÉrika Renata
 
Psicologia introdução
Psicologia introduçãoPsicologia introdução
Psicologia introduçãoChrys Souza
 
Psicologia Fenomenológico-Existencial
Psicologia Fenomenológico-ExistencialPsicologia Fenomenológico-Existencial
Psicologia Fenomenológico-ExistencialSara Campagnaro
 
O profissional da saúde diante da morte
O profissional da  saúde diante da morteO profissional da  saúde diante da morte
O profissional da saúde diante da morteMarian de Souza
 
A morte e o processo de morrer
A morte e o processo de morrerA morte e o processo de morrer
A morte e o processo de morrerEliane Santos
 
1 psicologia
1 psicologia1 psicologia
1 psicologiabrelua
 
Fenomenologia e existencialimo
Fenomenologia e existencialimoFenomenologia e existencialimo
Fenomenologia e existencialimoSilvia Cintra
 

What's hot (20)

Psicologia geral fabiola
Psicologia geral fabiolaPsicologia geral fabiola
Psicologia geral fabiola
 
Psicologia Geral - Introdução ao Estudo da Psicologia
Psicologia Geral - Introdução ao Estudo da PsicologiaPsicologia Geral - Introdução ao Estudo da Psicologia
Psicologia Geral - Introdução ao Estudo da Psicologia
 
Fenomenologia e a psicologia
Fenomenologia e a psicologiaFenomenologia e a psicologia
Fenomenologia e a psicologia
 
Aula - Introdução à Psicologia 1
Aula - Introdução à Psicologia 1Aula - Introdução à Psicologia 1
Aula - Introdução à Psicologia 1
 
fenomenologia husserl
fenomenologia husserlfenomenologia husserl
fenomenologia husserl
 
Humanização hospitalar
Humanização hospitalarHumanização hospitalar
Humanização hospitalar
 
Gestalt-Terapia
Gestalt-TerapiaGestalt-Terapia
Gestalt-Terapia
 
Psicoterapia fenomenologica existencial
Psicoterapia fenomenologica existencialPsicoterapia fenomenologica existencial
Psicoterapia fenomenologica existencial
 
Psicologia introdução
Psicologia introduçãoPsicologia introdução
Psicologia introdução
 
Psicologia Fenomenológico-Existencial
Psicologia Fenomenológico-ExistencialPsicologia Fenomenológico-Existencial
Psicologia Fenomenológico-Existencial
 
Linha do Tempo - História da Psicologia
Linha do Tempo - História da PsicologiaLinha do Tempo - História da Psicologia
Linha do Tempo - História da Psicologia
 
O profissional da saúde diante da morte
O profissional da  saúde diante da morteO profissional da  saúde diante da morte
O profissional da saúde diante da morte
 
A morte e o processo de morrer
A morte e o processo de morrerA morte e o processo de morrer
A morte e o processo de morrer
 
Humanizar o atendimento na saúde
Humanizar o atendimento na saúdeHumanizar o atendimento na saúde
Humanizar o atendimento na saúde
 
Existencial - Humanista
Existencial - HumanistaExistencial - Humanista
Existencial - Humanista
 
História da psicologia
História da psicologiaHistória da psicologia
História da psicologia
 
slides da história da psicologia
slides da história da psicologiaslides da história da psicologia
slides da história da psicologia
 
O Cuidar
O CuidarO Cuidar
O Cuidar
 
1 psicologia
1 psicologia1 psicologia
1 psicologia
 
Fenomenologia e existencialimo
Fenomenologia e existencialimoFenomenologia e existencialimo
Fenomenologia e existencialimo
 

Similar to Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clínica fenomenológica

Fenomenologia Hurssel, contexto histórico e início do pensamento.
Fenomenologia Hurssel, contexto histórico e início do pensamento.Fenomenologia Hurssel, contexto histórico e início do pensamento.
Fenomenologia Hurssel, contexto histórico e início do pensamento.CarynaMaximina
 
Fenomenologia e existencialismo_articulando (1)
Fenomenologia e existencialismo_articulando (1)Fenomenologia e existencialismo_articulando (1)
Fenomenologia e existencialismo_articulando (1)Bianca Curvelo
 
Biografia de husserl
Biografia de husserlBiografia de husserl
Biografia de husserl080393040691
 
Hfc aula 004
Hfc aula 004Hfc aula 004
Hfc aula 004Luiz
 
Texto 01 - O que é fenomêno. A fenomenologia como método.pdf
Texto 01 - O que é fenomêno. A fenomenologia como método.pdfTexto 01 - O que é fenomêno. A fenomenologia como método.pdf
Texto 01 - O que é fenomêno. A fenomenologia como método.pdfKarlianaArruda1
 
Psicologia contemporanea articulacoes-teoricopraticas_slides_dilema_cap_i_e_ii
Psicologia contemporanea articulacoes-teoricopraticas_slides_dilema_cap_i_e_iiPsicologia contemporanea articulacoes-teoricopraticas_slides_dilema_cap_i_e_ii
Psicologia contemporanea articulacoes-teoricopraticas_slides_dilema_cap_i_e_iiLucas Coutinho
 
Trabalho de personalidade ii pdf
Trabalho de personalidade ii pdfTrabalho de personalidade ii pdf
Trabalho de personalidade ii pdfPsicologia_2015
 
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...Érika Renata
 
História da psicanálise
História da psicanáliseHistória da psicanálise
História da psicanáliseAgespisa
 
20120506 dastur francoise-daseinsanalyse
20120506 dastur francoise-daseinsanalyse20120506 dastur francoise-daseinsanalyse
20120506 dastur francoise-daseinsanalyseSaulo Almeida
 
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswanger
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswangerFreire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswanger
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswangerÉrika Renata
 

Similar to Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clínica fenomenológica (20)

Aula de Filosofia_2º ano_Fenomenologia_E
Aula de Filosofia_2º ano_Fenomenologia_EAula de Filosofia_2º ano_Fenomenologia_E
Aula de Filosofia_2º ano_Fenomenologia_E
 
Fenomenologia Hurssel, contexto histórico e início do pensamento.
Fenomenologia Hurssel, contexto histórico e início do pensamento.Fenomenologia Hurssel, contexto histórico e início do pensamento.
Fenomenologia Hurssel, contexto histórico e início do pensamento.
 
