Este documento apresenta uma análise da canção "Vide verso meu endereço", de Adoniran Barbosa, dividida em três frases: (1) A canção conta a história de um engraxate que agradece ao homem que o ajudou financeiramente através de um bilhete; (2) A análise explora a integração entre melodia e letra e identifica quatro partes na canção correspondentes à estrutura narrativa; (3) Uma hipótese é apresentada para explicar a mudança nas regiões da tessitura vocal ao long
2. Autor
• Carlos Vinicius Veneziani dos Santos.
• Doutorando do Departamento de Línguística da USP.
• Orientando do Professor Dr. Luiz Tatit.
• vinivs@gmail.com
3. Introdução
• A canção “Vide verso meu endereço”, de Adoniran
Barbosa, interpretada pelo próprio autor, faz parte do
segundo LP gravado pelo sambista, Adoniran Barbosa,
em 1975.
• A canção é a segunda faixa do lado A do LP, que foi um
gravado um ano depois do primeiro, para aproveitar o
grande sucesso que este atingiu. Traz 12 faixas e
apresenta canções menos conhecidas de Adoniran,
algumas até então inéditas em disco.
4. Introdução
• O trabalho propõe a análise da canção a partir dos
parâmetros estabelecidos por Luiz Tatit e Ivã Carlos
Lopes em Elos de melodia e letra, fundamentados nas
contribuições teóricas da semiótica greimasiana de linha
francesa e nos seus desdobramentos posteriores,
notadamente os que se associam à noção de tensividade.
5. Introdução
• A apresentação baseia-se em capítulo da tese de
doutorado “Análise semiótica da produção cancional de
Adoniran Barbosa”, que investiga o estilo autoral do
compositor a partir do estudo de sua produção dentro da
perspectiva teórica da semiótica da canção.
6. A canção
• A letra da canção conta a história de um engraxate
ajudado financeiramente por um homem mais abastado
(Dr. José Aparecido).
• A ajuda que o primeiro recebe possibilita ao trabalhador
comprar suas ferramentas de trabalho e estabelecer-se
profissionalmente na Praça da Bandeira.
• A partir disso, ele consegue comprar uma casa, se casar
e criar seus filhos.
7. A canção
• Depois de estabelecido, o engraxate decide demonstrar
sua gratidão pela ajuda recebida por meio de um bilhete.
• Esse bilhete revela toda a história, faz o agradecimento e
coloca sua casa à disposição do senhor que o ajudou
para uma visita.
• O engraxate pede a outra pessoa (seu Gervásio) que
entregue o bilhete ao homem que o apoiou.
8. Análise da letra
• A letra tematiza uma ação de comunicação (enunciação)
entre dois sujeitos distantes espacialmente.
• Essa comunicação acontece por intermédio de um
bilhete, e esse bilhete tem como conteúdo (ou enunciado,
no plano ficcional) a história de vida (construção da
condição de subsistência) do enunciador.
• A motivação da enunciação é o sentimento de gratidão,
ou o reconhecimento da contribuição dada pelo
enunciatário à realização da performance do enunciador
em sua história de vida (estabilização financeira).
9. Plano narrativo
• Do ponto de vista narrativo, essas figuras podem ser
vistas como um sujeito do fazer (que também é
enunciador e destinador-julgador) e um sujeito auxiliar
(adjuvante – que também é enunciatário e destinatário da
sanção). O segundo proporciona ao primeiro recursos
para realização de sua performance.
• A gratidão, enquanto sentimento ligado ao
reconhecimento da contribuição de um sujeito para o
programa narrativo de outro sujeito, aparece como efeito
final de uma série de eventos que envolvem o sujeito-
enunciador.
10. Integração melodia-letra
• Pode-se pensar a divisão da canção em quatro
partes:
• 1) A entrega do bilhete ao emissário que o levará
até o destinador da ação;
• 2) A explicitação da temática do bilhete a ser
entregue;
• 3) A sequência narrativa de ações que culminam
na motivação para escrever e enviar o bilhete;
• 4) O encerramento do bilhete, com a oferta de
acolhida na casa do enunciador.
11. Melodia – aspectos gerais
• A análise da canção revela uma forte tendência à
figurativização no modelo de integração entre melodia e
letra.
• Os versos distendem-se ou abreviam-se para caber na
linha melódica. Os recortes entonacionais são
privilegiados, determinando os recortes melódicos do
canto.
12. Primeira parte
• A primeira parte da canção é falada, e a fala é
acompanhada de um dedilhado introdutório no
cavaquinho, sem acompanhamento percussivo.
