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Anthony Giddens
Introdu~ao

Mundo em

descontrole
Tradu9iio de
MARIA LUIZA X. DE A. BORGES

.!
EDITORA
RIO

DE

a

RECORD
JANEIRO

"0 mundo esta numa correria, e esta chegando perto do fim"
- assim falou um.certo arcebispo Wulfstan, num sermao proferido em York, no anode 1014. E facil imaginar os mesmos
sentimentos sendo expressos hoje. Sao as esperan~as e ansiedades de cada periodo uma mera c6pia em carbono das de
epocas anteriores? Ha realmente alguma diferen~a entre 0
mundo em que vivemos no termino do seculo xx e 0 de tempos passados?
Hci razoes fortes e objetivas para se acreditar que estamos
atravessando um perfodo importante de transi~ao hist6rica.
A1em disso, as mudan~as que nos afetam nao estao confinadas
a nenhuma cireado globo, estendendo-se quase por toda parte.
Nossa epoca se desenvolveu sob 0 impacto da ciencia, da
tecnologia e do pensamento racional, que tiveram origem na
Europa dos seculos XVII e XVIII. A cultura industrial ocidental
foi moldada pelo numinismo - pelos escritos de pensadores que
se opunham a influencia da religiao e do dogma e. desejavam
substitu{·los por uma abordagem mais radonal vida pratica.
Os fil6sofos do Iluminismo observavam urn preceito simples mas obviamente muito poderoso. Quanto mais form os
capazes de compreender racionalmente 0 mundo, e a n6s

•

SAO

PAULO
mesmos, mais poderemos moldar a hist6ria para nossos pr6·
prios prop6sitos. Temos de nos libertar dos habitos e precon
ceitos do passado a fim de controlar 0 futuro.
Karl Marx, cujas ideias muito deveram ao pensamento
iluminista, expressou essaconceps;ao em termos muito simples
Temos de compreender a hist6ria, afirmou ele, a fim de fazet
hist6ria. Orientados por essa no~ao, Marx e 0 marxismo rive·
ram vasta influencia sobre 0 seculo XX.
Seglindoessa concep~ao, C:Ql!t<>maiQt desenvolvimento da
ciencia e da tecnologia 0 mundo iria se tomar mais estavel e
ordenado. Ate muitos pensadores que se opunham a Marx acei
taram essa ideia. 0 romancista George Orwell, por exemplo,
anteviu uma sociedade com excessiva estabilidade t~
previsibilidade - em que nos tornarfamos todos minusculoi!l
dentes de engrenagem numa vasta maquina social e economi·
ca. 0 mesmo fizeram muitos pertsadores sociais, como 0 fa··
moso soci610go alemao Max Weber •..
o mundo em que nos encontramos hoje, no entanto, nao
se parece muito. com 0 que eles previram. Em vez de estar cada
vez mais sob nosso comando, parece urn mundo em descon·
trole. Alem disso, algumas das influencias que, supunha-se all·
tes, iriam tomar a vida mais segura e previsfvel para n6s, entre
elas 0 progresso da ciencia e da tecnologia, tiveram muitas ve·
zes 0 efeito totalmente oposto. A mudan~a do clima global e
os riscos que a acompanham, por exemplo, resultam provavel~,
mente de nossa interven~ao no ambiente, Nao sao fenomeno~
naturais. A ciencia e a tecnologia estao inevitavelmente envol·
vidas em nossas tentarivas de fazer face a esses riscos, mas tam·
hem contribufram para cria-Ios.
. Deparamos situa~oes de risco que ninguem teve de enfrep"
tar na hist6ria passada - das quais 0 aquecimento global

