Eugénio de Andrade foi um poeta português nascido em 1923 e falecido em 2005. Foi retratado em várias obras de arte, incluindo pinturas e desenhos. Sua poesia explorava temas como o amor, a natureza, a passagem do tempo e a condição humana.
1. Eugénio de Andrade
(19 de Janeiro de 1923 – 13 de Junho de 2005)
Duplo Retrato, 1980
por Alfredo Cruz (Tinta da China)
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2. PALAVRAS INTERDITAS
Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.
Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir. É preciso ficar.
Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te… E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.
As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.
Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.
E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.
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3. PROCURO-TE
Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.
Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.
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4. Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.
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5. OS OLHOS RASOS DE ÁGUA
Cansado de ser homem o dia inteiro
chego à noite com os olhos rasos de água.
Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,
entrar dentro de ti como num bosque.
É a hora de fazer milagres:
posso ressuscitar os mortos e trazê-los
a este quarto branco e despovoado,
onde entro sempre pela primeira vez,
para falarmos das grandes searas de trigo
afogadas na luz do amanhecer.
Posso prometer uma viagem ao paraíso
a quem se estender ao pé de mim,
ou deixar uma lágrima nos meus olhos
ser a nostalgia das areias.
É a hora de adormecer na tua boca,
como um marinheiro num barco naufragado,
o vento na margem das espigas.
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6. CANÇÃO
Hoje venho dizer-te que nevou
no rosto familiar que te esperava.
Não é nada, meu amor, foi um pássaro,
a casca do tempo que caiu,
uma lágrima, um barco, uma palavra.
Foi apenas mais um dia que passou
entre arcos e arcos de solidão;
a curva dos teus olhos que se fechou,
uma gota de orvalho, uma só gota,
secretamente morta na tua mão.
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7. VEGETAL E SÓ
É outono, desprende-te de mim.
Solta-me os cabelos, potros indomáveis
sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.
Deixa-me o braço direito,
o mais ardente dos meus braços,
o mais azul,
o mais feito para voar.
Devolve-me o rosto de um verão
sem a febre de tantos lábios,
sem nenhum rumor de lágrimas
nas pálpebras acesas.
Deixa-me só, vegetal e só,
correndo como rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.
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8. METAMORFOSES DA PALAVRA
A palavra nasceu:
nos lábios cintila.
Carícia ou aroma,
mal pousa nos dedos.
De ramo em ramo voa,
na luz se derrama.
A morte não existe:
tudo é canto ou chama.
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9. Quartos ao pé do Mar , 1951
Rooms by the Sea – Edward Hopper (1882-1967)
EPITÁFIO PARA UM MARINHEIRO
MORTO QUANDO JOVEM
Perguntam por ti e oiço
a secreta voz da água.
Perguntam por ti e vejo
o perfil azul do mar.
Perguntam por ti e digo:
Acorda e veste-te de branco.
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10. QUASE MADRIGAL
Os anjos que prometes são apenas
o rosto triste dos dias desolados.
Eu não prometo nada, sou alegria.
Aceito os anjos nos beijos que me dás,
pondo rosas nos teus dedos descuidados.
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11. LISBOA
Alguém diz com lentidão:
«Lisboa, sabes…»
Eu sei. É uma rapariga
descalça e leve,
um vento súbito e claro
nos cabelos,
algumas rugas finas
a espreitar-me os olhos,
a solidão aberta
nos lábios e nos dedos,
descendo degraus
e degraus
e degraus até ao rio.
Eu sei. E tu, sabias?
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12. PALAVRAS
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam;
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
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13. À TUA SOMBRA
A terra me sabes,
à luz das manhãs
lisas de verão,
ao calor das pedras
achadas nas dunas.
Apetece cantar
nos gomos, nas luas,
nas colinas breves
do teu corpo nu;
cantar ou correr
na água, na seiva
dos ombros, dos braços,
no azul secreto
da concha das pernas.
Ó sabor eterno,
ó mortal sabor
das fontes da terra,
materno, solar
rumor de alegria:
apetece morrer,
morrer ou cantar.
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14. MÚSICA MIRABILIS
Talvez a ternura
crepite no pulso,
talvez o vento
súbito se levante,
talvez a palavra
atinja o seu cume,
talvez um segredo
chegue ainda a tempo
– e desperte o lume.
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15. CRISTALIZAÇÕES
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Com palavras amo.
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Inclina-te como a rosa
só quando o vento passe.
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Despe-te
como o orvalho
na concha da manhã.
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Ama
como o rio sobe os últimos
degraus
ao encontro do seu leito.
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Como podemos florir
ao peso de tanta luz?
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Estou de passagem:
amo o efémero.
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Onde espero morrer
será manhã ainda?