Fenomenologia e existencialismo_articulando (1)
Fenomenologia e existencialismo_articulando (1)Fenomenologia e existencialismo_articulando (1)
Fenomenologia e existencialismo_articulando (1)
 
Biografia de husserl
Biografia de husserlBiografia de husserl
Biografia de husserl
 
A ideia-de-fenomenologia
A ideia-de-fenomenologiaA ideia-de-fenomenologia
A ideia-de-fenomenologia
 
12
1212
12
 
Hfc aula 004
Hfc aula 004Hfc aula 004
Hfc aula 004
 
Fenomenologia
FenomenologiaFenomenologia
Fenomenologia
 
Fenomenologia
FenomenologiaFenomenologia
Fenomenologia
 
A10v26n1
A10v26n1A10v26n1
A10v26n1
 
Texto 01 - O que é fenomêno. A fenomenologia como método.pdf
Texto 01 - O que é fenomêno. A fenomenologia como método.pdfTexto 01 - O que é fenomêno. A fenomenologia como método.pdf
Texto 01 - O que é fenomêno. A fenomenologia como método.pdf
 
Ementa Tópicos
Ementa TópicosEmenta Tópicos
Ementa Tópicos
 
Psicologia contemporanea articulacoes-teoricopraticas_slides_dilema_cap_i_e_ii
Psicologia contemporanea articulacoes-teoricopraticas_slides_dilema_cap_i_e_iiPsicologia contemporanea articulacoes-teoricopraticas_slides_dilema_cap_i_e_ii
Psicologia contemporanea articulacoes-teoricopraticas_slides_dilema_cap_i_e_ii
 
Fenomenologia
FenomenologiaFenomenologia
Fenomenologia
 
Trabalho de personalidade ii pdf
Trabalho de personalidade ii pdfTrabalho de personalidade ii pdf
Trabalho de personalidade ii pdf
 
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...
 
História da psicanálise
História da psicanáliseHistória da psicanálise
História da psicanálise
 
20120506 dastur francoise-daseinsanalyse
20120506 dastur francoise-daseinsanalyse20120506 dastur francoise-daseinsanalyse
20120506 dastur francoise-daseinsanalyse
 
Freud e a Psicanálise
Freud e a PsicanáliseFreud e a Psicanálise
Freud e a Psicanálise
 
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswanger
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswangerFreire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswanger
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswanger
 

More from Érika Renata

Fenomenológica existencial do uso de drogas
Fenomenológica existencial do uso de drogasFenomenológica existencial do uso de drogas
Fenomenológica existencial do uso de drogasÉrika Renata
 
Psicoterapia existencial Camon
Psicoterapia existencial CamonPsicoterapia existencial Camon
Psicoterapia existencial CamonÉrika Renata
 
Abuso de cannabis em pacientes com transtornos
Abuso de cannabis em pacientes com transtornosAbuso de cannabis em pacientes com transtornos
Abuso de cannabis em pacientes com transtornosÉrika Renata
 
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demais
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demaisRehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demais
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demaisÉrika Renata
 
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencial
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencialRehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencial
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencialÉrika Renata
 
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da espera
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da esperaRehfeld, a. acerca das generosas curvas da espera
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da esperaÉrika Renata
 
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencial
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencialRehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencial
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencialÉrika Renata
 
Rehfeld, a. à angústia
Rehfeld, a. à angústiaRehfeld, a. à angústia
Rehfeld, a. à angústiaÉrika Renata
 
Nascimento, c.l. a centralidade da epoché na fenomenologia husserliana
Nascimento, c.l. a centralidade da epoché na fenomenologia husserlianaNascimento, c.l. a centralidade da epoché na fenomenologia husserliana
Nascimento, c.l. a centralidade da epoché na fenomenologia husserlianaÉrika Renata
 
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heidegger
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heideggerMattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heidegger
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heideggerÉrika Renata
 
Marçal, j.c. existência e _verdade_ em martin heidegger
Marçal, j.c.  existência  e _verdade_ em martin heideggerMarçal, j.c.  existência  e _verdade_ em martin heidegger
Marçal, j.c. existência e _verdade_ em martin heideggerÉrika Renata
 
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeuticaJardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeuticaÉrika Renata
 
Heidegger, m. o que é isto a filosofia
Heidegger, m. o que é isto   a filosofiaHeidegger, m. o que é isto   a filosofia
Heidegger, m. o que é isto a filosofiaÉrika Renata
 
Heidegger, m. a questao da tecnica
Heidegger, m. a questao da tecnicaHeidegger, m. a questao da tecnica
Heidegger, m. a questao da tecnicaÉrika Renata
 
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão august...
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão august...Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão august...
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão august...Érika Renata
 
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencial
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencialGiovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencial
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencialÉrika Renata
 
Giovanetti. o sagrado na psicoterapia
Giovanetti. o sagrado na psicoterapiaGiovanetti. o sagrado na psicoterapia
Giovanetti. o sagrado na psicoterapiaÉrika Renata
 
Feijoo, a.m.l.c. os fundamentos da clínica psicológica na filosofia de soren ...
Feijoo, a.m.l.c. os fundamentos da clínica psicológica na filosofia de soren ...Feijoo, a.m.l.c. os fundamentos da clínica psicológica na filosofia de soren ...
Feijoo, a.m.l.c. os fundamentos da clínica psicológica na filosofia de soren ...Érika Renata
 
Evangelista,p. a interpretação fenomenológica de heidegger da primeira epísto...
Evangelista,p. a interpretação fenomenológica de heidegger da primeira epísto...Evangelista,p. a interpretação fenomenológica de heidegger da primeira epísto...
Evangelista,p. a interpretação fenomenológica de heidegger da primeira epísto...Érika Renata
 
Cynthia leite. a vida e a obra de edith stein santa tereza benedita da cruz à...
Cynthia leite. a vida e a obra de edith stein santa tereza benedita da cruz à...Cynthia leite. a vida e a obra de edith stein santa tereza benedita da cruz à...
Cynthia leite. a vida e a obra de edith stein santa tereza benedita da cruz à...Érika Renata
 

More from Érika Renata (20)

Fenomenológica existencial do uso de drogas
Fenomenológica existencial do uso de drogasFenomenológica existencial do uso de drogas
Fenomenológica existencial do uso de drogas
 
Psicoterapia existencial Camon
Psicoterapia existencial CamonPsicoterapia existencial Camon
Psicoterapia existencial Camon
 
Abuso de cannabis em pacientes com transtornos
Abuso de cannabis em pacientes com transtornosAbuso de cannabis em pacientes com transtornos
Abuso de cannabis em pacientes com transtornos
 
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demais
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demaisRehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demais
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demais
 
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencial
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencialRehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencial
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencial
 
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da espera
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da esperaRehfeld, a. acerca das generosas curvas da espera
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da espera
 
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencial
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencialRehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencial
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencial
 
Rehfeld, a. à angústia
Rehfeld, a. à angústiaRehfeld, a. à angústia
Rehfeld, a. à angústia
 
Nascimento, c.l. a centralidade da epoché na fenomenologia husserliana
Nascimento, c.l. a centralidade da epoché na fenomenologia husserlianaNascimento, c.l. a centralidade da epoché na fenomenologia husserliana
Nascimento, c.l. a centralidade da epoché na fenomenologia husserliana
 
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heidegger
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heideggerMattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heidegger
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heidegger
 
Marçal, j.c. existência e _verdade_ em martin heidegger
Marçal, j.c.  existência  e _verdade_ em martin heideggerMarçal, j.c.  existência  e _verdade_ em martin heidegger
Marçal, j.c. existência e _verdade_ em martin heidegger
 
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeuticaJardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
 
Heidegger, m. o que é isto a filosofia
Heidegger, m. o que é isto   a filosofiaHeidegger, m. o que é isto   a filosofia
Heidegger, m. o que é isto a filosofia
 
Heidegger, m. a questao da tecnica
Heidegger, m. a questao da tecnicaHeidegger, m. a questao da tecnica
Heidegger, m. a questao da tecnica
 
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão august...
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão august...Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão august...
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão august...
 