e

apenas uma. Muitos dos novos riscos e incertezas nos afetam
onde quer que vivamos, nao importa qUaDprivilegiados ou carentes sejamos. Eles estao inextricavelmente
ligados a
globaliza~ao, esse pacote de mudan~as que e 0 assunto de todo
este livro. A ciencia e a tecnologia tomaram-se elas pr6prias
globalizadas. Calculou-se que 0 numero de cienristas que trabalham no mundo e maior hoje do que antes em toda a hist6ria da
ciencia. Mas a globaliza~ao tern tambem uma diversidade de
outras dimens6es. Ela poe em jogo outras formas de risco e incerteza, especialmente aqueIas envolvidasna economia eletronica global - ela pr6pria urn desenvolvimento muito recente.
o risco esta estreitamente associado ,a inova~ao. Nem sempre
cabe minimiza-Io; a uniao ativa dos riscos financeiro e empresarial e a for~a propulsora mesma da economia globalizante.
Que e a globaliza~ao, e se ela representa alguma novidade,
sa() foco de intenso debate. Discuto essa polemica no Capitulo'
1, ja que muitas outras coisas dependem dela. No entanto, os
fatos da questao estao realmente bastante daros. A globaliza~ao
esta reestruturando 0, modo como vivemos, e de uma maneira
muito profunda. Ela e conduzida peIo Ocidente, carrega a forte marca do pader politico e economico americano e e extremamente desigual em suas conseqiiencias. Mas a globaliza~ao
nao e apenas 0 dominio do Ocidente sobre os demais; afeta os
Estados Unidos tanto quanto outros paises.
Alem disso, a globaliza~ao influencia a vida cotidiana tanto
quanto eventos que ocorrem numa escala global. E por isso que
este livro inclui uma extensa discussao sobre sexualidade, casamento e a familia. Na maior parte do mundo, as mulheres
estao reivindicando mais autonomia que no passado e ingress$ldo na for~a de trabalho em grandes numeros. Esses aspec-

tos da globaliza~ao ~a'opelo menos tao importantes quanto os
que tern lugar no mercado global. Eles contribuem para 0
estresse e as tens6es que afetam os modos de vida e as culturas
tradicionais na maior parte das regi6es do mundo. A familia
tradicional esta amea~ada, esta mudando, e vai mudar muito
mais. Outras tradi~6es, como as associadas a religiao, estao tambem passando por transforma~6es de vulto ..Qfundamentalismo
tern origem num mundo de tradi~6es que se esboroam.
0 campo de batalha do seculo XXI ira opor 0 fundamentalismo a tolerancia cosmopolita. Num mundo globalizante, em
que informa~ao e imagens sac ~otineiramente transmitidas atrayeS do mundo, estamos todos regularmente em contato com
outros que pensam, e vivem, de maneira diferente de nos. Os
cosmopolitas acolhem essa complexidade cultural com satisfa·
~ao e a abra~am. Os fundamentalistas a veem como perturbad ora e perigosa. Seja nos campos da religiao, da identidade
etnica ou do nacionalismo, eles se refugiam numa tradi~ao renovada e purificada - e, com mui.ta freqiiencia,na violencia.
.. Podemos legitimamente alimentar a esperan~a de que uma
~
perspectiva cosmopolita acabara por veneer. Tolerancia a &
versidade cultural e democracia estao estreitamente vinculadas~
e a democracia esta atualmente se espalhandopor todo 0 mun·
do. A globaliza~ao esta por tras da expansao da democrada.
Ao mesmo tempo, paradoxalmente, ela exp6e os limites dal
estruturas democraticas mais conhecidas, isto e, as estrutural
da democracia parlamentar. Precisamos democratizar mais as
institui~6es existentes, e faze-Io de modo a atender as exigen,.
cias da era global. Nunca seremos capazes de nos tornar os
senhores de nossa propria historia, mas podemos e devemos
encontrar meios de tomar as redeas do nosso mundo em des,.
controle.

