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Sinal de menos nº 6, dez. de 2010
2
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                          [-] Sumário # 6
EDITORIAL                                                    3


ARTIGOS
APROXIMAÇÕES D’O CASTELO DE KAFKA
Cláudio R. Duarte                                            5

O VELHO MUNDO PRECISA SUCUMBIR
Mito e história em “Berlin Alexanderplatz”
Rapahel F. Alvarenga                                        17

A FRATURA DA FORMA
Constituição e implicações da representação da metrópole
em “Berlin Alexanderplatz”
Gabriela Siqueira Bitencourt                               69

LOUIS-FERDINAND CÉLINE
“Voyage au bout de la nuit” e a crise do realismo
Daniel Garroux                                             98

DA CENTRALIDADE DE CANUDOS
César Takemoto                                             123

JOÃO TERNURA
Um livro à revelia do próprio autor
Helena Weisz                                               131

OTIMISMO E SEBASTIANISMO
NA HISTÓRIA RECENTE DA TROPICÁLIA
Carlos Pires                                               146

O DIA-A-DIA COLONIZADO
Lacan, Lefebvre e os eventuais discursos cotidianos
Nils Göran Skare                                           162

TRADUÇÕES LITERÁRIAS
VARIANTE DA ABERTURA DE O CASTELO
Franz Kafka                                                181

A BAILARINA E O CORPO
Alfred Döblin                                              184
3
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                                   Editorial
       A edição nº 6 de Sinal de Menos gira em torno das seguintes questões: como a
literatura tem representado a cultura dos marginalizados na sociedade moderna? Como o
que está “à margem” da sociedade, incluindo aí o inconsciente de seus sujeitos, irrompe nas
relações sociais?
       A seção de ARTIGOS abre com um ensaio de CLÁUDIO R. DUARTE sobre O Castelo
de Franz Kafka. O autor esboça as linhas fundamentais de sua construção e mostra por que
este é talvez o romance mais complexo de Kafka, sintetizando momentos fundamentais de
sua obra, pois além da dominação e da alienação, ele introduz de forma poderosa a
irredutível não-identidade da figura de K.
       A seguir, temos dois ensaios sobre o romance Berlin Alexanderplatz de Alfred
Döblin. O primeiro, de RAPHAEL F. ALVARENGA, procura integrar à explicação
materialista a dimensão mítico-religiosa deste que é um “romance de formação” de um
marginal, inscrevendo a obra no conturbado contexto político e cultural da República de
Weimar, a cujo destino está enredado o de suas personagens. O texto de GABRIELA S.
BITENCOURT busca, a partir da análise de alguns elementos formais da representação do
espaço urbano no livro, discutir quais os desdobramentos do uso da montagem e como, por
meio dela, a configuração da “metrópole literária” afeta a forma do romance.

       Em seguida, DANIEL GARROUX faz uma leitura de Voyage a la bout de la nuit, de
Louis-Ferdinand Céline, sob o ponto de vista da ruptura da forma realista tradicional. Ao
colocar seu leitor diante de um fluxo discursivo não-linear que emana de uma consciência
cindida a narrativa subverte alguns dos pressupostos de que o gênero do romance havia se
servido até então. O ensaio desenha a experiência social de fundo sedimentada no romance.

       No próximo artigo, CÉSAR TAKEMOTO tenta repensar a centralidade do evento da
guerra de Canudos para a configuração artística de duas obras importantes da literatura
brasileira do século XX: Os Sertões de Euclides da Cunha e Grande Sertão: Veredas de
Guimarães Rosa. Para tal, o autor se utiliza de uma crônica de Machado de Assis para daí
avançar alguns pontos na interpretação de uma determinada constelação histórica
brasileira.
       Em seu artigo, HELENA WEISZ acompanha a trajetória do mais ambicioso projeto
do escritor brasileiro Aníbal Machado. Um livro que começou a ser escrito ainda no
primeiro Modernismo, acompanhou todos os percalços e contradições desse movimento e
só foi terminado em 1964.
4
[-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010

      Fechando a “sessão brasileira”, CARLOS PIRES analisa um balanço histórico da
música popular e das transformações do Brasil, desde o final da década de 1960, feito por
Caetano Veloso, em 1993. Essa reconstrução da história recente do país reposiciona
o tropicalismo como um evento sem certas linhas de força, que são centrais para entendê-
lo. A análise busca compreender qual o sentido desses apagamentos pontuais, que
aparecem quase como sintomas no discurso de Veloso.
      O último ensaio, da autoria de NILS GÖRAN SKARE, pensa a cotidianidade, no
sentido de Henri Lefebvre, sob o ponto de vista da teoria lacaniana do discurso, em suas
modalidades fundamentais (a do mestre, a do universitário, a da histérica, a do analista e,
por fim o “dialeto” do capitalista). Se o cotidiano é o lugar potencial do acontecimento, o
capitalismo, segundo o autor, seria um sistema que busca administrá-lo e, no limite,
evacuá-lo do cotidiano.
      A seção de TRADUÇÕES LITERÁRIAS traz uma variante da abertura de O Castelo
de Kafka, que lança certa luz sobre o caráter da luta de K. no romance, e um pequeno conto
de ALFRED DÖBLIN (“A Bailarina e o corpo”), ambos traduzidos diretamente do alemão.
      Lembramos que a revista vem aceitando contribuições. O próximo número trará uma
entrevista com Robert Kurz, repensando temas de seu livro seminal, O colapso da
modernização, após 20 anos de sua publicação.


                                                                     DEZEMBRO de 2010
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     Aproximações d’O Castelo de Kafka


Cláudio R. Duarte*



1. Como nas grandes obras, a abertura de Das Schloß (1922) nos põe imediatamente diante
de uma célula de seu princípio de construção:

                “Era tarde da noite quando K. chegou. A aldeia jazia na neve profunda. Da encosta
                [Schloßberg, colina do castelo] não se via nada, névoa e escuridão a cercavam, nem mesmo o
                clarão mais fraco indicava o grande castelo. K. permaneceu longo tempo sobre a ponte de
                madeira que levava da estrada à aldeia e ergueu o olhar para o aparente vazio.”1


A primeira visão das terras do conde Westwest é esta: o vazio aparente na paisagem em
preto e branco. K. fica por longo tempo parado sobre a ponte observando a presença-
ausência da aldeia e do castelo, envoltos na bruma e na neve. Eles não só não se oferecem à
perspectiva enquanto paisagem, como K. parece nada saber sobre eles. O que aqui fica
pressuposto é a indistinção de aldeia e castelo.


2. Isto que nos põe imediatamente diante do enigma de K.: não só ele aparentemente
desconhece que chegou a seu destino, a uma aldeia e a um castelo (“Em que aldeia eu me
perdi? Então existe um castelo aqui?”, DS, 8/10), como ignora o tal conde e suas
propriedades – “o que torna impossível”, como já apontava Adorno, “que ele tenha sido
chamado até lá”, isto é, que ele seja de fato um agrimensor, com seus ajudantes, que tenha
se adiantado a eles durante a noite e tenha lhes confiado aparelhos de medição. 2
Certamente é por isso que ele não reconhece os ajudantes, Artur e Jeremias, quando estes
chegam à hospedaria no dia seguinte, enviados pelo castelo (DS, 31/32). Quem é K., afinal?
Um impostor? Um comediante (“Chega de comédia”, diz ele, DS, 9/11)? O que veio fazer
ali? O que ele quer? Como a personagem se desenvolve na trama desde o início obscura?


* Bolsista CNPq, doutorando DG-FFLCH/USP.
1 KAFKA, Franz. Das Schloß [1922]. (Kritische Ausgabe. Herausgegeben von Malcom Pasley). Frankfurt a. M.: S.
  Fischer, 1982, p. 7. (Trad. Modesto Carone: O Castelo. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 9).
  Doravante, cito o texto diretamente no corpo do texto sob a abreviação DS, seguido do número das páginas em
  alemão e em português, respectivamente.
2 ADORNO, Theodor W. “Anotações sobre Kafka” [1953] in:__. Prismas. (Crítica cultural e sociedade) [1955]. São

  Paulo: Ática, 1998, p. 242. Marthe ROBERT também apontou a impostura deste início (“Simbolismo y crítica de
  los símbolos” in:__. Acerca de Kafka/Acerca de Freud [1967]. Barcelona: Anagrama, 1970, p. 42-3).
6
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3. Como se sabe, longe de responder claramente tais questões, o romance de Kafka constrói
um mundo cerrado e enigmático, que tende a suscitar múltiplas interpretações. O narrador
em terceira pessoa baixa ao horizonte das personagens e tende a se reduzir à visão de fora,
com um acesso limitado ao seu mundo interior. Ele se centra na ótica de K.: o texto se
condensa e se fecha nos primeiros dias de sua permanência na aldeia e opera como uma
contínua apresentação, multiplicação e destruição de aparências e de imagens positivas. Daí
a vulnerabilidade e a fragilidade de muitas interpretações da obra, que somente ganham
alguma consistência quando se dispõem pacientemente a ler os detalhes do ponto de vista
da totalidade da composição (mesmo inacabada).


4. Se K. não é simplesmente um estrangeiro, mas um falso agrimensor (Landvermesser) (o
qual, Schwarzer pretende reduzir a “um reles e mentiroso vagabundo [Landstreicher]”, em
um momento de fúria, DS, 12/13) – um intruso que se vê nitidamente como um “agressor”
–, o castelo aceita e alimenta a luta com outra impostura. De fato, após o primeiro
telefonema de Schwarzer, que dava sinal negativo ao suposto agrimensor, K. espera apenas
que os aldeões se atirem sobre si e o expulsem do território do conde. Mas, após o
inesperado segundo telefonema que o confirma como agrimensor (o próprio “chefe do
escritório” é quem telefona), ele reflete o seguinte:

              “Então o castelo o havia designado agrimensor. Por um lado isso era desfavorável a ele, pois
              indicava que no castelo se sabia tudo o que era preciso a seu respeito, as relações de força
              tinham sido pesadas e aceitavam a luta sorrindo.” (DS, 12/14, grifos meus).


Se os camponeses levam as leis e as tradições à risca, o castelo sustenta a impostura de K. e
indiretamente confirma-se também como farsa. Por isso, na seqüência deste mesmo trecho,
K. sente também certa liberdade e certo destemor em relação a seu adversário:
              “Mas por outro lado isso também era propício, pois a seu ver provava que o subestimavam e
              que ele teria mais liberdade do que de início podia esperar. E se acreditavam com esse seu
              reconhecimento [Anerkennung] como agrimensor – do ponto de vista moral, sem dúvida
              superior – conservá-lo num estado de medo contínuo, então eles se enganavam: isso lhe dava
              um leve tremor, mas era tudo.” (DS, 12-3/14)


Nessa chave, novos problemas se colocam: onde a lei tem sua verdadeira sede ou ponto de
sustentação? Qual é a diferença entre a aldeia e o castelo? O que há por trás daquele “vazio
aparente”?


5. Como no conto “Diante da lei”, estamos o tempo todo “Diante do castelo”, mas o castelo
– a lei ou a sede da lei – não está simplesmente ausente. Muito pelo contrário, o castelo está
7
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presente demais lá embaixo, na aldeia. O paradoxo inicial de O Castelo é que apesar de seu
título ele se passa o tempo todo na aldeia. Talvez porque o castelo é, de certa forma, nada
mais que a aldeia. Como ensina o professor da aldeia: “Não há diferença entre os
camponeses e o castelo” (DS, 20/21). “As autoridades judiciais” – escreve Wilhelm Emrich
– “não estão fora, mas habitam em pleno centro da vida terrena, ou mais ainda, elas são a
vida mesma. (...) A lei desconhecida segue sendo desconhecida ainda que incessantemente
esteja presente e opera em todas as relações da vida e do pensamento.” 3 A fantasmagoria do
castelo manifesta-se na aldeia, na vida dos aldeões, na sua consciência e na sua prática
reificadas; no limite, ele se confunde com eles e é idêntico a eles. “Em lugar nenhum K.
tinha visto antes, como ali, as funções administrativas e a vida tão entrelaçadas – de tal
maneira entrelaçadas que às vezes podia parecer que a função oficial e a vida tinham
trocado de lugar” (DS, 94/92-3).


6. Kafka nos insere num mundo ficcional em que há e não há distinção entre as coisas e os
seres. Pensando na dona do albergue (Gardena = guardiã) e talvez em Frieda e nos
ajudantes, K. se pergunta: “o que significava, por exemplo, o poder até agora apenas formal
que Klamm exercia sobre o ofício de K., comparado com o poder que Klamm tinha em toda
a sua efetividade no quarto de dormir de K.?” (DS, 94/93). Essa indistinção entre as ordens
do mesmo e do outro – a coerção da identidade que aliena e esmaga as particularidades –
tende a ser a forma predominante do livro. Como ruína desse mesmo processo social
efetivo, ele próprio restou como torso monumental de exposição do problema da reificação
e do poder alienado, na sociedade moderna.


7. O romance foi lido diversas vezes como uma espécie de metafísica da ausência, de busca
impossível do santo Graal ou da morada do deus absconditus, ou mais simplesmente como
a busca da integração na vida da aldeia ou do castelo (K. sendo o protótipo do judeu,
segundo alguns, para outros uma espécie de “messias”), nesse caso, vale dizer, uma
integração no seio da mais completa alienação. Na versão alucinada de Günter Anders, por
exemplo, a vida de K. consistiria nas “tentativas e esforços mil vezes repetidos para ser

3   EMRICH, Wilhelm. Protesta y promesa [1960]. Barcelona/Caracas: Alfa, 1985, p. 128-9. Este ponto foi reforçado
    por ŽIŽEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem. O sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p.
    187. Para análises específicas de O Castelo, beneficiei-me de comentários de: ROBERT, Marthe. “Le dernier
    messager” in:__. L‟ ancien et le nouveau. De Don Quichotte à Franz Kafka. Paris: Grasset, 1963; EMRICH,
    Wilhelm. “Der menschliche Kosmos: der Roman „Das Schloss‟” in:__. Franz Kafka. Frankfurt a. M./Bonn:
    Athenäum, 1958; KRAFT, Herbert. “Being There Still: K., Land Surveyor, Stable-Hand, ...” in:__. Someone like K.
    (Kafka‟s Novels). (Trad.: R. J. Kavanagh e H. Kraft). Würsburg: Königshausen & Neumann, 1991; BOA, Elizabeth.
    “The Castle” in: Preece, J. (ed.). The Cambridge Companion to Kafka. Cambridge: Cambridge University Press,
    2002.
8
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aceito” na aldeia do castelo, em que se esforçaria para “atender a todas as prescrições,
apropriar-se „interiormente‟ delas e justificar até mesmo as pretensões „imorais‟ dos
governantes”! Kafka se torna, assim, um “moralista do nivelamento” e da “obediência”. 4 No
entanto, desde o início K. confessa que não é poderoso e que seu respeito pelos poderosos é
uma estratégia ou artimanha (DS, 16/17). Por certo, trata-se de uma busca obstinada, mas
com um sinal desde o início negativo: é impossível imaginar que K. leve realmente “a sério”
o que se passa no castelo a partir da admissão de sua impostura, muito menos que ele
atribua um caráter natural ou divino a ele ou um sinal positivo à sua busca, às prescrições
do castelo etc. Mediante o estranhamento deliberado, Kafka cria um universo que escapa à
clareza, à coerência, à previsibilidade e à distinção precisa, ao mesmo tempo em que busca
trilhar o que escapa aos poderes obscuros – o caminho aporético e circular de K. entre a
aldeia e o castelo. Numa variante do início do romance, K. diz que veio para “lutar” (“Zum
Kampf bin ich ja hier”) e, segundo uma camareira, todos na aldeia estariam cientes da
chegada de um forasteiro.5 Dessa perspectiva, salvo engano não continuada e não
incorporada pelas diversas outras passagens da versão final do romance, trata-se de forma
ainda mais explícita de uma luta radical entre o “sistema” e um “indivíduo”, o seu “resíduo”.


8. Um equívoco comum da crítica é julgar que a obra de Kafka não contém qualquer espécie
de desenvolvimento em seu núcleo, como se o autor fizesse um finca-pé arbitrário numa
simples “paralisação do tempo”, em que os “acontecimentos consistem em imagens
isoladas”, por onde ele se torna o “glorificador do compromisso e do ritualismo em geral”,
isto é, o apologista da mera repetição de formas sociais vazias.6 Contudo, um
desenvolvimento bloqueado e interrompido não é absolutamente um não-desenvolvimento.
É preciso aqui distinguir, no plano analítico, o movimento da forma e o do conteúdo. Em
certo sentido, temos um “movimento” de reiteração da forma e um movimento de
diferenciação e de decomposição do conteúdo. Pode-se pensar esse duplo movimento em O
Castelo como imposição coercitiva da identidade, sempre pressuposta na aldeia; mas uma
identidade nunca realizada até o fim, pois negada precisamente pela ação e a interação de
K. com as outras personagens. Esse desdobramento leva de estranhamento a
estranhamento, destruindo as suposições do “herói” (e do leitor). O estranhamento


4 ANDERS, Günter. Kafka: pró e contra – Os autos do processo [1951]. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 26 e
  33.
5 KAFKA, Franz. Das Schloß. Apparatband. (Herausgegeben von Malcom Pasley). Frankfurt am Maim: S. Fischer,

  2002, p. 116.
6 “Onde só há repetição, não há progresso do tempo. Todas as situações do romance de Kafka são, de fato, imagens

  paralisadas.” (ANDERS, op. cit., p. 30, 83 e 39.)
9
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funciona como desnaturalização das referências realistas tradicionais e, ao mesmo tempo,
como apresentação das contradições sociais reais: as deformações da perspectiva realista
não são uma mania do autor nem de uma mera figura de estilo, mas se tratam precisamente
de traços produzidos pela violência social da identidade. Esta é conduzida pelo escritor até
o absurdo a fim de poder nomeá-la de modo mais radical, ao mesmo tempo em que expõe,
assim, o sofrimento e as deformações sociais por ela produzidos.


9. Se K. sofre de certa ingenuidade nos primeiros dias, esta vai sendo minada pelos
acontecimentos e é transformada num processo crítico que esclarece não obviamente o
castelo, desde o início fechado e inacessível à interpretação, mas alguns pressupostos cegos
e absurdos de sua autoridade, na aldeia. Em contraste com o ritualismo burocrático mais
estrito que zela pela identidade, a não-identidade ganha relevo. Ela fica sob permanente
controle e ao final tem ser neutralizada. Os aldeões sempre estão vigiando o forasteiro K.,
que não pode pernoitar no albergue dos senhores; Momus o inquire e registra todos os seus
passos; os ajudantes são enviados por um funcionário do castelo (Galater) em nome de
Klamm, supostamente para diverti-lo (e confundi-lo); o prefeito o rebaixa a servente da
escola; os professores da escola o vigiam e humilham; ele é expulso do corredor do albergue
dos senhores etc. O ponto máximo desse poder panóptico é quando Erlanger ordena o
retorno de Frieda à sua função de atendente no balcão: “é nosso dever vigiar o bem-estar de
Klamm”, diz o secretário, “de tal forma que mesmo incômodos que não são nada para ele –
e é provável que não exista absolutamente nenhum – nós os eliminamos quando nos
chamam a atenção como possíveis perturbações” (DS, 428/402). A “normalidade” do
tempo social se realiza pelo rígido controle do espaço da aldeia. É nesse sentido que todas
as autoridades do castelo, segundo o prefeito da aldeia, são nada mais que “autoridades de
controle” (DS, 104/103). Um sistema que, em sua fantasia, funciona como uma máquina
impessoal sem falhas.


10. As relações impessoais de dominação se materializam em relações interpessoais e,
como tais, estão sujeitas a toda ordem de contingências e arbitrariedades. É o que aparece,
por exemplo, na forma de relações de propriedade sobre as coisas, os lugares e as próprias
pessoas. Se em Der Prozeß “tudo pertence ao tribunal”, no condado, de maneira análoga,
tudo é propriedade do conde Westwest. Como logo informa Schwarzer a K.: “Esta aldeia é
propriedade do castelo, quem fica ou pernoita aqui de certa forma fica ou pernoita no
castelo. Ninguém pode fazer isso sem permissão do conde” (DS, 8/10). O caso mais extremo
10
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deste poder coisificador é a propriedade exercida sobre as mulheres da aldeia. “Na verdade”
– diz Olga, tendo em mente o episódio da carta de Sortini a Amália – “consta que todos nós
pertencemos ao castelo, que não existe distância e portanto nada para transpor” (DS,
309/293). Deste modo, “Klamm é sem dúvida como um comandante sobre um exército de
mulheres, ordena ora esta, ora aquela, para ir até ele.” (ib.). A própria Frieda também
concebe sua relação com K. como sendo uma relação de “propriedade” (DS, 245/235) e não
deixa nunca de se subordinar às injunções do castelo. E assim o abandona no final.


11. Ao contrário do que geralmente se afirma, O Castelo não analisa “o poder de um
despotismo arcaico a exemplo da monarquia austro-húngara”.7 Como apontou Löwy, a
alienação burocrática moderna é o metro fundamental das relações sociais no romance,
ganhando até mesmo, numa fala do prefeito da aldeia (DS, 110/107-8), a forma metafórica
de uma “máquina autônoma”, que “dispensa a participação humana”.8 É possível ver na
base social, porém, algo como uma “economia mercantil simples”, típica de uma sociedade
agrária9, subordinada à burocracia de uma grande empresa ou de um Estado tipicamente
modernos. O aparelho administrativo do castelo cobra os seus tributos, os aldeões têm os
seus negócios isolados ou funções particulares, como camponeses, artesãos, hospedeiros e
funcionários, enquanto K. espera tornar-se, de início, uma espécie de assalariado
contratado pelo castelo. Assim, Kafka parece mesclar no romance as formas de dominação
mais modernas e abstratas e as mais tradicionais e imediatas. O interesse estético dessa
mescla é a ênfase no poder social reificado da identidade e de sua reprodução. A dominação
social se infiltra e se dissemina desde a família patriarcal camponesa tradicional até os
grupos mais amplos e abstratos, nos albergues e nos escritórios da maquinaria burocrática.


12. A marca histórica do romance pode parecer apagada e diluída, mas não é indefinida.
Em um ponto da construção ela é central: é a forma burocrática que em geral molda a
“linguagem protocolar” (Anders) do romance, principalmente dos discursos dos
funcionários (Prefeito, Brügel, Momus, Erlanger, Professor). Desde o início, com
Schwarzer, K. comprova a “formação de certo modo diplomática” da “gente miúda” do
castelo (DS, 11/13). Mas esse estilo protocolar se espraia também pela fala de Gardena
(dona do Albergue da Ponte), de Olga, de Pepi e do próprio K.10

7 Cf. a boa leitura de: LÖWY, Michael. Franz Kafka, sonhador insubmisso. São Paulo: Azougue, 2005, Cap. 5 (“O
  castelo – despotismo burocrático e servidão voluntária”), p. 163.
8 Idem, ibidem, p. 165.
9 ADORNO, op. cit., p. 254.
10 Cf. CARONE, Modesto. “Pósfácio” in: O Castelo, op. cit., p. 479.
11
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13. A forma histórica torna-se inteligível também na descrição da arquitetura do castelo,
que frustra toda expectativa do leitor. Depois de seus contatos telefônicos, somente o
agrimensor K. não se espanta com a aparência prosaica do suposto castelo, tão parecida
com a morfologia da aldeia e de sua própria cidade natal, em algum lugar da Europa do
início do século XX. O imaginário feudal desaba:
              “No conjunto o castelo, tal como se mostrava da distância, correspondia às expectativas de K.
              Não era nem um burgo feudal nem uma residência nova e suntuosa, mas uma extensa
              construção que consistia de poucos edifícios de dois andares e de muitos outros mais baixos
              estreitamente unidos entre si; se não se soubesse que era um castelo seria possível considerá-
              lo uma cidadezinha.” (DS, 17/18)


De fato, quando chega mais perto o agrimensor se decepciona: “na verdade era só uma
cidadezinha miserável, um aglomerado de casas de vila, que se distinguiam por serem todas
talvez de pedra, mas a pintura tinha caído havia muito tempo e a pedra parecia se esboroar”
(ib.). Kafka toma o processo de destruição da imagem ao pé da letra.