• Essa primeira parte não cita o conteúdo do bilhete,
relacionando-se apenas às condições de seu envio.
Indica entrega do bilhete a uma pessoa que pode
encontrar o enunciatário da mensagem com mais
facilidade e frequência que o enunciador que a redigiu.
13. Primeira parte
• "Seu Gervásio, se Dr. José Aparecido aparecer por aqui,
cê dá esse bilhete a ele.
• Pode lê, num tem segredo nenhum. Pode lê, seu
Gervásio."
14. Primeira parte
Pedido para entrega do bilhete
Destinador-manipulador Destinatário-manipulado Objetivo
Sujeito lírico – enunciador do pedido Seu Gervásio - enunciatário do pedido Portador de texto - mensagem ∩
Enunciatário da mensagem no bilhete
(Dr. José Aparecido)
Entrega do bilhete
Sujeito Destinador Objetivo
Seu Gervásio Enunciador do bilhete (sujeito lírico),
valores sociais de atender pedidos de
favores.
Sujeito ∩ imagem positiva pela
realização de um favor (pedido de
entrega do bilhete)
15. Segunda parte
• A segunda parte da canção começa no primeiro verso
cantado, já com o acompanhamento percussivo. O trecho
tem quatro versos, e o sujeito declara que escreve o
bilhete para agradecer ao homem que lhe doou o
dinheiro.
• Esse agradecimento tem contornos emotivos fortes,
evidenciados nas expressões "toda“, relacionada à
gratidão, "de coração", relacionada ao verbo "agradecer",
e "tudo“, relacionada à expressão "o que você me fez".
16. Segunda parte
• O trecho apresenta uma recuperação paródica das
aberturas tradicionais de modelos de cartas, dando um
tom excessivamente formal à letra, que contrasta com a
coloquialidade do restante da canção, da fala inicial e
mesmo da tradição do samba.
• Esta parte é a que ocupa a região mais grave do
diagrama da tessitura, e é marcada pela finalização dos
versos em suspensão.
17. Segunda parte
• Venho por meio destas mal traçadas linhas
• Comunicar-lhe que fiz um samba pra você.
• No qual quero expressar toda minha gratidão
• E agradecer de coração tudo o que você me fez.
18. Segunda parte
Agradecimento
Destinador-julgador Destinatário-sancionado Objetivo
Sujeito lírico – enunciador do bilhete Dr. José Aparecido - enunciatário do
bilhete
Destinatário ∩ recompensa pela
doação do dinheiro
Razões para agradecer
Destinador-manipulador Destinatário-manipulado Objetivo
Destinador social – valores da
sociedade
Sujeito lírico – enunciador do bilhete Destinatário ∩ dever-fazer (agradecer
a quem nos faz um bem, uma ação
positiva)
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21. Terceira parte
• A terceira parte da canção retoma, pela
rememoração do sujeito lírico, a sequência das
ações empreendidas até a conquista da estabilidade
profissional.
• Primeiro, ele recebe uma determinada quantia do
homem a quem agradece. Com essa quantia,
adquire material para trabalhar como engraxate na
Praça da Bandeira.
22. Terceira parte
• Ele trabalha com dedicação, isto é, "pegando firme". Essa
dedicação gera dinheiro, com o qual ele pode casar,
construir sua casa e criar seus filhos.
• Melodicamente, esta parte inicia explorando a região
média da tessitura, mas passa a utilizar a região mais
aguda nos versos finais.
• Também predominam nesta parte os versos que
finalizam em suspensão, a não ser o verso que faz
referência às possibilidades de ganho com o trabalho de
engraxate.
23. Terceira parte
• Com o dinheiro que um dia você me deu
• Comprei uma cadeira lá na Praça da Bandeira.
• Ali vou me defendendo.
• Pegando firme dá pra tirar mais de mil por mês.
• Casei, comprei uma casinha lá no Ermelindo,
• Tenho três filhos lindos,
• Dois são meu, um de criação.
• Eu tinha mais coisas pra lhe contar
• Mas vou deixa pra uma outra ocasião.
