1. HUMANIDADES EM REVISTA
Editora Unijuí • Ano 5 • nº 7 • Jul./Dez. • 2008
MÍSTICA, LINGUAGEM
E FILOSOFIA
p. 11-24
1
Departamento de
Filosoia e PPG em
Filosoia, Universida-
de Federal de Santa
Maria, UFSM, Santa
Maria, RS, Brasil.
ArtigoS
Noeli Dutra Rossatto1
Resumo
Trata-se de responder duas perguntas pontuais. De onde a Filosofia vai falar
da mística e qual o atual interesse filosófico pelo tema. As respostas levam
em conta três perspectivas distintas. A Filosofia analítica da linguagem que,
desde um ponto de vista antropológico, visa a encontrar na mística negativa
os suportes para se contrapor à tese da centralidade do Ego. A fenomenolo-
gia que, também por uma via negativa, vai averiguar os diferentes caminhos
ascéticos que conduzem ao aniquilamento da singularidade. E a semiótica
que, por sua vez, desde uma perspectiva da mística positiva, retoma o
ascetismo como um sistema lingüístico ancorado no uso de palavras e
imagens em contraposição à não-verbalização e o nada sublime.
Palavras-chave: Mística. Fenomenologia. Linguagem. Ascese. Semiótica.
Nada.
Abstract
This concerns the answer to two questions. From where Philosophy will
speak of faith and what is the current philosophical interest on the subject.
The answers take into consideration three distinctive perspectives. The
analytic language philosophy which, from an anthropological point of view,
aims to find in the negative faith the support to counter the thesis of centrality
of Ego. Phenomenology which, also through a negative way, will investigate
the different ascetic ways that leads to the annihilation of singularity. And
Semiotics which, on its turn, from a positive faith perspective, takes over
the asceticism as a linguistically system anchored in the use of words and
images, counter pointing non-verbalization and the sublime nothing.
Keywords: Faith. Phenomenology. Language. Asceticism. Semiotics.
Nothing.
2. NOELI DUTRA ROSSATTO
12 ano 5 • nº 7 • Jul./Dez. • 2008
De que lugar a Filosoia contemporânea irá falar da mística? Porque,
de repente, a mística vai fazer parte do repertório de temas tratados por alguns
autores das mais diferentes iliações na Filosoia Contemporânea?
Veremos três lugares a partir dos quais a Filosoia irá falar da mística.
Primeiramente, apresentamos, de forma breve e a título de estabelecimento de
um parâmetro inicial, a perspectiva sugerida por Ernst Tugendhat que, a partir
da Filosoia analítica da linguagem, busca pensar o problema antropológico da
mística. Depois, desde o existencialismo de Jean-Paul Sartre, em que o nada
existencial se alça como a condição de possibilidade da liberdade, retomamos
três aspectos de sua análise da via ascética. Em seguida, com base na semiótica
de Roland Barthes, faremos o contraponto entre duas perspectivas da mística:
a negativa, do não dizer; e a positiva, que procura expressar tudo e, além disso,
se utiliza da imaginação e da mediação das imagens.
Tugendhat: mística e relativização do Ego
Ernst Tugendhat, em seu artigo intitulado Sobre mística, busca uma
justiicação antropológica da mística que seja capaz de distingui-la da religião.
Ele vai apontar dois elementos centrais que estão nas raízes antropológicas da
mística. O primeiro é o recolhimento. É aquela concentração em si mesmo,
característica da maioria das místicas, que produz a paz da alma e a unidade do
espírito. Em segundo, destaca que o objeto deste recolhimento em si mesmo
não é o Eu ou a própria vida, mas simultaneamente o mundo e a totalidade
(Tugendhat, 2005, p. 16).
Assim, o recolhimento não visa de imediato a um conhecimento mais
apurado de si próprio, mas, ao contrário, leva a um deslocamento de si em
direção a uma relativação da consciência individual, na medida em que ela, ao
inal de um processo, se apequena ante a perspectiva da totalidade (pleroma)
do mundo. Para o autor, a mística não constitui, portanto, um sentimento ou
uma experiência, mas um “saber e uma atitude correspondente” (Tugendhat,
2005, p. 17).
