1. CARVALHO, Flávio de Rezende (1899-1973). Nascido em Barra Mansa (RJ) e falecido em
Valinhos (SP). Bisneto dos Barões de Cajuru mas anti-conservador e anti-convencional por
excelência, Flávio de Carvalho teve esmerada educação em França (1911-14) e na Inglaterra,
freqüentando a Universidade de Durham, em New Castle – pela qual se formou em Engenharia
Civil em 1922, ao mesmo tempo em que, à noite, cursava a Escola de Belas Artes da mesma
Universidade. Em 1923 estava em São Paulo, tornando-se calculista, em 1924, da firma de
Ramos de Azevedo. Muito embora tivesse contatado alguns modernistas de 1922, não chegou
a se integrar no grupo, até porque, nesses primeiros anos de fixação em São Paulo, seu
interesse maior era a arquitetura. Mesmo assim, fazia desenhos e caricaturas, a maioria
relacionados com a dança e o balé, além de escrever artigos sobre esses mesmos temas, que
então o empolgavam. A partir de 1927 começam a surgir de sua prancheta riscos
arquitetônicos que se revelariam marcos da moderna arquitetura brasileira: os projetos do
Palácio do Governo do Estado de São Paulo, do Palácio do Congresso, da Embaixada
Argentina no Rio de Janeiro e da Universidade Federal de Minas Gerais, nenhum construído.
Formalmente, mesclavam-se nesses projetos elementos futuristas e expressionistas, além da
marca inconfundível de Le Corbusier.
Aderindo, logo depois, aos postulados antropofágicos de Oswald de Andrade, representaria
esse movimento no Congresso Panamericano de Arquitetos, em 1930, no qual pronunciou
palestras sobre "A Cidade do Homem Nu" e "A Antropofagia do Século XX". Em 1931, ainda
sob a influência da Antropofagia, atravessou na contramão e de chapéu na cabeça uma
procissão de Corpus Christi, negando-se a se descobrir a despeito dos protestos dos fiéis, que
quase o linchavam. Refugiando-se numa leiteria, Flávio foi preso mas logo posto em liberdade,
escrevendo a respeito o livro Experiência nº 2, no qual expõe suas teorias sobre a essência
dos ritos religiosos e sobre o comportamento das multidões, com ilustrações expressionistas de
sua autoria (seja dito de passagem que não se sabe o que terá sido a Experiência n.º 1).
Em 1932 Flávio de Carvalho ganhou o concurso para o Monumento ao Soldado
Constitucionalista e se tornou um dos fundadores do CAM - Clube dos Artistas Modernos, ao
lado de Di Cavalcanti, Carlos Prado e Antonio Gomide. Junto ao Clube funcionava o Teatro da
Experiência, que se propunha ser um laboratório de experiências cênicas e performáticas. A
estranha peça expressionista Bailado do Deus Morto, de sua autoria, foi levada à cena em 15
de novembro de 1933, na inauguração do teatro, o qual no dia seguinte ao da estréia foi
fechado por determinação da polícia, a despeito dos protestos dos intelectuais. A primeira
mostra individual de Flávio, aberta em São Paulo pouco tempo depois, seria também fechada
pela polícia, sendo mais tarde reaberta por determinação da Justiça, com cinco obras
expurgadas, sob a alegação de que atentavam contra a moral.
Em 1934-35 Flávio retornou por alguns meses à Europa, tendo participado, a convite, do
Congresso de Filosofia e Psicotécnica de Praga (República Tcheca), percorrendo em seguida
diversos países. Suas impressões de viagem, publicadas inicialmente na imprensa de São
Paulo, foram mais tarde reunidas no livro Os Ossos do Mundo, editado em 1936.
Durante toda a segunda metade da década de 1930, Flávio continuaria sendo uma das molas
propulsoras do Modernismo em São Paulo, tornando-se um dos principais animadores dos
Salões de Maio de 1937, 1938 e 1939. Particularmente notável foi sua atuação no II e no III
Salões, tendo organizado no âmbito do segundo uma exposição de pintores surrealistas e
abstracionistas ingleses, e preparado para o terceiro um álbum-catálogo-revista, RASM, com
capa metálica e farta colaboração crítica. Paralelamente, continuava sua atividade de arquiteto
- agora, também construtor (grupo de casas da Alameda Lorena, na capital de São Paulo); e,
no meio tempo, patenteava um novo tipo de persiana vertical de alumínio.