14. A modernidade do romance kafkiano vem indicado ainda no nome do conde – algo
como “Oesteoeste” –, o qual sugere a onipotência mundial do ocidente capitalista, bem
como a decadência da sociedade que o suporta (é no extremo ocidente o ponto de ocaso do
sol, daí o ambiente frio e tenebroso do romance). O contexto imediato da obra, o pós-
Primeira Guerra Mundial, não é outro que o do mundo dominado de ponta a ponta pela
ordem do capital, segundo o modelo mesclado já referido (§ 11).


15. O nome Westwest sugere também a contigüidade e a identidade forçada do “Castelo-
aldeia” – um nome que é apenas o início de uma longa série de duplos que moldam o
romance (dois albergues, dois ajudantes, duas garçonetes, dois professores, castelões e
subcastelões, senhores e seus secretários, Sordini e Sortini, Klamm e K. etc.). O molde
estrutural destas duplicidades é a contraposição entre o castelo e a aldeia, ou ainda, a lei e a
ordem e o seu avesso obsceno – a desordem e a contradição imanentes.


16. O núcleo dialético do romance é a mediação de campos opostos: a ordem que aparece
como desordem, o sistema como contradição, a exceção como regra, a essência (Wesen)
como monstruosidade (Unwesen). Assim, o segredo da mais rígida burocracia é algo da
ordem do capricho, da incoerência e da loucura – a “ridícula embrulhada [lächerliche
Gewirre] que, conforme as circunstâncias, decide sobre a existência de uma pessoa” (DS,
102/101). Esse movimento é irônico e produz o humor corrosivo do livro, que adentra no
reino do inverossímil. Os criados dos senhores do castelo são tão selvagens e dominados
12
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por “impulsos insaciáveis” (DS, 348/328) quanto os seus senhores. A noite no albergue dos
senhores transforma-se numa espécie de prostíbulo. A verdade do bom funcionário Sordini
é o obsceno Sortini; ou ainda, por trás da seriedade funesta do castelo esconde-se a
infantilidade, o escárnio e a impostura. O clima de comédia domina o subtexto. Assim, já no
início, Schwarzer aparece com “trajes de cidade, rosto de ator” (DS, 7/9).


17. O figurino tipicamente burguês de Klamm (gorducho, dorminhoco, casaca preta,
fumando charuto, com tudo a seu dispor) se contrapõe aos farrapos de K., tal como as
excelentes e modernas instalações do albergue dos senhores contrastam com a pobreza e a
doença nas casas campesinas. Porém, não se trata apenas da desigualdade social entre as
condições de vida de senhores, funcionários e aldeões, mas sobretudo da igualdade de um
sistema que captura a todos na mesma hierarquia cega e coisificada de sua dominação. Para
além da desigualdade, trata-se de reconhecer o sistema que articula todos os sujeitos como
carcaças mortas – como suportes de sua identidade fundamental. Nesse sentido, o romance
parece criar um mundo que mimetiza as contradições da forma do valor e da cisão de
gêneros da sociedade moderna. É nesse sentido, ainda, que a dona do Albergue da Ponte é
tanto objeto “feminino” de Klamm, quanto se corporifica como sujeito da dominação
patriarcal de Frieda. Nesse núcleo de contradições, ficam postas ou pelo menos
pressupostas, ainda, formas irredutíveis de negação nas figuras de K. e de Amália (a firme
recusa da proposta indecente de Sortini) e até certo ponto de Olga e Barnabás (a sua
abnegação em favor da família, apesar de seu lamentável conformismo diante da
autoridade), de Pepi (a menina sonhadora que pensa em incendiar o castelo!) e do menino
Hans (que parece se contrapor ao professor e ao pai).


18. Para além do inalcançável Klamm e do etéreo conde Westwest deve haver um rei –
jamais dito e muito menos nomeado no romance – uma sugestão da instância totalmente
abstrata, impessoal e fetichista da lei. Mas o vazio do poder opera plenamente na aldeia, em
cada funcionário, posto ou cargo desejado e ocupado pelo mais simples e indiferente
aldeão, que sonha em obter alguma distinção social ou compensação imaginária galgando
os degraus irrisórios da hierarquia social do condado.


19. O castelo não tem nada de divino ou de diabólico em si, mas é o pleno resultado do
processo social moderno – encantado por uma aura sagrada. Nesse sentido, o moderno
entrelaça-se ao mítico, mas não deixa de dar sinais de sua obsolescência e decomposição,
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embora se sustente no ar com uma gargalhada diabólica. Klamm não lê nenhum protocolo,
a eficiência administrativa dos funcionários é mais que duvidosa, só os dominados
sustentam a sua legitimidade quase sagrada. As interpretações teológicas forçam o texto
para materializar o “metafísico”.11 Mais válido seria dizer que o romance trata da dominação
moderna recoberta pelo terror e pela mística das prerrogativas senhoriais. Tal como a
ordem se entrelaça à desordem, o moderno se entrelaça ao arcaico e o histórico ao
metafísico.


20. O trabalho compulsivo dos funcionários do castelo é potencialmente idêntico à
petrificação do movimento da vida na aldeia. Ao mesmo tempo, o movimento petrificado de
funcionários e aldeões para resguardar a identidade de seu modo de vida, comandado pelos
senhores do castelo, é idêntico ao sono, à negligência e ao desprezo de Klamm em relação
ao empenho burocrático ou “erótico” de seus subordinados.


21. Em vez do uso autônomo do tempo, o tempo dos camponeses se subordina ao do
castelo e, por isso mesmo, em vez de referidos aos valores de uso, eles se subordinam às
tarefas terrivelmente abstratas do aparelho administrativo. Isso é iluminado pelo caso de
Barnabás, que, apesar de excelente sapateiro, torna-se um mensageiro do absurdo social, só
podendo se dedicar residualmente à sua atividade.


22. Esta a distinção fundamental dos camponeses em relação a K.: o seu objetivo declarado
não é ocupar um cargo superior no condado ou simplesmente se alojar na aldeia, mas de
início distinguir-se como trabalhador livre e independente do castelo. Nessa chave, K. pode
ser lido como alegoria do proletariado moderno. O agrimensor tem por volta de trinta anos
e aparece como um homem “bastante esfarrapado”, com uma “minúscula mochila”,
empunhando um cajado cheio de nós (DS, 11/12), que, é claro, se apresenta como
agrimensor, trocando o seu tempo por dinheiro e aparentemente só desejando trabalhar no
condado. Seu confronto com o castelo, que o coloca como “agressor”, visa multiplicar a sua
relação com “outras forças que não conhecia” (DS, 92-3/92). Por isso ele apoia-se em
Frieda e em Barnabás e na experiência de Olga, Amália, Hans e Pepi. De forma ardilosa, ele
gere e executa o poder contra o poder existente. É como se podem compreender todas as

11   As interpretações gnósticas, como a de Erich Heller, são tão insustentáveis quanto as teológicas: “O castelo do
     romance de Kafka é, por assim dizer, a guarnição muito bem armada de uma companhia de demônios gnósticos
     que sustentam com êxito um posto avançado contra as manobras de uma alma impaciente. Nenhuma idéia
     concebível de divindade pode justificar os intérpretes, que vêem no Castelo a residência da „lei e da graça divinas””
     (HELLER, Erich. Kafka. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 116).
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suas relações. Mas como mantém a luta de forma isolada, ele inevitavelmente cai na
condição de miséria e abandono.


23. K. representa o “homem abstrato”, anônimo, arrancado de referências históricas e da
plenitude de uma existência cotidiana.12 No percurso de sua luta contra o castelo, ele recebe
uma série de determinações, que em parte são máscaras (usadas de forma estratégica):
segundo o resumo de Gardena, ele não é do castelo nem da aldeia, é um “nada” que “está
sobrando e fica no meio do caminho” e que traz “aborrecimento” à comunidade (DS,
80/80), um estrangeiro que ignora e perturba os costumes do condado. Seu desejo de
aproximação de Frieda é o desejo de permanecer na aldeia – até ser rebaixado ao posto
insignificante de servente da escola. Nessa luta, ele pode se passar casualmente por pai de
família (num diálogo inicial com o dono do albergue a respeito do pagamento dos serviços
no condado, mas uma referência abandonada) ou por antigo ajudante do agrimensor
(“Josef”, num telefonema para o castelo) e, é claro, por amante e noivo de Frieda, que, tudo
indica, não passaria de uma tática para se aproximar de Klamm e do castelo. Fica claro na
trama que seu objetivo ao se unir a Frieda não é Klamm, “mas sim passar por ele, ir em
frente rumo ao castelo” (DS, 176/169).


24. Há aqui o sentido social fundamental do protagonista, muito pouco observado pela
crítica standard, nesta série de atributos negativos: de forma objetiva e segundo a letra do
romance, K. é menos o estrangeiro em geral que o moderno indivíduo sem propriedade, um
“sujeito sem objeto”, i.e., um proletário mobilizável pelo castelo.13 Nessa luta em plena
areia movediça, ele degringola para a condição de pária social e é mantido à margem – mais
que exilado, um homo sacer exterminável, como ele mesmo diz, em “situação de
emergência” (“Notlage”, DS, 198/191). Mas K. é também, justamente por causa desta
condição negativa, o homem capaz de dizer “não” (DS, 84/84). Por isso temos aqui um
indivíduo proletarizado contraposto à comunidade tradicional dos aldeões, fixados à
propriedade e anexados ao castelo. O seu “não” é reforçado pelo “não” dado por Amália à
proposta sórdida de Sortini.




12 Neste ponto podemos seguir ANDERS, op. cit., p. 50. Cf. também ROSENFELD, Anatol. Letras e leituras. São
  Paulo: Perspectiva, 1994, p. 47-51.
13 “Na sociedade burguesa, o trabalhador, p. ex., existe de um modo puramente não objetivo, subjetivo; mas a coisa

  que se põe diante dele se tornou agora a verdadeira comunidade que ele tenta devorar, mas que o devora.”
  (MARX, Karl. Grundrisse der Kritik der politschen Ökonomie (1857-1858). Berlin: Dietz, 1953, p. 396.)
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25. Entre as alternativas do contrato de trabalho ou da simples anexação à aldeia/castelo,
K. não hesita em escolher a primeira condição: “Só como trabalhador da aldeia, o mais
distante possível dos senhores do castelo, ele era capaz de conseguir alguma coisa lá” (DS,
42/43). Neste momento de afirmação, K. não quer “favores” e parece exigir apenas os seu
“direito” (DS, 119/116): estabelecer-se na aldeia para se tornar um trabalhador. Mas isso faz
parte de seu jogo com o castelo. O seu objetivo não é simplesmente “trabalhar”, mas
confrontar as autoridades do castelo. E é menos penetrá-lo – que afinal parecia um “alvo
fácil” (DS, 50/51) durante o dia, período em que se tornava supostamente um local de
trabalho frenético, tal como sondado no Albergue dos Senhores –, do que desmascarar o
seu encanto e a sua impostura. Nas palavras de K., ao pensar no comportamento do prefeito
e do professor, tudo ali não passa de um “embuste oficial” (DS, 235/225).


26. Como a crítica já observou, a profissão de K. é alegórica. “A agrimensura seria, assim,
uma investigação sobre o significado das relações de propriedade e da propriedade da terra.
Seria um ato revolucionário”.14 “Ele é o Agrimensor, aquele que mede a terra, mas o
Agrimensor de um mundo que não quer deixar repor em causa as suas medidas, o
Agrimensor de um mundo sem medida. Por isso a sua qualidade de agrimensor não é
reconhecida por ninguém. (...) O seu olhar, unicamente, faz voltar as coisas à sua medida.
Desde que aparece, o cenário rasga-se e por detrás do fausto das aparências e da lenda
revela-se a realidade irrisória.” 15 A fragilidade do poder é assim exposta por K., tanto
quanto isso é tolerado pelo castelo como uma espécie de jogo cômico (segundo, por
exemplo, as duas cartas de Klamm).


27. O agrimensor alegórico questiona a propriedade, as leis, os poderes do castelo. Ao
mesmo tempo é capaz de medir a deformação da particularidade de cada um frente à
coação da identidade. Kafka assinala literalmente o peso deste domínio: nas costas
curvadas dos funcionários, na doença e no envelhecimento que grassa por todos os lados,
tal como nos “rostos literalmente torturados” dos camponeses, cujos “crânios pareciam ter
sido achatados em cima e os traços da face formados na dor da pancada” (DS, 39/40). Os
aldeões são como animais domesticados pela lei do castelo. A própria escola fica ao lado do
celeiro e Frieda começou no posto mais baixo, como “criada de estrebaria no Albergue da
Ponte”. Por isso, também, ela manda literalmente os servidores do castelo para a estrebaria,
no albergue dos senhores, a golpes de chicote. K. percebe esse poder como histórico-natural

14   EMRICH, Wilhelm. “Der menschliche Kosmos: der Roman „Das Schloss‟”, op. cit., p. 300.
15   GARAUDY, Roger. Um realismo sem fronteiras [1963]. Lisboa: Dom Quixote, 1966, p. 173-4.
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e em parte como uma espécie de servidão voluntária: “A reverência diante da autoridade é
inata em vocês, continuará a ser incutida durante a vida toda das formas mais variadas e
por todos os lados; até vocês ajudam nisso como podem” (DS, 288/274).


28. É nesse sentido também que K. assume o caráter de um mestre para Hans, para Olga e
para Pepi. Ele mesmo se oferece como “médico” para a mãe de Hans. Se os aldeões e os
funcionários aparecem na posição de objeto ou de “instrumento” do Castelo (tal como
Momus, DS, 183/176: “Werkzeug”) –, então, no fundo, a sua função é virtualmente o de
encarnar uma lei simbólica que barra o gozo desse Outro absoluto e impostor.


29. Dessa perspectiva, K. busca a ruptura não só do pacto mítico que subordina os aldeões
como servos dos senhores do castelo – partes anexadas à propriedade do conde, mas
também tenta romper a força concreta da idéia de contrato moderno, desnaturalizar a
própria categoria do ser como mero trabalhador de uma potência alienada. Ele percebe
criticamente a carta jocosa de Klamm, que não só o admitia como agrimensor, como dizia
que lhe interessava “ter trabalhadores satisfeitos” (DS, 40/41). Ele percebe que sua
admissão como simples trabalhador abstrato era um sinal de “perigo” – com isso, pensa ele,
o castelo o punha “alegremente” no seu devido lugar, numa condição aparentemente
“inelutável”: “Se K. queria ser trabalhador, podia fazê-lo, mas tão-somente com a mais
completa seriedade, sem qualquer outra perspectiva. K. sabia que não se ameaçava com
uma coerção real, essa ele não temia e aqui muito menos” (DS, 43/43). O que K. vê como
maior problema é o “ambiente desencorajador” dos aldeões. Eles representam o principal
suporte do poder do castelo. Em sua reificação, eles são o verdadeiro castelo.


30. A forma social da identidade prevalece: o fim da obra projetado por Kafka (segundo
Brod) era irônico: K. morreria de extenuação, enquanto o castelo admitiria, por fim, a sua
permanência condicional na aldeia, territorializando-o no posto que o poder moderno,
enfim, pode melhor “administrar” os homens: o posto de meros trabalhadores.



                                                            (Novembro/Dezembro de 2010)
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                   O velho mundo precisa sucumbir
                          Mito e história em Berlin Alexanderplatz



Raphael F. Alvarenga*

                                                   “[…] wenn die Welt so finster wird, daß man mit den Händen
                                                   an ihr herumtappen muß, daß man meint, sie verrinnt wie
                                                   Spinnengewebe. Ach, wenn was is‟ und doch nicht is‟! […]
                                                   Wenn alles dunkel is‟, und nur noch ein roter Schein im
                                                   Westen, wie von einer Esse: an was soll man sich da halten?”1




        A que deve se agarrar o indivíduo quando colapsam ao seu redor todos os
referenciais, quando tudo lhe parece turvo, obscuro, confuso? Haverá saída, ou uma
qualquer esperança de salvação, para aquele que tudo perdeu, que se perdeu a si mesmo no
seio da desumana e impessoal cidade grande? E poderá nos tempos modernos, num
universo      completamente           dessacralizado,        um     homem        arruinado        ser    dotado      de
exemplaridade trágica? Do ponto de vista da produção artística, como organizar, traduzir
em forma, o estado de generalizadas desorientação, cegueira, confusão? Como expor, em
seu conjunto, relações e dinâmicas que parecem se dar à revelia dos homens, que em geral
não as compreendem? Berlin Alexanderplatz2, a grande obra épica de Alfred Döblin (1878-
1957), cuja intenção de essencializar questões e matérias históricas é por assim dizer
manifesta desde o prólogo – “valerá a pena para muitos que [...] habitam uma pele
humana”3 –, a princípio parece ter sido composta para responder a perguntas como as
acima. Se, quando publicado em 1929, o livro causou rebuliço nos meios literários e
militantes alemães, suscitando, à esquerda e à direita, de ataques veementes a elogios

* Pós-doutorando, bolsista da Faperj.
1 Wozzeck, Libretto von Oper in 3 Akten, 15 Szenen, Musik von Alban Berg [1922], Text von Georg Büchner [1837],
  Bruxelles, La Monnaie, 2008, ato I, cena 4. Em tradução livre: “[...] quando o mundo fica sombrio a ponto d‟a
  gente ter que tateá-lo com as mãos, d‟a gente achar que ele desmorona feito teia de aranha. Ah, quando algo é e no
  entanto não é! [...] Quando ‟tá tudo escuro, e só resta no poente um luzir rubro, como que saído duma fornalha: a
  que deve a gente se agarrar?”
2 Faremos uso da seguinte edição: Berlin Alexanderplatz. Die Geschichte vom Franz Biberkopf (1929), München,

  Deutscher Tachenbuch, 2009, doravante BA. A tradução citada no corpo do texto é a mais recente, de Irene Aron
  (São Paulo, Matins Fontes, 2009), cujas páginas em nota seguirão sempre as do original. Tratando-se de um
  alemão um tanto especial, o do livro, que mistura com frequência num mesmo parágrafo, às vezes numa mesma
  frase, norma culta e citações poético-literárias clássicas com linguagem coloquial popular, dialeto, gíria de rua etc.,
  achamos melhor, para uma maior apreciação e para evitar leituras enviesadas de certos trechos, reproduzir em pé-
  de-página as citações no original.
3 BA, 12/10: “wird sich für viele lohnen [...] in einer Menschenhaut wohnen”.
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entusiasmados – um pouco como aconteceria na França, três anos depois, com a publicação
do Voyage au bout de la nuit de Céline –, a principal razão reside no fato de, como nas
maiores criações da arte moderna, ser forte neste romance, se ainda for possível chamá-lo
assim, a dissonância produzida pela tensão entre a forma estética avançada e o material
deteriorado, decadente, atrasado, quando não arcaico, captado no turbilhão da metrópole
moderna, mais precisamente no bairro proletário em torno da “Alex”, a famosa praça do
leste de Berlin, símbolo maior da modernização da cidade, não muito longe da qual o Dr.
Döblin mantivera durante muitos anos um consultório médico. Tal tensão, que não se pode
eliminar da obra sem que se perca em qualidade artística, é reveladora tanto do estado da
sociedade em seu conjunto como da situação – diga-se já: monológica, demandando
tratamento épico – dos sujeitos, no livro condensada na figura de uma personagem
“protagonista” marginal e, por assim dizer, irredimível. Uma e outra, personagem e
sociedade, no caso, a berlinense e de modo mais geral a alemã dos anos 1920, por sua vez
inseridas no contexto global do capitalismo em crise, aparecem no livro como que à deriva,
sem rumo definido, atravessando sucessivas crises sem no entanto se desenvolverem, não
logrando atingir níveis mais elevados de consciência, maturidade e autonomia; impotentes,
dependem de circunstâncias e fatores externos sobre os quais não têm controle.
      Em Berlin Alexanderplatz, então, embora mediante um sem número de referências
mítico-religiosas o processo sócio-histórico seja algo ofuscado, veremos que longe de ser ou
servir de mero pano de fundo para as ações das personagens, por detrás de tais referências,
e como que camuflado por elas, o conturbado contexto social e político da República de
Weimar, quando não aparece de forma explícita no entrecho, está o tempo todo
pressuposto, os altos e baixos do anti-herói coincidindo, pode-se dizer, com os trâmites da
nação alemã. Tudo se passa como se Döblin, na época próximo de Brecht e Piscator, tivesse,
de certa maneira, intentado epicizar o período pós-revolucionário, os tempestuosos anos
iniciais (ocupação franco-belga da Ruhr, hiperinflação, miséria, insurreições operárias,
tentativa de putsch delinquente etc.) e principalmente os de falsa bonança (estabilização
monetária e modernização recuperadora proporcionadas pelo Plano Dawes) e que
antecedem o que viria a ser a verdadeira tempestade (crise financeira global e resistível
ascenção de Hitler ao poder), que já se anunciava no horizonte. Mais precisamente, apesar
da forma fragmentada, nota-se no livro como que um movimento totalizante, abarcando
um período que, forçando um pouco a nota, poderíamos denominar, por um lado, pós-
pseudo-revolucionário, por outro, à vista do que viria a se produzir, pseudo-pré-
revolucionário, ou seja, os anos que sucedem à revolução traída e malograda de 1918-1919 –
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que deu origem à República sem que se alterassem, fundamentalmente, as relações de
poder oligárquicas pré-existentes – e que precedem o grande desastre, mas durante os
quais, sob a luz da recente experiência soviética, então ainda muito intensa e (aos olhos dos
donos do poder) ameaçadora, pressentia-se, premente, a possibilidade de um novo
despertar revolucionário, da instauração, para falar como Benjamin, de um “verdadeiro
estado de emergência”.
        Sem perder de vista a tensão entre forma e material, tentaremos recompor e, até
onde for possível, expor, por um lado, as constelações formadas pelas matérias,
experiências e configurações extra-artísticas, vale dizer, tanto as históricas, sociais e
políticas como também as subjetivas, e por outro, a passagem na mediação literária.