3. MÍSTICA, LINGUAGEM E FILOSOFIA
13Revista HUMANIDADES EM REVISTA
Em suma, os dois componentes antropológicos da mística são o recolhi-
mento em si mesmo e a simultânea consciência do mundo relativizadora de si
próprio. Esses dois elementos concorrem para a construção de um tipo de saber
que leva à unidade na multiplicidade do mundo.
Em coerência com isso, o autor destaca três maneiras de interpretar esses
dois aspectos constitutivos da sabedoria mística:
1) Na primeira interpretação (a do budismo, para o autor), o recolhimento faz
com que o si mesmo e as demais coisas sofram um processo de fusão em
um nada. Daí, por conseguinte, surge a consciência de unidade do todo, que
é o vazio para o budismo.
2) Na segunda interpretação (a do taoísmo), mediante o recolhimento, o si
mesmo não se funde em vista do mundo e de sua unidade, mas é meramente
relativizado em prol de algo Uno (o Tao).
3) Na terceira interpretação, o recolhimento leva o si mesmo a tomar consciência
de que está imerso no mundo em meio às demais coisas. O si mesmo aqui
não se relativiza em vista de uma unidade totalizante (seja ela um deus, o
mundo ou os seus assuntos particulares), mas “em vista da universalidade
indeterminada de muitas coisas” (Tugendhat, 2005, p. 18). O exemplo disso
é a compaixão budista pelos demais seres ou a charitas cristã, que não é um
amor egocêntrico dirigido a indivíduos.
A mística constitui, desta forma, um tipo de sabedoria que, em todos os
casos, vai concorrer para a redução do Ego, a relativização da primeira pessoa
e o aniquilamento do singular isolado, e isso resulta da abertura para o mundo
como realidade mais ampla e elástica (consciência do vazio, fusão com uma
totalidade ou união com uma universalidade indeterminada).Assim, ante a per-
gunta por que o interesse da Filosoia Contemporânea pela mística, tem-se uma
resposta bem precisa: para sair da prisão da primeira pessoa, para relativizar o
todo poderoso Ego herdado da modernidade, para enim quebrar de vez com a
centralidade do Eu na cultura ocidental atual. Daí entende-se o título de outro
texto de Tugendhat sobre o mesmo tema Egocentricidade e mística: um estudo
antropológico (2004).
4. NOELI DUTRA ROSSATTO
14 ano 5 • nº 7 • Jul./Dez. • 2008
Sartre: mística e ontologia negativa
Em uma obra de 1952, que tem por título Saint Genet – ator e mártir
(2002), Jean-Paul Sartre não se preocupa diretamente com o aspecto do reco-
lhimento de si, mas notadamente com a renúncia de si, centrando-se na relação
entre o universal e o singular. Trata-se, mais precisamente, da averiguação de
alguns casos em que o singular é diminuído numa busca obsessiva de uma via de
totalização no universal ou no próprio singular. Também não está preocupado em
distinguir religião e mística ou a tratá-la desde uma perspectiva nomeadamente
antropológica. Não obstante, todos esses elementos de um modo ou de outro
vão comparecer na investigação sartreana. Ele vai falar indiscriminadamente
de mística e ascese, termos que em geral não são sinônimos, pois a palavra
mystiké, em sua etimologia, remete ao misterioso e ao secreto, relacionado com
a experiência com o divino e a união com um ser superior ainda nesta vida;
o termo askétiké, por sua vez, remete a um exercício, prática ou método que
conduz a uma união com o divino.
Para ins de análise, toma-se aqui apenas a penúltima seção do Livro II
– A conversão para o mal –, intitulada “Para vires a ser tudo, queiras não ser
nada”, do texto Saint Genet – ator e mártir de Jean-Paul Sartre (2002). O sub-
título dessa penúltima seção foi tomado de uma estrofe de um dos poemas mais
emblemáticos do grande místico castelhano São João da Cruz, a saber: “Para
venir a serlo todo, no quieras ser algo en nada”. Nesta seção, Sartre se esforça
sobretudo para mostrar a diferença entre as asceses de São João da Cruz e Santa
Tereza de Ávila comparadas com aquela do escritor maldito Jean Genet.
Com base no texto sartreano, destacamos três perspectivas básicas da
ascese, tendo como ponto de referência a relação entre os pólos do universal
ou totalidade e do particular ou singularidade.