Globaliza~ao

Vma amiga minha estuda a vida aldea na Africa central. Alguns anos atras, ela fez sua primeira visita a area remota onde
devia realizar seu trabalho de campo. No dia em que chegou, foi convidada para urn divertimento noturno numa casa
do lugar. Esperava travar conhecimento com os passatempos tradicionais daquela comunidade. Emvez disso, constatou que se tratava de assistir a Instinto selvagem em video.
Naquela epoca, 0 fHme nem sequer tinha chegado aos cinemas de Londres.
Historias como esta revelam alguma coisa sobre 0 nosso
mundo. Eo que revelam nao e sem importancia. Nao e apenas
uma questao de pessoas acrescentando uma parafernaIia moderna - videos, aparelhos de televisao, computadores pessoais e assim por diante - a seus modos de vida preexistentes.
Vivemos num mundo de transforma~6es, que afetam quase
todos os aspectos do que fazemos. Para hem ou para mal,
estamos sendo impelidos rump a uma ordem global que ninguem compreende plenamente mas cujosefeitos se fazem sen-

tir sobre todos nos.
Globaliza~ao pode nao ser uma palavra particularmente
atraente ou e1egante. Mas absolutamente ninguem que queira
compreender nossas perspectivas no final do seculo pode
ignora-Ia. Viajo muito para falar no exterior. Nao estive em urn
unico pais recentemente em que a globaliza~ao nao esteja sendo
intensamente discutida. Na Fran~a, a palavra e mondialisation.
Na Espanha e na America Latina, globalizaci6n. Os alemaes
dizem Globalisierung.
A difusao global do termo e indicadora dos pr6prios desenvolvimentos a que ele se refere. Todo guru dos neg6cios fala
sobre e1e. Nenhum discurso politico e completo sem referencia a ele. No entanto, ate 0 final da decada de 1980 0 termo
quase nao era usado, seja na:literatura.academica ou nalinguagem cotidiana. Surgiu de lugar nenhum para estar em, quase
toda parte.
Dada sua subita popularidade, nao nos deveria surpreender que 0 significado do conceito nem sempre seja claro, ou
que ele tenha provocado uma rea~ao intelectuaI.
A
globaliza~ao tern algo a ver com a tese de que agora vivemos
todos num unico mundo - mas exatamente de que maneira,
e e essa ideia realmente valida? Diferentes pensadores adotaram opinioes quase diametralmente
opostas sobre a
globaliza~ao em debates que pipocaram ao loilgo dos ultimos
anos. Alguns questionam tudoo que se refere a ela. Eu os
chamarei de ceticos.
Segundo os ceticos, toda a conversa em torno da globaliza~ao nao passa disso - e mera conversa. Sejam quais forem
seus beneficios, seus percal~os e tribula~oes, a econol11iaglobal nao e especialmente diferente da que existiu em perfod08
anteriores. 0 mundo continua muito parecido com 0 que foi
por muitos anos.