                                                         ***
                Uma rápida recuperação, o homem está outra vez lá onde estava, nada aprendeu,
        nada assimilou.4
                Brumm, brumm, moureja o bate-estacas a vapor diante do Aschinger na Alex. Tem
        altura de um andar e crava as estacas no chão como se nada fossem. [...] Na avenida, estão
        pondo tudo abaixo, põem abaixo prédios inteiros junto à linha urbana [...] Demoliram
        Loeser e Wolff com a placa de mosaicos, vinte metros adiante, ele se reergue outra vez, do
        outro lado, diante da estação, já existe outro.5
                Você não perdeu tanto quanto Jó de Hus, Franz Biberkopf, as coisas recaem
        lentamente sobre você. [...] Você suspira: onde buscar abrigo, a desgraça se abate sobre mim,
        onde me agarrar? [...] Você não perderá riqueza, Franz, você mesmo será queimado até o
        fundo da alma! Veja como a prostituta já se regozija! A prostituta Babilônia! [...] A mulher
        está embriagada do sangue dos santos. Agora você a percebe, sente-a. Você será forte, não se
        perderá?6
                O tempo é outonal, no cinema Tauentzienpalast passa o filme Os últimos dias de
        Francisco, cinquenta belas bailarinas estão no salão de dança Jägerkasino, podes beijar-me
        por um buquê de lilases. Ali, Franz conclui: minha vida acabou, estou liquidado, para mim
        chega. / Os elétricos percorrem as ruas, cada um vai numa direção, não sei para onde devo
        ir. O 51, Nordend, Schillerstrasse, Pankow, Breite-strasse, Bahnhof Schönhauser Alle,
        Stettiner Bahnhof, Potsdamer Bahnhof, Nollendorfplatz, Bayrischer Platz, Uhlandstrasse,
        Bahnhof Schmargendorf, Grune-wald, vamos lá. Bom dia, aqui estou eu, podem me levar
        para onde quiserem. E Franz começa a observar a cidade como um cão que perdeu o rastro.
        Que cidade é esta, que cidade gigantesca, e que vida já levou nesta cidade. Desce na Stettiner
        Bahnhof, segue ao longo da Invalidenstrasse, lá está o Rosenthaler Tor. Confecção Fabish, já
        fiquei parado ali, apregoando prendedores de gravatas, Natal passado. Em direção a Tegel,


4 BA, 163/183: “Eine rasche Erholung, der Mann steht wieder da, wo er stand, er hat nichts zugelernt und nichts
  erkannt.”
5 BA, 165-66/185-86: “Rumm rumm wuchtet vor Aschinger auf dem Alex die Dampframme. Sie ist ein Stock hoch,

  und die Schienen haut sie wie nichts in den Boden. […] Über den Damm, si legen alles hin, die ganzen Häuser an
  der Stadtbahn legen sie hin […] Loeser und Wolff mit dem Mosaikschild haben sie abgerissen, 20 Meter weiter
  steht er schon wieder auf, und drüben vor dem Bahnhof steht er nochmal.”
6 BA, 380/436-37: “Du hast nicht soviel verloren wie Hiob aus Uz, Franz Biberkopf, es fährt auch langsam auf dich

  herab. […] Du seufzt: wo krieg ich Schutz her, das Unglück fährt über mich, woran kann mich festhalten. […] Du
  wirst keine Gelder verlieren, Franz, du selbst wirst bis auf die innerste Seele verbrannt werden! Sieh, wie die Hure
  schon frohlockt! Hure Babylon! […] Das Weib ist trunken vom Blut der Heiligen. Du ahnst sie jetzt, du fühlst sie.
  Und ob du stark sein wirst, ob du nicht verloren gehst.”
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          pega o 41. E quando surgem os muros vermelhos, os pesados portões de ferro, Franz fica
          mais calmo. Isto faz parte da minha vida e preciso observar, observar.7
                 Quem é esse que está aqui na Alexanderstrasse e move devagarinho uma perna atrás
          da outra? Seu nome é Franz Biberkopf, o que ele andou aprontando, vocês já sabem.
          Vagabundo, criminoso da pesada, pobre-diabo, homem derrotado, agora é a vez dele.
          Malditos punhos que o abatem! Punho terrível que o atingiu! Os outros punhos bateram e
          soltaram, ficou uma ferida, só ficou ele, a ferida sarou, Franz ficou do jeito que era e pôde
          seguir em frente. Agora, o punho não larga, o punho é incrivelmente grande, envolve-o de
          corpo e alma, Franz anda a passos pequenos e sabe: minha vida não me pertence. Não sei o
          que devo fazer agora, mas acabou-se para Franz Biberkopf e fim.8


          As passagens acima, escolhidas mais ou menos ao acaso, dão uma ideia geral,
embora ainda um pouco vaga, do que se pode encontrar no grande romance de Döblin, o
qual, como indica o subtítulo, conta a história de Franz Biberkopf, um homem do povo, pau
para toda obra, a bem dizer um brutamontes infantil, inocente e bonachão, mas que em
determinadas situações sói perder a cabeça, tornando-se violento como uma fera. Foi assim
que, num acesso de raiva e ciúmes, matou acidentalmente a noiva, Ida, de quem era cáften,
a pancadas, indo parar atrás das grades. Num breve prólogo, o narrador resume o que
acontecerá com aquele homem, anunciando que no fim da história, após muito apanhar da
vida, o encontraremos “muito mudado, maltratado, mas enfim endireitado” 9. Trata-se de
um procedimento épico, anti-ilusionista, propositalmente “alienante”, reiterado em seguida
nas prolepses que abrem cada uma das nove seções (ou “livros”), e que visa a anular no
leitor, de antemão, a criação de expectativas, a fim de que se mantenha atento a motivações,
relações e movimentos mais amplos, sem deixar-se levar aleatoriamente pelo drama
individual de uma personagem particular, “como se o curso da mundo ainda fosse em
essência o da individuação, como se o indivíduo alcançasse o destino com suas emoções e

7   BA, 387/444-45: “Es ist herbstlich, im Tauentzienpalast spielen sie die ‚Letzten Tage von Franzisko‟, fünfzig
    Tanzschönheiten sind im Jägerkasino, für einen Fliederstrauß darfst du mich küssen. Da findet Franz: Mein
    Leben ist zu Ende, mit mir ist es aus, ich habe genug. / Die Elektrischen fahren die Straßen entlang, sie fahren alle
    wohin, ich weiß nicht, wo ich hinfahren soll. Die 51 Nordend, Schillerstraße, Pankow, Breitestraße, Bahnhof
    Schönhauser Alle, Stettiner Bahnhof, Potsdamer Bahnhof, Nollendorfplatz, Bayrischer Platz, Uhlandstraße,
    Bahnhof Schmargendorf, Grunewald, mal rin. Guten Tag, da sitz ick, die können mir hinfahren, wo sie wollen.
    Und Franz fängt an, die Stadt zu betrachten, wie ein Hund, der eine Fußspur verloren hat. Was ist das für eine
    Stadt, welche riesengroße Stadt, und welches Leben, welche Leben hat er schon in ihr geführt. Am Stettiner
    Bahnhof steigt er aus, dann zieht er die Invalidenstraße lang, da ist das Rosentaler Tor. Fabisch Konfektion, da
    hab ick gestanden, ausgerufen, Schlipshalter vorige Weihnachten. Nach Tegel roten Mauern, die schweren
    Eisentore, ist Franz stiller. Da ist von meinem Leben, und das muß ich betrachten, betrachten.”
8   BA, 398/456: “Wer ist es, der hier auf der Alexanderstraße steht und ganz langsam ein Bein nach dem andern
    bewegt? Sein Name ist Franz Biberkopf, was er betrieben hat, ihr wißt es schon. Ein Ludewig, ein
    Schwerverbrecher, ein armer Kerl, ein geschlagener Mann, er ist jetzt dran. Verfluchte Fäuste, die ihn geschlagen
    haben! Schreckliche Faust, die ihn ergriffen hat! Die andern Fäuste schlugen und ließen ihn los, da war eine
    Wunde, da war er bloß, die konnte heilen, Franz blieb, wie er war, und konnte weitereilen. Jetzt, die Faust läßt
    nicht los, die Faust ist ungeheuer groß, sie wiegt ihn mit Leib und Seele ein, Franz geht mit kleinen Schritten und
    weiß: mein Leben ist nicht mehr mein. Ich weiß nicht, was ich jetzt tun muß, aber mit Franz Biberkopf ist es aus
    und Schluß.”
9   BA, 11/9: “Wir sehen am Schluß den Mann wieder am Alexanderplatz stehen, sehr verändert, ramponiert, aber
    doch zurechtgebogen.”
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sentimentos, como se o íntimo do indivíduo ainda pudesse alguma coisa sem mediação” 10.
Ao mesmo tempo, a narrativa visa a anular, ou a quebrar, a tranquilidade contemplativa do
leitor, a possibilidade de uma observação totalmente desinteressada do curso catastrófico
do mundo, que haviam tornado-se escárnio com a Primeira Guerra. A distância estética é,
como já em Proust e em Kafka, o tempo todo encurtada a fim de que o plano superficial e
naturalizado dos acontecimentos quotidianos seja atravessado e, para além dele, apareça,
nua e crua, a negatividade subjacente à positividade dos fatos: “ora o leitor é deixado de
fora, ora guiado, através do comentário, até o palco, para trás dos bastidores, para a casa de
máquinas”11. Por isso a combinação mediadora de registro mimético realista e princípios de
construção não-realistas, necessários para dar conta da matéria, que é opaca, constituída
por relações sociais alienadas objetivadas, engessadas, e que pede um novo alheamento,
uma segunda alienação. Paradoxalmente, o encurtamento da distância, que revela o horror
sob a pedra da cultura, a brutalidade da existência quotidiana, produz estranhamento,
distanciamento. O que Brecht diz do novo teatro vale também, nesse sentido, para a Nova
Música e para o romance modernista:


        A resposta reside no estilo alienante da representação. Nesta, o fio da história é um fio
        fragmentado; o todo isolado é constituído de partes independentes que podem e devem ser
        comparadas com os incidentes das partes correspondentes na vida real. Este modo de
        representar extrai toda a sua força de comparações com a realidade; em outras palavras, está
        a todo instante dirigindo a atenção para a causalidade dos incidentes reproduzidos. [...] A
        platéia não é totalmente “arrebatada”; não precisa amoldar-se psicologicamente, adotar uma
        atitude fatalista para com o destino representado.12


        Com isso em mente, voltemos ao livro. A história começa com a saída de Franz
Biberkopf da prisão de Tegel, bairro de Berlim situado no noroeste da cidade, em 1927, após
ter cumprido ali quatro anos de sua pena, e a partir daí acompanhamos sua tortuosa e
custosa reinserção na sociedade. Desde o início, esta, e acima de tudo a cidade, em
permanente transformação, dividem com a personagem o primeiro plano. Apesar da
dificuldade em se arrumar trabalho em tempos de crise e desemprego em massa, “der
Franz” promete a si mesmo manter-se decente, mas, ingênuo, é enganado e passado para
trás com facilidade. O nome Biberkopf, aliás, literalmente “cabeça de castor”, no dialeto


10  Theodor W. Adorno, “Standort des Erzählers im zeitgenössischen Roman” (1954), in Noten zur Literatur,
   Frankfurt/M., Suhrkamp, 1981, pp. 41-47, aqui p. 42, trad. Modesto Carone: “Posição do narrador no romance
   contemporâneo”, in Benjamin, Adorno, Horkheimer & Habermas, Textos escolhidos, São Paulo, Abril (col. Os
   Pensadores), 1980, pp. 269-73, aqui p. 270.
11 Ibid., p. 46, trad., p. 272.

12 Bertolt Brecht, Diário de trabalho, vol. I: 1938-1941, trad. R. Guarany e J. de Melo, Rio de Janeiro, Rocco, 2002,

   pp. 100-01, entrada do dia 3.8.40.
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local significava então algo como “cara de burro”, ou coisa parecida. O prenome Franz, por
sua vez, parece ser uma alusão a Francisco de Assis, mas também, ou principalmente, a
Franz Woyzeck, o famoso anti-herói proletário recriado por Georg Büchner a partir do fait
divers de um soldado que, tomado de ciúmes, assassinara a amante13. Trata-se, em suma,
de um simples de espírito, que fala aos passarinhos e em momentos críticos, de alucinação e
delírio, comunica com coelhos, camundongos, intropatiza com as plantas, a terra, ouve
apelos no vento... Um dos traços que sobressaem durante a leitura é que, como já dizia
Adorno, não há vida reta num mundo torto: apesar da promessa que fizera de permanecer
honesto após sair da prisão, Franz Biberkopf vive iludido e se iludindo, é trapaceado e
acaba sem querer envolvendo-se em novos crimes; mesmo resistindo com unhas e dentes,
mesmo não querendo, “é obrigado a querer”, “está acima dele, ele tem de querer” 14. Através
do livro, como costumam dizer alguns críticos, acompanhamos os inúmeros altos e baixos

13 A comparação mereceria um desenvolvimento a parte. Não se pode ignorar o fato de os fragmentos da peça de
  Büchner, inacabada quando de sua morte em 1837, terem permanecido durante muito tempo ignorados
  precisamente por estar a obra à frente de seu tempo, fazendo uso de procedimentos épicos que viriam a ser
  empregados e desenvolvidos na Rússia e na Alemanha, mais ou menos a partir da encenação de Mistério-Bufo, de
  Maiakóvski, por Meyerhold, em 1918. Numa palavra: em Woyzeck, o que está em jogo é a destruição da “peça bem
  feita”, do drama realista burguês, atrelado às unidades clássicas de ação, tempo e lugar, além de restrito à esfera
  privada da vida, concentrado na dinâmica e na riqueza psicológicas, na profundidade interior das personagens,
  assim como no diálogo, na tensão e na resolução de conflitos interindividuais. Não à toa, a peça de Büchner fora
  ressuscitada, tirada do esquecimento, quase um século depois, após a Primeira Guerra, quando tudo aquilo
  (profundidade subjetiva, totalidade harmônica e significativa, continuidade e desenvolvimento progressivo) já
  soava mais do que falso, justamente por Alban Berg, cuja forma operística modernizada pelas descobertas da Nova
  Música, longe de fornecer, como era comum na ópera clássica tanto quanto o seria no cinema, um mero fundo
  musical psicológico, que sugerisse a cada etapa os estados de ânimo, os sentimentos ou as impressões das
  personages, visava ao contrário expor as lacunas deixadas pelas palavras, não o que está nas personagens, mas
  antes aquilo que se passa entre elas, vale dizer, o estado de alienação, desumanização e absurdidade, que se
  encontra objetivado para além das personagens (a este respeito, veja-se Theodor W. Adorno, Berg. Der Meister
  des kleinsten Übergangs, in Gesammelte Schriften, Bd. 13, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1997, pp. 428-29, trad. M.
  Videira: Berg. O mestre da transição mínima, São Paulo, Unesp, 2009, pp. 179-80). Com a ópera de Berg,
  terminada em 1922 e encenada em Berlim em 1925, a modernidade da música fazia enfim justiça à modernidade
  daquele texto. Simplificando ao extremo, digamos que, embora Berg não tenha rejeitado de todo a tonalidade
  clássica, combinando-a ao contrário, de maneira muito a propósito, com a técnica schönberguiana, a não-
  hierarquização dos tons na construção musical dodecafônica (as doze notas da gama cromática tendo todas igual
  importância) condizia com a fragmentação da narrativa, a não-linearidade causal e a autonomia relativa das cenas
  da peça de Büchner. A este respeito, citemos o bom comentário de Anatol Rosenfeld, Teatro moderno, São Paulo,
  Perspectiva, 1977, pp. 64-65: “Um dos aspectos da obra de Buechner que nos toca particularmente como moderno
  é a solidão de suas personagens. Já não se trata da solidão romântica, mas da solidão da lonely crowd, concebida
  como fato humano fundamental num mundo que, tendo deixado de ser um todo significativo de que todos
  participam, se transforma em caos absurdo em que cada um é, forçosamente, isolado. [...] A imagem do homem
  apresentada por Buechner desqualifica a do herói trágico que é denunciada como falsa. Surge, talvez pela primeira
  vez, o herói negativo que não age, mas é coagido, o indivíduo desamparado, desenganado pela história ou pelo
  mundo [...] Woyzeck é um caso extremo, verdadeiro „drama de farrapos‟: é um fragmento; mas é uma obra que só
  como fragmento poderia completar-se. Ela cumpre a sua lei específica de composição pela sucessão descontínua
  de cenas sem encadeamento causal. Cada cena, ao invés de funcionar como elo de uma ação linear, representa um
  momento em si substancial que encerra toda a situação dramática ou, melhor, variados aspectos do mesmo tema
  central – o desamparo do homem num mundo absurdo.” É grande a semelhança com a história de Franz
  Biberkopf: em ambos os textos, no de Büchner e no de Döblin, além da situação monológica, há grande destaque
  para o lado grotesco, para a redução zoológica do homem (enquanto Woyzeck é incapaz de controlar o músculo
  constritor, Biberkopf pesa quase cem quilos, come feito um glutão e copula à maneira de um animal selvagem) e
  para o automatismo de suas ações (os dois assassinam as amantes como se fossem autômatos guiados por forças
  que se manifestam à despeito de suas vontades).
14 BA, 163 e 314/183 e 359: “er will nicht, er wehrt sich, es geht über ihn, er muß müssen.”
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desta personagem a um tempo comum e incomum – mas, como previne o narrador: “Será
um mendigo comum e um homem rico incomum?”15 –, a luta com o destino e consigo
mesmo, as ilusões e os desenganos, os remorsos e os pensamentos mórbidos, a propensão
ao alcoolismo e a perdição no submundo do crime e da prostituição, e, sobretudo, seu total
esmagamento por forças obscuras e poderes que não domina. Tal esmagamento, todavia, só
pode ser apreendido suficientemente se não se perder de vista que aquele movimento
negativo de sobe e desce na situação da personagem, o vaivém entre fortitude e fastio,
autossuficiência e afogamento no álcool, que parece não conduzir a lugar algum, cada novo
episódio começando como que do zero, como que repetindo a sequência de acontecimentos
do anterior, vem sempre conjugado ao movimento vertiginoso da cidade, com suas
incessantes demolições e (re)construções.
           De modo muito explícito, pelo menos é o que aparenta numa primeira leitura, Döblin
tenta dar um sentido ao ritmo ensandecido da metrópole e às sucessivas quedas e
adversidades sofridas por seu herói através da referência a mitos bíblicos e helênicos
relacionados à loucura, à obediência e a rituais de sacrifício, com destaque para as
tribulações de Jó, o holocausto de Isaac e os remorsos de Orestes, três personagens que têm
em comum o fato de serem meros joguetes de forças que escapam a elas, sendo salvas, por
intervenção divina, no derradeiro momento, quando já tudo parece perdido. Se
considerarmos com Lévi-Strauss que o mito é antes de tudo uma solução imaginária para
tensões, conflitos e contradições reais, sociais e históricas, então tal solução, que no mais
das vezes assume contornos edificantes e complacentes, parece estar de fato muito
claramente presente no livro em questão. Ali, a experiência de impotência do sujeito em
busca de um lugar ao sol no seio da monstruosa metrópole moderna, sem controle sobre o
que lhe advém, sobre a própria história ou o sobre o conjunto de forças sociais agindo sobre
ele, ganha não somente apoio em explicações mitológicas como também uma conotação de
exemplaridade. Trata-se, à primeira vista ao menos, de uma tentativa, longe de ser
excepcional na arte modernista do início do século, de outorgar um sentido arcaico-
mitológico ao curso desprovido de sentido do mundo da mercadoria fetichizada. Na célebre
justificação de T. S. Eliot, num texto sobre Joyce: “É simplesmente uma maneira de
controlar, ordenar, dar forma e significância ao imenso panorama de futilidade e anarquia
que é a história contemporânea.”16 No que concerne a Döblin, entretanto, como veremos,


15   BA, 394/453: “Ist ein Bettler gewöhnlich und ein Reicher ungewöhnlich?”
16    Thomas Stearns Eliot, “Ulysses, Order and Myth” (1923), in Selected Prose, ed. Frank Kermode, London, Faber
     and Faber, 1975, p. 177: “It is simply a way of controlling, of ordering, of giving a shape and a significance to the
     immense panorama of futility and anarchy which is contemporary history.”
24
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parece mais adequada a explicação de Roberto Schwarz: “vários dos principais escritores
modernistas procuraram dar parentesco mítico a seus episódios contemporâneos, para lhes
atenuar a contingência e lhes emprestar generalidade, dignidade arquetípica, eternidade
etc., mesmo que irônicas, ou para acentuar a sordidez.” 17
        A este respeito, diga-se de passagem, as referências mítico-religiosas, judeo-cristãs e
gregas – Esther (livro 1), Jeremias (livros 1 e 5), Agamemnon, Clitemnestra, Orestes e as
Erínias (livros 2 e 6), Adão e Eva (livros 2, 3, 4 e 8), Menelau, Telêmaco e Helena (livro 4),
Jó (livros 4 e 8), Aquiles (livro 6), Abraão e Isaac (livros 6 e 7), a prostituta Babilônia e a
Morte ceifeira (livros 6, 8 e 9), Salomão/Eclesiastes (livros 7, 8 e 9), os anjos Sarug e Terah
(livro 8), Macabeus (livro 9) –, estão intrinsecamente relacionadas às vicissitudes das
personagens, muitas vezes, com efeito, recebendo tratamento irônico, como por exemplo
quando os adornos e apetrechos de guerra de Aquiles são comparados às roupas surradas e
sujas de Biberkopf18, comparação que tem por efeito um distanciamento, impedindo que o
leitor enxergue no anti-herói moderno e em sua luta contra as forças anônimas da
metrópole um qualquer resquício de nobreza trágica. Salvo engano, algumas daquelas
referências, em muitos momentos, também não deixam de interferir na percepção que se
tem, a cada novo episódio, da cidade de Berlim, como que preparando o terreno para ela,
antecipando-a, ou reforçando-a. Sob fundo mitológico, além de contrastada explicitamente
com cidades da antiguidade – a par de Babilônia, também Nínive, Roma, Cartago e
Jerusalém (livros 5 e 6) –, a metrópole moderna é sucessivamente apresentada como um
universo confuso, estranho, destituído de todo e qualquer sentido (livro 1), como um grande
organismo burocrático tendo em si mesmo uma lógica obscura que absorve e devora a todos
(livro 2), como uma gigantesca máquina, perigosa, violenta, mortífera (livro 4), como
entidade sedutora, artimanhosa, incitando ao gozo e à volúpia do pecado (livro 6), por fim,
como um ser autônomo, que segue indiferente seu curso, sempre igual, automatizado (livro
9). Assim, em contraste com a imagem do espaço urbano que aos poucos se constitui, a um
tempo caótica, violenta, sedutora e indiferente, aparecem no correr da história três
heterotopias, por assim dizer, no seio das quais se encontraria a ordem, a paz, ou antes
ainda, a ausência do fardo da responsabilidade: a prisão (livros 1 e 8), o paraíso bíblico
(livros 2, 3, 4 e 8) e o asilo de loucos (livro 9). A mensagem parece clara: neste mundo-cão
não viverás em paz; esta só existiu no passado mítico/bíblico da humanidade; nesta vida só
a encontrarás no presídio ou no sanatório. Sem prejuízo do fato de ser um tanto forçado