A negação do singular
Primeiramente, Sartre descreve o contorno da ascese de origem platônica
que, ao buscar a renúncia à singularidade, tem como objetivo principal alcançar
a intuição do universal (Sartre, 2002, p. 201). Segundo ele, tal ascese é tipica-
mente encontrada nas sociedades agrícolas e artesanais. O Banquete de Platão
é o exemplo mais claro disso. Para Sartre, este texto do ilósofo grego traz à
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15Revista HUMANIDADES EM REVISTA
luz uma tese central que se vê corroborada por uma das correntes da ascese: o
ilósofo deve morrer para seu próprio corpo, a im de se elevar à contemplação
do divino, do verdadeiro e do bem. Aqui pode-se ver claramente a busca de
aniquilação do próprio corpo, do singular para que se possa ascender sem peso
ao universal.
Também, segundo o autor, enquadra-se nesta mesma corrente ascética a
tendência cristã que, por meio da gnose e do neoplatonismo, reencontrará esta
tradição do despojamento. É – acrescenta – a este despojamento, levado ao seu
limite, que o cristianismo chamará de santidade.Até em Hegel, continua Sartre,
a consciência de si não sabe o que é o universal e, por vergonha, tentará destruir
em si própria o particular a im de elevar-se ao mundo superior.
Em conformidade com esse quadro sartreano, cabem as mais variadas
tendências do neoplatonismo, da gnose e das variantes da mística judaica, árabe
e cristã, em que há um nítido esquema em que o singular busca puriicar-se da-
queles elementos adquiridos no processo em que a alma ingressa neste mundo.
Ao entrar no mundo (editus), a alma se encarna, isto é, é envolvida por uma
carne ou um corpo formado a partir dos quatro elementos: a terra, o fogo, a água
e o ar. A ascese, por sua vez, almeja enfraquecer esses elementos mundanos,
carnais, corporais, assimilados no processo de descida, a im de que a mesma
venha a ter novamente acesso ao lugar de onde saiu, isto é, que ela volte a ter
ligação com a plenitude ou totalidade divina (Rossatto, 2004). Em suma, para
essas correntes, mediante diferentes práticas de mortiicação (jejuns, penitência,
abstinência), ou ainda por meio dos mais variados tratos com os textos sagrados
(hermenêutica da sacra pagina), conseguir-se-á esvaziar a alma e escalar o
sempre árduo caminho de volta (reditus).
Neste modelo de via ascética, o aniquilamento do singular, tomado em
sua dimensão corporal, carnal, material, tem em vista abrir a porta que conduz
de volta ao vôo rumo à universalidade total.
Desprezo do singular e refúgio no universal
Asegunda perspectiva da prática ascética tem por objetivo levar à renún-
cia ao mundo e de si próprio, que, neste caso, são tomados como dois universais.
Com isso, se consegue chegar a uma particularidade estranha ou desconhecida.
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O método ascético é aqui a via utilizada para o ingresso em uma extrema sin-
gularidade, em que a existência se encontra em sua forma primeira, primitiva,
primária; isto é, despojada de tudo aquilo que pode ser pensado ou expresso por
conceitos. Dado que o pensamento universaliza e generaliza a existência tomada
em seu sentido mais radical, isto é, numa esfera pré-cognitiva, só poderá ser
vivida num grau anterior ao do conhecimento, da palavra: o grau do silêncio.
Parecem enquadrar-se, neste caso, as místicas do inefável, do quietismo e do
silêncio absoluto.
Sartre, contudo, está se referindo especiicamente a um tipo de ascese
que nega o universal erigido em conceito, em pensamento, em cogito, que foi
produzido ao longo da moderna sociedade industrial e cientíica. Esse universal
é bem diferente daquele de corte platônico, de uma sociedade agrícola, que
precisa ser conquistado. No mundo industrial, ao contrário, ele está ao alcance
de todos: na ciência, na técnica, na ação, na política, na moral. E já que está
ao alcance de nossa mão, é o singular que agora nos escapa e deverá ser re-
conquistado como um “além da generalidade” (Sartre, 2002, p. 202). É preciso
então “renunciar ao mundo e a si mesmo, isto é, ao Ego banal, inautêntico,
muito universalizado da prática cotidiana, para atingir-se no nível da exceção
pura” (p. 202, o destaque é do autor). “Assim – continua Sartre –, a ascese
contemporânea, longe de evidenciar, como no caso da ‘consciência infeliz’, a
pura abstração formal e hipostasiada do Eu penso, faz aparecer a individualidade
mais inefável” (p. 203).