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencial
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencialGiovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencial
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencial
 
Giovanetti. o sagrado na psicoterapia
Giovanetti. o sagrado na psicoterapiaGiovanetti. o sagrado na psicoterapia
Giovanetti. o sagrado na psicoterapia
 
Feijoo, a.m.l.c. os fundamentos da clínica psicológica na filosofia de soren ...
Feijoo, a.m.l.c. os fundamentos da clínica psicológica na filosofia de soren ...Feijoo, a.m.l.c. os fundamentos da clínica psicológica na filosofia de soren ...
Feijoo, a.m.l.c. os fundamentos da clínica psicológica na filosofia de soren ...
 
Evangelista,p. a interpretação fenomenológica de heidegger da primeira epísto...
Evangelista,p. a interpretação fenomenológica de heidegger da primeira epísto...Evangelista,p. a interpretação fenomenológica de heidegger da primeira epísto...
Evangelista,p. a interpretação fenomenológica de heidegger da primeira epísto...
 
Cynthia leite. a vida e a obra de edith stein santa tereza benedita da cruz à...
Cynthia leite. a vida e a obra de edith stein santa tereza benedita da cruz à...Cynthia leite. a vida e a obra de edith stein santa tereza benedita da cruz à...
Cynthia leite. a vida e a obra de edith stein santa tereza benedita da cruz à...
 

Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clínica fenomenológica

  • 1. POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES DE HUSSERL E HEIDEGGER PARA A CLÍNICA FENOMENOLÓGICA * Virginia Moreira RESUMO. Este artigo tem como objetivo descrever as possíveis contribuições das filosofias de Edmund Husserl e Martin Heidegger para o desenvolvimento de uma clínica fenomenológica. Reconhece-se que Husserl, com sua Psicologia Fenomenológica, inaugura uma psicologia da subjetividade que pode servir de base para a clínica fenomenológica. O artigo também discute as contribuições e possíveis limitações das propostas clínicas de Ludwig Binswanger e Medard Boss, que procuram fundamentar-se na Analítica do Dasein de Heidegger, e propõe a fenomenologia existencial de Merleau-Ponty, que retoma o último pensamento de Husserl tendo como fio condutor o conceito de Lebenswelt, como um caminho fecundo para a clínica fenomenológica. Palavras-chave: Husserl; Heidegger; clínica psicológica. HUSSERL´S AND HEIDEGGER´S POSSIBLE CONTRIBUTIONS TO CLINICAL PHENOMENOLOGY ABSTRACT. This article aims to describe the possible contributions of Edmund Husserl´s and Martin Heidegger´s philosophies to the development of a phenomenological clinic. It recognizes that Husserl, with his Phenomenological Psychology, inaugurates a psychology of subjective, which may serve as basis to the phenomenological clinic. It discusses the contributions and possible limitations of Ludwig Binswanger´s and Medard Boss’s clinical proposals, which aim to be funded on Heidegger´s Analytic of the Dasein. It suggests Merleau-Ponty´s existential phenomenology, which retakes last Husserl’s thought having as conducting wire the concept of Lebenswelt, as a fecund way to the phenomenological clinic. Key words: Husserl; Heidegger; psychological clinic. POSSIBLES CONTRIBUCIONES DE HUSSERL Y HEIDEGGER PARA LA CLÍNICA FENOMENOLÓGICA RESUMEN. Este artículo tiene como objetivo describir las posibles contribuciones de las filosofías de Edmund Husserl y Martin Heidegger para el desarrollo de una clínica fenomenológica. Reconoce que Husserl, con su Psicología Fenomenológica, inaugura una psicología de la subjetividad, que puede servir de base para la clínica fenomenológica. Discute las contribuciones y posibles limitaciones de las propuestas clínicas de Ludwig Binswanger y Medard Boss, que se proponen a tener como fundamentó la Analítica del Dasein de Heidegger. Sugiere la fenomenología existencial de Merleau-Ponty, que retoma el pensamiento del último Husserl teniendo como hilo conductor el concepto de Lebenswelt, como un camino fecundo para la clínica fenomenológica. Palabras-clave: Husserl; Heidegger; clínica psicológica. Ainda que encontremos referências ao termo fenomenologia, tal como hoje a entendemos, foi fenomenologia em pensadores do século XVIII - como proposta inicialmente por Edmund Husserl (1859- Lambert (1728-1777), Kant (1724-1804) e Fichte 1938) no fim daquele século como um novo método (1762-1814) - ou mesmo na famosa obra de Hegel de fazer filosofia, uma tentativa de trazer a filosofia Fenomenologia do Espírito, no início do século XIX a das especulações metafísicas abstratas para o contato * Doutora em Psicologia Clinica, Pós-Doutora em Antropologia Médica (DSM-HARVARD), Professora Titular da Universidade de Fortaleza. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010
  • 2. 724 Moreira com os problemas reais, com a experiência vivida e HUSSERL (1859-1938) concreta. Inspirada na Psicologia Descritiva de Franz Brentano (1838-1917), que foi professor de Husserl, a Do Idealismo Transcendental à Psicologia fenomenologia foi desenvolvida por sucessores deste, Fenomenológica tornando-se uma das grandes correntes filosóficas do Tal como originalmente formulada na Alemanha século XX (Moran & Mooney, 2002). por seu fundador Edmund Husserl (1859-1938), a A fenomenologia (do grego phainesthai, aquilo fenomenologia pode inicialmente ser caracterizada que se apresenta ou que se mostra, e logos, explicação, como o estudo descritivo “despreconceituoso” (no estudo) afirma a importância dos fenômenos da sentido da palavra de “sem um conceito prévio”) do consciência. Mais que um método, ela deve ser que aparece na consciência, precisamente na maneira considerada um movimento de pensadores como aparece. “A discussão de intencionalidade de extraordinários, alguns deles assistentes pessoais de Brentano inspirou Husserl, que viu nela a Husserl, como Edith Stein, Martin Heidegger, Eugene possibilidade de uma ciência da consciência pura, Fink e outros como Max Scheler e Karl Jaspers, que removida de construções causais e naturalísticas“ desenvolveram outras ideias em fenomenologia, em (Moran & Mooney, 2002, p. 12). contato direto ou em paralelo ao pensamento de Segundo o slogan do próprio Husserl (1985), a Husserl na Alemanha. Levada para a França por fenomenologia tem como objetivo “voltar às coisas Emmanuel Lévinas, com a tradução para o francês de mesmas”, sendo, em primeira instância, descritiva, Meditações Cartesianas (1931), a fenomenologia teve buscando clarificar temas despojados de conceitos aí um desenvolvimento próprio através do pensamento preconcebidos, tal como aparecem. Husserl fala com de Maurice Merleau-Ponty, Jean Paul Sartre, Simone frequência de descrição fenomenológica como de Bauvoir, Paul Ricoeur e Michel Henry, entre clarificação, iluminação, no sentido de elucidar o outros. significado do fenômeno em questão. Tendo em vista Podemos dizer que todos estes pensadores sua preocupação em tratar o fenômeno em sua foram, de alguma forma, críticos “internos” da totalidade e concretude, a fenomenologia se opõe ao proposta husserliana, ou seja, de uma maneira ou naturalismo, ao reducionismo, ao cientificismo ou de outra partem dela. Todos eles se tornaram outras formas de explanação que desloquem a atenção grandes nomes da fenomenologia, com maiores ou da maneira como aparece o fenômeno em questão. menores repercussões nas teorias psicológicas e A fenomenologia de Husserl critica todas as psiquiátricas. Não obstante, Martin Heidegger, formas de objetivismo, focalizando especificamente as assistente de Husserl, foi seu maior crítico, de tal maneiras como os objetos são constituídos na forma que alguns consideram Husserl como o experiência do sujeito, a estrutura e qualidade do criador da fenomenologia e Heidegger seu objeto tal como experienciado pelo sujeito. No transformador (Moran, 2000). primeiro Husserl – o das Investigações Lógicas (1901) Em 1939, para proteger os escritos de Husserl de –, estamos falando da experiência da consciência no possíveis destruições nazistas, estes foram mundo, sua análise transcendental da estrutura da clandestinamente transportados para a Universidade consciência pela busca das essências, que permanece, Católica de Leuven, na Bélgica, onde foram criados os ainda hoje, como introdução mais popular do Husserl-Archives. Muitos destes manuscritos foram pensamento husserliano. Isto explica o fato de ainda coligidos na Husserliana, uma série de edições hoje, quando se fala de fenomenologia, publicadas inicialmente em alemão, com traduções mais frequentemente se estar falando da fenomenologia recentes para o francês e o inglês. Ou seja, no Brasil, o transcendental de Husserl em sua busca das essências último Husserl, o Husserl da Husserliana, base do na estrutura da consciência. pensamento de Merleau-Ponty, tal como será discutido Para Husserl (1985), a consciência não é uma adiante neste artigo, até muito recentemente foi pouco substância (alma), mas uma atividade constituída por conhecido, tendo-se em vista a inexistência, até o atos (percepção, imaginação, volição, paixão etc.) com momento, de edições desta obra em português. Isto os quais se visa a algo. Husserl chama a esses atos de explica uma compreensão frequentemente restrita ao noesis. Aquilo que é visado pelos atos é nomeado por primeiro Husserl, o da fenomenologia transcendental, Husserl de noema. Cabe à fenomenologia revelar o quando ele mesmo, em seus últimos escritos, já que há de essencial nestes atos. O traço essencial da encaminhara seu pensamento no sentido do mundo vivido consciência é a intencionalidade: toda consciência “é (Lebenswelt). consciência de algo”, diz Husserl. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010