Na década de 1940 a atividade de Flávio de Carvalho diminuiu de intensidade. Além da
participação em alguns dos salões anuais do Sindicato dos Artistas Plásticos e da realização
de uma segunda exposição individual, no Museu de Arte de São Paulo, em 1948 (encerrada
também de forma abrupta, após uma conferência sobre a pintura do expositor), o que se
destaca de modo extraordinário nesse longo período é a célebre Série Trágica - Minha Mãe
Morrendo, de 1947 - 32 desenhos a lápis nos quais o artista captou a agonia materna,
documento pungente que bem demonstra como, para Flávio, a arte não era passatempo ou
2. diversão de ocioso, mas aquele autêntico Real Absoluto a que se referiu Novalis. Sobre tais
desenhos, que seriam publicados em álbum em 1967, assim se externou Almeida Sales:
- Não sabendo expressar-se mais profundamente do que por intermédio da sua gagueira de
traços acumulados sobre a folha alva, ousou transformar o quarto da mãe morrendo em ateliê
de registro do estranho fato. Saiu da alcova trágica como um deus que tivesse detido o
processo inexorável da morte. Debaixo do braço, folhas riscadas com carvão guardavam,
indelevelmente, a mais extraordinária fotografia de todos os tempos: os últimos estertores da
vida de uma anciã entrando na morte, fixados pelo homem nascido de suas entranhas.
Em 1950 Flávio de Carvalho integrou a representação brasileira na Bienal de Veneza,
efetuando no ano seguinte sua terceira individual, na Galeria Domus, de São Paulo (pinturas,
aquarelas, desenhos, cerâmicas e projetos arquitetônicos). Também em 1951 tomou parte na I
Bienal de São Paulo e realizou os cenários luminosos para uma sinfonia coreografada de
Camargo Guarnieri. Para o bailado A Cangaceira, do mesmo compositor, executou em 1954
cenografia e figurinos. Intensificando seu trabalho no campo da cenografia, efetuou também
decorações para os bailes carnavalescos do Instituto dos Arquitetos do Brasil - Seção São
Paulo (1953) e do Circo Piolim (1954), entre outros. Não se descuidava, porém, de sua
atividade maior de arquiteto, participando de diversos concursos, se bem que pouco antes de
falecer tivesse desabafado com o jornalista Luís Ernesto Machado Kawall:
- Pode escrever, tenho sido sistematicamente recusado em concursos de arquitetura e outros,
oficiais. Essa gente que julga concorrências não gosta de mim, muitas vezes nem devolve
meus projetos.
Em 1956, tendo tido sua curiosidade atraída para o problema da moda, escreveu uma série de
artigos sob o título geral "A Moda e o Novo Homem", publicados em sua coluna "Casa, Homem
e Paisagem", do Diário de São Paulo. Passando da teoria à prática, mandou executar um novo
traje, por ele idealizado e que, no seu entender, mais se coadunava com um país com as
características do Brasil, desfilando de saiote e blusa de mangas curtas e folgadas pelas ruas e
avenidas de São Paulo, indiferente às reações de espanto ou de indignação dos transeuntes.
Essa sua Experiência nº 3, comentada pela imprensa de todo o país, constituiu autêntico
happening, "um choque emocional na nação".
Em 1957 o júri da Bienal de São Paulo cometeu o erro histórico de cortar o envio do artista;
mas a partir de começos da década de 1960 sua importância como pintor e como desenhista, e
seu papel de precursor da moderna arquitetura nacional começam a ser reconhecidos
unanimemente - inclusive pela própria Bienal, que em 1963 lhe consagra sala especial e o
premia. Por outro lado, alguns jovens artistas apontam-no como um pioneiro, e é assim que é
convidado em 1966 pelos integrantes do Grupo Rex a fazer uma palestra sobre moda na Rex
Gallery. No ano seguinte cresce ainda mais seu prestígio, outorgando-lhe então o júri da IX
Bienal de São Paulo prêmio de aquisição, enquanto o Museu de Arte Brasileira da Fundação
Armando Álvares Penteado organiza a primeira retrospectiva de sua obra.
Os últimos anos de sua carreira viram-no entregue a uma incessante atividade, com a
realização de diversas exposições individuais e a participação em importantes coletivas, como
a XI Bienal de São Paulo (Sala Especial), ou as mostras Semana de 22, no Museu de Arte
Moderna de São Paulo, e 50 Anos de Arquitetura Moderna, no Museu de Arte Moderna do Rio
de Janeiro. Datam também dessa fase final numerosos projetos, como o Monumento a Garcia
Lorca, executado em 1968 e seriamente danificado por vândalos armados de metralhadoras
em julho de 1969, o Monumento à Força Expedicionária Brasileira (1971), a Batalha de
Guararapes (1971), etc.
Flávio de Carvalho morreu a 4 de junho de 1973, pouco depois de ter efetuado em Campinas,
ao lado do pintor J. Toledo, aquela que seria a sua derradeira exposição. Deixou, além das já
mencionadas, mais as seguintes obras publicadas: L'Aspect Psychologique et morbide de l'Art
Moderne (Paris, 1937), Dialética da Moda (Diário de São Paulo, 1956), Notas para a
Reconstrução de um Mundo Perdido (Diário de São Paulo, 1957-1958), e ainda vários outros
artigos publicados na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro. A Bienal de São Paulo de
3. 1983 consagrou-lhe importante retrospectiva, por ocasião do décimo aniversário do seu
desaparecimento.
