1. PORTO-ALEGRE, Manuel de Araújo (1806-79). Nascido em Rio Pardo (RS) e falecido em
Lisboa (Portugal). Seu nome real era Manuel José de Araújo, modificado para Pitangueira por
espírito nativista, quando da Independência, e mais tarde chegando à forma definitiva, Manuel
de Araújo Porto-alegre, sendo equivocada a grafia Porto-Alegre que alguns de seus biógrafos
utilizam.
Orfão de pai aos cincos anos, tendo perdido aos 12 o padrasto, tinha 16 quando se empregou
como ajudante na oficina de relojoaria do francês Jean Jacques Rousseau, o qual, tendo em
vista seus pendores para o desenho, estimulou-o a estudar com seu compatriota François
Ther, recém-chegado à cidade. Pouco mais tarde teria algumas lições com o retratista Maciel
Gentil e com o pintor decorador João de Deus, passando a ganhar a vida como pintor
profissional.
Decidido a ir estudar com Debret no Rio de Janeiro depois de ter visto uma reprodução do
Desembarque da Arquiduquesa Leopoldina do mestre francês, só em fins de 1826
conseguiu embarcar com destino à Corte, onde chegou a 14 de janeiro de 1827. Treze dias
mais tarde estava matriculado como aluno fundador na Academia Imperial de Belas Artes, na
classe de Debret, de quem se tomaria em breve dos mais chegados amigos. Na Academia foi
também discípulo de Grandjean de Montingny, tanto que na Exposição escolar de 1830
compareceu com obras de pintura e de arquitetura. Seu interesse pela arquitetura era aliás
muito grande, e prova disso é ter estudado, quando em Roma em 1834, com o famoso
arquiteto Canina; muitos foram, de resto, os projetos de sua autoria, depois que retornou da
Europa em 1837 - entre eles o edifício da Igreja de Santana (não executado), a antiga sede do
Banco do Brasil na Rua da Candelária (demolida em 1937) e as obras de reforma e ampliação
dos Paços da Cidade e de São Cristóvão e da Alfândega do Rio de Janeiro. Mas, voltando aos
tempos de sua formação, acrescente-se que também cursou a Escola Militar, estudou
Anatomia e Fisiologia na Faculdade de Medicina e recebeu aulas de Filosofia de Frei José
Policarpo de Santa Gertrudes
Todos esses esforços tinham apenas um escopo: prepará-lo adequadamente para a viagem à
Europa, com a qual sonhava desde quando ainda residia na província. Com a abdicação de
seu protetor Pedro I e o recebimento de uma inesperada herança, ao mesmo tempo em que
seu mestre Debret se licenciava da Academia e retornava à Europa com os originais da
Voyage Pittoresque prontos para publicação, todas as circunstâncias concorriam para a
concretização de seus planos. Com efeito a 25 de julho de 1831 Porto-alegre seguia para a
França em companhia de Debret, e já em fins desse ano estava matriculado na aula particular
do célebre Barão Gros em Paris. Em 1832 inscreveu-se na École des Beaux Arts, que cursou
com certo destaque. Morando num aposento da residência do arquiteto François Debret, irmão
do pintor, Porto-alegre, durante o tempo de sua permanência em Paris, desfrutaria senão da
intimidade, ao menos da proximidade de todas as celebridades que freqüentavam a casa,
como explicaria anos depois, em sua autobiografia:
- A casa de Francisco Debret era um ponto de reunião de grandes notabilidades; e como este
arquiteto era o primeiro mestre na arte de construir teatros, ali se juntavam também os
memógrafos mais célebres e os músicos maiores, como Rossini, Auber, Boieldieu, Cherubini e
Paer, não falando nas plêiades de pintores, escultores e outros homens de primeira plana. No
centro desta sociedade, enciclopédia viva, colhe o jovem artista idéias gerais de muitas coisas,
e sobretudo o gosto pelo estudo, e mais ainda esse respeito devido ao verdadeiro mérito e a
todas as especialidades, porque no exemplo de tantos grandes homens aprendeu a respeitar
os homens.