  • 3. Husserl Heidegger clinica fenomenológica 725 Entendendo a fenomenologia como a ciência Na última obra de Husserl, a Crise das Ciências fundamental para todas as ciências, Husserl (1985) Europeias e a Fenomenologia Transcendental insistia em que esta deveria ser um método sem (1936/1970), a análise do “mundo vivido” pressuposições, ou seja, as descrições deveriam evitar (Lebenswelt) aparece como indissoluvelmente ligada e pressupostos da filosofia moderna ou das tradições enraizada na experiência humana, o que oferece um científicas. Obviamente, é problemático não ter como “corretivo” para o reducionismo científico do ponto de partida nenhum pressuposto, tal como idealismo transcendental, inicialmente ambicionado formula Husserl em seu idealismo transcendental, por ele e tão criticado por todos os fenomenólogos tendo-se em vista o enraizamento histórico do existencialistas (em especial os existencialistas conhecimento humano, que torna impossível sua radicais franceses: Lévinas, Sartre, Merleau-Ponty, proposta radical “pura” na psiquiatria e na psicologia, Simone de Bauvoir) que o sucederam. que tem como objeto de trabalho e de estudo o ser Em seus últimos escritos Husserl focaliza o que humano em seu mundo. ele chamou de experiência predicativa, ou seja, a O termo consciência passou a ser evitado por experiência antes de ser formulada em julgamentos e Heidegger (1989) e outros fenomenólogos expressada linguisticamente. A noção de Lebenswelt existencialistas, porquanto consciência remete ao (mundo vivido) torna possível a “passagem” da caráter dualista da relação entre homem e mundo: fenomenologia transcendental à fenomenologia tenho consciência de algo – a análise intencional e existencial, que é aquela que pode contribuir para a descritiva da consciência definirá as relações psicoterapia. É esta última fase, a do Husserl da Crise, essenciais entre atos mentais e mundo externo – o que que, revisada por Goto (2007), mostra que, na remete ao fantasma da dicotomia sujeito-objeto, cuja verdade, Husserl foi o primeiro a falar de uma superação sempre foi o objetivo primeiro dos Psicologia Fenomenológica, o que se deu na primeira fenomenólogos. metade do século XX. Ele concebeu esta nova Gradualmente, na medida em que o conceito de disciplina com o objetivo de falar da vida “interna” mundo vai ganhando espaço em sua obra, Husserl tanto na filosofia como na psicologia empírica já (1985) propõe o conceito de redução fenomenológica, estabelecida desde o final do século IX. A psicologia que passa a ser central na fenomenologia. O filósofo de sua época estudava o observável, o “externo” – o acreditava que a estrutura e os conteúdos da objetivo. A concepção de Psicologia Fenomenológica consciência são profundamente distorcidos pela passou a compor o projeto fenomenológico de Husserl maneira do nos engajarmos na vida cotidiana. No na sua busca de um fundamento para a subjetividade. sentido de se assegurar contra teorizações, Husserl Esta psicologia descreveria as estruturas psíquicas propôs a epoché fenomenológica, ou suspensão da como tal para assim se chegar às estruturas atitude natural. A redução é a operação pela qual a transcendentais da subjetividade (Goto, 2007). existência efetiva do mundo exterior é “posta entre É possível afirmar, com o último Husserl, que a parênteses” para que a investigação se ocupe apenas autêntica e genuína concepção de psicologia com as operações realizadas pela consciência, sem se fenomenológica é importante para a psicologia clínica perguntar se as coisas visadas por ela realmente e para a psiquiatria, porque é com o desenvolvimento existem ou não. Através da redução, Husserl pretende desta disciplina que se poderá resgatar a subjetividade “suspender” a tese do mundo natural. como fonte originária da vida humana e sua correlação Conquanto seu comprometimento oficial seja com com o Lebenswelt. Segundo Goto (2007, p. 187), o idealismo transcendental da análise da estrutura da apesar de Husserl ter criticado a psicologia consciência, ao longo de sua obra Husserl caracterizou convencional e ter refutado o psicologismo existente a essência do fenômeno de distintas maneiras, na filosofia moderna, manteve sempre a passando, em sua etapa mais madura, a dar mais fenomenologia ligada a ela. atenção à corporeidade e intersubjetividade (ainda que Husserl conclui que a psicologia fenomenológica esta preocupação já estivesse presente anteriormente). e a fenomenologia transcendental são inseparáveis, Estas ideias serão retomadas enfaticamente na visto que, de maneiras distintas, percorrem o mesmo fenomenologia mundana de Merleau-Ponty, bem caminho até a subjetividade. Em sua última obra como na experiência do outro ou de alteridade, Husserl define a psicologia fenomenológica como desenvolvida na ética da alteridade radical pela uma ciência a priori e universal da vida anímica. Uma fenomenologia de Emmanuel Lévinas. ciência que se ocupa exclusivamente das estruturas internas, ou seja, das estruturas subjetivas puras, que Psicologia Fenomenológica são, para o filósofo, estruturas proto-originárias da Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010
  • 4. 726 Moreira própria vida. Deste modo a psicologia não deve se Husserl. Para Merleau-Ponty (1945), a fenomenologia ocupar de experiências externas como faz a psicologia não é um idealismo transcendental, como afirmava o científica, seguindo o modelo da física e da fisiologia, primeiro Husserl: seu destino é tematizar a existência, mas ao contrário, deve orientar-se exclusivamente para o ser-no-mundo. Ele ressitua a existência na essência e a vida interna, experiência anímica interna, não pensa que seja possível compreender o homem e o constituídas pelas vivencias intencionais (Goto, 2007, mundo de outra forma que não a partir de sua p. 187). facticidade. Coloca, assim, a fenomenologia husserliana com “os pés no chão”. Buscando uma O último Husserl, que propõe o conceito de fenomenologia existencial, de cunho eminentemente Lebenswelt, apresenta então, claramente, uma nova antropológico, Merleau-Ponty abole verdades psicologia, diferente da psicologia científica, que deve herméticas e pensamentos idealistas. Sustenta que o cuidar da subjetividade humana em vez de se conhecimento é sempre incompleto, uma vez que não preocupar com a observação de comportamentos existe um saber absoluto e a verdade é um movimento objetivos. Deste modo, Husserl inaugura uma que vai se constituindo no campo perceptivo, psicologia da subjetividade, o solo fecundo no qual se caracterizando-se como um mistério inesgotável, uma desenvolverão mais tarde as fenomenologias gênese perpétua, sempre aberta (Moreira, 2007, 2009). existenciais, que serão, por sua vez, desenvolvidas em A filosofia de Merleau-Ponty, na sua busca por diferentes pensamentos psiquiátricos e psicológicos permanecer no plano do pensamento pré-reflexivo, ligados a uma clínica fenomenológica. desenvolve uma fenomenologia que se mantém aquém Para a clínica fenomenológica não faz sentido da dicotomia sujeito-objeto. Como assinala Claude uma fenomenologia “não existencial”, porquanto o Lefort, editor da sua obra póstuma Le visible et l’ psicólogo clínico ou o psiquiatra estará sempre a invisible (1964), este título, por si só, evoca um serviço do outro, em uma relação intersubjetiva. pensamento livre das categorias sujeito-objeto Assim, na fenomenologia fundada por Edmund (Moreira, 2001, 2007, 2009), superando o pensamento Husserl estão os germes dos vários caminhos (e dualista ocidental, sendo sempre movido em uma descaminhos) do desenvolvimento contemporâneo da dialética cíclica, que nunca se fecha. A realidade é clínica psicológica e psiquiátrica de base opaca, não existem verdades absolutas. O mundo tem fenomenológica e existencial via conceituação de contornos múltiplos, assim como a pintura de psicologia fenomenológica, que tem como foco a Cézanne. Merleau-Ponty (1964, 1970) supera