A maioria dos paises, argumentam os ceticos, aufere apenas umapequena parcela de sua receita do comercio exterior.
Alem disso, boa parte do intercambio econ6mico se da entre
regioes, nao num ambito verdadeiramente mundial. Os paises
da Uniao Europeia, pot exemplo, comerciam prineipaimente
entre eles mesmos. 0 mesmo pode ser dito dos outros blocos
comerciais importantes, como os da Asia-Pacffico ou da America do Norte.
Outros assumem uma posi~ao muito diversa. Eu os chamarei de radicais. Os radicais sustentarn nao s6 que a globaliza~ao
e muito real, como que suas conseqiiencias podem ser sentidas
em toda parte. 0 mercado global, dizem eles, esta muito mais
desenvolvido do que mesmo nas decadas de 1960e 1970 e e
indiferente a fronteiras nacionais. As na~oes perderam a maior
parte da soberania que possufam outrora, e os politicos perderam a maior parte de sua capacidade de influenciar os eventos.
Nao e de surpreender que ninguem mais respeite lideres politicos, ou tenha muito interesse no que eles possam ter a dizer.
A.~~~.~~
e~taclQ~l1a~aQesta
encerrad<l.1'~.g<ls6es,.como 0 ex~1/
p~~.~SQuKeni~hi.Ohmae,.es<:dXQrj<lpones tk~adeIleg6-dos,
da
~~~E!1<lram-se as "fiq:qes~'..ES.critores como Ohmae veem as
mer
dificui(i~d~;~cc;n6mi~~ dacriseasiaticage
1998 como demonstra~6es da realidade da globaliza~ao, ainda que vista sob
seu aspecto destrutivo. }
Os ceticos tend em a se situar na esquerda polftica, sobretudo
na velha esquerda. Pois, se tudo isso for essencialmente urn mito,
os governos continuam capazes de controlar a vida econ6mica
e o,.1:!!elfare
state permanece intacto. A nQ~iiQde glopaliza!;aol~'
segundo os ceticos, e uma ideologia espalhada por adeptos do
livre mercado que desejam demolir sistemas deprevidencia
social ereduzir despesas do Estado. 0 que aconteceu e no
maximo uma reversao ao modo como 0 mundo era urn seculo
atras. No final do seculo XIX ja havia uma economia global
aberta, com consideravel quantidade de comercio, inclusive
comercio de moedas.
Na nova economia e1etronica global, administradores de
fund os, bancos, empresas, assim como milhoes de investidores
individuais, podem transferir vastas quantidades de capital <lie
urn lado do mundo para outro ao clique de urn mouse. Ao faze·
10, podem desestabilizar economias que pareciam de inaballvel solidez - como aconteceu na Asia.
o volume das transa~oes financeiras mundiais e geralmellte medido em d6lares norte-american os. Urn' milhao de d61ares e muito dinheiro para a maioria das pessoas. Medidos na
forma de uma pilha de cedulas de cern d61ares, teriam mais de
vinte centfmetros de altura. Urn bilhao de d61ares - em ou·
tras palavras, mil milhoes - formariam uma pilhamais altla
que a catedral de Saint Paul. A pilha de urn trilhao de dolare.s
- urn milhao de mil hoes - teria maisde 193 quilometros de
altura, vinte vezes mais que 0 monte Everest.
Contudo, muito mais que urn trilhao de dol ares saD atualmente movimentados a cada dia nos mercados globais demoedas. Isso ja representa urn enorme aurnento em re1a~ao ao final da decada de 1980, que dira a urn passado mais distante. 0
valor de qualquer dinheiro que possamos ter no bolso, ou em
nossas contas bancarias, altera-se de urn momenta para outro
segundo flutua~oes ocorridas nesses mercados.
Eu nao hesitaria, portanto, em dizer que a globaliza~ao, tal
como a estamos experimentando, e sob muitos aspectos nao
s6 nova, mas tambem revolucionaria. Na.o acredito, porem,que
nem os ceticos nem os radicais tenham compreendido correta·
mente nem 0 que ela nem suas implicag5es para nos. Ambo!!!

e,

os grupos veem 0 fenomeno quase exc1usivamente em termos,
economicos. Isso e urn erro. A globaliza~ao e polftica,l"l //
tecnol6gica e cultural, tanto quanto economica. Foi influenci- y.,