Cabeça de Bronze, 1964,
por Lagoa Henriques
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16. NATUREZA MORTA COM FRUTOS
Natureza Morta com Maçãs e Laranjas (Óleo sobre tela
Paul Cézanne (1839-1906)
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O sangue matinal das framboesas
escolhe a brancura do linho para amar.
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A manhã cheia de brilhos e doçura
debruça o rosto puro da maçã.
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Na laranja o sol e a lua
dormem de mãos dadas.
4
Cada bago de uva sabe de cor
o nome dos dias todos de verão.
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Nas romãs eu amo
o repouso no coração do lume.
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17. ESCRITO NO MURO
Procura a maravilha.
Onde a luz coalha
e cessa o exílio.
Nos ombros, no dorso,
nos flancos suados.
Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.
Ou a sombra espessa.
Na laranja aberta
à língua do vento.
No brilho redondo
e jovem dos joelhos.
Na noite inclinada
de melancolia.
Procura.
Procura a maravilha.
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18. Banhista Sentada, 1892
Pierre-Auguste Renoir (1841-1919)
OS JOELHOS
Considerai os joelhos com doçura:
vereis a noite arder mas não queimar
a boca onde beijo a beijo foi acesa.
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19. CALCEDÓNIA
Afinal os romanos eram
como eu: amavam
os lugares onde a grandeza
e a solidão
andam de mãos dadas.
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21. ESSA MULHER, DOCE MELANCOLIA
Essa mulher, a doce melancolia
dos seus ombros, canta.
O rumor
da sua voz entra-me pelo sono,
é muito antigo.
Traz o cheiro acidulado
da minha infância chapinhada ao sol.
O corpo leve quase de vidro.
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22. COM O TEMPO, APROXIMAR-SE-ÃO OS RIOS
Com o tempo aproximar-se-ão os rios
e os montes, com o tempo
acabará por te vir comer à mão
e fazer ninho na tua cama
o silêncio
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23. Eugénio de Andrade
por Alfredo Cruz, 1989 (Acrílico)
A CLARIDADE COROA-SE DE CINZA, EU SEI
A claridade coroa-se de cinza, eu sei:
é sempre a tremer que levo o sol à boca.
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24. QUANDO O SER DA LUZ FOR
Quando o ser da luz for
o ser da palavra,
no seu centro arder
e subir com a chama
(ou baixar à água),
Então estarei em casa.
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25. ESTÃO SENTADOS QUASE LADO A LADO
Estão sentados quase lado a lado
no chão à espera que passe um barco,
a luz muito quieta
no regaço
como se fora um gato, o sorriso
antigo, a casa
à beira do crepúsculo
atenta aos passos nas areias;
era outra vez Abril,
chovia no jardim, já não chovia,
um aroma, apenas um aroma,
tornava espesso o ar.
Uma criança me leva rio acima.
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26. Eugénio de Andrade
por Emerenciano - 1988 (Técnica mista)
CARDOS
Este é o lugar onde só o lume
não demora a florir,
onde o verão abdica
de ser metáfora para arder
até ao fim.
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27. O PEQUENO PERSA
É um pequeno persa
azul o gato deste poema.
Como qualquer outro, o meu
amor por esta alminha é materno:
uma carícia minha lambe-lhe o pêlo,
outra põe-lhe o sol entre as patas
ou uma flor à janela.
Com garras e dentes e obstinação
transforma em festa a minha vida.
Quer-se dizer, o que me resta dela.
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29. Andorinha/Amor - 1933/34
Pintura-poema de Joan Miró (1893-1983)
SOU FIEL AO ARDOR
Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos,
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.
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30. ESTOU CONTENTE, NÃO DEVO NADA À VIDA
Estou contente, não devo nada à vida,
e a vida deve-me apenas
dez réis de mel coado.
Estamos quites, assim
o corpo já pode descansar: dia
após dia lavrou, semeou,
também colheu, e até
alguma coisa dissipou, o pobre,
pobríssimo animal,
agora de testículos aposentados.
Um dia destes vou-me estender
debaixo da figueira, aquela
que vi exasperada e só, há muitos anos:
pertenço à mesma raça.
Eugénio de Andrade
Por Emerenciano, 1990 (Tinta da China)
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31. A CHUVA CAI NA POEIRA COMO NO POEMA
A chuva cai na poeira como no poema
de Li Bai. No sul
os dias têm olhos grandes
e redondos; no sul o trigo ondula,
as suas crinas dançam no vento,
são a bandeira
desfraldada da minha embarcação;
no sul a terra cheira a linho branco,
a pão na mesa,
o fulvo ardor da luz invade a água,
caindo na poeira, leve, acesa,
Como no poema.