subjetividade; porém, embora não se possam esquecer definitivamente a dicotomia entre o mundo natural e o outros grandes nomes da fenomenologia - como mundo cultural através da priorização do significado Scheler, Jaspers, Stein, Sartre, Beauvoir, Patocha e do Lebenswelt (mundo vivido), conceito que, outros - é importante sublinhar aqui os consistindo no entrelaçamento da experiência desdobramentos deste movimento no que se refere, subjetiva com a experiência objetiva, foi o fio mais especificamente, ao caráter existencial da condutor de todo o pensamento ambíguo merleau- fenomenologia, ou à relação entre homem e mundo, pontyano (Moreira, 2009). através de dois grandes momentos, com Heidegger e A fenomenologia de Merleau-Ponty dá Merleau-Ponty. É sua fenomenologia existencial que continuidade direta ao pensamento do último Husserl. pode ser utilizada com mais sucesso na clínica, seja na Neste sentido, é possível encontrar no pensamento de psiquiatria, seja na psicologia. Apesar de entendermos Merleau-Ponty, via conceito de Lebenswelt, um Husserl como o iniciador de todo este movimento e de caminho fecundo para se pensar a clínica ainda no último Husserl encontrarmos a sua psicologia fenomenológica (Moreira, 2001, 2007, 2009). fenomenológica que inaugura a psicologia subjetiva, sua contribuição contemporânea para a clínica fenomenológica se destaca, principalmente, em seu HEIDEGGER (1889-1976) caráter metodológico. Do Dasein A Daseinsanalyse A retomada do “Lebenswelt” por Merleau-Ponty Martin Heidegger (1889-1976), ao criticar O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908- Husserl de ser intelectualista e cartesiano, abandonou 1961), contemporâneo de Sartre e Lacan, realiza, no os termos consciência e intencionalidade, centrais na seu famoso prefácio da Fenomenologia da Percepção, fenomenologia transcendental de Husserl. O sua tese de doutorado publicada em 1945, uma desenvolvimento próprio da fenomenologia de releitura existencialista da fenomenologia do último Heidegger era motivado por uma profunda Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010
  • 5. Husserl Heidegger clinica fenomenológica 727 insatisfação com o tom metafísico husserliano em sua ontológico é o plano da apresentação das estruturas busca das essências da consciência. Para Heidegger, a existenciais do ser. As estruturas existenciais – fenomenologia husserliana era mais um projeto que denominadas de Existenciais fundamentais havia perdido a historicidade essencial da natureza constituintes do Dasein - são: a temporalidade, a humana. Em sua obra O ser e o tempo (1927), para espacialidade, o ser-com-o-outro, a disposição, a descontentamento de Husserl, Heidegger supera o compreensão, o cuidado (Sorge), a queda e o ser-para- conceito de consciência e propõe o conceito de Dasein a-morte. A existência do Dasein, caracterizada pela (Moran, 2000). abertura do mundo e do sentido do ser e pela liberdade, se dá dentro destes existenciais, de maneira Em sua terminologia [de Heidegger] Dasein que as condições de possibilidade de uma existência deve substituir ‘sujeito’ ou ‘eu’, devido ao dependerão dos horizontes da própria condição sentido de ser simplesmente dado que estes humana (Pereira, 2001). Assim, Heidegger, que se termos adquiriram na filosofia da consciência propusera a abordar o problema do ser utilizando-se e da subjetividade do período moderno, incluindo aí a própria concepção husserliana do método fenomenológico de Husserl, na verdade o de sujeito (Gonçalves, Garcia, Dantas & supera quando substitui o conceito de consciência pelo Edwald, 2008, p. 430). de Dasein. A leitura da filosofia de Heidegger estrutura-se Ainda como assistente de Husserl, na assim sobre conceitos fundamentais para a fenomenologia chamada “década fenomenológica” (1919-1929) existencial tais como Dasein, ser-no-mundo, angústia, Heidegger sempre rejeitara sua busca das essências decisão. Todo o seu trabalho gira em torno do sentido através do método fenomenológico, chegando, de ser, seus modos e maneiras de enunciação e inclusive, a ridicularizar a concepção de ego expressão. Desta forma ele explicita o engano da transcendental e outros aspectos centrais do tradição de uma compreensão ôntica (do ente), em pensamento de Husserl (Moran & Mooney, 2002). A detrimento de uma compreensão ontológica (do ser). contribuição do pensamento de Heidegger é Estes temas, incialmente colocados em Ser e Tempo, inquestionável e inaugura – via fenomenologia do são desenvolvidos ao longo de toda a sua obra através Dasein - a assim chamada fenomenologia existencial, de sua analítica do Dasein, uma teoria que se funda na base de escolas e linhas de pensamento “destruição” das teorias sobre a subjetividade do contemporâneas em psicologia, psiquiatria, sujeito, particularmente das teorias de Husserl e de psicoterapia e psicopatologia, ainda que ele mesmo Kant. No contexto deste pensamento desconstrutivo não se definisse como existencialista, no sentido de não existe a cisão entre o sujeito e o objeto (Loparic, não pertencer ao Existencialismo enquanto 2002). movimento. É nos Seminários de Zollikon (Heidegger, 2001) Em sua monumental obra Ser e Tempo, de 1927, que é possível aproximar a analítica do Dasein de Heidegger (1989) desenvolve uma interpretação Heidegger da clínica - psiquiátrica ou psicológica - ontológica do sentido do ser através de sua analítica psicoterapêutica. Este seminários foram organizados do Dasein, focalizando sua análise no ser dos entes durante 10 anos, a partir de 1959, pelo médico enquanto tal. Foge, assim, à via da metafísica clássica psiquiatra Medard Boss em sua casa em Zollikon, na que recore à descrição e classificação das Suiça, para cerca de 50 a 70 psiquiatras e estudantes características definidoras do existir dos entes. O de psiquiatria. Nesta obra, que conta com a tradução termo Dasein, nesta perspectiva, refere-se ao existir de Medard Boss, dos seminários e de cartas trocadas humano que se dá como um acontecer (sein) que se com ele, Heidegger discorre sobre Ser e Tempo e, realiza aí (Da), no mundo, sendo o próprio existir que especificamente, sobre a Analítica do Dasein ou consitui o aí em que se dá a existência. Nesse sentido, Daseinsanalyse, termo que virá a ser adotado como tendo-se em vista a “finitude” humana, a uma abordagem psiquiátrica por Binswanger e Boss. temporalidade e a historicidade serão fundamentais na análise heideggeriana do Dasein, já que que toda Daseinsanlyse Psiquiátrica x Analítica do Dasein em possibilidade de compreensão do existir humano Psicologia e Psiquiatria dependerá justamente da temporalidade enquanto historicidade e finitude (Pereira, 2001). Ludwig Binswanger Em Ser e Tempo, Heidegger (1989) distingue dois O termo Daseinsananalítica, utilizado por planos: o ôntico e o ontológico. O ôntico é o plano Heidegger em Ser e tempo para também designar sua relacionado à elucidação da existência do Dasein; o Analítica do Dasein, foi utilizado pelo psiquiatra suíço Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010