ada acima de tudo por desenvolvimentosnos sistemas de co- J
munica~ao que remontam apenasao final da decada de 1960.
Em meados do seculo XIX, umpintor
de retratos de
Massachusetts, Samuel Morse, transmitiu a primeira mensagem,
"Qualfoi a obra de Deus?", por telegrafo e1etrico. Ao faz~-lo,
deu inicio a uma nova fase na hist6riadomundo.
Nunca antes
uma mensagem puder a ser enviada semque alguem a transportasse ate algum lugar. Contudo, 0 advento das comunica~oes por satelite marca uma ruptura com 0 passado igualmente drastica. 0 primeiro satelite comercial foi langado apenas
em 1969. Agora ha mais de duzentos desses satelites sobre a
Terra, cada urn transmitindo uma vasta amplitude de informagao. Pela primeira vez, a comunica~ao instantanea de urn lado
a outro do mundo e possive!. Outros tipos- de comunicagao
eletronica, cada vez mais integrados a transmissao por satelite,
tambem se aceleraram durante os ultimos anos. Ate 0 final da;
decada de 1950 nao existia nenhum cabo transatlantico ou
transpacifico exclusivo. Os primeiros comportavam menos de
cern canais de voz. Os de hoje conduzem mais de urn milhao.
No dia 1° de fevereiro de 1999, cercade 150 anos depois
que Morse inventou seu sistema de pontos e tragos, 0 c6digo
Morse finalmente desapareceu da cena mundial. Deixou de ser
usado como meio de comunicagao para 0 mar. Em seu lugar
foi introduzido urn sistema que utiliza tecnologiade satelite,
pe10 qual qualquer embarca~ao em dificuldade pode ser predsamente localizada de imediato. A maioria dos proses se preparou para a transigao algum tempo antes. Os franceses, por exemplo, deixaram de usar 0 c6digo Morse em suas aguas locais em
1997, anunciando 0 fim da ultima transmissao com urn floreio
gaules: "Chamada geral. Este enosso ultimo brado antes de
nosso silencio eterno."
A comunica~ao eletr6nica instantanea nao e apenas urn meio
pelo qual noticias ou informa~6es sac transmitidas mais rapidamente. Sua existencia altera a pr6pria estrutura de nossas
vidas, quer sejamos ricos ou pobres. Quando a imagem de Nelson Mandela pode ser mais familiar para n6s que 0 rosto do
nosso vizinho de porta, alguma coisa mudou na natureza da
". experiencia cotidiana.
Nelson Mandela e uma celebridade global, e a pr6pria ce,_
lebridade e em grande parte urn produto da nova tecnologia
c:"
~tas comunica~oes. 0 alc~ce das_tecnologias de m~d~aesra cresy 'cendo com cada onda de mova~ao. Foram necessarlOS quaren'1 ta anos para que 0 radio atingisse nos Estados Unidos uma au,~ i diencia de SO milh6es. 0 mesmo mlmero de pessoas estava
r:: usando computadores apenas lS anos ap6s a introdu~aodesII' f sas maquinas. Depois que a Internet se tornou disponivel, fo" , ram necessarios meros quatro anos para que SO milh6es de
 americanos a estivessem usando regularmente.
, E errado pensar que a globaliza~~o afeta unicamente os
gran des sistemas, como a ordem financeira mundial. A
globaliza~ao nao diz respeito apenas ao que esta "Ia fora' afas·
, tado e muito distante do individuo. E tambem urn fen6meno
que se da "aqui dentro", influenciando aspectos intimos e pes.,
; ii~OaiS nossas vidas. 0 debate sabre valores familiares que esta
de
',e desenvolvendo em varios pafses, por exemplo, poderia pa· '

I

~ec~r muito dis~~cia~o de in~~encias globalizantes. Mas nao
e. SIstemas tradiClOnaISde familIa estao come~ando a ser trans1formados, ou estao sob tensao,especialmente a medida que as
; mulheres reivindicam maior igualdade. Ate ~nde sabemos pelo

registro hist6rico,jamais houve antes uma .sociedade em que
as mulheres fossem sequer aproximadamente iguais aos homens. Esta e uma revolu~ao verdadeiramente global da vida
cotidiana, cujas conseqiiencias estao sendo sentidas no mundo
todo, em esferas que VaGdo trabalho' a politica.
A globaliza~ao nao e portanto um processo singular, mas