17 Roberto Schwarz, “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, in Seqüências brasileiras, São Paulo, Companhia das
  Letras, 1999, p. 138.
18 Cf. BA, 243/278.
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chamar de “pacífica” a vida severina de encarcerados e alienados – embora, pensando bem,
a imagem não deixe de ser poderosa: comparados à vida louca do lado de fora, na inóspita
cidade grande, a prisão e o manicômio teriam ares mais amenos, tranquilos, quiçá até mais
“salutares” –, a mensagem pode ser lida de ponta-cabeça. Explicando melhor: a violência
seria, como de fato é no capitalismo, o normal, e a paz, a exceção quase inconcebível,
inimaginável, que confirmaria a regra geral. Se, na época em que Döblin compunha seu
romance, a cultura da violência, o vínculo social perverso do capital, a guerra como
consequência lógica e incontornável do mercado, já eram estetizados pela indústria da
cultura do entretenimento, pelo complexo industrial de produção das consciências, que
opera tanto a legitimação da existência de um certo grau de violência, ao torná-la coisa
corriqueira, quanto certa estabilização na estruturação da barbárie, então talvez fosse o caso
de afirmar que também a arte, em larga medida, acabou participando de tal processo geral
de estetização, legitimação e naturalização da violência19.
        Se Döblin não escapa à tendência20, cabe no entanto ressaltar que o recurso ao mito,
no livro de que estamos tratando e na literatura modernista de modo geral, de um ponto de
vista materialista, deve ser encarado antes de tudo como uma maneira de expor a
liquidação do indivíduo na sociedade moderna, liquidação das condições da formação da
individualidade autônoma, que no entanto haviam sido postas (pelo menos enquanto
pressupostos) pela própria sociedade burguesa. Noutras palavras, em razão de a situação
histórica do capitalismo dito tardio, monopolista, assemelhar-se, no nível das aparências,
àquela, pré-individual, sem sujeito, de épocas remotas, pré-capitalistas, nas quais a
humanidade encontrava-se enredada numa totalidade mítica plena de sentido21, a
referência ao mito expõe o fato de a sociedade capitalista, da mercadoria fetichizada, não
ser tão desencantada, esclarecida, racional e civilizada quanto pretente ou aparenta. Não
surpreende que a despeito dos supostos propósitos moralizantes de Döblin, tão ressaltados
pela crítica, a forma fragmentada, polifônica, hipercomplexa e no fim das contas assaz




19 Estetização que, com frequência, vai de par com aquela da “vida bandida” dos de baixo, ou seja, com a exploração
   artística da atração sensual da feiúra, do imundo, do disforme, coisa que se encontra já nos irmãos Goncourt
   (veja-se a respeito o ensaio de Auerbach sobre Germinie Lacerteux, no Mimesis) e que pode ainda ser notada nos
   dias de hoje, quiçá mais do que nunca, sobretudo em produções espetaculares como o filme Cidade de Deus. Em
   literatura, no século XX, os romances de Genet constituem possivelmente o exemplo maior de estetização do sujo,
   do sórdido, da vida do crime.
20 Evocando as descrições detalhadas de tortura e morte no romance histórico Wallenstein (1920), um crítico não

   hesitou em acusar Döblin de fascinação obsessiva com a violência e de querer transformar a crueldade em
   experiência estética. Cf. Wilfried G. Sebald, Der Mythos der Zerstörung im Werk Döblins, Sttutgart, Klett, 1980,
   pp. 49-51 e 156-60.
21 Cf. Theodor W. Adorno, “Standort des Erzählers”, op. cit., p. 47, trad. cit., p. 273.
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dissonante de sua narrativa faça explodir toda impressão de sentido e coerência globais 22.
Com isso em vista, faz-se necessário integrar a dimensão mítico-religiosa da obra à
explicação materialista, isto é, ligar o congelamento do tempo histórico e a fragmentação da
forma literária que ali tem lugar à expansão do trabalho industrial alienado e à subsequente
fragmentação dos processos social e perceptivo no seio disforme da urbs moderna, mas
igualmente, no caso específico de Berlin Alexanderplatz, à persistência da “miséria alemã”
no contexto geral da República de Weimar, a um tempo dependente-independente, incapaz
de superar o multissecular atraso do país no desenvolvimento desigual e combinado do
capitalismo.

                                                          ***


           De forma resumida, pode-se dizer que o desenvolvimento do capitalismo industrial,
e com ele a expansão vertiginosa das relações mercantis, isto é, a generalização das formas
capitalistas de trabalho e a colonização do quotidiano pela mercadoria, constituem um
processo que acaba por tornar a vida, em todos os seus aspectos, não somente morna,
monótona e mesquinha – algo muito patente nas personagens de um Flaubert, de um
Tchekhov, mergulhadas no tedium vitae e na insignificância quotidiana –, mas
fundamentalmente brutal, desumana. Ao mesmo tempo, o funcionamento normalizado e
quotidiano desta vida social alienada tende cada vez mais a dissimular e a objetificar a
brutalidade e a desumanidade do processo global capitalista. A partir de meados do século
XIX, mais precisamente após o trauma de junho de 1848, a arte de modo geral e a literatura
em particular (pelo menos aquela que interessa) passam a recompor, no nível da forma, e
assim a elevar à condição de experiência estética, fazendo delas uma evidência chocante, a
derrocada do curso da experiência, a desvitalização da vida e a desumanização das relações
humanas. Não obstante, se, por um lado, à banalização e ao embrutecimento da existência
corresponde um processo de crescente ofuscamento das relações sociais, por conseguinte,
da história e seu sentido geral, por outro lado, o decorrente ceticismo quanto à
possibilidade de se apreender as tendências globais da sociedade e da história, quiçá
mesmo a impossibilidade objetiva de tal apreensão, inverte-se, a partir das últimas décadas
do século XIX, progressiva e quase que inevitavelmente em mística e metafísica. Com

22    Para uma análise pormenorizada da estrutura e dos pontos de vista narrativos, da apreensão formal dos percalços
     e vicissitudes sofridos pelo protagonista após a saída de Tegel, assim como da maneira com que a cidade se
     imiscui e ganha corpo no romance, veja-se a dissertação de Gabriela Siqueira Bitencourt, Fratura da metrópole.
     Objetividade e crise do romance em Berlin Alexanderplatz, Universidade de São Paulo, 2010, principalmente o
     capítulo III, assim como, da mesma autora, o artigo publicado no presente número de Sinal de Menos: “A fratura
     da forma: constituição e implicações da representação da metrópole em Berlin Alexanderplatz”.
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efeito, pelo menos desde Nietzsche e Malthus, o caráter histórico da concorrência
capitalista, da divisão social do trabalho, das relações de classe e da dominação do capital é
dissimulado, dissolvido em explicações de caráter mítico, metafísico, ou ainda
pseudocientífico, como o famigerado “darwinismo social”, que transforma em lei
“sociológica” eterna a luta de morte de todos contra todos pela sobrevivência na selva do
mercado23, sem falar nas explicações em termos de superioridade racial, em Thierry, Taine,
Le Bon, Gobineau e, entre nós, Euclydes da Cunha. Segundo Lukács, tais tendências à
mistificação, que se combinam então sem problema com o culto positivista dos fatos
particulares, arrancados e isolados de seu verdadeiro contexto, atingiriam “seu ponto
culminante na falsificação bárbara da história e sua transformação em mito pelo
fascismo”24.
           De tais tendências, desnecessário dizer, participa também boa parte da arte da
primeira metada do século XX, mesmo (ou sobretudo) a mais avançada. No caso específico
de Döblin, não deixa de ser sintomática a progressiva despolitização pela qual passa a partir
de meados dos anos 1920 (a bem dizer, durante a composição do Berlin Alexanderplatz,
entre 1927 e 1929, o autor oscilava ainda entre a alternativa revolucionária e a
transformação espiritual do mundo). Alemão de origem judia, não custa lembrar, o autor
demonstrava a princípio sensibilidade esquerdista, em suas próprias palavras, “fora
socialista atuante”25, como se pode aliás ver nos artigos que escreveu entre 1919 e 1921, sob
o pseudônimo de Linke Poot (“Pata Esquerda”), para o jornal Die Neue Rundschau26. Num
deles, de 1919, defendia com entusiasmo a classe operária revolucionária, simpatizando
com os conselhos de trabalhadores e soldados formados no imediato pós-guerra, que em
seguida seriam suprimidos pelo governo social-democrata de Friedrich Ebert:


           Uma associação de camaradagem entre homens livres constitui a célula natural e
           fundamental de toda a sociedade, a pequena comunidade; é por aí que se deve começar... É
           isso que o príncipe Kropotkin há muito já sabia e ensinava, aquilo que aprendera dos
           relojoeiros suíços na Federação do Jura, em jargão político: o sindicalismo, o anarquismo. 27


23    A este respeito, cf. Georg Lukács, Probleme des Realismus III: Der historische Roman, Neuwied/ Berlin,
     Luchterhand, 1965, p. 212.
24 Ibid., p. 305.
25 Alfred Döblin, “Posfácio para a reedição de 1955”, anexo à ed. da Martins Fontes, p. 527.
26 Cf. Alfred Döblin, Der deutsche Maskenball. Von Linke Poot (1921), Olten/Freiburg, Walter, 1972, e Michel

  Vanoosthuyse, “Linke Poot: Döblin, les débuts de Weimar et les intellectuels”, in Études allemandes, n° 6, Lyon
  (janvier 1993).
27 Alfred Döblin, Schriften zur Politik und Gesellschaft, Olten/Freiburg, Walter, 1972, p. 92, apud David B.

  Dollenmayer, The Berlin Novels of Alfred Döblin, Berkeley/Los Angeles, University of California, 1988, p. 54.
  Döblin se refere aí a um famoso texto de Peter A. Kropotkin, Memoiren eines Revolutionärs, Bd. II, Münster,
  Unrast, 2002, p. 319: “Die Art wie jeder jeden als Gleichen sah und behandelte, die ich in den jurassischen Bergen
  fand, die Unabhängigkeit im Denken und im Ausdruck, wie ich sie sich unter den dortigen Arbeitern entwickeln
28
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Em princípio, então, rejeita a República, a qual via, não sem razão, como uma traição dos
ideais revolucionários e sob cuja fachada continuaria viva a antiga estrutura capitalista de
poder imperial. Em 1921, porém, algo resignado, Döblin demonstrava aceitar Weimar, pelo
menos enquanto ideal pelo qual valeria a pena lutar, e clamava pelo suporte dos colegas do
meio artístico, que deveriam “espiritualizar” a nova República, contribuir para a superação
tanto das arcaicas estruturas, ainda vigentes, de exploração e dominação, quanto das
altercações partidárias que, após a guerra, teriam impedido às forças de esquerda
estabelecer uma verdadeira ordem digna do homem. Desapontado cada vez mais com a
incapacidade do novo Estado de renovar a ordem das coisas, Döblin vai aos poucos adotar
uma atitude “biologista”, por assim dizer, ligada a uma filosofia especulativa da natureza, o
que aparecerá explicitamente no tratado Das Ich über der Natur, de 1927: as antigas
questões políticas são como que esvaziadas, ou simplesmente deixadas de lado; passa para
o primeiro plano a compreensão do universo como dinâmica ordenada, onde tudo tem seu
lugar, inclusive as guerras imperialistas, vistas como inevitáveis28. É preciso ter em mente
que tal visão despolitizada do mundo, calcada numa filosofia da harmonia cósmica, divina,
era a de Döblin no momento em que se pôs a compor Berlin Alexanderplatz, apesar de o
contato frequente com Brecht fazer com que mantivesse ainda acesa a esperança numa
mudança revolucionária.
        Antes de retomarmos a discussão de nosso livro, acrescentemos ainda o fato, que não
deixa de ser revelador, de o autor flertar desde cedo com o exotismo e o esoterismo
orientais. Já no “romance chinês” Die drei Sprünge des Wang-lun (1915), publicado em
pleno conflito mundial, a atitude ambígua do nosso autor se deixa ver plenamente. No livro
são consagrados os ensinamentos taoístas de Li-zi (séc. V a. C.), pregador da passividade
diante do fluxo inalterável da vida; ao mesmo tempo, a história termina com o protagonista
passando        à ação e morrendo ao liderar uma insurreição. Passividade e aceitação serena
do curso do mundo, por um lado, por outro, engajamento prático e intervenção
transformadora da sociedade: eis os dois polos, antagônicos e inconciliáveis, encontrados
em muitas de suas obras, como também no próprio curso de sua vida. Continuando o que


  sah, und ihre grenzenlose Hingabe an die gemeinsame Sache sprachen meine Gefühle noch viel mehr an; und als
  ich die Berge nach einer guten Woche Aufenthalt bei den Uhrmachern wieder hinter mir ließ, standen meine
  sozialistischen Ansichten fest: Ich war ein Anarchist.” Em tradução aproximada: “O modo como cada um é visto e
  tratado, que presenciei nas montanhas do Jura [suíço], a independência de pensamento e de expressão que pude
  ver entre os trabalhadores lá, sua devoção ilimitada à causa comum, tocaram profundamente meus sentimentos; e
  quando, após uma semana passada junto aos relojoeiros, deixei as montanhas, minhas visões socialistas estavam
  estabelecidas: eu era um anarquista.”
28 Para tudo isso, cf. David B. Dollenmayer, The Berlin Novels of Alfred Döblin, op. cit., pp. 54-59.
29
[-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010

dizíamos, a fascinação de Döblin por civilizações e concepções de mundo não-ocientais em
seguida reaparecem na novela “Der Überfall auf Chao-lao-sü” (1921) e em Manas (1927),
longo poema épico concebido em parte para dar conta da “crise do romance”29 e que,
segundo o próprio autor, deveria servir de base para Berlin Alexanderplatz, sendo este uma
espécie de “Manas em dialeto berlinense”30. Durante o exílio, a fim de “aliviar a sede de
aventuras”, escreveria a Amazonas-Trilogie (1937-38), sobre povos e culturas pré-
colombianos, e, voltando-se uma vez mais para a China, The Living Thoughts of Confucius
(1940). Por fim, influenciado por anos de leituras de Espinoza, Pascal e Kierkegaard,
acabaria por se converter ao catolicismo romano em 1941 – decisão que Brecht, que
admirava os trabalhos do amigo desde que lera ainda jovem seu Wadzeks Kampf mit der
Dampfturbine (1914/18), no qual se repudiava o heroísmo trágico31, teria considerado como
uma dolorosa traição, como atesta o poema “Peinlicher Vorfall” 32. Tal parti pris pelo
irracional não deixaria de envergonhar e incomodar a Brecht, que, após um discurso
pronunciado por Döblin durante o exílio californiano, por ocasião de seus 65 anos, em 14 de
agosto de 1943, no qual defendia que “die Relativität ist der Tod aller Moral”33, notaria em
seu diário:




29 “Die Krise des Romans” é o título de um famoso texto programático, escrito por Otto Flake em 1922, e que
  mobilizou toda a classe literária alemã, de modo que quase todo “romance” escrito após esta data teve por meta,
  por assim dizer, a superação do Bildungsroman clássico, ou pelo menos a renovação do gênero, que após os
  horrores da Primeira Guerra havia se tornado, por óbvias razões, uma forma caduca. Der Zauberberg (1924), de
  Thomas Mann, e Der Mann ohne Eigenschaften (escrito entre 1921 e 1942), de Robert Musil, são dois dentre os
  mais notáveis exemplos de tentativas de superação, ou transformação, do romance de formação clássico. Também
  o Doktor Faustus (1947), escrito no exílio, espécie de Bildungsroman ao avesso, no qual o protagonista se forma
  no momento em que, firmado o pacto com as forças demoníacas, dá as costas para o mundo e passa a viver isolado
  da civilização.
30 Alfred Döblin, “Posfácio para a reedição de 1955”, cit., p. 527.

31 Cf. Bertolt Brecht, Tagebücher 1920-22, Frankfurt/M., 1978, p. 48, apud Heidi Thomann Tewarson, “Alfred

  Döblin und Bertolt Brecht: Aspekte einer literarischen Beziehung”, in Monatshefte, vol. 79, n° 2 (Sommer 1987),
  pp. 172-85, aqui p. 172, entrada de 4/9/1920: “Ich lese heute früh den Schluß von Döblins „Wadzeks Kampf‟ und
  finde darin anklingende Ideen. Der Held läßt sich nicht tragisieren. Man soll die Menschheit nicht antragöden.
  Und es steht Herrliches drin über die Tragödie. (Es wird Schamgefühl gefordert!) Es ist überhaupt ein starkes
  Buch. Es läßt den Menschen schamhaft im Halbdunkel und macht nicht Proselyten. So ist es, steht drinnen auf
  300 Seiten. Ich liebe das Buch.”
32 Cf. Bertolt Brecht, “Peinlicher Vorfall”, in Gesammelte Werke, Bd. 10: Gedichte 3, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1967,

  pp. 861-62: “Als einer meiner höchsten Götter seinen 10 000. Geburtstag beging / Kam ich mit meinen Freuden
  und meinen Schülern, ihn zu feiern / Und sie tanzeten und sangen vor ihm und sagten Geschriebenes auf. / Die
  Stimmung war gerührt. Das Fest nahte seinem Ende. / Da betrat der gefeierte Gott die Plattform, die den
  Künstlern gehört / Und erklärte mit lauter Stimme / Vor meinen schweißgebadeten Freunden und Schülern / Daß
  er soeben eine Erleuchtung erlitten habe und nunmehr / Religiös geworden sei und mit unziemlicher Hast /
  Setzte er sich herausfordernd einen mottenzerfressenen Pfaffenhut auf / Ging unzüchtig auf die Knie nieder und
  stimmte / Schamlos ein freches Kirchenlied an, so die irreligiösen Gefühle / Seiner Zuhörer verletzend, unter
  denen / Jugendliche waren. / Seit drei Tagen / Habe ich nicht gewagt, meinen Freunden und Schülern / Unter die
  Augen zu treten, so / Schäme ich mich.”
33 Apud Harold von Hofe, “German Literature in Exile: Alfred Döblin”, in The German Quaterly, vol. 17, n° 1 (jan.

  1944), pp. 28-31, aqui p. 31.
30
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        Döblin fez um discurso contra o relativismo moral e a favor de padrões fixos de natureza
        religiosa, e com isso melindrou os sentimentos irreligiosos da maioria dos convidados. Uma
        sensação incômoda se apossou dos seus ouvintes mais racionais, algo como o indulgente
        horror experimentado quando um companheiro de prisão sucumbe à tortura e fala. [...]
        Quando Döblin começou a dizer que, a exemplo de muitos outros escritores, também ele era
        culpado da ascensão dos nazistas (“O senhor não disse, Sr. Thomas Mann, que ele é como
        um irmão, ainda que um mau irmão?”, perguntou à primeira fila) e depois continuou
        obstinadamente a perguntar por que era assim, por um momento tive a infantil convicção de
        que ele diria “porque acobertei os crimes da classe dirigente, desencorajei os oprimidos, iludi
        com canções os famintos” etc., mas tudo o que fez foi anunciar com teimosia, sem
        arrependimento ou pesar, “porque não procurei Deus”.34


A dimensão místico-cristã, que dá mostras da total despolitização do autor durante o exílio
– já em Paris, antes mesmo de imigrar para os EUA, Brecht não deixava de notar inclusive
certa tendência fascista nas ideias sionistas do amigo 35 –, faria ainda aparição em Der
Unsterbliche Mensch (1946) e em seguida em “Die Pilgerin Ætheria” (1949). A superação da
“longa noite” e o começo de uma nova vida são os temas de Hamlet oder Die lange Nacht
nimmt ein Ende (1956), seu último romance, segundo alguns críticos interessante do ponto
de vista formal, não obstante ser a experiência histórica da Segunda Guerra totalmente
hipostasiada através do amálgama de fé católica, mitologia grega, poesia trovadora
medieval, referências literárias diversas e, para completar, terapia de grupo junguiana.
        Do que precede não se pode inferir a presença, através da obra de Döblin, de uma
temática místico-religiosa – para não dizer regressiva – difusa. Lê-la com este (ou qualquer
outro) a priori pode levar a interpretações descabidas. Também não há problema
simplesmente em se fazer uso de referências orientais. Brecht, por exemplo, aliás
influenciado por Döblin, também estudou os clássicos da Índia e da China, coisa que se
reflete em alguns de seus melhores poemas e peças. Haveria então que se interrogar sobre a
maneira com que são usadas tais referências, e com qual finalidade. O que vale, aliás, para
qualquer referência mítica, religiosa, metafísica, seja ela ocidental ou não. Pois, caberia
perguntar, o que se busca afinal, a perenização de uma situação histórica através de sua
essencialização, um estranhamento fascinado, ou então, ao contrário, um meio de produzir
o distanciamento necessário para lançar uma luz crítica sobre tudo o que pareça ou se
apresente como natural? A este respeito, vale ainda o que já dizia Pascal: “La Chine
obscurcit, mais il y a clarté à trouver; cherchez-la. [...] Ainsi cela sert, et ne nuit pas.”36

34 Bertolt Brecht, Arbeitsjournal, Bd. 2: 1942-1955, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1973, p. 605, trad. R. Guarany e J. de
  Melo: Diário de trabalho, vol. II: 1941-1947, Rio de Janeiro, Rocco, 2005, pp. 194-95.
35 Cf. Bertolt Brecht, Briefe, Frankfurt/M., 1981, carta n° 184, apud Heidi Thomann Tewarson, “Alfred Döblin und

  Bertolt Brecht”, op. cit., p. 183: “In Paris entsetzte mich Döblin, indem er einen Judenstaat proklamierte, mit
  eigner Scholle, von Wallstreet gekauft. In Sorge um ihre Sohne klammern sich jetzt alle (auch [Arnold] Zweig hier)
  an die Terrainspekulation Zion. So hat Hitler nicht nur die Deutschen, sondern auch die Juden faschisiert.”
36 Blaise Pascal, Pensées (post., 1670), Paris, Dezobry et E. Magdelene, 1852, art. XXIV, § 46, p. 328.
31
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                                                       ***


           Voltando então, já não sem tempo, a Berlin Alexanderplatz, digamos que a fim de
montar sua epopeia metropolitana, que evoca, quiçá involuntariamente, mas de todo modo
com grande mestria, estados arcaicos e civilizados coexistindo no seio de um mesmo espaço
social, intricado e estilhaçado, qual seja, uma cidade grande em constante transformação e
expansão, em princípio inapreensível em sua totalidade, visando então recompor o mosaico
caótico e polifônico do espaço urbano moderno e do lugar, ínfimo e precário, ocupado pelo
sujeito isolado e perdido no seio deste último, nosso autor toma naturalmente o cuidado de
distanciar a narrativa de todo psicologismo. As dificuldades da integração social, a retirada
ou a exclusão da comunidade, a opacidade do sujeito em relação a si mesmo, a estranheza
para com o mundo à sua volta, a impossibilidade subjetiva e objetiva de se encontrar paz
neste mundo, de se adequar a seu curso desenfreado e insandecido, de ser e permancer
decente etc., não são por Döblin contrabalançadas pela simples focalização na riqueza
sensorial ou psíquica das personagens: o “herói” – e doravante o uso deste termo, mesmo
sem aspas, será sempre num sentido negativo –, Franz Biberkopf, como não podia deixar de
ser, é pobre em sensações, sua vida interior é quase inexistente. Como já sublinhado, é
antes a cidade que pulsa, cacofônica.
           Desde as primeiras páginas, pode-se “ouvir” o bumbar e o rufar das máquinas na
Alexanderplatz, o bulir e o burburinhar das ruas em torno à famosa praça, o trepidar do
chão com a passagem do bonde ou do metrô, estridentes. Às descrições do cenário urbano,
com contornos e tonalidades fauvistas e intensidade expressionista, integram-se estatísticas
demográficas e econômicas, publicidade de tudo quanto é produto, panfletos de
propaganda política, previsão do tempo, itinerários de ônibus, trens e elétricos, filmes e
peças em cartaz, canções populares, prescrições e regras de administrações e repartições
públicas, considerações sociológicas, discursos jurídicos, descobertas científicas recentes,
notícias políticas, artísticas e esportivas do tempo e os mais banais faits divers do
momento, “tudo isso em fusão inextricável com a matéria narrativa e os monólogos
interiores das personagens formando uma unidade fervilhante, turbilhonando no amplo
ritmo de uma linguagem ao mesmo tempo expressiva e naturalista” 37. Com efeito, a
linguagem usada por Döblin é bastante híbrida, misturando e combinando a todo momento
citações do Antigo Testamento e do Apocalipse de João na tradução de Lutero, além de
empréstimos da poesia de Goethe e Schiller, com o característico Berlinerich, o patoá