Este caminho leva inevitavelmente ao esvaziamento e à rejeição de tudo
aquilo que habita a consciência e tem como ponto culminante um momento
em que ela, a consciência, já não poderá expressar mais nada: não tem tema,
não tem pensamento, não tem palavra. Existe simplesmente. E existe vazia em
um estágio anterior a todo o pensado. Em conformidade com o existencialis-
mo sartreano, vale aqui seu mote principal que pretende inverter o idealismo:
existo, logo penso.
É justamente neste ponto que a análise sartreana se detém na obra de
dois místicos castelhanos do século 16, São João da Cruz (1542-1591) e Santa
Teresa de Jesus ou de Ávila (1515-1582), aos quais acrescentamos, com o ob-
jetivo estrito de enriquecer a discussão, algumas passagens do místico renano
Mestre Eckhart (1260-1328), que viveu entre os séculos 8º e 14. No estudo da
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17Revista HUMANIDADES EM REVISTA
obra dos dois místicos castelhanos, Sartre sublinha o aspecto da renúncia de
si que conduz, em última instância, a uma prática negativa de totalização pelo
não-dizer, o não-falar, ou à renúncia e nadiicação do autêntico singular.
Vejamos algumas frases desses místicos que expressam a via unitiva
negativa, e que Sartre tem presente em sua avaliação.
De Santa Teresa (1991, p. 132): “Porque, verdaderamente, es de gran
humildad verse condenar sin culpa y callar (...) porque el verdadero humilde
ha de desear con verdad ser tenido en poco y perseguido y condenado sin
culpa”.
De São João da Cruz (1998, p. 64): “Para venir a gustarlo todo, no
quieras tener gusto en nada; para venir a saberlo todo no quieras saber algo
en nada; para venir a poseerlo todo, no quieras poseer algo en nada; para
venir a serlo todo, no quieras ser algo en nada; para venir a saberlo todo, no
quieras saber algo en nada.”
Além das citações destacadas anteriormente, acrescemos, para ins de
análise comparativa, algumas passagens da obra de Mestre Eckhart que apre-
sentam conteúdo semelhante:
No poema O grão de mostarda: “Oh alma minha, sai fora, Deus entra!
Funde todo meu ser no Nada de Deus (gotis nicht). Funde-te no caudal sem
fundo! Se saio de ti, tu vens a mim, se eu me perco a ti te encontro. Oh bem,
além do ser!” (1998, p. 142).
No sermão O fruto do nada: “Quando a alma chega ao Uno e ali entra
numa recusa pura de si mesma, encontra Deus como um Nada. (...) Ele é o fruto
do Nada. Deus havia nascido no Nada” (p. 145-150).
E a Proposição 26, condenada pela Bula de João XXII “In agro domini-
co” de 1329: “Todas as criaturas são um puro Nada: e não digo que são pouco
ou algo, senão que são um puro Nada” (p. 178).
A análise sartreana se detém aqui mais na demonstração de que a ascese
de Santa Teresa e de São João da Cruz apresenta uma mesma tônica que culmina
sempre com o momento da negação da negação, tomada em termos hegelia-
nos. Ou seja: ao recusar em si aquilo que vem de si mesmo, isto é, os erros, as
paixões, as culpas, estes místicos tentam alcançar a plenitude do ser, o todo, a
8. NOELI DUTRA ROSSATTO
18 ano 5 • nº 7 • Jul./Dez. • 2008
universalização. Segundo Sartre, para Santa Teresa e São João da Cruz – e o
mesmo parece valer para Mestre Eckhart – assim como em Hegel, a negação
da negação é um momento em que se rompem de fato os limites de si próprio.
Há, por certo, uma elevação. Esse movimento inal, contudo, não é no sentido
de forjar uma singularidade nadiicada, mas, ao contrário, toma aqui um sentido
ascendente que vai resultar numa airmação de si como idéia no Ser Absoluto.
Deste modo, a superação acaba conservando no plano da idéia aquilo que, num
momento anterior, fora negado no singular (Sartre, 2002, p. 205). Assim, pois,
ao im e ao cabo, o despojamento total conduz sempre à plenitude do Ser, e
nada mais. Ao inal, tem-se, com efeito, a positividade do Ser Absoluto sem
nenhuma contrapartida negativa.