um conjunto complexo de processos. E estes operam de uma
maneira contradit6ria au antag6nica. A maioria das pessoas
pensa que a globaliza~ao esta simplesmente "retirando" poder
ou influencia de comunidades locais e na~6es para transferi-Io
para a arena global. E realmente esta e uma de suas conseqiiencias. As na~6es perdem de fato parte do poder econ6mico
que antes possufam. Contudo, ela tern tambem 0 efeito oposto. A globaliza~ao nao somente puxa para cima, mas tambem
empurra para baixo, criando novas press6es por autonomia
local. 0 soci610go americano Daniel Bell descreve isso muito
bem quando diz que a na~ao se torna nao s6 pequena demais
para resolver os grandes problemas, como tambem grande demais para resolver os pequenos.
A globaliza~ao e a razao do ressurgimento de identidades
culturais locais em varias partes do mundo. Se alguem pergunta, por exemplo, por que os escoceses querem mais independencia no Reino Unido, ou por que ha um forte movimento
separatista em Quebec, nao podera encontrar a resposta apenas na hist6ria cultural deles. Nacionalismos locais brotam
como uma resposta a tendencias globalizantes, a medida que 0
dominio de estados nacionais mais antigos enfraquece.
A globaliza~ao pressiona tambem para os lados. Crianovas
zonas econ6micas e culturais dentro e an-aves das na~6es. Exem:pIos sao a regUia de Horig Kong, 0 norte da ItaIia e 0 Vale dQ
Silicio naCalif6rnia. Ou considere aregHio de Barcelona. A area
em torno de Barcelona, no norte da Espanha, se estende pela
Fran~a. A Catalunha, .onde Barcelona se situa, esta estreitamente
integrada a Uniao Europeia.Eparte
da Espanha, no entanto
olha tambem para fora.
Essas mudan~as estao sendo impelidas por uma serie de
fatores, algunsestruturais, outros mais especfficos e hist6ricos.
Influencias economicas estao certamente entre as for~as propulsoras - especialmente o sistema financeiro global. Elas nao
SaD, contudo, como for~as da natureza. Foram moldadas pda
tecnologia e pela difusao cultural, assim como pelas decisoes
tomadas pelos governos para liberalizar e desregulamentar suas
economias nacionais.
o colapso do comunismo sovietico deu maior peso a esses
desenvolvimentos, uma vez quenenhum grupo expressivo de
paises permanece fora de1es._
Esse colapso nao foi apenas alga
que simplesmente aconteceu. A globaliza~ao explicatanto por
que quanta como 0 comunismosovietico acabou. Aex·Uniao
Sovietica e os paises da Europa oriental tinham taxas de crescimento companiveis as' dos paises ocidentais ate por volta do
inicio da decada de 1970. Dessa altura em diante, passaram a
ficar rapidamente para tras. 0 comunismo sovietico, com sua
enfase na.empresa dirigida pelo Estado e na industria pesada
nao podia competir na economia eletronica global.-De maneira semelhante, 0 controle ideol6gico e cultural em que a autoridade polftica comunista se baseava nao podia sobreviver numa
era de mfdia global.
Os regimes sovietico e.da Europa oriental foram incapazes
de evitar a recep!Jao de transmissoes ocidentais de radio e televisao. A televisao desempenhou urn pape! direto nas revolu~oes de 1989, que foram corretamente chamadas de asprimei.
ras "revolu!Joes da televisao". Protestos de-rua que ocorriam

num lugar eram assistidos em outrospor publicos de televisao,
grande parte dos quais ia tambem para as ruas.
Evidentemente, a globaliza!Jao nao esta se desenvolvendo
de uma maneira eqUitativa, e esta longe de ser inteiramente
rbenefica em suas conseqUencias. Para muitos que vivem fora
da Europa e da America do Norte, ela tern a desagradavel aparencia de uma ocidentaliza!Jao - ou, talvez, de uma americaniza!Jao, uma vez que os EVA saDagora a unica superpotencia,
com uma posi!Jao economica, cultural e militardominante na
ordem global. Muitas das expressoes culturais mais visiveis da