24. Terceira parte
Busca da estabilidade financeira
Sujeito Destinador Objetivo
Sujeito lírico – enunciador do bilhete Valores sociais (dedicação ao trabalho,
necessidade de construção de família)
Sujeito ∩ estabilidade financeira
Doação do dinheiro
Sujeito Destinador Objetivo
Dr. José Aparecido Valores sociais (dever de ajudar,
oportunidade de fazer o bem,
necessidade de dinheiro para
empreender)
Enunciador do bilhete ∩ dinheiro
(competência do poder-fazer a
estabilidade financeira)
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29. Quarta parte
• A quarta parte da canção é o encerramento do bilhete, no
qual o enunciador convida o enunciatário para visitar sua
residência e fala da escrita da carta por sua esposa.
• O enunciador faz uma indicação material/visual para o
seu remetente, avisando que o endereço para visitação
está no verso do bilhete.
• A quarta parte associa-se à mesma estrutura de sentido
da segunda, que é a do empreendimento da ação de
comunicação com fins de agradecimento.
• A melodia atinge a região mais aguda da tessitura,
finalizando na tônica uma oitava acima da finalização no
quarto verso da terceira parte.
30. Quarta parte
• Não repare a letra,
• A letra é de minha mulher.
• Vide verso meu endereço,
• Apareça quando quiser.
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32. Elementos relevantes da análise
• Diálogo de gêneros: carta e canção.
• Um dos aspectos mais interessantes desta
canção é o reconhecimento de gênero que ela
faz, que se evidencia em dois momentos:
• Na parte 2, quando o enunciador do texto da
carta utiliza chavões próprios do gênero, tal
como aplicados na escrita.
• Na parte 4, que funciona como um
encerramento, dentro dos padrões da redação
tradicional de cartas.
33. Relação entre as partes do texto
• É possível apontar correspondências entre cada
parte da canção e a estrutura narrativa da letra.
Parte da canção Estrutura em destaque Características
Primeira parte Solicitação de entrega do bilhete
Falada, sem acompanhamento
percursivo
Segunda parte
Introdução do texto do bilhete –
indicação do agradecimento
Exploração da região mais grave da
tessitura
Terceira parte
Desenvolvimento da história do
enunciador – programa narrativo de
busca de estabilidade financeira
Exploração da região média da tessitura
Quarta parte
Conclusão e encerramento do bilhete –
retomada do agradecimento
Exploração da região mais aguda da
tessitura
34. Hipótese para mudança da região da
tessitura nas partes finais
• Na canção de Adoniran, é possível notar que há uma
gradativa mudança na exploração da tessitura da melodia
vocal. A primeira parte ocupa a região mais grave, a
segunda parte oscila entre as regiões grave e aguda,
tendendo para a região média, e a última parte utiliza a
região mais aguda.
• A explicação dessa tendência enseja uma hipótese
pautada no entendimento de que a proximidade da voz
com os limites da tessitura associa-se à intensidade
emocional. Esse entendimento deve ser relacionado aos
elementos de análise anteriormente apontados.
35. Hipótese para mudança da região da
tessitura nas partes finais
• O fazer persuasivo do enunciador em sua manifestação de gratidão
é intensificado pela operação de reconhecimento, isto é, pela
revelação da importância da ação do enunciatário.
• Tanto maior é o mérito do enunciatário quanto mais positivo o
resultado da performance do sujeito. E a terceira parte, ao contar a
história do sujeito, ressalta justamente o sucesso de suas ações.
• Por isso, a quarta parte do texto apresenta maior intensidade que a
segunda: embora ambas façam referência à necessidade de
agradeceer, na quarta parte, a sanção está mais bem fundamentada,
o resultado da performance foi reconhecido pelo destinador-julgador
como decorrência da ajuda recebida.
36. Hipótese para mudança da região da
tessitura nas partes finais
• Nesse contexto, a necessidade de superar o afastamento
espacial por meio do bilhete para estabelecer a
retribuição é mais patente. Ou seja, a separação entre
sujeito e objeto é percebida de forma mais aguda.
• Como resultado, a passionalização aparece como modelo
recessivo em relação à figurativização, e a transposição
de região melódica associa-se à disjunção espacial, com
vínculo temporal, entre sujeito e objeto.
37. Bibliografia
• BARROS, D. L. P. Teoria semiótica do texto. 4ª edição.
São Paulo: Ática, 2005.
• COURTÉS, J.; GREIMAS, A. J. Dicionário de
Semiótica. São Paulo: Contexto, 2008.
• LOPES, I. C.; TATIT, L. Elos de melodia e letra: análise
semiótica de seis canções. Cotia, SP: Ateliê Editorial,
2008.
• TATIT, L. Análise semiótica através das letras. São
Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
• TATIT, L. Todos entoam: ensaios, conversas e canções.
São Paulo: Publifolha, 2007.