Porto-alegre não cita os nomes dos pintores ou dos poetas com os quais conviveu, mas é fora
de dúvidas que na Paris dos começos da década de 1830 seriam todos eles espíritos
românticos, os corifeus da nova escola estética que vinha se impondo havia apenas alguns
anos aos postulados do neoclassicismo. Pinheiro Chagas, aliás, sustenta equivocadamente
que o jovem brasileiro alistou-se na luta contra os clássicos, assistiu à première do Hernani de
Victor Hugo e " foi um daqueles revolucionários da arte que, de gravata vermelha e de longos
cabelos, se assenhorearam, por direito de conquista, da platéia do teatro francês nessa noite
de luta em que se afirmou o triunfo da escola romântica".
2. Em 1834 Porto-alegre deixava Paris e encetava uma longa excursão através da Europa,
percorrendo sucessivamente Itália, Suíça, Bélgica e Inglaterra. Acompanhou-o na viagem à
Itália seu dileto amigo e também ex-aluno de Debret na Academia Imperial de Belas Artes
Domingos José Gonçalves de Magalhães, o qual apenas dois anos antes se formara em
Medicina e publicara seu primeiro livro, Poesias. Cumpre acrescentar que Gonçalves de
Magalhães seria um dos fundadores em Paris, em 1836, da revista Niterói, da qual só
apareceram dois números, mas que se constituiria no núcleo inicial do Romantismo brasileiro.
Regressando ao Brasil em 1837, o artista parece ter publicado, nesse mesmo ano, algumas
caricaturas satirizando Justiniano José da Rocha, o que levou Herman Lima a sustentar, em
sua História da Caricatura no Brasil, ter sido Porto-alegre o primeiro caricaturista brasileiro,
sendo além do mais certo que fundou em 1844 o primeiro periódico do país ilustrado com
caricaturas - a Lanterna Mágica, de efêmera duração. Também em 1837 foi nomeado professor
de Pintura Histórica da Academia Imperial de Belas Artes, cargo que desde a partida de Debret
em 1831 vinha sendo desempenhado por Simplício Rodrigues de Sá. Pintor da Câmara
Imperial em 1840, couberam-lhe nessa condição a execução e a supervisão de trabalhos
decorativos importantes para a coroação de Dom Pedro II, o casamento do Imperador com a
Princesa Dona Teresa Cristina e os batizados dos Príncipes Imperiais Dom Afonso e Dom
Pedro. Já no ano anterior realizara o pano-de-boca e cenários do Teatro São Pedro de
Alcântara, inaugurado a 7 de setembro de 1839, representando "... o gênio das Belas Artes
rasgando as espessas nuvens da Ignoráncia e da Rotina, e dando ao Gosto o lugar que elas
usurpavam. A direita vê-se a magnifica entrada da barra do Rio de Janeiro; à esquerda a
Ignorância e a Rotina fogem espavoridas", tudo conforme a descrição do Jornal do Comércio
de 10 de setembro do mesmo ano de 1839.
Desde 1838 professor interino de Desenho do Colégio Pedro II, como substituto do titular
Gonçalves de Magalhães, Porto-alegre permaneceu lecionando na Academia de Belas Artes
até 1848 quando, sentindo-se hostilizado por seus antigos colegas Félix Emile Taunay, Cabral
Teive, José Correia de Lima e Auguste Moreau, solicitou e obteve sua transferência para a
Escola Militar, embora tal transferência implicasse sua passagem de professor catedrático para
substituto. A Reforma Jerônimo Francisco Coelho, ocorrida pouco depois, acabrunhou-o ainda
mais, reduzindo-lhe os vencimentos de maneira substancial e levando-o a solicitar sua
jubilação.
Eleito vereador em 1852, nesse cargo desenvolveu tão ampla e fecunda atividade que ao
deixá-lo recebeu da Câmara um ofício no qual lhe eram agradecidos o zelo e a dedicação com
que desempenhara suas funções. Mais tarde, o Imperador Pedro II solicitava-lhe um esboço de
reforma radical para a Academia Imperial de Belas Artes - o que foi feito, tornando-se Porto-
alegre em 1854 diretor do estabelecimento e implantando efetivamente as idéias que delineara
em seu projeto. Assim, foram criadas novas cadeiras (inclusive a de Desenho Industrial), a
biblioteca passou a funcionar com seu catálogo, foi melhorada a situação financeira dos
professores e se ampliou o edifício da Academia, de modo a poder nele funcionar a pinacoteca,
enquanto era dilatado de três para seis anos o prazo de permanência dos pensionistas na
Europa. Todas essas reformas não se fizeram porém sem reações, desencadeadas
sorrateiramente pelos mesmos desafetos que, alguns anos antes, tinham-no forçado a deixar a
Academia. Imiscuindo-se junto ao Marquês de Olinda, os inimigos de Porto-alegre - Félix
Taunay à frente - dele obtiveram a nomeação de Joaquim Lopes de Barros Cabral Teive para a
Cadeira de Pintura Histórica, à revelia do diretor. Indignado, Porto-alegre solicitou demissão do
seu cargo em setembro de 1857, enviando ao ministro uma carta que é ainda hoje um
documento de grande dignidade:
- Vossa Excelência sabe que, quem combate hábitos de relaxação, não é amado pelos
madraços; e quem é justo, sofre dos que contam com o poderio misterioso do empenho e do
patronato. (... ) Por convicções que nunca renegarei, deixo aquela diretoria com a satisfação
que todo homem de brio encontra no cumprimento de seus deveres e muito mais quando
altamente pugna pela causa da lei, da inteligência e da moral.