globaliza!Jao SaDamericanas - Coca-Cola, McDonald's, CNN.
A maioria das empresas multinacionais gigantes e tambem
sediada nos EVA. Todas as que nao saD vem de palses ricos,
nao das areas mais pobres do mundo. Vma visao pessimista da
globaliza!Jao a consideraria em grande parte urn neg6cio do
Norte industrializado, em que as sociedades em desenvolvimento do SuI tern pouco ou nenhum papel ativo. Ela estaria destruindo culturas locais, ampliando desigualdades mundiais e
piorando a sorte dos empobrecidos. A globaliza!Jao, sustentam;
alguns, cria urn mundo de vencedores e perdedores, urn peque-,~"'"
no numero na via expressa para a prosperidade, a maioria con- .i
denada a uma vida de miseria e desesperan!Ja.
De fato, as estatisticas saD desalentadoras. A participa!Jao
da quinta parte maispobredapopula!Jaodo
mundona renda
global caiu de 2,3% para 1,4% entre 1989 e 1998. Apropor~~()apropriada pela qllintaparte mais rica, por outrolado, su,,·,
biu. Na Africa subsaariana, vinte pafses tern renda per capita
em termos reais mais baixa que no finaldadecada.de ..1970.
Em muitos paises menos desenvolvidos, regulamenta~oes de
seguran!Ja e de preserva~ao do meio ambiente sac pratic;amente inexistentes. Algumas empresas transnacionais vendem ali
/,
produtos controlados ou proibidos nos paises industrializados
:,_ medicamentos de baixa qualidade, pesticidas destrutivosou
i
.cigarros com elevado teor dealcatrao e nicotina. Seria possivel
dizer que isso pareee menos uma aldeia global que uma pilha" 'gem global.
Ao lado do risco ecologicb, a que esta ligada, a crescente
desigualdade e 0 problema mais serio com que a sociedade global se defronta. Nao adiapta, porem, simplesmente lan~ar' a
culpa sobre os ricos. E fundamental na minha argumenta~a() a
ideia de que a globaliza~ao hoje e apenas parcialmente uma
ocidentaliza~ao. E claro que as na~6es ocidentais, ede modo
mais geral os paises industrializados, ainda tern uma influencia
muito maior sobre os negocios mundiais que os estados mais
pobres. Mas a globaliza~ao estase tomando cada vez mais descentralizada - nao submetida ao controle de nenhum grupo
de na~6es, e menos ainda das gran des empresas. Seus efeitos
saD sentidos tanto nos paises ocidentais quanto em qualquer
outro lugar.
'
Isto se aplica ao sistema financeiro global e a mudan~as que
afetam a natureza do)propriogovemo. 0 que poderiamos chamar de "eoloniza~ao inversa"esta se tomando cada vez mais
comum:C6Ioiiiza~ao inv~rsa significa que pais~$D_~Q::(lcident!1ris
influenciam desenv()lvime-ntQ$DO. Ocidente: Os exemplos sio
muitos·--' comoa.latiniza~ao de Los Angeles, a emergenciaJ.i~ _
urn setor de alta tecnologia glob~mente' orientado
fndia, ou
a venda de programas de tdevisacfhtasIldrps para Portugal.
E a globaliza~ao uma for~a que promove -ob~~geral? A
questao nao pode ser respondida de uma maneira simples, dada
a complexidade do fenomeno. As pessoas que a formulam, e que
aeusam a globaliza~ao de estar aprofundando as desigualdades
mundiais, tern em mente em geral a globa1iza~ao economica e,

na

dentro disso, 0 livre comercio. Ora, e sem duvida obvio que 0
livre comercio nao e urn beneficio absoluto. Isso e especialmente
verdade no que dizrespeito aos paises menos desenvolvidos. A
aberturade urn pais, ou de uma regiao de urn pais, ao livre
comercio pode solapar uma economia local de subsistencia.
Uma area que se torna dependente de urn pequeno numero de
produtos vendidos em mercados mundiais fica muiro vulneravel tanto a altera~6es nos pre~os quanta a mudan~a tecnologica.
Tal como outras formas de desenvolvimento economico, 0
comercio sempre requer uma estrutura de institui~6es. Nao e
'possivel criar mercados por meios puramente economieos e 0
grau em que dada economia deveria ser exposta ao mercado