Para o objetivo que Sartre persegue, tal ascese mostra-se problemática.
Isso porque, no im das contas, o singular nesse terceiro ato – o de negação da
negação – sempre volta tranqüilo a descansar nos braços do universal enquanto
idéia absoluta. Então, o momento de superação acaba por se realizar em um
plano ideal e não mais existencial. Em última análise, a “humildade” de Santa
Tereza e o “nada” de São João da Cruz – e de Mestre Eckhart também – estão
amparados na “preferência do Ser” (Sartre, 2002, p. 216), pois ainda que haja o
desejo de desaprovação por parte do mundo, dos outros (que tem como resultado
a humilhação) ou de nadiicação no plano humano, eles sempre vão poder contar
com uma última instância divina que os aprova e os conforta inalmente.
Segundo o autor, a permanência do singular nadiicado no plano da
existência, o que leva ao extremo essa via negativa, será alcançada por Jean
Genet.
A recriação negativa do singular
O terceiro tipo de ascese não traça um movimento que vai do singular
ao universal pela negação do singular como no platonismo; tampouco pretende
conquistar negativamente o singular, mediante o desprezo e a humilhação, mas
sempre acabar refugiado no universal, como nas místicas tratadas anteriormente.
É uma via que vai do singular ao singular. Vai do singular, suportado e dado,
em busca da consecução de uma singularidade ainda menor, independente do
universal e deliberada e estabelecida segundo suas próprias leis. Sartre (2002)
9. MÍSTICA, LINGUAGEM E FILOSOFIA
19Revista HUMANIDADES EM REVISTA
sublinha que, neste âmbito preciso, a ascese é a própria recriação da singula-
ridade. Que tipo de recriação, porém, é essa? É uma recriação ou uma livre
produção de si mesmo que resulta de um continuado e irrevogável processo de
destruição sistemática de si mesmo.
Há, por isso, um paradoxo neste tipo de ascese: é pelo aniquilamento do
ser que se caminha na direção de sua plenitude. Só que a plenitude não é mais
ascendente, mas descendente. O aniquilamento não é produzido mediante a
renúncia do singular em prol da conquista de um tipo de totalidade universal.
Ao contrário, aqui a renúncia toma o caminho inverso. Ao invés de ser um
processo que tem como escopo a ascensão do singular ao âmbito do universal,
como na tradição ascética em geral, agora há uma descida de fato. E mais que
isso: há uma verdadeira descida em direção a um ser cada vez menor (e rumo
ao encontro do nada) que não tem volta. Neste caso, a ascese é um verdadeiro
processo de nadiicação que leva realmente o ser singular em direção ao menor
e menor ser. Em síntese, conduz inevitavelmente ao nada existencial.
Dirá Sartre a propósito do singular imerso nesta via ascética descendente:
“Mergulha numa obscuridade que o olhar divino não pode penetrar (...)Assim, o
nada que a criatura produz é um véu que a esconde aos olhos do Todo-poderoso,
como a tinta com que se envolve o polvo” (Sartre, 2002, p. 210). E o nada é o
resultado inal de um caminho, de um exercício, de um método, de uma vontade,
pois, “estar embaixo não é nada: é preciso ter chegado ali. Esse protoplasma
ao qual eles (J. Genet e Jouhandeau) querem reduzir-se não é a substância
explosiva, prenhe de todo o futuro dos vivos, que foi o ponto de partida da
evolução criadora. É o termo inal de uma involução, que permanece habitado
pela lembrança das grandes formas complexas, peixe, pássaro, homem, que ele
foi e que não pode voltar a ser, e nem mesmo compreender completamente”
(Sartre, 2002, p. 212).
Diferentemente da ascese na mística castelhana (S. João da Cruz e Teresa
de Ávila) e na renana (Mestre Eckhart), há aqui um processo de nadiicação
existencial em que o particular se afunda cada vez mais e mais em sua parti-
cularidade e não consegue – nem pretende – mais voltar-se ou amparar-se na
universalidade do ser absoluto. É um real e verdadeiro descenso numa escala
involutiva dos seres em que se guarda apenas a “lembrança” das formas an-
teriores mais complexas da escala evolutiva (peixe, homem, pássaro). É uma
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20 ano 5 • nº 7 • Jul./Dez. • 2008
verdadeira convertio em que não se tem mais a segurança de um universal
salvador ou redentor. É a descida sem volta pelos obscuros degraus que levam
aos porões da imensa noite do nada.