37    Anatol Rosenfeld, “A confusão de Babel: Alfred Döblin” (1959), in Letras germânicas, São Paulo/Campinas,
     Perspectiva/Usp/Unicamp, 1993, p. 168.
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  • 2. 2 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 [-] Sumário # 6 EDITORIAL 3 ARTIGOS APROXIMAÇÕES D’O CASTELO DE KAFKA Cláudio R. Duarte 5 O VELHO MUNDO PRECISA SUCUMBIR Mito e história em “Berlin Alexanderplatz” Rapahel F. Alvarenga 17 A FRATURA DA FORMA Constituição e implicações da representação da metrópole em “Berlin Alexanderplatz” Gabriela Siqueira Bitencourt 69 LOUIS-FERDINAND CÉLINE “Voyage au bout de la nuit” e a crise do realismo Daniel Garroux 98 DA CENTRALIDADE DE CANUDOS César Takemoto 123 JOÃO TERNURA Um livro à revelia do próprio autor Helena Weisz 131 OTIMISMO E SEBASTIANISMO NA HISTÓRIA RECENTE DA TROPICÁLIA Carlos Pires 146 O DIA-A-DIA COLONIZADO Lacan, Lefebvre e os eventuais discursos cotidianos Nils Göran Skare 162 TRADUÇÕES LITERÁRIAS VARIANTE DA ABERTURA DE O CASTELO Franz Kafka 181 A BAILARINA E O CORPO Alfred Döblin 184
  • 3. 3 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 Editorial A edição nº 6 de Sinal de Menos gira em torno das seguintes questões: como a literatura tem representado a cultura dos marginalizados na sociedade moderna? Como o que está “à margem” da sociedade, incluindo aí o inconsciente de seus sujeitos, irrompe nas relações sociais? A seção de ARTIGOS abre com um ensaio de CLÁUDIO R. DUARTE sobre O Castelo de Franz Kafka. O autor esboça as linhas fundamentais de sua construção e mostra por que este é talvez o romance mais complexo de Kafka, sintetizando momentos fundamentais de sua obra, pois além da dominação e da alienação, ele introduz de forma poderosa a irredutível não-identidade da figura de K. A seguir, temos dois ensaios sobre o romance Berlin Alexanderplatz de Alfred Döblin. O primeiro, de RAPHAEL F. ALVARENGA, procura integrar à explicação materialista a dimensão mítico-religiosa deste que é um “romance de formação” de um marginal, inscrevendo a obra no conturbado contexto político e cultural da República de Weimar, a cujo destino está enredado o de suas personagens. O texto de GABRIELA S. BITENCOURT busca, a partir da análise de alguns elementos formais da representação do espaço urbano no livro, discutir quais os desdobramentos do uso da montagem e como, por meio dela, a configuração da “metrópole literária” afeta a forma do romance. Em seguida, DANIEL GARROUX faz uma leitura de Voyage a la bout de la nuit, de Louis-Ferdinand Céline, sob o ponto de vista da ruptura da forma realista tradicional. Ao colocar seu leitor diante de um fluxo discursivo não-linear que emana de uma consciência cindida a narrativa subverte alguns dos pressupostos de que o gênero do romance havia se servido até então. O ensaio desenha a experiência social de fundo sedimentada no romance. No próximo artigo, CÉSAR TAKEMOTO tenta repensar a centralidade do evento da guerra de Canudos para a configuração artística de duas obras importantes da literatura brasileira do século XX: Os Sertões de Euclides da Cunha e Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa. Para tal, o autor se utiliza de uma crônica de Machado de Assis para daí avançar alguns pontos na interpretação de uma determinada constelação histórica brasileira. Em seu artigo, HELENA WEISZ acompanha a trajetória do mais ambicioso projeto do escritor brasileiro Aníbal Machado. Um livro que começou a ser escrito ainda no primeiro Modernismo, acompanhou todos os percalços e contradições desse movimento e só foi terminado em 1964.
  • 4. 4 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 Fechando a “sessão brasileira”, CARLOS PIRES analisa um balanço histórico da música popular e das transformações do Brasil, desde o final da década de 1960, feito por Caetano Veloso, em 1993. Essa reconstrução da história recente do país reposiciona o tropicalismo como um evento sem certas linhas de força, que são centrais para entendê- lo. A análise busca compreender qual o sentido desses apagamentos pontuais, que aparecem quase como sintomas no discurso de Veloso. O último ensaio, da autoria de NILS GÖRAN SKARE, pensa a cotidianidade, no sentido de Henri Lefebvre, sob o ponto de vista da teoria lacaniana do discurso, em suas modalidades fundamentais (a do mestre, a do universitário, a da histérica, a do analista e, por fim o “dialeto” do capitalista). Se o cotidiano é o lugar potencial do acontecimento, o capitalismo, segundo o autor, seria um sistema que busca administrá-lo e, no limite, evacuá-lo do cotidiano. A seção de TRADUÇÕES LITERÁRIAS traz uma variante da abertura de O Castelo de Kafka, que lança certa luz sobre o caráter da luta de K. no romance, e um pequeno conto de ALFRED DÖBLIN (“A Bailarina e o corpo”), ambos traduzidos diretamente do alemão. Lembramos que a revista vem aceitando contribuições. O próximo número trará uma entrevista com Robert Kurz, repensando temas de seu livro seminal, O colapso da modernização, após 20 anos de sua publicação. DEZEMBRO de 2010
  • 5. 5 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 Aproximações d’O Castelo de Kafka Cláudio R. Duarte* 1. Como nas grandes obras, a abertura de Das Schloß (1922) nos põe imediatamente diante de uma célula de seu princípio de construção: “Era tarde da noite quando K. chegou. A aldeia jazia na neve profunda. Da encosta [Schloßberg, colina do castelo] não se via nada, névoa e escuridão a cercavam, nem mesmo o clarão mais fraco indicava o grande castelo. K. permaneceu longo tempo sobre a ponte de madeira que levava da estrada à aldeia e ergueu o olhar para o aparente vazio.”1 A primeira visão das terras do conde Westwest é esta: o vazio aparente na paisagem em preto e branco. K. fica por longo tempo parado sobre a ponte observando a presença- ausência da aldeia e do castelo, envoltos na bruma e na neve. Eles não só não se oferecem à perspectiva enquanto paisagem, como K. parece nada saber sobre eles. O que aqui fica pressuposto é a indistinção de aldeia e castelo. 2. Isto que nos põe imediatamente diante do enigma de K.: não só ele aparentemente desconhece que chegou a seu destino, a uma aldeia e a um castelo (“Em que aldeia eu me perdi? Então existe um castelo aqui?”, DS, 8/10), como ignora o tal conde e suas propriedades – “o que torna impossível”, como já apontava Adorno, “que ele tenha sido chamado até lá”, isto é, que ele seja de fato um agrimensor, com seus ajudantes, que tenha se adiantado a eles durante a noite e tenha lhes confiado aparelhos de medição. 2 Certamente é por isso que ele não reconhece os ajudantes, Artur e Jeremias, quando estes chegam à hospedaria no dia seguinte, enviados pelo castelo (DS, 31/32). Quem é K., afinal? Um impostor? Um comediante (“Chega de comédia”, diz ele, DS, 9/11)? O que veio fazer ali? O que ele quer? Como a personagem se desenvolve na trama desde o início obscura? * Bolsista CNPq, doutorando DG-FFLCH/USP. 1 KAFKA, Franz. Das Schloß [1922]. (Kritische Ausgabe. Herausgegeben von Malcom Pasley). Frankfurt a. M.: S. Fischer, 1982, p. 7. (Trad. Modesto Carone: O Castelo. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 9). Doravante, cito o texto diretamente no corpo do texto sob a abreviação DS, seguido do número das páginas em alemão e em português, respectivamente. 2 ADORNO, Theodor W. “Anotações sobre Kafka” [1953] in:__. Prismas. (Crítica cultural e sociedade) [1955]. São Paulo: Ática, 1998, p. 242. Marthe ROBERT também apontou a impostura deste início (“Simbolismo y crítica de los símbolos” in:__. Acerca de Kafka/Acerca de Freud [1967]. Barcelona: Anagrama, 1970, p. 42-3).
  • 6. 6 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 3. Como se sabe, longe de responder claramente tais questões, o romance de Kafka constrói um mundo cerrado e enigmático, que tende a suscitar múltiplas interpretações. O narrador em terceira pessoa baixa ao horizonte das personagens e tende a se reduzir à visão de fora, com um acesso limitado ao seu mundo interior. Ele se centra na ótica de K.: o texto se condensa e se fecha nos primeiros dias de sua permanência na aldeia e opera como uma contínua apresentação, multiplicação e destruição de aparências e de imagens positivas. Daí a vulnerabilidade e a fragilidade de muitas interpretações da obra, que somente ganham alguma consistência quando se dispõem pacientemente a ler os detalhes do ponto de vista da totalidade da composição (mesmo inacabada). 4. Se K. não é simplesmente um estrangeiro, mas um falso agrimensor (Landvermesser) (o qual, Schwarzer pretende reduzir a “um reles e mentiroso vagabundo [Landstreicher]”, em um momento de fúria, DS, 12/13) – um intruso que se vê nitidamente como um “agressor” –, o castelo aceita e alimenta a luta com outra impostura. De fato, após o primeiro telefonema de Schwarzer, que dava sinal negativo ao suposto agrimensor, K. espera apenas que os aldeões se atirem sobre si e o expulsem do território do conde. Mas, após o inesperado segundo telefonema que o confirma como agrimensor (o próprio “chefe do escritório” é quem telefona), ele reflete o seguinte: “Então o castelo o havia designado agrimensor. Por um lado isso era desfavorável a ele, pois indicava que no castelo se sabia tudo o que era preciso a seu respeito, as relações de força tinham sido pesadas e aceitavam a luta sorrindo.” (DS, 12/14, grifos meus). Se os camponeses levam as leis e as tradições à risca, o castelo sustenta a impostura de K. e indiretamente confirma-se também como farsa. Por isso, na seqüência deste mesmo trecho, K. sente também certa liberdade e certo destemor em relação a seu adversário: “Mas por outro lado isso também era propício, pois a seu ver provava que o subestimavam e que ele teria mais liberdade do que de início podia esperar. E se acreditavam com esse seu reconhecimento [Anerkennung] como agrimensor – do ponto de vista moral, sem dúvida superior – conservá-lo num estado de medo contínuo, então eles se enganavam: isso lhe dava um leve tremor, mas era tudo.” (DS, 12-3/14) Nessa chave, novos problemas se colocam: onde a lei tem sua verdadeira sede ou ponto de sustentação? Qual é a diferença entre a aldeia e o castelo? O que há por trás daquele “vazio aparente”? 5. Como no conto “Diante da lei”, estamos o tempo todo “Diante do castelo”, mas o castelo – a lei ou a sede da lei – não está simplesmente ausente. Muito pelo contrário, o castelo está
  • 7. 7 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 presente demais lá embaixo, na aldeia. O paradoxo inicial de O Castelo é que apesar de seu título ele se passa o tempo todo na aldeia. Talvez porque o castelo é, de certa forma, nada mais que a aldeia. Como ensina o professor da aldeia: “Não há diferença entre os camponeses e o castelo” (DS, 20/21). “As autoridades judiciais” – escreve Wilhelm Emrich – “não estão fora, mas habitam em pleno centro da vida terrena, ou mais ainda, elas são a vida mesma. (...) A lei desconhecida segue sendo desconhecida ainda que incessantemente esteja presente e opera em todas as relações da vida e do pensamento.” 3 A fantasmagoria do castelo manifesta-se na aldeia, na vida dos aldeões, na sua consciência e na sua prática reificadas; no limite, ele se confunde com eles e é idêntico a eles. “Em lugar nenhum K. tinha visto antes, como ali, as funções administrativas e a vida tão entrelaçadas – de tal maneira entrelaçadas que às vezes podia parecer que a função oficial e a vida tinham trocado de lugar” (DS, 94/92-3). 6. Kafka nos insere num mundo ficcional em que há e não há distinção entre as coisas e os seres. Pensando na dona do albergue (Gardena = guardiã) e talvez em Frieda e nos ajudantes, K. se pergunta: “o que significava, por exemplo, o poder até agora apenas formal que Klamm exercia sobre o ofício de K., comparado com o poder que Klamm tinha em toda a sua efetividade no quarto de dormir de K.?” (DS, 94/93). Essa indistinção entre as ordens do mesmo e do outro – a coerção da identidade que aliena e esmaga as particularidades – tende a ser a forma predominante do livro. Como ruína desse mesmo processo social efetivo, ele próprio restou como torso monumental de exposição do problema da reificação e do poder alienado, na sociedade moderna. 7. O romance foi lido diversas vezes como uma espécie de metafísica da ausência, de busca impossível do santo Graal ou da morada do deus absconditus, ou mais simplesmente como a busca da integração na vida da aldeia ou do castelo (K. sendo o protótipo do judeu, segundo alguns, para outros uma espécie de “messias”), nesse caso, vale dizer, uma integração no seio da mais completa alienação. Na versão alucinada de Günter Anders, por exemplo, a vida de K. consistiria nas “tentativas e esforços mil vezes repetidos para ser 3 EMRICH, Wilhelm. Protesta y promesa [1960]. Barcelona/Caracas: Alfa, 1985, p. 128-9. Este ponto foi reforçado por ŽIŽEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem. O sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 187. Para análises específicas de O Castelo, beneficiei-me de comentários de: ROBERT, Marthe. “Le dernier messager” in:__. L‟ ancien et le nouveau. De Don Quichotte à Franz Kafka. Paris: Grasset, 1963; EMRICH, Wilhelm. “Der menschliche Kosmos: der Roman „Das Schloss‟” in:__. Franz Kafka. Frankfurt a. M./Bonn: Athenäum, 1958; KRAFT, Herbert. “Being There Still: K., Land Surveyor, Stable-Hand, ...” in:__. Someone like K. (Kafka‟s Novels). (Trad.: R. J. Kavanagh e H. Kraft). Würsburg: Königshausen & Neumann, 1991; BOA, Elizabeth. “The Castle” in: Preece, J. (ed.). The Cambridge Companion to Kafka. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
  • 8. 8 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 aceito” na aldeia do castelo, em que se esforçaria para “atender a todas as prescrições, apropriar-se „interiormente‟ delas e justificar até mesmo as pretensões „imorais‟ dos governantes”! Kafka se torna, assim, um “moralista do nivelamento” e da “obediência”. 4 No entanto, desde o início K. confessa que não é poderoso e que seu respeito pelos poderosos é uma estratégia ou artimanha (DS, 16/17). Por certo, trata-se de uma busca obstinada, mas com um sinal desde o início negativo: é impossível imaginar que K. leve realmente “a sério” o que se passa no castelo a partir da admissão de sua impostura, muito menos que ele atribua um caráter natural ou divino a ele ou um sinal positivo à sua busca, às prescrições do castelo etc. Mediante o estranhamento deliberado, Kafka cria um universo que escapa à clareza, à coerência, à previsibilidade e à distinção precisa, ao mesmo tempo em que busca trilhar o que escapa aos poderes obscuros – o caminho aporético e circular de K. entre a aldeia e o castelo. Numa variante do início do romance, K. diz que veio para “lutar” (“Zum Kampf bin ich ja hier”) e, segundo uma camareira, todos na aldeia estariam cientes da chegada de um forasteiro.5 Dessa perspectiva, salvo engano não continuada e não incorporada pelas diversas outras passagens da versão final do romance, trata-se de forma ainda mais explícita de uma luta radical entre o “sistema” e um “indivíduo”, o seu “resíduo”. 8. Um equívoco comum da crítica é julgar que a obra de Kafka não contém qualquer espécie de desenvolvimento em seu núcleo, como se o autor fizesse um finca-pé arbitrário numa simples “paralisação do tempo”, em que os “acontecimentos consistem em imagens isoladas”, por onde ele se torna o “glorificador do compromisso e do ritualismo em geral”, isto é, o apologista da mera repetição de formas sociais vazias.6 Contudo, um desenvolvimento bloqueado e interrompido não é absolutamente um não-desenvolvimento. É preciso aqui distinguir, no plano analítico, o movimento da forma e o do conteúdo. Em certo sentido, temos um “movimento” de reiteração da forma e um movimento de diferenciação e de decomposição do conteúdo. Pode-se pensar esse duplo movimento em O Castelo como imposição coercitiva da identidade, sempre pressuposta na aldeia; mas uma identidade nunca realizada até o fim, pois negada precisamente pela ação e a interação de K. com as outras personagens. Esse desdobramento leva de estranhamento a estranhamento, destruindo as suposições do “herói” (e do leitor). O estranhamento 4 ANDERS, Günter. Kafka: pró e contra – Os autos do processo [1951]. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 26 e 33. 5 KAFKA, Franz. Das Schloß. Apparatband. (Herausgegeben von Malcom Pasley). Frankfurt am Maim: S. Fischer, 2002, p. 116. 6 “Onde só há repetição, não há progresso do tempo. Todas as situações do romance de Kafka são, de fato, imagens paralisadas.” (ANDERS, op. cit., p. 30, 83 e 39.)
  • 9. 9 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 funciona como desnaturalização das referências realistas tradicionais e, ao mesmo tempo, como apresentação das contradições sociais reais: as deformações da perspectiva realista não são uma mania do autor nem de uma mera figura de estilo, mas se tratam precisamente de traços produzidos pela violência social da identidade. Esta é conduzida pelo escritor até o absurdo a fim de poder nomeá-la de modo mais radical, ao mesmo tempo em que expõe, assim, o sofrimento e as deformações sociais por ela produzidos. 9. Se K. sofre de certa ingenuidade nos primeiros dias, esta vai sendo minada pelos acontecimentos e é transformada num processo crítico que esclarece não obviamente o castelo, desde o início fechado e inacessível à interpretação, mas alguns pressupostos cegos e absurdos de sua autoridade, na aldeia. Em contraste com o ritualismo burocrático mais estrito que zela pela identidade, a não-identidade ganha relevo. Ela fica sob permanente controle e ao final tem ser neutralizada. Os aldeões sempre estão vigiando o forasteiro K., que não pode pernoitar no albergue dos senhores; Momus o inquire e registra todos os seus passos; os ajudantes são enviados por um funcionário do castelo (Galater) em nome de Klamm, supostamente para diverti-lo (e confundi-lo); o prefeito o rebaixa a servente da escola; os professores da escola o vigiam e humilham; ele é expulso do corredor do albergue dos senhores etc. O ponto máximo desse poder panóptico é quando Erlanger ordena o retorno de Frieda à sua função de atendente no balcão: “é nosso dever vigiar o bem-estar de Klamm”, diz o secretário, “de tal forma que mesmo incômodos que não são nada para ele – e é provável que não exista absolutamente nenhum – nós os eliminamos quando nos chamam a atenção como possíveis perturbações” (DS, 428/402). A “normalidade” do tempo social se realiza pelo rígido controle do espaço da aldeia. É nesse sentido que todas as autoridades do castelo, segundo o prefeito da aldeia, são nada mais que “autoridades de controle” (DS, 104/103). Um sistema que, em sua fantasia, funciona como uma máquina impessoal sem falhas. 10. As relações impessoais de dominação se materializam em relações interpessoais e, como tais, estão sujeitas a toda ordem de contingências e arbitrariedades. É o que aparece, por exemplo, na forma de relações de propriedade sobre as coisas, os lugares e as próprias pessoas. Se em Der Prozeß “tudo pertence ao tribunal”, no condado, de maneira análoga, tudo é propriedade do conde Westwest. Como logo informa Schwarzer a K.: “Esta aldeia é propriedade do castelo, quem fica ou pernoita aqui de certa forma fica ou pernoita no castelo. Ninguém pode fazer isso sem permissão do conde” (DS, 8/10). O caso mais extremo
  • 10. 10 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 deste poder coisificador é a propriedade exercida sobre as mulheres da aldeia. “Na verdade” – diz Olga, tendo em mente o episódio da carta de Sortini a Amália – “consta que todos nós pertencemos ao castelo, que não existe distância e portanto nada para transpor” (DS, 309/293). Deste modo, “Klamm é sem dúvida como um comandante sobre um exército de mulheres, ordena ora esta, ora aquela, para ir até ele.” (ib.). A própria Frieda também concebe sua relação com K. como sendo uma relação de “propriedade” (DS, 245/235) e não deixa nunca de se subordinar às injunções do castelo. E assim o abandona no final. 11. Ao contrário do que geralmente se afirma, O Castelo não analisa “o poder de um despotismo arcaico a exemplo da monarquia austro-húngara”.7 Como apontou Löwy, a alienação burocrática moderna é o metro fundamental das relações sociais no romance, ganhando até mesmo, numa fala do prefeito da aldeia (DS, 110/107-8), a forma metafórica de uma “máquina autônoma”, que “dispensa a participação humana”.8 É possível ver na base social, porém, algo como uma “economia mercantil simples”, típica de uma sociedade agrária9, subordinada à burocracia de uma grande empresa ou de um Estado tipicamente modernos. O aparelho administrativo do castelo cobra os seus tributos, os aldeões têm os seus negócios isolados ou funções particulares, como camponeses, artesãos, hospedeiros e funcionários, enquanto K. espera tornar-se, de início, uma espécie de assalariado contratado pelo castelo. Assim, Kafka parece mesclar no romance as formas de dominação mais modernas e abstratas e as mais tradicionais e imediatas. O interesse estético dessa mescla é a ênfase no poder social reificado da identidade e de sua reprodução. A dominação social se infiltra e se dissemina desde a família patriarcal camponesa tradicional até os grupos mais amplos e abstratos, nos albergues e nos escritórios da maquinaria burocrática. 12. A marca histórica do romance pode parecer apagada e diluída, mas não é indefinida. Em um ponto da construção ela é central: é a forma burocrática que em geral molda a “linguagem protocolar” (Anders) do romance, principalmente dos discursos dos funcionários (Prefeito, Brügel, Momus, Erlanger, Professor). Desde o início, com Schwarzer, K. comprova a “formação de certo modo diplomática” da “gente miúda” do castelo (DS, 11/13). Mas esse estilo protocolar se espraia também pela fala de Gardena (dona do Albergue da Ponte), de Olga, de Pepi e do próprio K.10 7 Cf. a boa leitura de: LÖWY, Michael. Franz Kafka, sonhador insubmisso. São Paulo: Azougue, 2005, Cap. 5 (“O castelo – despotismo burocrático e servidão voluntária”), p. 163. 8 Idem, ibidem, p. 165. 9 ADORNO, op. cit., p. 254. 10 Cf. CARONE, Modesto. “Pósfácio” in: O Castelo, op. cit., p. 479.