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32. SOBRE A MESA A FRUTA ARDE: PERAS
Sobre a mesa a fruta arde: peras,
laranjas, maçãs, pressentem
a íntima brancura
dos dentes, o desejo represado,
o espesso vinho de vozes antigas;
arde a melancolia ao inventar
outra cidade,
outro país, outros céus onde lançar
os olhos e o riso: deita-te comigo,
trago-te do mar
a crespa luz da espuma,
nos flancos este amor retido.
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33. ANTES DE SABER
Até onde os dedos tocam o quente
do barro a mão sabe
antes de saber.
É um saber mais vivo, um saber
de ave: águia cegonha falcão,
animais quase no fim
como o lume destes dias.
Testemunhar a favor do lince
é nossa obrigação.
Por ser azul.
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34. A SÍLABA
Toda a manhã procurei uma sílaba.
É pouca coisa, é certo: uma vogal,
uma consoante, quase nada.
Mas faz-me falta. Só eu sei
a falta que me faz.
Por isso a procurei com obstinação.
Só ela me podia defender
do frio de Janeiro, da estiagem
do verão. Uma sílaba.
Uma única sílaba.
A salvação.
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35. A JORGE PEIXINHO
Faltava-te essa música ainda,
a do silêncio, fria de tão nua,
agora para sempre e sempre tua.
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36. DESENHO ANTIGO
Às vezes ia pela tarde
até ao rio.
Os álamos
mesmo em Agosto
quase de bruma.
Por caminhos
de cabras, nem pastor
nem gado.
Só o riso dos rapazes
despindo-se
perto da água
- o sexo exasperado.
O Banho - 1892/93
Paul Cézanne (1839 - 1906)
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37. CANÇÃO DA MÃE DO UM SOLDADO
DE PARTIDA PARA A BÓSNIA
É muito jovem, sem tempo ainda
de ser triste. Demora-se nos meus olhos
enquanto leva a maçã à boca.
Nenhuma fala obscura escurece a tarde,
a cabeleira solta é a sua bandeira;
os pés brancos, irmãos
da chuva de verão, anunciam a paz.
Suplico à estrela da manhã
que lhe guie os passos, agora que partiu;
que tenha em conta a sua ignorância,
não só da morte, também da vida.
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38. A PEQUENA PÁTRIA
A pequena pátria; a do pão;
a da água;
a da ternura, tanta vez
envergonhada;
a de nenhum orgulho nem humildade;
a que não cercava de muros
o jardim nem roubava
aos olhos o desajeitado voo
das cegonhas; a do cheiro quente
e acidulado da urina
dos cavalos; a dos amieiros
à sombra onde aprendi
que o sexo se compartilhava;
a pequena pátria da alma e do estrume
suculento morno mole;
a da flor múltipla e tão amada
do girassol.
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39. OIÇO FALAR
Oiço falar da minha vocação
mendicante, e sorrio. Porque não sei
se tal vocação não é apenas
uma escolha entre riquezas, como Keats
diz ser a poesia.
Desci à rua pensando nisto,
atravessei o jardim, um cão
saltava à minha frente,
louco com as folhas do outono
que principiara, e doiravam o chão. A música,
digamos assim,
a que toda a alma aspira,
quando a alma
aspira a ter do mundo o melhor dele,
corria à minha frente, subia
por certo aos ouvidos de deus
com a ajuda de um cão,
que nem sequer me pertencia.
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40. SÃO COISAS ASSIM
São coisas assim que tornam o coração vulnerável: o
regresso
das cegonhas brancas,
o comboiinho do ramal da Ceira
que parece de corda, as oito linhas
da Canção Nocturna do Viandante
de Goethe que Schubert musicou.
Quem dividiu comigo a alegria
merecia ao menos
que o trouxesse à orvalhada
e limpa terra do poema. Mas também
o poeta escreve direito por linhas
tortas: a poesia é a ficção
da verdade. Não será
a curva apetecida do teu peito
mas os lémures de Madagáscar,
que só vi num filme francês,
o que verdadeiramente me interessa
hoje trazer ao poema.
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41. RILKIANA
De ti e desta nuvem; desta nuvem
branca como voo de pássaro
em manhã de Abril; de ti
e da íntima chama de um fogo
que não consente extinção;
de ti e de mim fazer um só acorde,
um acorde só; para não te perder.
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42. HOMENAGEM A MARK ROTHKO
Mark Rothko (1903-1970)
Amarelo, laranja, limão,
depois o carmim: tudo arde
nas areias
entre as palmeiras e o mar – era verão.
Mas no lugar do teu nome
a terra tem a cor do verde
pensativo, que só a noite
pastoreia leve.
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43. ~~~~~~
“Todas as coisas tombam
e são construídas de novo
E os que as constroem outra vez são
felizes.”
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