Barthes: mística, verbo e imagem
Em seu texto Sade, Loyola e Fourier (1971), Roland Barthes apresenta a
mística de Santo Ignácio de Loyola (1491-1556), o fundador da Companhia de
Jesus (os jesuítas), como uma reação à tradição da mística da não-verbalização,
do não-dizer, do nada sublime. A proposta de Ignácio de Loyola, segundo
o autor, pode perfeitamente se enquadrar numa perspectiva contrária a toda
espécie de horror vacui produzido pelas místicas iconoclastas do inefável, do
quietismo e do salto no vazio das trevas. Contrariamente, Loyola responderá
com um “imperialismo radical da imagem” (Barthes, 1997, p. 83), mediante
uma fértil imaginação dirigida sob seus Exercícios espirituais. Não obstante,
a imagem aqui não será uma espécie de escada na via unitiva que nos conduz
ao trono divino, mas um “sistema lingüístico” controlado que dá garantias à fé
ortodoxa e não se deixa cair nos perigos da “confusão”, do “vazio” e da falta
de controle que caracteriza a mística negativa (Barthes, 1997, p. 83). A própria
oração terá de passar obrigatoriamente pela linguagem. Não vamos nos deter
aqui na análise dessas diferentes práticas místicas que, quando não podiam ser
incorporadas e engolidas pelas instituições religiosas, eram rejeitadas e com-
batidas como heréticas.
O novo padrão dado à imagem, por Loyola, só poderá ser bem avaliado
sob o pano de fundo da escolástica. A tradição escolástica, à qual se junta a
modernidade cientíica em geral e o protestantismo em especial, havia criado
uma verdadeira rejeição a todo o recurso à imagem e à imaginação. Desde o
dito popular medieval – “a imaginação é a louca da casa” – até as mais variadas
airmações acadêmicas vão reiterar essa posição. Lembramos a propósito uma
das emblemáticas passagens da Suma teológica (I parte, Q. 1, art. X) de Tomás
de Aquino (1980), em que ele, de um só golpe, substitui o sentido espiritual da
escritura pelo literal: “não há nada necessário à fé, contido no sentido espiritual,
que ela (a Escritura) não explique manifestamente, em outro lugar, no sentido
literal”. É o mesmo que dizer: doravante só vale o sentido literal em detrimento
11. MÍSTICA, LINGUAGEM E FILOSOFIA
21Revista HUMANIDADES EM REVISTA
da leitura baseada nos tradicionais sentidos espirituais: alegórico, tipológico
e anagógico. Fica desabilitada a argumentação que se vale das iguras, das
metáforas e das imagens. Elas estão reduzidas a simples recursos retóricos ou
didáticos que servem apenas para ensinar àqueles que não conseguem manejar
os conceitos, as abstrações, as species intelligibilis. De polissêmica, a lingua-
gem torna-se monossêmica. Há um sentido único, como em todos os sistemas
arbitrários.
A desconiança, a resistência e a privação das imagens também fazem
parte do roteiro da ascese cristã em geral. Em particular, São João da Cruz asse-
verava que as imagens, as visões e as meditações são convenientes apenas aos
que estão começando, os neóitos, contudo o objetivo inal de sua experiência
espiritual é a contemplação totalmente despojada das mediações por imagens;
e Santa Teresa, ainda que mais moderada, continua a alimentar sérias descon-
ianças em relação à imaginação (Barthes, 1997, p. 82).
Neste contexto, retoma Barthes, a proposta de Ignácio de Loyola é bastan-
te inovadora e, por isso mesmo, vai apresentar outro tipo de perigo, e é devido a
isso que o santo espanhol terá de se precaver no sentido de dar algumas garantias
de que sua mística não vai descambar numa espécie de histeria, de descontrole
emocional, de profetismo visionário e de irracionalismo, derivados da falta de
rigor e controle proporcionado pelo uso de imagens e da imaginação.
Devido a isso, segundo Barthes, a “lingüística da imagem” forjada por
Loyola em seus Exercícios espirituais (1963) terá de dar três tipos de garantias
básicas:
1) Garantia de realidade: as imagens tomadas não são alucinações, mas são
realidades inteligíveis.