  • 11. 11 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 13. A forma histórica torna-se inteligível também na descrição da arquitetura do castelo, que frustra toda expectativa do leitor. Depois de seus contatos telefônicos, somente o agrimensor K. não se espanta com a aparência prosaica do suposto castelo, tão parecida com a morfologia da aldeia e de sua própria cidade natal, em algum lugar da Europa do início do século XX. O imaginário feudal desaba: “No conjunto o castelo, tal como se mostrava da distância, correspondia às expectativas de K. Não era nem um burgo feudal nem uma residência nova e suntuosa, mas uma extensa construção que consistia de poucos edifícios de dois andares e de muitos outros mais baixos estreitamente unidos entre si; se não se soubesse que era um castelo seria possível considerá- lo uma cidadezinha.” (DS, 17/18) De fato, quando chega mais perto o agrimensor se decepciona: “na verdade era só uma cidadezinha miserável, um aglomerado de casas de vila, que se distinguiam por serem todas talvez de pedra, mas a pintura tinha caído havia muito tempo e a pedra parecia se esboroar” (ib.). Kafka toma o processo de destruição da imagem ao pé da letra. 14. A modernidade do romance kafkiano vem indicado ainda no nome do conde – algo como “Oesteoeste” –, o qual sugere a onipotência mundial do ocidente capitalista, bem como a decadência da sociedade que o suporta (é no extremo ocidente o ponto de ocaso do sol, daí o ambiente frio e tenebroso do romance). O contexto imediato da obra, o pós- Primeira Guerra Mundial, não é outro que o do mundo dominado de ponta a ponta pela ordem do capital, segundo o modelo mesclado já referido (§ 11). 15. O nome Westwest sugere também a contigüidade e a identidade forçada do “Castelo- aldeia” – um nome que é apenas o início de uma longa série de duplos que moldam o romance (dois albergues, dois ajudantes, duas garçonetes, dois professores, castelões e subcastelões, senhores e seus secretários, Sordini e Sortini, Klamm e K. etc.). O molde estrutural destas duplicidades é a contraposição entre o castelo e a aldeia, ou ainda, a lei e a ordem e o seu avesso obsceno – a desordem e a contradição imanentes. 16. O núcleo dialético do romance é a mediação de campos opostos: a ordem que aparece como desordem, o sistema como contradição, a exceção como regra, a essência (Wesen) como monstruosidade (Unwesen). Assim, o segredo da mais rígida burocracia é algo da ordem do capricho, da incoerência e da loucura – a “ridícula embrulhada [lächerliche Gewirre] que, conforme as circunstâncias, decide sobre a existência de uma pessoa” (DS, 102/101). Esse movimento é irônico e produz o humor corrosivo do livro, que adentra no reino do inverossímil. Os criados dos senhores do castelo são tão selvagens e dominados
  • 12. 12 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 por “impulsos insaciáveis” (DS, 348/328) quanto os seus senhores. A noite no albergue dos senhores transforma-se numa espécie de prostíbulo. A verdade do bom funcionário Sordini é o obsceno Sortini; ou ainda, por trás da seriedade funesta do castelo esconde-se a infantilidade, o escárnio e a impostura. O clima de comédia domina o subtexto. Assim, já no início, Schwarzer aparece com “trajes de cidade, rosto de ator” (DS, 7/9). 17. O figurino tipicamente burguês de Klamm (gorducho, dorminhoco, casaca preta, fumando charuto, com tudo a seu dispor) se contrapõe aos farrapos de K., tal como as excelentes e modernas instalações do albergue dos senhores contrastam com a pobreza e a doença nas casas campesinas. Porém, não se trata apenas da desigualdade social entre as condições de vida de senhores, funcionários e aldeões, mas sobretudo da igualdade de um sistema que captura a todos na mesma hierarquia cega e coisificada de sua dominação. Para além da desigualdade, trata-se de reconhecer o sistema que articula todos os sujeitos como carcaças mortas – como suportes de sua identidade fundamental. Nesse sentido, o romance parece criar um mundo que mimetiza as contradições da forma do valor e da cisão de gêneros da sociedade moderna. É nesse sentido, ainda, que a dona do Albergue da Ponte é tanto objeto “feminino” de Klamm, quanto se corporifica como sujeito da dominação patriarcal de Frieda. Nesse núcleo de contradições, ficam postas ou pelo menos pressupostas, ainda, formas irredutíveis de negação nas figuras de K. e de Amália (a firme recusa da proposta indecente de Sortini) e até certo ponto de Olga e Barnabás (a sua abnegação em favor da família, apesar de seu lamentável conformismo diante da autoridade), de Pepi (a menina sonhadora que pensa em incendiar o castelo!) e do menino Hans (que parece se contrapor ao professor e ao pai). 18. Para além do inalcançável Klamm e do etéreo conde Westwest deve haver um rei – jamais dito e muito menos nomeado no romance – uma sugestão da instância totalmente abstrata, impessoal e fetichista da lei. Mas o vazio do poder opera plenamente na aldeia, em cada funcionário, posto ou cargo desejado e ocupado pelo mais simples e indiferente aldeão, que sonha em obter alguma distinção social ou compensação imaginária galgando os degraus irrisórios da hierarquia social do condado. 19. O castelo não tem nada de divino ou de diabólico em si, mas é o pleno resultado do processo social moderno – encantado por uma aura sagrada. Nesse sentido, o moderno entrelaça-se ao mítico, mas não deixa de dar sinais de sua obsolescência e decomposição,
  • 13. 13 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 embora se sustente no ar com uma gargalhada diabólica. Klamm não lê nenhum protocolo, a eficiência administrativa dos funcionários é mais que duvidosa, só os dominados sustentam a sua legitimidade quase sagrada. As interpretações teológicas forçam o texto para materializar o “metafísico”.11 Mais válido seria dizer que o romance trata da dominação moderna recoberta pelo terror e pela mística das prerrogativas senhoriais. Tal como a ordem se entrelaça à desordem, o moderno se entrelaça ao arcaico e o histórico ao metafísico. 20. O trabalho compulsivo dos funcionários do castelo é potencialmente idêntico à petrificação do movimento da vida na aldeia. Ao mesmo tempo, o movimento petrificado de funcionários e aldeões para resguardar a identidade de seu modo de vida, comandado pelos senhores do castelo, é idêntico ao sono, à negligência e ao desprezo de Klamm em relação ao empenho burocrático ou “erótico” de seus subordinados. 21. Em vez do uso autônomo do tempo, o tempo dos camponeses se subordina ao do castelo e, por isso mesmo, em vez de referidos aos valores de uso, eles se subordinam às tarefas terrivelmente abstratas do aparelho administrativo. Isso é iluminado pelo caso de Barnabás, que, apesar de excelente sapateiro, torna-se um mensageiro do absurdo social, só podendo se dedicar residualmente à sua atividade. 22. Esta a distinção fundamental dos camponeses em relação a K.: o seu objetivo declarado não é ocupar um cargo superior no condado ou simplesmente se alojar na aldeia, mas de início distinguir-se como trabalhador livre e independente do castelo. Nessa chave, K. pode ser lido como alegoria do proletariado moderno. O agrimensor tem por volta de trinta anos e aparece como um homem “bastante esfarrapado”, com uma “minúscula mochila”, empunhando um cajado cheio de nós (DS, 11/12), que, é claro, se apresenta como agrimensor, trocando o seu tempo por dinheiro e aparentemente só desejando trabalhar no condado. Seu confronto com o castelo, que o coloca como “agressor”, visa multiplicar a sua relação com “outras forças que não conhecia” (DS, 92-3/92). Por isso ele apoia-se em Frieda e em Barnabás e na experiência de Olga, Amália, Hans e Pepi. De forma ardilosa, ele gere e executa o poder contra o poder existente. É como se podem compreender todas as 11 As interpretações gnósticas, como a de Erich Heller, são tão insustentáveis quanto as teológicas: “O castelo do romance de Kafka é, por assim dizer, a guarnição muito bem armada de uma companhia de demônios gnósticos que sustentam com êxito um posto avançado contra as manobras de uma alma impaciente. Nenhuma idéia concebível de divindade pode justificar os intérpretes, que vêem no Castelo a residência da „lei e da graça divinas”” (HELLER, Erich. Kafka. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 116).
  • 14. 14 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 suas relações. Mas como mantém a luta de forma isolada, ele inevitavelmente cai na condição de miséria e abandono. 23. K. representa o “homem abstrato”, anônimo, arrancado de referências históricas e da plenitude de uma existência cotidiana.12 No percurso de sua luta contra o castelo, ele recebe uma série de determinações, que em parte são máscaras (usadas de forma estratégica): segundo o resumo de Gardena, ele não é do castelo nem da aldeia, é um “nada” que “está sobrando e fica no meio do caminho” e que traz “aborrecimento” à comunidade (DS, 80/80), um estrangeiro que ignora e perturba os costumes do condado. Seu desejo de aproximação de Frieda é o desejo de permanecer na aldeia – até ser rebaixado ao posto insignificante de servente da escola. Nessa luta, ele pode se passar casualmente por pai de família (num diálogo inicial com o dono do albergue a respeito do pagamento dos serviços no condado, mas uma referência abandonada) ou por antigo ajudante do agrimensor (“Josef”, num telefonema para o castelo) e, é claro, por amante e noivo de Frieda, que, tudo indica, não passaria de uma tática para se aproximar de Klamm e do castelo. Fica claro na trama que seu objetivo ao se unir a Frieda não é Klamm, “mas sim passar por ele, ir em frente rumo ao castelo” (DS, 176/169). 24. Há aqui o sentido social fundamental do protagonista, muito pouco observado pela crítica standard, nesta série de atributos negativos: de forma objetiva e segundo a letra do romance, K. é menos o estrangeiro em geral que o moderno indivíduo sem propriedade, um “sujeito sem objeto”, i.e., um proletário mobilizável pelo castelo.13 Nessa luta em plena areia movediça, ele degringola para a condição de pária social e é mantido à margem – mais que exilado, um homo sacer exterminável, como ele mesmo diz, em “situação de emergência” (“Notlage”, DS, 198/191). Mas K. é também, justamente por causa desta condição negativa, o homem capaz de dizer “não” (DS, 84/84). Por isso temos aqui um indivíduo proletarizado contraposto à comunidade tradicional dos aldeões, fixados à propriedade e anexados ao castelo. O seu “não” é reforçado pelo “não” dado por Amália à proposta sórdida de Sortini. 12 Neste ponto podemos seguir ANDERS, op. cit., p. 50. Cf. também ROSENFELD, Anatol. Letras e leituras. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 47-51. 13 “Na sociedade burguesa, o trabalhador, p. ex., existe de um modo puramente não objetivo, subjetivo; mas a coisa que se põe diante dele se tornou agora a verdadeira comunidade que ele tenta devorar, mas que o devora.” (MARX, Karl. Grundrisse der Kritik der politschen Ökonomie (1857-1858). Berlin: Dietz, 1953, p. 396.)
  • 15. 15 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 25. Entre as alternativas do contrato de trabalho ou da simples anexação à aldeia/castelo, K. não hesita em escolher a primeira condição: “Só como trabalhador da aldeia, o mais distante possível dos senhores do castelo, ele era capaz de conseguir alguma coisa lá” (DS, 42/43). Neste momento de afirmação, K. não quer “favores” e parece exigir apenas os seu “direito” (DS, 119/116): estabelecer-se na aldeia para se tornar um trabalhador. Mas isso faz parte de seu jogo com o castelo. O seu objetivo não é simplesmente “trabalhar”, mas confrontar as autoridades do castelo. E é menos penetrá-lo – que afinal parecia um “alvo fácil” (DS, 50/51) durante o dia, período em que se tornava supostamente um local de trabalho frenético, tal como sondado no Albergue dos Senhores –, do que desmascarar o seu encanto e a sua impostura. Nas palavras de K., ao pensar no comportamento do prefeito e do professor, tudo ali não passa de um “embuste oficial” (DS, 235/225). 26. Como a crítica já observou, a profissão de K. é alegórica. “A agrimensura seria, assim, uma investigação sobre o significado das relações de propriedade e da propriedade da terra. Seria um ato revolucionário”.14 “Ele é o Agrimensor, aquele que mede a terra, mas o Agrimensor de um mundo que não quer deixar repor em causa as suas medidas, o Agrimensor de um mundo sem medida. Por isso a sua qualidade de agrimensor não é reconhecida por ninguém. (...) O seu olhar, unicamente, faz voltar as coisas à sua medida. Desde que aparece, o cenário rasga-se e por detrás do fausto das aparências e da lenda revela-se a realidade irrisória.” 15 A fragilidade do poder é assim exposta por K., tanto quanto isso é tolerado pelo castelo como uma espécie de jogo cômico (segundo, por exemplo, as duas cartas de Klamm). 27. O agrimensor alegórico questiona a propriedade, as leis, os poderes do castelo. Ao mesmo tempo é capaz de medir a deformação da particularidade de cada um frente à coação da identidade. Kafka assinala literalmente o peso deste domínio: nas costas curvadas dos funcionários, na doença e no envelhecimento que grassa por todos os lados, tal como nos “rostos literalmente torturados” dos camponeses, cujos “crânios pareciam ter sido achatados em cima e os traços da face formados na dor da pancada” (DS, 39/40). Os aldeões são como animais domesticados pela lei do castelo. A própria escola fica ao lado do celeiro e Frieda começou no posto mais baixo, como “criada de estrebaria no Albergue da Ponte”. Por isso, também, ela manda literalmente os servidores do castelo para a estrebaria, no albergue dos senhores, a golpes de chicote. K. percebe esse poder como histórico-natural 14 EMRICH, Wilhelm. “Der menschliche Kosmos: der Roman „Das Schloss‟”, op. cit., p. 300. 15 GARAUDY, Roger. Um realismo sem fronteiras [1963]. Lisboa: Dom Quixote, 1966, p. 173-4.
  • 16. 16 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 e em parte como uma espécie de servidão voluntária: “A reverência diante da autoridade é inata em vocês, continuará a ser incutida durante a vida toda das formas mais variadas e por todos os lados; até vocês ajudam nisso como podem” (DS, 288/274). 28. É nesse sentido também que K. assume o caráter de um mestre para Hans, para Olga e para Pepi. Ele mesmo se oferece como “médico” para a mãe de Hans. Se os aldeões e os funcionários aparecem na posição de objeto ou de “instrumento” do Castelo (tal como Momus, DS, 183/176: “Werkzeug”) –, então, no fundo, a sua função é virtualmente o de encarnar uma lei simbólica que barra o gozo desse Outro absoluto e impostor. 29. Dessa perspectiva, K. busca a ruptura não só do pacto mítico que subordina os aldeões como servos dos senhores do castelo – partes anexadas à propriedade do conde, mas também tenta romper a força concreta da idéia de contrato moderno, desnaturalizar a própria categoria do ser como mero trabalhador de uma potência alienada. Ele percebe criticamente a carta jocosa de Klamm, que não só o admitia como agrimensor, como dizia que lhe interessava “ter trabalhadores satisfeitos” (DS, 40/41). Ele percebe que sua admissão como simples trabalhador abstrato era um sinal de “perigo” – com isso, pensa ele, o castelo o punha “alegremente” no seu devido lugar, numa condição aparentemente “inelutável”: “Se K. queria ser trabalhador, podia fazê-lo, mas tão-somente com a mais completa seriedade, sem qualquer outra perspectiva. K. sabia que não se ameaçava com uma coerção real, essa ele não temia e aqui muito menos” (DS, 43/43). O que K. vê como maior problema é o “ambiente desencorajador” dos aldeões. Eles representam o principal suporte do poder do castelo. Em sua reificação, eles são o verdadeiro castelo. 30. A forma social da identidade prevalece: o fim da obra projetado por Kafka (segundo Brod) era irônico: K. morreria de extenuação, enquanto o castelo admitiria, por fim, a sua permanência condicional na aldeia, territorializando-o no posto que o poder moderno, enfim, pode melhor “administrar” os homens: o posto de meros trabalhadores. (Novembro/Dezembro de 2010)
  • 17. 17 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 O velho mundo precisa sucumbir Mito e história em Berlin Alexanderplatz Raphael F. Alvarenga* “[…] wenn die Welt so finster wird, daß man mit den Händen an ihr herumtappen muß, daß man meint, sie verrinnt wie Spinnengewebe. Ach, wenn was is‟ und doch nicht is‟! […] Wenn alles dunkel is‟, und nur noch ein roter Schein im Westen, wie von einer Esse: an was soll man sich da halten?”1 A que deve se agarrar o indivíduo quando colapsam ao seu redor todos os referenciais, quando tudo lhe parece turvo, obscuro, confuso? Haverá saída, ou uma qualquer esperança de salvação, para aquele que tudo perdeu, que se perdeu a si mesmo no seio da desumana e impessoal cidade grande? E poderá nos tempos modernos, num universo completamente dessacralizado, um homem arruinado ser dotado de exemplaridade trágica? Do ponto de vista da produção artística, como organizar, traduzir em forma, o estado de generalizadas desorientação, cegueira, confusão? Como expor, em seu conjunto, relações e dinâmicas que parecem se dar à revelia dos homens, que em geral não as compreendem? Berlin Alexanderplatz2, a grande obra épica de Alfred Döblin (1878- 1957), cuja intenção de essencializar questões e matérias históricas é por assim dizer manifesta desde o prólogo – “valerá a pena para muitos que [...] habitam uma pele humana”3 –, a princípio parece ter sido composta para responder a perguntas como as acima. Se, quando publicado em 1929, o livro causou rebuliço nos meios literários e militantes alemães, suscitando, à esquerda e à direita, de ataques veementes a elogios * Pós-doutorando, bolsista da Faperj. 1 Wozzeck, Libretto von Oper in 3 Akten, 15 Szenen, Musik von Alban Berg [1922], Text von Georg Büchner [1837], Bruxelles, La Monnaie, 2008, ato I, cena 4. Em tradução livre: “[...] quando o mundo fica sombrio a ponto d‟a gente ter que tateá-lo com as mãos, d‟a gente achar que ele desmorona feito teia de aranha. Ah, quando algo é e no entanto não é! [...] Quando ‟tá tudo escuro, e só resta no poente um luzir rubro, como que saído duma fornalha: a que deve a gente se agarrar?” 2 Faremos uso da seguinte edição: Berlin Alexanderplatz. Die Geschichte vom Franz Biberkopf (1929), München, Deutscher Tachenbuch, 2009, doravante BA. A tradução citada no corpo do texto é a mais recente, de Irene Aron (São Paulo, Matins Fontes, 2009), cujas páginas em nota seguirão sempre as do original. Tratando-se de um alemão um tanto especial, o do livro, que mistura com frequência num mesmo parágrafo, às vezes numa mesma frase, norma culta e citações poético-literárias clássicas com linguagem coloquial popular, dialeto, gíria de rua etc., achamos melhor, para uma maior apreciação e para evitar leituras enviesadas de certos trechos, reproduzir em pé- de-página as citações no original. 3 BA, 12/10: “wird sich für viele lohnen [...] in einer Menschenhaut wohnen”.
  • 18. 18 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 entusiasmados – um pouco como aconteceria na França, três anos depois, com a publicação do Voyage au bout de la nuit de Céline –, a principal razão reside no fato de, como nas maiores criações da arte moderna, ser forte neste romance, se ainda for possível chamá-lo assim, a dissonância produzida pela tensão entre a forma estética avançada e o material deteriorado, decadente, atrasado, quando não arcaico, captado no turbilhão da metrópole moderna, mais precisamente no bairro proletário em torno da “Alex”, a famosa praça do leste de Berlin, símbolo maior da modernização da cidade, não muito longe da qual o Dr. Döblin mantivera durante muitos anos um consultório médico. Tal tensão, que não se pode eliminar da obra sem que se perca em qualidade artística, é reveladora tanto do estado da sociedade em seu conjunto como da situação – diga-se já: monológica, demandando tratamento épico – dos sujeitos, no livro condensada na figura de uma personagem “protagonista” marginal e, por assim dizer, irredimível. Uma e outra, personagem e sociedade, no caso, a berlinense e de modo mais geral a alemã dos anos 1920, por sua vez inseridas no contexto global do capitalismo em crise, aparecem no livro como que à deriva, sem rumo definido, atravessando sucessivas crises sem no entanto se desenvolverem, não logrando atingir níveis mais elevados de consciência, maturidade e autonomia; impotentes, dependem de circunstâncias e fatores externos sobre os quais não têm controle. Em Berlin Alexanderplatz, então, embora mediante um sem número de referências mítico-religiosas o processo sócio-histórico seja algo ofuscado, veremos que longe de ser ou servir de mero pano de fundo para as ações das personagens, por detrás de tais referências, e como que camuflado por elas, o conturbado contexto social e político da República de Weimar, quando não aparece de forma explícita no entrecho, está o tempo todo pressuposto, os altos e baixos do anti-herói coincidindo, pode-se dizer, com os trâmites da nação alemã. Tudo se passa como se Döblin, na época próximo de Brecht e Piscator, tivesse, de certa maneira, intentado epicizar o período pós-revolucionário, os tempestuosos anos iniciais (ocupação franco-belga da Ruhr, hiperinflação, miséria, insurreições operárias, tentativa de putsch delinquente etc.) e principalmente os de falsa bonança (estabilização monetária e modernização recuperadora proporcionadas pelo Plano Dawes) e que antecedem o que viria a ser a verdadeira tempestade (crise financeira global e resistível ascenção de Hitler ao poder), que já se anunciava no horizonte. Mais precisamente, apesar da forma fragmentada, nota-se no livro como que um movimento totalizante, abarcando um período que, forçando um pouco a nota, poderíamos denominar, por um lado, pós- pseudo-revolucionário, por outro, à vista do que viria a se produzir, pseudo-pré- revolucionário, ou seja, os anos que sucedem à revolução traída e malograda de 1918-1919 –