  • 6. 728 Moreira Ludwig Binswanger (1881-1966) como Embora a proposta de Binswanger tenha sido Daseinsanalyse. Na época sua proposta ficou extensamente criticada até pelo próprio Heidegger conhecida como Daseinsanalyse Psiquiátrica. De (2001), devido “não somente a enganos conceituais, formação psicanalítica, Binswanger criticava Freud mas também à mistura de considerações ônticas, no por suas teorizações a respeito do inconsciente ou de caso psicológicas, com as ontológicas” (Loparic, um aparelho psíquico que reduziam o homem a um 2002, p. 396), sua contribuição para a Psiquiatria e a sistema ou esquema. Psicologia foi fundamental no sentido de criar uma Ao longo da vasta obra de Binswanger (1961, nova perspectiva – a vertente clínica fenomenológica 1970, 1971), o que de fato se pode observar é que a existencial. Binswanger pode não ter realizado o que teorização de sua clínica fenomenológica não se propôs: desenvolver uma Daseinsanalyse consegue se desprender do conceito de consciência, tal Psiquiátrica; mas, seguindo um caminho próprio, como pretendia, influenciado pela leitura de Ser e passou a ser comumente conhecido como o criador da Tempo de Heidegger. Assim, conquanto se utilize do Psicologia Existencial e o “pai da Psicopatologia termo Dasein e cite Heidegger em vários de seus Fenomenológica” (Van Den Berg, 1994). livros, seu pensamento permanece mais próximo de Husserl do que de Heidegger (Gonçalves et al., 2008; Medard Boss Loparic, 2002; Mattar & Sá, 2008; Tatossian, 2006). Medard Boss (1903-1990), médico psiquiatra O próprio Binswanger chegou a reconhecer este fato também suíço, foi o responsável pelos seminários (Boss, 2001), e por ocasião do I Congresso de conduzidos por Heidegger em Zollikon de 1959 a Psiquiatria, em 1950, em Paris, propôs o termo 1969, editados no livro Seminários de Zollikon, “Análise Antropológico-Fenomenológica”. Não fundamento da Daseinsanalyse, e presidente da obstante, foi sob a denominação “Análise existencial” Associação Internacional de Daseinsanalyse, fundada que seu trabalho passou a ser divulgado mais em 1971, em Zurique. A convite do médico e recentemente, agora com a sua concordância. Em psicoterapeuta Sólon Spanoudis, Medard Boss 1950, no mesmo congresso, ele rejeitara esta participou, a partir de 1973, de alguns seminários em denominação, por sua associação da palavra São Paulo, fundamentais para a introdução da “existencial” ao existencialismo de Jean Paul Sartre Daseiseinsanalyse no Brasil. que, em seu livro O Ser e o Nada, criticara Heidegger Embora Boss e Binswanger estejam de acordo no por este tomar como seu ponto de partida o Dasein, e que se refere aos princípios centrais da assim chamada não a consciência: “Ora [diz Binswanger], é Daseinsanalyse Psiquiátrica, Boss permaneceu mais justamente a ideia de Dasein que é importante para a perto das ideias originais de Heidegger. Enquanto psiquiatria, e não a de ‘consciência’” (Verdeaux & Binswanger se utiliza dos conceitos heideggerianos de Khun, 1971, p. 30). Umwelt, Mitwelt e Eigenwelt, Boss prefere os Na esteira do pensamento de Binswanger, mas existenciais de Heidegger. Assim, ele se interessou, também resgatando, eventualmente, o pensamento de por exemplo, em saber como as pessoas viviam o Heidegger e de Boss, bem como de outros psiquiatras corpo, o espaço e o tempo para além do tempo fenomenólogos europeus da primeira metade do cronológico, por exemplo. Concorda com Binswanger século XX, não se pode deixar de mencionar a no que se refere à importância de nossas relações com importante contribuição de Rollo May, introduzindo os outros e entende que não somos indivíduos este pensamento nos Estados Unidos e criando o que trancados em nossos corpos, mas vivemos em um passou a se chamar de Psicologia Existencial (May, mundo compartilhado, “iluminando” uns aos outros. 1986). A publicação do livro Existence, organizado O interesse de Boss pelo pensamento de por May, Angel e Ellenberger (1967), contando com Heidegger era eminentemente clínico. Acreditava que capítulos do próprio Binswanger, tornou-se um marco as considerações filosóficas da Analítica do Dasein na história da Psicologia Existencial norte-americana, poderiam ser úteis para a psicoterapia, tendo em vista que, naquele país, assumiu características específicas que adoecer é uma constituição fundamental, comum a relacionadas ao próprio contexto. Seguiu, então, um todos os homens (Mattar & Sá, 2008). Neste sentido, caminho singular, entrelaçada ao movimento do Boss e Condreau (1976, p. 26) definem a potencial humano, que, por sua vez, contou com Daseinsanalyse como “antes de tudo e grandes nomes da Psicologia Humanista como Carl primordialmente, uma abordagem do conjunto dos Rogers, Abraham Maslow, Gordon Allport, entre fenômenos chamados normais e patológicos do existir outros. humano. Mas esta abordagem não é mais que um Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010
  • 7. Husserl Heidegger clinica fenomenológica 729 caminho, um meio de acesso. Não leva a um tesouro do Dasein’. No decorrer desta Analítica do de conclusões cientificas”. Dasein en Ser e Tempo eu também falo de Dasinsanalyse, com o que quero dizer o Daseinsanalyse x Analítica do Dasein exercer da analítica. Mattar e Sá (2008) lembram a diferença entre É público o fato de que Heidegger discordou, em análise e analítica, assinalando que a escolha do termo vários aspectos, da forma como Binswanger por parte de Heidegger em sua obra Ser e Tempo, de desenvolveu uma Daseinsanálise Psiquiátrica 1927, foi “analítica” (Analytik) e não “análise” supostamente baseada no conceitos de Ser e Tempo. (Analyse). O moderno significado de “análise” o reduz Em especial discordou do entendimento de a uma decomposição em elementos, em analogia com Binswanger do seu conceito fundamental: o Dasein. A a química; no entanto, análise vem do grego analisein. compreensão de Binswanger lhe parecia permanecer Como historiado por Heidegger no Seminário de no plano do ôntico, aniquilando o que para ele era Zollikon de 23 de novembro de 1965, o primeiro fundamental, o ontológico. Em manuscrito confiado a registro desta palavra foi na Odisseia de Homero, ao Medard Boss em Zollikon, em 8 de março de 1965, descrever aquilo que Penélope fazia todas as noites: Heidegger (2001) afirma: “A ‘Daseinsanalyse desfazer a trama que tecera durante o dia. Análise, Psiquiátrica’ retirou da Análise Ontológica- então, Fundamental do Dasein a constituição fundamental significa o destecer de uma trama, ou libertar, que em Ser e Tempo chama-se ser-no-mundo e a soltar alguém ou alguma coisa das amarras. utilizou, baseando sua ciência unicamente nela” O termo analítica, utilizado por Kant e (Binswanger, 1970, p. 205). E no seminário de 23 de retomado por Heidegger, não conduz a uma novembro do mesmo ano Heidegger (2001, p. 146) desintegração do fenômeno, mas sim, ao seu explicita: caráter orginário, ao seu sentido, sua condição de possibilidade. A analítica tece e No fim desta primeira aula precisamos voltar destece, para libertar o sentido que possibilita à pergunta da diferença entre analítica do o tecido, para vislumbrar o próprio tecer e Dasein e análise do Dasein. Isto sem levar retecer. Esta é a via pela qual Heidegger irá em consideração a ‘Daseinsanlyse compreender a analítica. A Daseinanalyse, Psiquiátrica’ de Ludwig Binswanger. A análise da existência, é definida por ele em fenomenologia de Husserl, que ainda o “Seminários de Zollikon” como o exercicio influencia, a qual permanece fenomenologia ôntico da analítica ontológica empreendida da consciência, impede a visão clara da em ‘Ser e Tempo’ (Mattar & Sá, 2008, hermenêutica fenomenológica do Dasein. p.189). Conquanto Boss seja considerado o autor que se A analítica não pretende uma desintegração do manteve bem mais próximo da proposta heideggeriana fenômeno, não o divide, o que faria perder de vista o (Gonçalves et al., 2008), Loparic (2002) defende a fenômeno como um todo, “a qual” deixaria de ser, ideia de que, como Binswanger, e, inclusive metodologicamente, fenomenológico. Busca o caráter influenciado por ele em seu início, Boss também originário do fenômeno, sua unidade ontológica confundiu o ôntico e o ontológico, tal como Heidegger originária, os caracteres existenciais que constituem identificara em Binswanger (1970, p. 407): “Daí seu ser geral: temporalidade, espacialidade, decorre uma suspeita adicional: a de que Boss, assim corporeidade, cuidado, angústia, disposição ou humor como Binswanger, não soube dar a sua daseinsanálise e ser-para-a-morte. Nas palavras de Heidegger (2001, o caráter de ciência factual, ôntica, em contraposição à p. 141), analítica existencial de Heidegger, de natureza ontológica”. A finalidade analítica é, pois, evidenciar a Com tantos possíveis “enganos” quando da unidade original da função da capacidade de compreensão. A analítica trata de um utilização do pensamento de Heidegger na Psiquiatria, retroceder a ‘uma conexão em um sistema’. o lembrete de Mattar e Sá (2008) a respeito da A analítica tem a tarefa de mostrar o todo de diferenciação entre análise e analítica é importante no uma unidade de condições ontológicas. A sentido de pensarmos as tantas vertentes psiquiátricas analítica como analítica ontológica não é um e psicológicas na contemporaneidade que se intitulam decompor em elementos, mas a articulação como clínicas fenomenológicas, tendo como base de uma unidade, uma estrutura. Este é o tanto Freud como Heidegger, Husserl, Binswanger e fator essencial no meu conceito de ‘analítica outros autores. “Juntar” a Daseinsanalyse Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010