Praticando, além da pintura e da arquitetura, a literatura, Porto-alegre publicaria os livros de
poesia Brasiliana (1843), O Caçador (1843), Brasiliana I (1844), O Voador (1844), A Destruição
3. das Florestas (1845), Brasiliana em Três Cantos (1845), O Corcovado (1847) e principalmente
o grande poema épico em mais de 20 mil versos Colombo (1866), bem como algumas peças
de teatro Angélica e Firmino (1845); A Estátua Amazônica (1851); Os Voluntários da Pátria,
(1877) etc., libretos para óperas (O Prestígio da Lei, 1859, música de Francisco Manuel; A
Restauração de Pernambuco, 1852, música de Gianini; A Véspera dos Guararapes, A Noite de
São João, etc.) e traduções de peças (Electra, de Eurípedes, Lucrecia Borgia, de Victor Hugo,
Cristina da Suécia, de Dumas Pai, etc.), ocupando nas letras nacionais um espaço todo
especial, a meio cantinho entre o neoclassicismo de sua mocidade e o romantismo de seus
anos maduros. Homem-tudo, como a ele se referiu Max Fleuiss, deixou publicados nada menos
de 135 trabalhos de literatura propriamente dita, 20 peças teatrais e quatro traduções.
Jornalista, fundou e dirigiu Niterói (com Gonçalves de Magalhães e Torres Homem), Lanterna
Mágica, Minerva Brasiliense e Guanabara, tendo colaborado com freqüência em vários outros,
como o Journal de I'Institut Historique de France, Aurora Fluminense, A Reforma, Revista
Brasileira, Nova Minerva e Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Finalmente,
seja dito que Porto-alegre é o fundador da história e da critica de arte brasileiras, e ainda hoje
podem ser compulsados com proveito seus artigos e memórias sobre arte nacional,
destacando-se "Memória sobre a Antiga Escola Fluminense de Pintura", "Valentim da Fonseca
e Silva", "Francisco Pedro do Amaral" e "Algumas Idéias sobre as Belas Artes e a Indústria no
Império do Brasil", além de diversos artigos sobre música.
Nomeado para a carreira consular em 1859 por Pedro II, Porto-alegre, desiludido da arte e dos
artistas, assume seu posto em Berlim em meados de 1860, sendo transferido em 1862 para
Dresden. Em 1866 foi mais uma vez transferido - agora para Portugal -, falecendo cerca de 13
anos mais tarde na capital portuguesa. Uma de suas filhas, Carlota, casou-se com Pedro
Américo. Seus despojos, trazidos em 1922 para o Brasil, foram transferidos sete anos mais
tarde para Rio Pardo, onde repousam.
Homem de atividades múltiplas e por vezes excludentes, Porto-alegre deixou obra pictórica
pequena e de valor desigual, na qual se destacam retratos, como o de Garret no Cerco do
Porto, feito em 1833, quadros históricos, paisagens, interiores de grutas, alegorias e
cenografias, etc. Não foi rigorosamente falando um grande pintor, mas um excepcional
animador cultural, a quem muito ficaram devendo as artes, as letras e, numa palavra, a cultura
do Brasil.
D. Pedro I, óleo s/ tela, 1826;
1,12 X 0,94, Museu Histórico Nacional, RJ.
Sagração de D. Pedro II, óleo s/ tela, cerca de 1840;
1,10 X 0,80, Museu Histórico Nacional, RJ.