  • 19. 19 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 que deu origem à República sem que se alterassem, fundamentalmente, as relações de poder oligárquicas pré-existentes – e que precedem o grande desastre, mas durante os quais, sob a luz da recente experiência soviética, então ainda muito intensa e (aos olhos dos donos do poder) ameaçadora, pressentia-se, premente, a possibilidade de um novo despertar revolucionário, da instauração, para falar como Benjamin, de um “verdadeiro estado de emergência”. Sem perder de vista a tensão entre forma e material, tentaremos recompor e, até onde for possível, expor, por um lado, as constelações formadas pelas matérias, experiências e configurações extra-artísticas, vale dizer, tanto as históricas, sociais e políticas como também as subjetivas, e por outro, a passagem na mediação literária. *** Uma rápida recuperação, o homem está outra vez lá onde estava, nada aprendeu, nada assimilou.4 Brumm, brumm, moureja o bate-estacas a vapor diante do Aschinger na Alex. Tem altura de um andar e crava as estacas no chão como se nada fossem. [...] Na avenida, estão pondo tudo abaixo, põem abaixo prédios inteiros junto à linha urbana [...] Demoliram Loeser e Wolff com a placa de mosaicos, vinte metros adiante, ele se reergue outra vez, do outro lado, diante da estação, já existe outro.5 Você não perdeu tanto quanto Jó de Hus, Franz Biberkopf, as coisas recaem lentamente sobre você. [...] Você suspira: onde buscar abrigo, a desgraça se abate sobre mim, onde me agarrar? [...] Você não perderá riqueza, Franz, você mesmo será queimado até o fundo da alma! Veja como a prostituta já se regozija! A prostituta Babilônia! [...] A mulher está embriagada do sangue dos santos. Agora você a percebe, sente-a. Você será forte, não se perderá?6 O tempo é outonal, no cinema Tauentzienpalast passa o filme Os últimos dias de Francisco, cinquenta belas bailarinas estão no salão de dança Jägerkasino, podes beijar-me por um buquê de lilases. Ali, Franz conclui: minha vida acabou, estou liquidado, para mim chega. / Os elétricos percorrem as ruas, cada um vai numa direção, não sei para onde devo ir. O 51, Nordend, Schillerstrasse, Pankow, Breite-strasse, Bahnhof Schönhauser Alle, Stettiner Bahnhof, Potsdamer Bahnhof, Nollendorfplatz, Bayrischer Platz, Uhlandstrasse, Bahnhof Schmargendorf, Grune-wald, vamos lá. Bom dia, aqui estou eu, podem me levar para onde quiserem. E Franz começa a observar a cidade como um cão que perdeu o rastro. Que cidade é esta, que cidade gigantesca, e que vida já levou nesta cidade. Desce na Stettiner Bahnhof, segue ao longo da Invalidenstrasse, lá está o Rosenthaler Tor. Confecção Fabish, já fiquei parado ali, apregoando prendedores de gravatas, Natal passado. Em direção a Tegel, 4 BA, 163/183: “Eine rasche Erholung, der Mann steht wieder da, wo er stand, er hat nichts zugelernt und nichts erkannt.” 5 BA, 165-66/185-86: “Rumm rumm wuchtet vor Aschinger auf dem Alex die Dampframme. Sie ist ein Stock hoch, und die Schienen haut sie wie nichts in den Boden. […] Über den Damm, si legen alles hin, die ganzen Häuser an der Stadtbahn legen sie hin […] Loeser und Wolff mit dem Mosaikschild haben sie abgerissen, 20 Meter weiter steht er schon wieder auf, und drüben vor dem Bahnhof steht er nochmal.” 6 BA, 380/436-37: “Du hast nicht soviel verloren wie Hiob aus Uz, Franz Biberkopf, es fährt auch langsam auf dich herab. […] Du seufzt: wo krieg ich Schutz her, das Unglück fährt über mich, woran kann mich festhalten. […] Du wirst keine Gelder verlieren, Franz, du selbst wirst bis auf die innerste Seele verbrannt werden! Sieh, wie die Hure schon frohlockt! Hure Babylon! […] Das Weib ist trunken vom Blut der Heiligen. Du ahnst sie jetzt, du fühlst sie. Und ob du stark sein wirst, ob du nicht verloren gehst.”
  • 20. 20 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 pega o 41. E quando surgem os muros vermelhos, os pesados portões de ferro, Franz fica mais calmo. Isto faz parte da minha vida e preciso observar, observar.7 Quem é esse que está aqui na Alexanderstrasse e move devagarinho uma perna atrás da outra? Seu nome é Franz Biberkopf, o que ele andou aprontando, vocês já sabem. Vagabundo, criminoso da pesada, pobre-diabo, homem derrotado, agora é a vez dele. Malditos punhos que o abatem! Punho terrível que o atingiu! Os outros punhos bateram e soltaram, ficou uma ferida, só ficou ele, a ferida sarou, Franz ficou do jeito que era e pôde seguir em frente. Agora, o punho não larga, o punho é incrivelmente grande, envolve-o de corpo e alma, Franz anda a passos pequenos e sabe: minha vida não me pertence. Não sei o que devo fazer agora, mas acabou-se para Franz Biberkopf e fim.8 As passagens acima, escolhidas mais ou menos ao acaso, dão uma ideia geral, embora ainda um pouco vaga, do que se pode encontrar no grande romance de Döblin, o qual, como indica o subtítulo, conta a história de Franz Biberkopf, um homem do povo, pau para toda obra, a bem dizer um brutamontes infantil, inocente e bonachão, mas que em determinadas situações sói perder a cabeça, tornando-se violento como uma fera. Foi assim que, num acesso de raiva e ciúmes, matou acidentalmente a noiva, Ida, de quem era cáften, a pancadas, indo parar atrás das grades. Num breve prólogo, o narrador resume o que acontecerá com aquele homem, anunciando que no fim da história, após muito apanhar da vida, o encontraremos “muito mudado, maltratado, mas enfim endireitado” 9. Trata-se de um procedimento épico, anti-ilusionista, propositalmente “alienante”, reiterado em seguida nas prolepses que abrem cada uma das nove seções (ou “livros”), e que visa a anular no leitor, de antemão, a criação de expectativas, a fim de que se mantenha atento a motivações, relações e movimentos mais amplos, sem deixar-se levar aleatoriamente pelo drama individual de uma personagem particular, “como se o curso da mundo ainda fosse em essência o da individuação, como se o indivíduo alcançasse o destino com suas emoções e 7 BA, 387/444-45: “Es ist herbstlich, im Tauentzienpalast spielen sie die ‚Letzten Tage von Franzisko‟, fünfzig Tanzschönheiten sind im Jägerkasino, für einen Fliederstrauß darfst du mich küssen. Da findet Franz: Mein Leben ist zu Ende, mit mir ist es aus, ich habe genug. / Die Elektrischen fahren die Straßen entlang, sie fahren alle wohin, ich weiß nicht, wo ich hinfahren soll. Die 51 Nordend, Schillerstraße, Pankow, Breitestraße, Bahnhof Schönhauser Alle, Stettiner Bahnhof, Potsdamer Bahnhof, Nollendorfplatz, Bayrischer Platz, Uhlandstraße, Bahnhof Schmargendorf, Grunewald, mal rin. Guten Tag, da sitz ick, die können mir hinfahren, wo sie wollen. Und Franz fängt an, die Stadt zu betrachten, wie ein Hund, der eine Fußspur verloren hat. Was ist das für eine Stadt, welche riesengroße Stadt, und welches Leben, welche Leben hat er schon in ihr geführt. Am Stettiner Bahnhof steigt er aus, dann zieht er die Invalidenstraße lang, da ist das Rosentaler Tor. Fabisch Konfektion, da hab ick gestanden, ausgerufen, Schlipshalter vorige Weihnachten. Nach Tegel roten Mauern, die schweren Eisentore, ist Franz stiller. Da ist von meinem Leben, und das muß ich betrachten, betrachten.” 8 BA, 398/456: “Wer ist es, der hier auf der Alexanderstraße steht und ganz langsam ein Bein nach dem andern bewegt? Sein Name ist Franz Biberkopf, was er betrieben hat, ihr wißt es schon. Ein Ludewig, ein Schwerverbrecher, ein armer Kerl, ein geschlagener Mann, er ist jetzt dran. Verfluchte Fäuste, die ihn geschlagen haben! Schreckliche Faust, die ihn ergriffen hat! Die andern Fäuste schlugen und ließen ihn los, da war eine Wunde, da war er bloß, die konnte heilen, Franz blieb, wie er war, und konnte weitereilen. Jetzt, die Faust läßt nicht los, die Faust ist ungeheuer groß, sie wiegt ihn mit Leib und Seele ein, Franz geht mit kleinen Schritten und weiß: mein Leben ist nicht mehr mein. Ich weiß nicht, was ich jetzt tun muß, aber mit Franz Biberkopf ist es aus und Schluß.” 9 BA, 11/9: “Wir sehen am Schluß den Mann wieder am Alexanderplatz stehen, sehr verändert, ramponiert, aber doch zurechtgebogen.”
  • 21. 21 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 sentimentos, como se o íntimo do indivíduo ainda pudesse alguma coisa sem mediação” 10. Ao mesmo tempo, a narrativa visa a anular, ou a quebrar, a tranquilidade contemplativa do leitor, a possibilidade de uma observação totalmente desinteressada do curso catastrófico do mundo, que haviam tornado-se escárnio com a Primeira Guerra. A distância estética é, como já em Proust e em Kafka, o tempo todo encurtada a fim de que o plano superficial e naturalizado dos acontecimentos quotidianos seja atravessado e, para além dele, apareça, nua e crua, a negatividade subjacente à positividade dos fatos: “ora o leitor é deixado de fora, ora guiado, através do comentário, até o palco, para trás dos bastidores, para a casa de máquinas”11. Por isso a combinação mediadora de registro mimético realista e princípios de construção não-realistas, necessários para dar conta da matéria, que é opaca, constituída por relações sociais alienadas objetivadas, engessadas, e que pede um novo alheamento, uma segunda alienação. Paradoxalmente, o encurtamento da distância, que revela o horror sob a pedra da cultura, a brutalidade da existência quotidiana, produz estranhamento, distanciamento. O que Brecht diz do novo teatro vale também, nesse sentido, para a Nova Música e para o romance modernista: A resposta reside no estilo alienante da representação. Nesta, o fio da história é um fio fragmentado; o todo isolado é constituído de partes independentes que podem e devem ser comparadas com os incidentes das partes correspondentes na vida real. Este modo de representar extrai toda a sua força de comparações com a realidade; em outras palavras, está a todo instante dirigindo a atenção para a causalidade dos incidentes reproduzidos. [...] A platéia não é totalmente “arrebatada”; não precisa amoldar-se psicologicamente, adotar uma atitude fatalista para com o destino representado.12 Com isso em mente, voltemos ao livro. A história começa com a saída de Franz Biberkopf da prisão de Tegel, bairro de Berlim situado no noroeste da cidade, em 1927, após ter cumprido ali quatro anos de sua pena, e a partir daí acompanhamos sua tortuosa e custosa reinserção na sociedade. Desde o início, esta, e acima de tudo a cidade, em permanente transformação, dividem com a personagem o primeiro plano. Apesar da dificuldade em se arrumar trabalho em tempos de crise e desemprego em massa, “der Franz” promete a si mesmo manter-se decente, mas, ingênuo, é enganado e passado para trás com facilidade. O nome Biberkopf, aliás, literalmente “cabeça de castor”, no dialeto 10 Theodor W. Adorno, “Standort des Erzählers im zeitgenössischen Roman” (1954), in Noten zur Literatur, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1981, pp. 41-47, aqui p. 42, trad. Modesto Carone: “Posição do narrador no romance contemporâneo”, in Benjamin, Adorno, Horkheimer & Habermas, Textos escolhidos, São Paulo, Abril (col. Os Pensadores), 1980, pp. 269-73, aqui p. 270. 11 Ibid., p. 46, trad., p. 272. 12 Bertolt Brecht, Diário de trabalho, vol. I: 1938-1941, trad. R. Guarany e J. de Melo, Rio de Janeiro, Rocco, 2002, pp. 100-01, entrada do dia 3.8.40.
  • 22. 22 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 local significava então algo como “cara de burro”, ou coisa parecida. O prenome Franz, por sua vez, parece ser uma alusão a Francisco de Assis, mas também, ou principalmente, a Franz Woyzeck, o famoso anti-herói proletário recriado por Georg Büchner a partir do fait divers de um soldado que, tomado de ciúmes, assassinara a amante13. Trata-se, em suma, de um simples de espírito, que fala aos passarinhos e em momentos críticos, de alucinação e delírio, comunica com coelhos, camundongos, intropatiza com as plantas, a terra, ouve apelos no vento... Um dos traços que sobressaem durante a leitura é que, como já dizia Adorno, não há vida reta num mundo torto: apesar da promessa que fizera de permanecer honesto após sair da prisão, Franz Biberkopf vive iludido e se iludindo, é trapaceado e acaba sem querer envolvendo-se em novos crimes; mesmo resistindo com unhas e dentes, mesmo não querendo, “é obrigado a querer”, “está acima dele, ele tem de querer” 14. Através do livro, como costumam dizer alguns críticos, acompanhamos os inúmeros altos e baixos 13 A comparação mereceria um desenvolvimento a parte. Não se pode ignorar o fato de os fragmentos da peça de Büchner, inacabada quando de sua morte em 1837, terem permanecido durante muito tempo ignorados precisamente por estar a obra à frente de seu tempo, fazendo uso de procedimentos épicos que viriam a ser empregados e desenvolvidos na Rússia e na Alemanha, mais ou menos a partir da encenação de Mistério-Bufo, de Maiakóvski, por Meyerhold, em 1918. Numa palavra: em Woyzeck, o que está em jogo é a destruição da “peça bem feita”, do drama realista burguês, atrelado às unidades clássicas de ação, tempo e lugar, além de restrito à esfera privada da vida, concentrado na dinâmica e na riqueza psicológicas, na profundidade interior das personagens, assim como no diálogo, na tensão e na resolução de conflitos interindividuais. Não à toa, a peça de Büchner fora ressuscitada, tirada do esquecimento, quase um século depois, após a Primeira Guerra, quando tudo aquilo (profundidade subjetiva, totalidade harmônica e significativa, continuidade e desenvolvimento progressivo) já soava mais do que falso, justamente por Alban Berg, cuja forma operística modernizada pelas descobertas da Nova Música, longe de fornecer, como era comum na ópera clássica tanto quanto o seria no cinema, um mero fundo musical psicológico, que sugerisse a cada etapa os estados de ânimo, os sentimentos ou as impressões das personages, visava ao contrário expor as lacunas deixadas pelas palavras, não o que está nas personagens, mas antes aquilo que se passa entre elas, vale dizer, o estado de alienação, desumanização e absurdidade, que se encontra objetivado para além das personagens (a este respeito, veja-se Theodor W. Adorno, Berg. Der Meister des kleinsten Übergangs, in Gesammelte Schriften, Bd. 13, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1997, pp. 428-29, trad. M. Videira: Berg. O mestre da transição mínima, São Paulo, Unesp, 2009, pp. 179-80). Com a ópera de Berg, terminada em 1922 e encenada em Berlim em 1925, a modernidade da música fazia enfim justiça à modernidade daquele texto. Simplificando ao extremo, digamos que, embora Berg não tenha rejeitado de todo a tonalidade clássica, combinando-a ao contrário, de maneira muito a propósito, com a técnica schönberguiana, a não- hierarquização dos tons na construção musical dodecafônica (as doze notas da gama cromática tendo todas igual importância) condizia com a fragmentação da narrativa, a não-linearidade causal e a autonomia relativa das cenas da peça de Büchner. A este respeito, citemos o bom comentário de Anatol Rosenfeld, Teatro moderno, São Paulo, Perspectiva, 1977, pp. 64-65: “Um dos aspectos da obra de Buechner que nos toca particularmente como moderno é a solidão de suas personagens. Já não se trata da solidão romântica, mas da solidão da lonely crowd, concebida como fato humano fundamental num mundo que, tendo deixado de ser um todo significativo de que todos participam, se transforma em caos absurdo em que cada um é, forçosamente, isolado. [...] A imagem do homem apresentada por Buechner desqualifica a do herói trágico que é denunciada como falsa. Surge, talvez pela primeira vez, o herói negativo que não age, mas é coagido, o indivíduo desamparado, desenganado pela história ou pelo mundo [...] Woyzeck é um caso extremo, verdadeiro „drama de farrapos‟: é um fragmento; mas é uma obra que só como fragmento poderia completar-se. Ela cumpre a sua lei específica de composição pela sucessão descontínua de cenas sem encadeamento causal. Cada cena, ao invés de funcionar como elo de uma ação linear, representa um momento em si substancial que encerra toda a situação dramática ou, melhor, variados aspectos do mesmo tema central – o desamparo do homem num mundo absurdo.” É grande a semelhança com a história de Franz Biberkopf: em ambos os textos, no de Büchner e no de Döblin, além da situação monológica, há grande destaque para o lado grotesco, para a redução zoológica do homem (enquanto Woyzeck é incapaz de controlar o músculo constritor, Biberkopf pesa quase cem quilos, come feito um glutão e copula à maneira de um animal selvagem) e para o automatismo de suas ações (os dois assassinam as amantes como se fossem autômatos guiados por forças que se manifestam à despeito de suas vontades). 14 BA, 163 e 314/183 e 359: “er will nicht, er wehrt sich, es geht über ihn, er muß müssen.”
  • 23. 23 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 desta personagem a um tempo comum e incomum – mas, como previne o narrador: “Será um mendigo comum e um homem rico incomum?”15 –, a luta com o destino e consigo mesmo, as ilusões e os desenganos, os remorsos e os pensamentos mórbidos, a propensão ao alcoolismo e a perdição no submundo do crime e da prostituição, e, sobretudo, seu total esmagamento por forças obscuras e poderes que não domina. Tal esmagamento, todavia, só pode ser apreendido suficientemente se não se perder de vista que aquele movimento negativo de sobe e desce na situação da personagem, o vaivém entre fortitude e fastio, autossuficiência e afogamento no álcool, que parece não conduzir a lugar algum, cada novo episódio começando como que do zero, como que repetindo a sequência de acontecimentos do anterior, vem sempre conjugado ao movimento vertiginoso da cidade, com suas incessantes demolições e (re)construções. De modo muito explícito, pelo menos é o que aparenta numa primeira leitura, Döblin tenta dar um sentido ao ritmo ensandecido da metrópole e às sucessivas quedas e adversidades sofridas por seu herói através da referência a mitos bíblicos e helênicos relacionados à loucura, à obediência e a rituais de sacrifício, com destaque para as tribulações de Jó, o holocausto de Isaac e os remorsos de Orestes, três personagens que têm em comum o fato de serem meros joguetes de forças que escapam a elas, sendo salvas, por intervenção divina, no derradeiro momento, quando já tudo parece perdido. Se considerarmos com Lévi-Strauss que o mito é antes de tudo uma solução imaginária para tensões, conflitos e contradições reais, sociais e históricas, então tal solução, que no mais das vezes assume contornos edificantes e complacentes, parece estar de fato muito claramente presente no livro em questão. Ali, a experiência de impotência do sujeito em busca de um lugar ao sol no seio da monstruosa metrópole moderna, sem controle sobre o que lhe advém, sobre a própria história ou o sobre o conjunto de forças sociais agindo sobre ele, ganha não somente apoio em explicações mitológicas como também uma conotação de exemplaridade. Trata-se, à primeira vista ao menos, de uma tentativa, longe de ser excepcional na arte modernista do início do século, de outorgar um sentido arcaico- mitológico ao curso desprovido de sentido do mundo da mercadoria fetichizada. Na célebre justificação de T. S. Eliot, num texto sobre Joyce: “É simplesmente uma maneira de controlar, ordenar, dar forma e significância ao imenso panorama de futilidade e anarquia que é a história contemporânea.”16 No que concerne a Döblin, entretanto, como veremos, 15 BA, 394/453: “Ist ein Bettler gewöhnlich und ein Reicher ungewöhnlich?” 16 Thomas Stearns Eliot, “Ulysses, Order and Myth” (1923), in Selected Prose, ed. Frank Kermode, London, Faber and Faber, 1975, p. 177: “It is simply a way of controlling, of ordering, of giving a shape and a significance to the immense panorama of futility and anarchy which is contemporary history.”
  • 24. 24 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 parece mais adequada a explicação de Roberto Schwarz: “vários dos principais escritores modernistas procuraram dar parentesco mítico a seus episódios contemporâneos, para lhes atenuar a contingência e lhes emprestar generalidade, dignidade arquetípica, eternidade etc., mesmo que irônicas, ou para acentuar a sordidez.” 17 A este respeito, diga-se de passagem, as referências mítico-religiosas, judeo-cristãs e gregas – Esther (livro 1), Jeremias (livros 1 e 5), Agamemnon, Clitemnestra, Orestes e as Erínias (livros 2 e 6), Adão e Eva (livros 2, 3, 4 e 8), Menelau, Telêmaco e Helena (livro 4), Jó (livros 4 e 8), Aquiles (livro 6), Abraão e Isaac (livros 6 e 7), a prostituta Babilônia e a Morte ceifeira (livros 6, 8 e 9), Salomão/Eclesiastes (livros 7, 8 e 9), os anjos Sarug e Terah (livro 8), Macabeus (livro 9) –, estão intrinsecamente relacionadas às vicissitudes das personagens, muitas vezes, com efeito, recebendo tratamento irônico, como por exemplo quando os adornos e apetrechos de guerra de Aquiles são comparados às roupas surradas e sujas de Biberkopf18, comparação que tem por efeito um distanciamento, impedindo que o leitor enxergue no anti-herói moderno e em sua luta contra as forças anônimas da metrópole um qualquer resquício de nobreza trágica. Salvo engano, algumas daquelas referências, em muitos momentos, também não deixam de interferir na percepção que se tem, a cada novo episódio, da cidade de Berlim, como que preparando o terreno para ela, antecipando-a, ou reforçando-a. Sob fundo mitológico, além de contrastada explicitamente com cidades da antiguidade – a par de Babilônia, também Nínive, Roma, Cartago e Jerusalém (livros 5 e 6) –, a metrópole moderna é sucessivamente apresentada como um universo confuso, estranho, destituído de todo e qualquer sentido (livro 1), como um grande organismo burocrático tendo em si mesmo uma lógica obscura que absorve e devora a todos (livro 2), como uma gigantesca máquina, perigosa, violenta, mortífera (livro 4), como entidade sedutora, artimanhosa, incitando ao gozo e à volúpia do pecado (livro 6), por fim, como um ser autônomo, que segue indiferente seu curso, sempre igual, automatizado (livro 9). Assim, em contraste com a imagem do espaço urbano que aos poucos se constitui, a um tempo caótica, violenta, sedutora e indiferente, aparecem no correr da história três heterotopias, por assim dizer, no seio das quais se encontraria a ordem, a paz, ou antes ainda, a ausência do fardo da responsabilidade: a prisão (livros 1 e 8), o paraíso bíblico (livros 2, 3, 4 e 8) e o asilo de loucos (livro 9). A mensagem parece clara: neste mundo-cão não viverás em paz; esta só existiu no passado mítico/bíblico da humanidade; nesta vida só a encontrarás no presídio ou no sanatório. Sem prejuízo do fato de ser um tanto forçado 17 Roberto Schwarz, “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, in Seqüências brasileiras, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 138. 18 Cf. BA, 243/278.