  • 8. 730 Moreira heideggeriana com o método psicanalítico pareceria uma contribuição importante para a clínica complicado para Heidegger (2001, p. 146), visto que fenomenológica. ele entende que em seu método “não se retrocede, As filosofias de Husserl e de Heidegger como fazia Freud, os sintomas aos elementos. Antes, representam contribuições fundamentais, mas muito pergunta-se por aquelas determinações que há para caminhar no âmbito da clínica. Sem estes caracterizam o ser do Dasein com referência à sua grandes pensadores da nossa história não teríamos relação com o ser de modo geral”. No entanto, chegado até aqui. Como psicoterapeutas, psicólogos Binswanger o fez de uma forma magistral, embora, clínicos ou psiquiatras, chegou o momento de “desvirtuando” o pensamento de Heidegger, tenha transcendermos não apenas uma clínica que se criado uma outra vertente. perpetua pensando em termos dualistas de subjetividade x objetividade (interno x externo, corpo x mente, somático x emocional, consciente x CONCLUSÃO inconsciente), mas também em termos, unicamente de sujeito-sujeito (intersubjetividade), que, ainda que Husserl e Heidegger, cada um à sua maneira, têm, avance muito em relação à psicologia da relação sem dúvida, um grande potencial de pensamento a ser sujeito-objeto, ainda se mantém dualista. usufruído pela clínica fenomenológica nas Psicologias Muitos são os meios para esta tarefa. Um caminho e Psiquiatrias; e quando mencionamos a Psicologia, interessante para a clínica fenomenológica, no sentido estamos falando desta psicologia inaugurada por de transcender a intersubjetividade, mostra-se possível Husserl como uma psicologia da subjetividade, em via noção de intercorporeidade, que desemboca no detrimento da tradicional psicologia científica conceito de carne do último Merleau-Ponty: uma pista objetivista. fecunda para se pensar uma clínica fenomenológica No que se refere à contribuição específica de pré-reflexiva, do humano e do sensível; uma clínica Heidegger à clínica fenomenológica, vale a sugestão fenomenológica do Lebenswelt, que busca de Loparic (2002) de novas tentativas, que partam compreender os significados do mundo vivido para diretamente do Dasein de Heidegger sem, aquém da dicotomia sujeito-objeto. necessariamente, seguir o caminho de Binswanger ou Boss, que, como vimos, tem lá seus “atalhos”, sem Agradecimento que com isso suas contribuições à clinica Agradeço a Célio Freire, pelos valiosos fenomenológica sejam menos importantes. No sentido comentários sobre a versão original deste artigo. da criação de novas perspectivas para a clinica fenomenológica, é interessante mencionar Mattar e Sá (2008), que, realizando um exercicio de pensar como REFERÊNCIAS se desdobraria clinicamente a atitude fenomenológica em uma psicoterapia de inspiração daseinsanalítica, Binswanger, L. (1961). Psiquiatría existencial. Santiago: descrevem as propostas brasileiras de Sá (2002) e Universitária. Feijó (2004) como possíveis atuações do Binswanger, L. (1970). Analyse existencielle et psychanalyse psicoterapeuta com atitudes que se relacionam aos freudienne. Paris: Gallimard. princípios fundamentais colocados pela Analítica do Binswanger, L. (1971). Introduction à l’Analyse Existentielle. Paris: Dasein de Heidegger. Éditions de Minuit. Com relação à possível contribuição de Husserl à Boss, M. & Condreau, G. (1976). Daseinanalyse: como a clínica fenomenológica, esta parece encontrar um Daseinsanalise entrou na psiquiatria. Revista Daseinsanlyse, 2, 5- importante lastro no pensamento do primeiro Merleau- 23. Ponty, onde a noção de intersubjetividade, nascida Boss, M. (2001). Prefácio à primeira edição. In M. Heidegger com Husserl, se expande. Posteriormente, traçando um (Editado por Medard Boss, Seminários de Zollikon. (pp. 9-16). caminho próprio, a partir do último Husserl, via Petrópolis, RJ: Vozes. conceito de Lebenswelt, o último Merleau-Ponty Feijó, A. (2004). Psicologia clínica e o pensamento de Heidegger em acaba, com sua ontologia da carne – que tira o foco do Seminários de Zollikon. Revista Fenômeno Psi, 2 (1), 9-16. sujeito, ou mesmo da intersubjetividade – Gonçalves, R., Garcia, F., Dantas, J. & Edwald, A. (2008). Merleau- Ponty, Sartre e Heidegger: três concepções de fenomenologia, três aproximando-se do pensamento de Heidegger em sua grandes filósofos. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 8 (2), 402- Analítica do Dasein, o Ser-aí, o Ser-no-mundo (ainda 435. que Merleau-Ponty raramente mencione Heidegger, Goto, T. (2007). A (re)constituição da psicologia fenomelógica em partindo diretamente do pensamento do último Edmund Husserl. Tese de Doutorado, Curso de Pós-Graduação Husserl). É esta fenomenologia existencial que tem Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010
  • 9. Husserl Heidegger clinica fenomenológica 731 em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Moran, D. & Mooney, T. (Ed.), (2002). The phenomenology reader. Campinas, SP. London: Routledge. Heidegger, M. (1983) Heidegger (Col. Os Pensadores). São Paulo: Moran, D. (2000). Introduction to phenomenology. London: Abril Cultural. Routledge. Heidegger, M. (1989). Ser e tempo (Vols. 1-2). Petrópolis, RJ: Vozes. Moreira, V. (2001). Más allá de Ia personna. Hacia une psicoterapia Heidegger, M. (Editado por Medard Boss). (2001). Seminários de fenomenológica mundana. Santiago de Chile: Editorial Zollikon. Petrópolis, RJ: Vozes. Universidad de Santiago. Heidegger, Martin (2001). (Editado por Medard Boss), Seminários de Moreira, V. (2007). De Carl Rogers a Merleau-Ponty: a pessoa Zollikon. Petrópolis, RJ: Vozes. mundana em psicoterapia. São Paulo: Annablume. Husserl, E. (1936-1970). The Crisis of European Sciences and Moreira, V. (2009). Clínica humanista fenomenológica: estudos em Transcendental Phenomenology. Evanston: Northwestern psicoterapia e psicopatologia crítica. São Paulo: Annablume. University Press. Pereira, M. (2001). Sobre os fundamentos da psicoterapia de base Husserl, E. (1985) Husserl (Col. Os Pensadores). São Paulo: Abril analítico-existencial, segundo Ludwig Binswanger. Revista Cultural. Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 4(1), 137-142. Loparic, Z. (2002). Binswanger, leitor de Heidegger: um equívoco Sá, R. (2002). A psicoterapia e a questão da técnica. Arquivos produtivo? Natureza Humana, 4 (2), 383-413. Brasileiros de Psicologia, 54 (4), 348-362. Mattar, C. & Sá, R. (2008). Os sentidos de “análise” e “analítica” no Tatossian, A. (2006). Fenomenologia das psicoses. São Paulo: Escuta. pensamento de Heidegger e suas implicações para a psicoterapia. Van den Berg, J. H. (1994). O paciente psiquiátrico. Campinas: Estudos e Pesquisas em Psicologia, 8 (2), 189-200. Editorial Psy II. May, R. (Org.), (1986). Psicologia Existencial. Porto Alegre: Globo. Verdeaux, J., & Khun R. (1971). Glossaire. In Binswanger, L. May, R., Angel, E. & Ellenberger, H. (1967). Existencia. Madrid: Introduction à l’Analyse Existentielle. (pp. 27-37). Paris: Les Gredos. Éditions de Minuit. Merleau-Ponty, M. (1964). Le visible et l’ invisible. Paris: Gallimard. Merleau-Ponty, M. (1945). Phénoménologie de la perception. Paris: Recebido em 31/07/2009 Gallimard. Aceito em 12/08/2010 Merleau-Ponty, M. (1970). La doute de Cezánne. In M. Merleau- Ponty, Sens et non sens. (pp.15-44). Paris: Nagel. Endereço para correspondência: Virginia Moreira. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. APHETO - Laboratório de Psicopatologia e Psicoterapia Humanista-Fenomenológica Crítica. Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Av. Washington Soares, 1321, CEP 60.811-905, Fortaleza-CE, Brasil. E-mail: virginiamoreira@unifor.br. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 4, p. 723-731, out./dez. 2010