Em arte, como de resto em tudo o mais, há os que procuram a vida inteira e a qualquer preço
pela originalidade, sem a encontrarem nunca, e inversamente os que a trazem já do berço,
originalidade inata e não buscada, de que impregnam tudo aquilo em que tocam. Flávio de
Rezende Carvalho foi um desses espíritos inovadores e revolucionários, acostumados desde a
mocidade a nunca seguirem caminhos já desbravados, inimigo das soluções fáceis e dos
modelos herdados. E se é fato que existem dois tipos de artistas, os grandes, os que mudam o
rumo dos acontecimentos, e os outros, os que se adaptam comodamente a eles, força é
reconhecer ter sido Flávio artista maior, dos mais notáveis, em verdade, que no Brasil
trabalharam.
Arquiteto, cenógrafo, desenhista, pintor, escritor, Flávio de Carvalho destacou-se em cada uma
dessas atividades, embora a tendência atual, consubstanciada na sala especial a ele
consagrada na Bienal de São Paulo de 1983, seja encará-lo sobretudo como desenhista e
como pintor; e é justamente sua obra gráfica e pictórica que hoje lhe garante a sobrevida, bem
mais do que o vanguardeiro Bailado do Deus Morto, ou a vã tentativa de dotar os brasileiros de
um traje mais condizente com as peculiaridades climáticas do país, ou até mesmo sua pioneira
arquitetura, ou ainda sua admirável atuação como animador cultural, à frente do Clube dos
Artistas Modernos que ajudou a fundar em 1932.
Flávio de Carvalho é um expressionista, isto é, alguém que procura externar uma visão do
mundo observado de dentro, e para tanto capaz de deformar ou reformar a realidade,
reinventar cores e desmontar esquemas tradicionais, levado antes pela emoção do que pelo
raciocínio. Como pintor - basicamente de figuras, com especial predileção pelo retrato -, usou
de absoluta liberdade formal e cromática, indiferente à fidelidade anatômica, à textura das
carnes, ao colorido atmosférico: na busca da expressão, fragmentou freqüentemente o corpo
humano em dezenas de segmentos cromáticos, que se confundem aos segundos planos de
suas pinturas numa ambigüidade deliberada que possui, mais que função decorativa, papel
eminentemente expressivo. A cor torna-se livre - cor pictórica, para além da mera referência às
cores naturais; e toda a superfície de seus quadros vibra de um ritmo diferente, tornando-se a
figura mero pretexto pictórico. Meditando aliás muitas vezes sobre a essência do seu ofício de
desenhista e pintor, Flávio escreveu a respeito páginas de extrema lucidez, dizendo de certa
feita sobre o problema da cor e do assunto:
- O problema do conjunto de cores nada tem a ver com o assunto em pintura. Um conjunto de
cores sem assunto pode ser tão sugestivo, ou mesmo mais, que um conjunto de cores com
assunto. Geralmente, o assunto interfere com o problema das cores. A maior parte dos pintores
quando lida com cores, se esquece da pintura em si para fazer assunto, e é por isso que a
grande maioria da pintura não presta.
Retratista dos maiores que tivemos, num depoimento de 1966 à revista Veja assim se referiu a
esse difícil gênero pictórico, hoje tão desprezado:
- Quando pinto um retrato, me afasto totalmente do mundo em redor e só me preocupo com o
que estou fazendo. O que me interessa no retrato é a expressão fundamental do modelo. A
expressão de uma pessoa muda conforme a hora e o dia: portanto, trata-se de encontrar a
expressão fundamental. É esse algo que a pessoa tem, mas que é percebido por poucos. A
imagem fotográfica nada revela desse algo. É por isso que freqüentemente ao retratado
atributos fisionômicos são acrescentados, que ele mesmo desconhece, mas que existem como
afirmação da personalidade.
E mais adiante, na mesma entrevista:
- O artista de hoje abandonou o retrato porque foi subjugado pela desumanização do mundo e
pelo desprezo que tem por seu semelhante. Assim, não percebe mais que no retrato há um
mundo a descobrir e a aperfeiçoar, não só no que se refere à dialética pura da pintura como no
que toca à importância humana do personagem. O retrato contém tantas possibilidades
4. pictóricas quanto quaisquer dos ismos atuais. Porém, essas possibilidades não são percebidas
pelos artistas de agora e eles se deixam cegar pela falsa dialética dos modismos em voga.
Sem título, nanquim, s/ data;
0,70 X 0,50, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
Retrato de José Lins do Rego, óleo s/ tela, 1948;
0,81 X 0,65, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Figura, óleo s/ tela, 1951;
0,70 X 0,65, Palácio Bandeirantes, SP.