  • 25. 25 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 chamar de “pacífica” a vida severina de encarcerados e alienados – embora, pensando bem, a imagem não deixe de ser poderosa: comparados à vida louca do lado de fora, na inóspita cidade grande, a prisão e o manicômio teriam ares mais amenos, tranquilos, quiçá até mais “salutares” –, a mensagem pode ser lida de ponta-cabeça. Explicando melhor: a violência seria, como de fato é no capitalismo, o normal, e a paz, a exceção quase inconcebível, inimaginável, que confirmaria a regra geral. Se, na época em que Döblin compunha seu romance, a cultura da violência, o vínculo social perverso do capital, a guerra como consequência lógica e incontornável do mercado, já eram estetizados pela indústria da cultura do entretenimento, pelo complexo industrial de produção das consciências, que opera tanto a legitimação da existência de um certo grau de violência, ao torná-la coisa corriqueira, quanto certa estabilização na estruturação da barbárie, então talvez fosse o caso de afirmar que também a arte, em larga medida, acabou participando de tal processo geral de estetização, legitimação e naturalização da violência19. Se Döblin não escapa à tendência20, cabe no entanto ressaltar que o recurso ao mito, no livro de que estamos tratando e na literatura modernista de modo geral, de um ponto de vista materialista, deve ser encarado antes de tudo como uma maneira de expor a liquidação do indivíduo na sociedade moderna, liquidação das condições da formação da individualidade autônoma, que no entanto haviam sido postas (pelo menos enquanto pressupostos) pela própria sociedade burguesa. Noutras palavras, em razão de a situação histórica do capitalismo dito tardio, monopolista, assemelhar-se, no nível das aparências, àquela, pré-individual, sem sujeito, de épocas remotas, pré-capitalistas, nas quais a humanidade encontrava-se enredada numa totalidade mítica plena de sentido21, a referência ao mito expõe o fato de a sociedade capitalista, da mercadoria fetichizada, não ser tão desencantada, esclarecida, racional e civilizada quanto pretente ou aparenta. Não surpreende que a despeito dos supostos propósitos moralizantes de Döblin, tão ressaltados pela crítica, a forma fragmentada, polifônica, hipercomplexa e no fim das contas assaz 19 Estetização que, com frequência, vai de par com aquela da “vida bandida” dos de baixo, ou seja, com a exploração artística da atração sensual da feiúra, do imundo, do disforme, coisa que se encontra já nos irmãos Goncourt (veja-se a respeito o ensaio de Auerbach sobre Germinie Lacerteux, no Mimesis) e que pode ainda ser notada nos dias de hoje, quiçá mais do que nunca, sobretudo em produções espetaculares como o filme Cidade de Deus. Em literatura, no século XX, os romances de Genet constituem possivelmente o exemplo maior de estetização do sujo, do sórdido, da vida do crime. 20 Evocando as descrições detalhadas de tortura e morte no romance histórico Wallenstein (1920), um crítico não hesitou em acusar Döblin de fascinação obsessiva com a violência e de querer transformar a crueldade em experiência estética. Cf. Wilfried G. Sebald, Der Mythos der Zerstörung im Werk Döblins, Sttutgart, Klett, 1980, pp. 49-51 e 156-60. 21 Cf. Theodor W. Adorno, “Standort des Erzählers”, op. cit., p. 47, trad. cit., p. 273.
  • 26. 26 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 dissonante de sua narrativa faça explodir toda impressão de sentido e coerência globais 22. Com isso em vista, faz-se necessário integrar a dimensão mítico-religiosa da obra à explicação materialista, isto é, ligar o congelamento do tempo histórico e a fragmentação da forma literária que ali tem lugar à expansão do trabalho industrial alienado e à subsequente fragmentação dos processos social e perceptivo no seio disforme da urbs moderna, mas igualmente, no caso específico de Berlin Alexanderplatz, à persistência da “miséria alemã” no contexto geral da República de Weimar, a um tempo dependente-independente, incapaz de superar o multissecular atraso do país no desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo. *** De forma resumida, pode-se dizer que o desenvolvimento do capitalismo industrial, e com ele a expansão vertiginosa das relações mercantis, isto é, a generalização das formas capitalistas de trabalho e a colonização do quotidiano pela mercadoria, constituem um processo que acaba por tornar a vida, em todos os seus aspectos, não somente morna, monótona e mesquinha – algo muito patente nas personagens de um Flaubert, de um Tchekhov, mergulhadas no tedium vitae e na insignificância quotidiana –, mas fundamentalmente brutal, desumana. Ao mesmo tempo, o funcionamento normalizado e quotidiano desta vida social alienada tende cada vez mais a dissimular e a objetificar a brutalidade e a desumanidade do processo global capitalista. A partir de meados do século XIX, mais precisamente após o trauma de junho de 1848, a arte de modo geral e a literatura em particular (pelo menos aquela que interessa) passam a recompor, no nível da forma, e assim a elevar à condição de experiência estética, fazendo delas uma evidência chocante, a derrocada do curso da experiência, a desvitalização da vida e a desumanização das relações humanas. Não obstante, se, por um lado, à banalização e ao embrutecimento da existência corresponde um processo de crescente ofuscamento das relações sociais, por conseguinte, da história e seu sentido geral, por outro lado, o decorrente ceticismo quanto à possibilidade de se apreender as tendências globais da sociedade e da história, quiçá mesmo a impossibilidade objetiva de tal apreensão, inverte-se, a partir das últimas décadas do século XIX, progressiva e quase que inevitavelmente em mística e metafísica. Com 22 Para uma análise pormenorizada da estrutura e dos pontos de vista narrativos, da apreensão formal dos percalços e vicissitudes sofridos pelo protagonista após a saída de Tegel, assim como da maneira com que a cidade se imiscui e ganha corpo no romance, veja-se a dissertação de Gabriela Siqueira Bitencourt, Fratura da metrópole. Objetividade e crise do romance em Berlin Alexanderplatz, Universidade de São Paulo, 2010, principalmente o capítulo III, assim como, da mesma autora, o artigo publicado no presente número de Sinal de Menos: “A fratura da forma: constituição e implicações da representação da metrópole em Berlin Alexanderplatz”.
  • 27. 27 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 efeito, pelo menos desde Nietzsche e Malthus, o caráter histórico da concorrência capitalista, da divisão social do trabalho, das relações de classe e da dominação do capital é dissimulado, dissolvido em explicações de caráter mítico, metafísico, ou ainda pseudocientífico, como o famigerado “darwinismo social”, que transforma em lei “sociológica” eterna a luta de morte de todos contra todos pela sobrevivência na selva do mercado23, sem falar nas explicações em termos de superioridade racial, em Thierry, Taine, Le Bon, Gobineau e, entre nós, Euclydes da Cunha. Segundo Lukács, tais tendências à mistificação, que se combinam então sem problema com o culto positivista dos fatos particulares, arrancados e isolados de seu verdadeiro contexto, atingiriam “seu ponto culminante na falsificação bárbara da história e sua transformação em mito pelo fascismo”24. De tais tendências, desnecessário dizer, participa também boa parte da arte da primeira metada do século XX, mesmo (ou sobretudo) a mais avançada. No caso específico de Döblin, não deixa de ser sintomática a progressiva despolitização pela qual passa a partir de meados dos anos 1920 (a bem dizer, durante a composição do Berlin Alexanderplatz, entre 1927 e 1929, o autor oscilava ainda entre a alternativa revolucionária e a transformação espiritual do mundo). Alemão de origem judia, não custa lembrar, o autor demonstrava a princípio sensibilidade esquerdista, em suas próprias palavras, “fora socialista atuante”25, como se pode aliás ver nos artigos que escreveu entre 1919 e 1921, sob o pseudônimo de Linke Poot (“Pata Esquerda”), para o jornal Die Neue Rundschau26. Num deles, de 1919, defendia com entusiasmo a classe operária revolucionária, simpatizando com os conselhos de trabalhadores e soldados formados no imediato pós-guerra, que em seguida seriam suprimidos pelo governo social-democrata de Friedrich Ebert: Uma associação de camaradagem entre homens livres constitui a célula natural e fundamental de toda a sociedade, a pequena comunidade; é por aí que se deve começar... É isso que o príncipe Kropotkin há muito já sabia e ensinava, aquilo que aprendera dos relojoeiros suíços na Federação do Jura, em jargão político: o sindicalismo, o anarquismo. 27 23 A este respeito, cf. Georg Lukács, Probleme des Realismus III: Der historische Roman, Neuwied/ Berlin, Luchterhand, 1965, p. 212. 24 Ibid., p. 305. 25 Alfred Döblin, “Posfácio para a reedição de 1955”, anexo à ed. da Martins Fontes, p. 527. 26 Cf. Alfred Döblin, Der deutsche Maskenball. Von Linke Poot (1921), Olten/Freiburg, Walter, 1972, e Michel Vanoosthuyse, “Linke Poot: Döblin, les débuts de Weimar et les intellectuels”, in Études allemandes, n° 6, Lyon (janvier 1993). 27 Alfred Döblin, Schriften zur Politik und Gesellschaft, Olten/Freiburg, Walter, 1972, p. 92, apud David B. Dollenmayer, The Berlin Novels of Alfred Döblin, Berkeley/Los Angeles, University of California, 1988, p. 54. Döblin se refere aí a um famoso texto de Peter A. Kropotkin, Memoiren eines Revolutionärs, Bd. II, Münster, Unrast, 2002, p. 319: “Die Art wie jeder jeden als Gleichen sah und behandelte, die ich in den jurassischen Bergen fand, die Unabhängigkeit im Denken und im Ausdruck, wie ich sie sich unter den dortigen Arbeitern entwickeln
  • 28. 28 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 Em princípio, então, rejeita a República, a qual via, não sem razão, como uma traição dos ideais revolucionários e sob cuja fachada continuaria viva a antiga estrutura capitalista de poder imperial. Em 1921, porém, algo resignado, Döblin demonstrava aceitar Weimar, pelo menos enquanto ideal pelo qual valeria a pena lutar, e clamava pelo suporte dos colegas do meio artístico, que deveriam “espiritualizar” a nova República, contribuir para a superação tanto das arcaicas estruturas, ainda vigentes, de exploração e dominação, quanto das altercações partidárias que, após a guerra, teriam impedido às forças de esquerda estabelecer uma verdadeira ordem digna do homem. Desapontado cada vez mais com a incapacidade do novo Estado de renovar a ordem das coisas, Döblin vai aos poucos adotar uma atitude “biologista”, por assim dizer, ligada a uma filosofia especulativa da natureza, o que aparecerá explicitamente no tratado Das Ich über der Natur, de 1927: as antigas questões políticas são como que esvaziadas, ou simplesmente deixadas de lado; passa para o primeiro plano a compreensão do universo como dinâmica ordenada, onde tudo tem seu lugar, inclusive as guerras imperialistas, vistas como inevitáveis28. É preciso ter em mente que tal visão despolitizada do mundo, calcada numa filosofia da harmonia cósmica, divina, era a de Döblin no momento em que se pôs a compor Berlin Alexanderplatz, apesar de o contato frequente com Brecht fazer com que mantivesse ainda acesa a esperança numa mudança revolucionária. Antes de retomarmos a discussão de nosso livro, acrescentemos ainda o fato, que não deixa de ser revelador, de o autor flertar desde cedo com o exotismo e o esoterismo orientais. Já no “romance chinês” Die drei Sprünge des Wang-lun (1915), publicado em pleno conflito mundial, a atitude ambígua do nosso autor se deixa ver plenamente. No livro são consagrados os ensinamentos taoístas de Li-zi (séc. V a. C.), pregador da passividade diante do fluxo inalterável da vida; ao mesmo tempo, a história termina com o protagonista passando à ação e morrendo ao liderar uma insurreição. Passividade e aceitação serena do curso do mundo, por um lado, por outro, engajamento prático e intervenção transformadora da sociedade: eis os dois polos, antagônicos e inconciliáveis, encontrados em muitas de suas obras, como também no próprio curso de sua vida. Continuando o que sah, und ihre grenzenlose Hingabe an die gemeinsame Sache sprachen meine Gefühle noch viel mehr an; und als ich die Berge nach einer guten Woche Aufenthalt bei den Uhrmachern wieder hinter mir ließ, standen meine sozialistischen Ansichten fest: Ich war ein Anarchist.” Em tradução aproximada: “O modo como cada um é visto e tratado, que presenciei nas montanhas do Jura [suíço], a independência de pensamento e de expressão que pude ver entre os trabalhadores lá, sua devoção ilimitada à causa comum, tocaram profundamente meus sentimentos; e quando, após uma semana passada junto aos relojoeiros, deixei as montanhas, minhas visões socialistas estavam estabelecidas: eu era um anarquista.” 28 Para tudo isso, cf. David B. Dollenmayer, The Berlin Novels of Alfred Döblin, op. cit., pp. 54-59.
  • 29. 29 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 dizíamos, a fascinação de Döblin por civilizações e concepções de mundo não-ocientais em seguida reaparecem na novela “Der Überfall auf Chao-lao-sü” (1921) e em Manas (1927), longo poema épico concebido em parte para dar conta da “crise do romance”29 e que, segundo o próprio autor, deveria servir de base para Berlin Alexanderplatz, sendo este uma espécie de “Manas em dialeto berlinense”30. Durante o exílio, a fim de “aliviar a sede de aventuras”, escreveria a Amazonas-Trilogie (1937-38), sobre povos e culturas pré- colombianos, e, voltando-se uma vez mais para a China, The Living Thoughts of Confucius (1940). Por fim, influenciado por anos de leituras de Espinoza, Pascal e Kierkegaard, acabaria por se converter ao catolicismo romano em 1941 – decisão que Brecht, que admirava os trabalhos do amigo desde que lera ainda jovem seu Wadzeks Kampf mit der Dampfturbine (1914/18), no qual se repudiava o heroísmo trágico31, teria considerado como uma dolorosa traição, como atesta o poema “Peinlicher Vorfall” 32. Tal parti pris pelo irracional não deixaria de envergonhar e incomodar a Brecht, que, após um discurso pronunciado por Döblin durante o exílio californiano, por ocasião de seus 65 anos, em 14 de agosto de 1943, no qual defendia que “die Relativität ist der Tod aller Moral”33, notaria em seu diário: 29 “Die Krise des Romans” é o título de um famoso texto programático, escrito por Otto Flake em 1922, e que mobilizou toda a classe literária alemã, de modo que quase todo “romance” escrito após esta data teve por meta, por assim dizer, a superação do Bildungsroman clássico, ou pelo menos a renovação do gênero, que após os horrores da Primeira Guerra havia se tornado, por óbvias razões, uma forma caduca. Der Zauberberg (1924), de Thomas Mann, e Der Mann ohne Eigenschaften (escrito entre 1921 e 1942), de Robert Musil, são dois dentre os mais notáveis exemplos de tentativas de superação, ou transformação, do romance de formação clássico. Também o Doktor Faustus (1947), escrito no exílio, espécie de Bildungsroman ao avesso, no qual o protagonista se forma no momento em que, firmado o pacto com as forças demoníacas, dá as costas para o mundo e passa a viver isolado da civilização. 30 Alfred Döblin, “Posfácio para a reedição de 1955”, cit., p. 527. 31 Cf. Bertolt Brecht, Tagebücher 1920-22, Frankfurt/M., 1978, p. 48, apud Heidi Thomann Tewarson, “Alfred Döblin und Bertolt Brecht: Aspekte einer literarischen Beziehung”, in Monatshefte, vol. 79, n° 2 (Sommer 1987), pp. 172-85, aqui p. 172, entrada de 4/9/1920: “Ich lese heute früh den Schluß von Döblins „Wadzeks Kampf‟ und finde darin anklingende Ideen. Der Held läßt sich nicht tragisieren. Man soll die Menschheit nicht antragöden. Und es steht Herrliches drin über die Tragödie. (Es wird Schamgefühl gefordert!) Es ist überhaupt ein starkes Buch. Es läßt den Menschen schamhaft im Halbdunkel und macht nicht Proselyten. So ist es, steht drinnen auf 300 Seiten. Ich liebe das Buch.” 32 Cf. Bertolt Brecht, “Peinlicher Vorfall”, in Gesammelte Werke, Bd. 10: Gedichte 3, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1967, pp. 861-62: “Als einer meiner höchsten Götter seinen 10 000. Geburtstag beging / Kam ich mit meinen Freuden und meinen Schülern, ihn zu feiern / Und sie tanzeten und sangen vor ihm und sagten Geschriebenes auf. / Die Stimmung war gerührt. Das Fest nahte seinem Ende. / Da betrat der gefeierte Gott die Plattform, die den Künstlern gehört / Und erklärte mit lauter Stimme / Vor meinen schweißgebadeten Freunden und Schülern / Daß er soeben eine Erleuchtung erlitten habe und nunmehr / Religiös geworden sei und mit unziemlicher Hast / Setzte er sich herausfordernd einen mottenzerfressenen Pfaffenhut auf / Ging unzüchtig auf die Knie nieder und stimmte / Schamlos ein freches Kirchenlied an, so die irreligiösen Gefühle / Seiner Zuhörer verletzend, unter denen / Jugendliche waren. / Seit drei Tagen / Habe ich nicht gewagt, meinen Freunden und Schülern / Unter die Augen zu treten, so / Schäme ich mich.” 33 Apud Harold von Hofe, “German Literature in Exile: Alfred Döblin”, in The German Quaterly, vol. 17, n° 1 (jan. 1944), pp. 28-31, aqui p. 31.
  • 30. 30 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 Döblin fez um discurso contra o relativismo moral e a favor de padrões fixos de natureza religiosa, e com isso melindrou os sentimentos irreligiosos da maioria dos convidados. Uma sensação incômoda se apossou dos seus ouvintes mais racionais, algo como o indulgente horror experimentado quando um companheiro de prisão sucumbe à tortura e fala. [...] Quando Döblin começou a dizer que, a exemplo de muitos outros escritores, também ele era culpado da ascensão dos nazistas (“O senhor não disse, Sr. Thomas Mann, que ele é como um irmão, ainda que um mau irmão?”, perguntou à primeira fila) e depois continuou obstinadamente a perguntar por que era assim, por um momento tive a infantil convicção de que ele diria “porque acobertei os crimes da classe dirigente, desencorajei os oprimidos, iludi com canções os famintos” etc., mas tudo o que fez foi anunciar com teimosia, sem arrependimento ou pesar, “porque não procurei Deus”.34 A dimensão místico-cristã, que dá mostras da total despolitização do autor durante o exílio – já em Paris, antes mesmo de imigrar para os EUA, Brecht não deixava de notar inclusive certa tendência fascista nas ideias sionistas do amigo 35 –, faria ainda aparição em Der Unsterbliche Mensch (1946) e em seguida em “Die Pilgerin Ætheria” (1949). A superação da “longa noite” e o começo de uma nova vida são os temas de Hamlet oder Die lange Nacht nimmt ein Ende (1956), seu último romance, segundo alguns críticos interessante do ponto de vista formal, não obstante ser a experiência histórica da Segunda Guerra totalmente hipostasiada através do amálgama de fé católica, mitologia grega, poesia trovadora medieval, referências literárias diversas e, para completar, terapia de grupo junguiana. Do que precede não se pode inferir a presença, através da obra de Döblin, de uma temática místico-religiosa – para não dizer regressiva – difusa. Lê-la com este (ou qualquer outro) a priori pode levar a interpretações descabidas. Também não há problema simplesmente em se fazer uso de referências orientais. Brecht, por exemplo, aliás influenciado por Döblin, também estudou os clássicos da Índia e da China, coisa que se reflete em alguns de seus melhores poemas e peças. Haveria então que se interrogar sobre a maneira com que são usadas tais referências, e com qual finalidade. O que vale, aliás, para qualquer referência mítica, religiosa, metafísica, seja ela ocidental ou não. Pois, caberia perguntar, o que se busca afinal, a perenização de uma situação histórica através de sua essencialização, um estranhamento fascinado, ou então, ao contrário, um meio de produzir o distanciamento necessário para lançar uma luz crítica sobre tudo o que pareça ou se apresente como natural? A este respeito, vale ainda o que já dizia Pascal: “La Chine obscurcit, mais il y a clarté à trouver; cherchez-la. [...] Ainsi cela sert, et ne nuit pas.”36 34 Bertolt Brecht, Arbeitsjournal, Bd. 2: 1942-1955, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1973, p. 605, trad. R. Guarany e J. de Melo: Diário de trabalho, vol. II: 1941-1947, Rio de Janeiro, Rocco, 2005, pp. 194-95. 35 Cf. Bertolt Brecht, Briefe, Frankfurt/M., 1981, carta n° 184, apud Heidi Thomann Tewarson, “Alfred Döblin und Bertolt Brecht”, op. cit., p. 183: “In Paris entsetzte mich Döblin, indem er einen Judenstaat proklamierte, mit eigner Scholle, von Wallstreet gekauft. In Sorge um ihre Sohne klammern sich jetzt alle (auch [Arnold] Zweig hier) an die Terrainspekulation Zion. So hat Hitler nicht nur die Deutschen, sondern auch die Juden faschisiert.” 36 Blaise Pascal, Pensées (post., 1670), Paris, Dezobry et E. Magdelene, 1852, art. XXIV, § 46, p. 328.
  • 31. 31 [-] www.sinaldemenos.org Ano 2, n°6, 2010 *** Voltando então, já não sem tempo, a Berlin Alexanderplatz, digamos que a fim de montar sua epopeia metropolitana, que evoca, quiçá involuntariamente, mas de todo modo com grande mestria, estados arcaicos e civilizados coexistindo no seio de um mesmo espaço social, intricado e estilhaçado, qual seja, uma cidade grande em constante transformação e expansão, em princípio inapreensível em sua totalidade, visando então recompor o mosaico caótico e polifônico do espaço urbano moderno e do lugar, ínfimo e precário, ocupado pelo sujeito isolado e perdido no seio deste último, nosso autor toma naturalmente o cuidado de distanciar a narrativa de todo psicologismo. As dificuldades da integração social, a retirada ou a exclusão da comunidade, a opacidade do sujeito em relação a si mesmo, a estranheza para com o mundo à sua volta, a impossibilidade subjetiva e objetiva de se encontrar paz neste mundo, de se adequar a seu curso desenfreado e insandecido, de ser e permancer decente etc., não são por Döblin contrabalançadas pela simples focalização na riqueza sensorial ou psíquica das personagens: o “herói” – e doravante o uso deste termo, mesmo sem aspas, será sempre num sentido negativo –, Franz Biberkopf, como não podia deixar de ser, é pobre em sensações, sua vida interior é quase inexistente. Como já sublinhado, é antes a cidade que pulsa, cacofônica. Desde as primeiras páginas, pode-se “ouvir” o bumbar e o rufar das máquinas na Alexanderplatz, o bulir e o burburinhar das ruas em torno à famosa praça, o trepidar do chão com a passagem do bonde ou do metrô, estridentes. Às descrições do cenário urbano, com contornos e tonalidades fauvistas e intensidade expressionista, integram-se estatísticas demográficas e econômicas, publicidade de tudo quanto é produto, panfletos de propaganda política, previsão do tempo, itinerários de ônibus, trens e elétricos, filmes e peças em cartaz, canções populares, prescrições e regras de administrações e repartições públicas, considerações sociológicas, discursos jurídicos, descobertas científicas recentes, notícias políticas, artísticas e esportivas do tempo e os mais banais faits divers do momento, “tudo isso em fusão inextricável com a matéria narrativa e os monólogos interiores das personagens formando uma unidade fervilhante, turbilhonando no amplo ritmo de uma linguagem ao mesmo tempo expressiva e naturalista” 37. Com efeito, a linguagem usada por Döblin é bastante híbrida, misturando e combinando a todo momento citações do Antigo Testamento e do Apocalipse de João na tradução de Lutero, além de empréstimos da poesia de Goethe e Schiller, com o característico Berlinerich, o patoá 37 Anatol Rosenfeld, “A confusão de Babel: Alfred Döblin” (1959), in Letras germânicas, São Paulo/Campinas, Perspectiva/Usp/Unicamp, 1993, p. 168.