2) Garantia lógica: a disposição das imagens permite um processo de desen-
volvimento gradual, tal como os ritmos dos encadeamentos lógicos. Assim,
a abertura do espírito ou iluminação não se dá mediante um salto repentino,
abrupto e inesperado, uma espécie de intuição imediata (tori no budismo
chinês), senão mediante um método gradual (kien para o budismo) que pas-
sa necessariamente pela mediação da linguagem. É possível falar de Deus.
Não ica no espanto da enunciação do “que é”, como na mística e teologia
negativas, mas vai à direção de dizer “o que é”.
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3) Garantia ética: a mística especulativa tem como escopo adentrar numa es-
fera situada além da linguagem como coroamento de seu esforço inal. Os
exercícios inacianos destinam-se a uma prática (“serviço”) que manifesta o
seu “desejo do mundo”, e não a fuga dele (1997, p. 84).
Assim, por exemplo, em suas tópicas, a meditação sobre o inferno se
repete cinco vezes seguida em conformidade com cada um dos cinco sentidos.
Assim é o procedimento: 1) ver os corpos queimando no fogo; 2) escutar os
gritos dos condenados; 3) sentir o cheiro fétido da carne queimando no abismo;
4) sentir o gosto amargo das lágrimas; 5) tocar o fogo.
Outra forma de meditar consiste em contemplar o signiicado de cada
palavra do Pai Nosso (Pater...), por exemplo, resquício da lectio divina me-
dieval. Neste caso, porém, ao invés de a concentração nominal e a reprodução
cadenciada de uma palavra produzir o vazio, como no caso do budismo (por
exemplo, o nemhutsu: meditação com o nome de Buda), busca-se arrancar todos
os signiicados de um único signiicante (Barthes, 1997, p. 75).
A perspectiva semiótica de Barthes acena para o resgate da imagem
como um “sistema lingüístico” que, como medium, proporciona uma espécie
de recolhimento de si e provoca uma abertura para o mundo, para a totalidade,
de acordo com os critérios postos inicialmente a partir de Tugendhat; e se pode
acrescentar a isso que há aqui uma espécie de relativização do Eu, no confronto
com a totalidade do mundo; porém há de se reconhecer que, diferentemente de
outras místicas negativas, a totalidade não se dá in ausentia de algo, mas ao con-
trário na e pela presença das coisas, do mundo, dos sentidos, da imaginação, dos
objetos, das palavras, dos signos. Também a diminuição do Ego e a perspectiva
totalizante não advêm de uma prática centrada na vontade; ao contrário, aqui
a mística decorre de um processo intelectivo. É pela via do conhecimento, da
gnose, que se alçam os degraus do autoconhecimento e da perfeição.
Tal perspectiva de análise abre o leque que permite trazer ao debate
algumas místicas de corte gnóstico que se valem do conhecimento e da inter-
pretação das palavras, das iguras e dos enigmas para passar do imperfeito ao
perfeito ainda nesta vida. Em acordo com isso estão as palavras do próprio
apóstolo Paulo em sua Epístola aos Coríntios (Bíblia Sagrada, I Cor 13: 19),
quando escreve: “em parte conhecemos e em parte profetizamos. Agora nós
13. MÍSTICA, LINGUAGEM E FILOSOFIA
23Revista HUMANIDADES EM REVISTA
vemos num espelho e em enigma; mas, então, veremos face a face.” É o sonho
do conhecimento pleno que aí se impõe: conheceremos do mesmo modo que
somos conhecidos (pelo divino no caso). Não é a mística da vontade que está
presente aqui, mas é o caminho da gnose.
É certo ainda que esta via vai desembocar não só nas práticas herméticas
e cabalísticas em geral, mas na própria hermenêutica. Não é desprovido de sen-
tido que a hermética e a hermenêutica tenham origem no mesmo deus Hermes
da mitologia grega, mensageiro e intérprete a um só tempo.
Referências
BARTHES, Roland. Sade, Loyola e Fourier. Madrid: Cátedra, 1997. (Ed. orig.
Paris: Seuil, 1971).
BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: Editora Paulus, 2003.
IGNÁCIO DE LOYOLA. Obras completas. Madrid: Editorial Católica,
1963.
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Recebido em: 15/9/2008
Aceito em: 12/10/2008