mundial depende de uma serie de criterios. No entanto, resistir a globaliza~ao economica, optando pelo protecionismo ceonomico, seria uma tatica equivocada tanto para as na~6es ricas
quanto para as pobres. 0 protecionismo pode ser uma estrategia necessaria em alguns momentos e em alguns paises. Na
minha opiniao, por exemplo, a Malasia estava certa quando,
em 1998, introduziu controles para conter a saida de capitais
do pais. Formas mais permanentes de protecionismo, porem,
nao favorececao 0 desenvolvimento dos paises pobres, e entre
os ricos levariam a blocos de comercio conflitantes.
Os debates sobre a globaliza~ao que mencionei no inicio se
concentraram sobretudo em suas implica~6espara 0 estadona~ao. Sao ainda poderosos os estados-na~6es, e portanto os
lfderes polfticos nacionais, ou estao se tomando em grande parte
irre1evantes para as for~as que moldam 0 mundo? Na verdade
estados-na~6es continuam poderosos e os lideres politicos tern
urn grande papd a desempenhar no mundo. Contudo, ao mesmo tempo 0 estado·na~ao esta sendo transform ado ante nossos
olhos.A politica economica nacional ja nao pode ser tao eficaz
quanta no passado. E, 0 que e roais importante, as na~oes tem
de repensar suas identidades agora que as formas mais antig3i
degeopoHtica estao se tornando obsoletas.Embora esta sej.
uma ideia controversa, eu diriaque,ap6s adissolu~ao da guetw
ra fria, a maioria das na~oes nao tern mais inimigos. Quem SaG
os inimigos da Gra-Bretanha, ouda Fran~a, ou do Brasil? A
guerra em Kosovo nao lan~ou na~ao contra na~ao. Foi urn con~·
flito entre 0 nacionalismo territorial de estilo antigo e urn novo
intervencionismo, de inspira~ao·etica.
As na~oes enfrentam hoje antes riscos e perigos que inimi"
gos, 0 que representa uma enorme transformalrao em sua pr6,.
pria natureza. Estes .comentarios nao se aplicam somente as na··
lr0es. Para onde quer que olhemos, vemos instituilroesque, de
fora, parecem as mesmas de sempre, e exibem os mesmos nomes, mas que por dentro se tornaram muito diferentes. Conti··
nuamos a falar da nalrao, da familia, do trabalho, da tradi~o, da
natureza, como se todos continuassem iguais ao que foram no
passado. Nao continuam. A casca permanece, mas por dentro
eles mudaram - e isto esm ac'ontecendo nao s6 nos EUA, na
Gra-Bretanha ou na Fran~ mas em quase toda parte. Sao o que:
chamamos "institui~oes-casca"ihstitui~oes que se tornaram
inadequadas para as fun!roes que sao chamadas a desempenhar ..
A medida que ganham for~a, as mudan~quedescrevi nes·
te capitulo estao criando algo que nunca existiu antes, uma socie·
dade cosmopolita global. Somos a primeira gera!rao a vivernes·
sa sociedade, cujos contornos ate agora s6podemos perceber
indistintamente. Ela esta sacudindo nosso modo de vida atual
nao importa 0 que sejamos. Nao se trata - pelo menos no mo·
mento - de uma ordem global conduzida por uma vontade hu·
mana coletiva. Ao contrario, e1aesta emergindo de umamanei·
ra anaxquica, fortuita, trazida por uma misttlra de influencias.
j

Ela nao e firme nemsegura, mas repleta de ansiedades, bem
como marcada por pro fund as divisoes. Muitos de n6s nos sentimos presos as garras de for~as sobre as quais nao temos poder. Podemos sujeita-Ias novamente a nossa vontade? Acredito
que sim. A impotencia que experimentamos nao e urn sinal de
deficiencias individuais, mas reflete a incapacidade de nossas
institui~oes. Precisamos reconstruir as que temos, ou criar novas. Pois a globaliza~ao nao e urn acidente em nossas vidas hoje.
E uma mudan~a de nossas pr6prias circunstancias de vida. E 0
modo como vivemos agora.
Julho de 1998 foi possivelmente 0 mes mais quente na hist6ria do
mundo e 1998, como urn todo, talvez tenha sido 0 ano mais qucnte. Ondas de calor causaram devasta~ao em muitas areas do hcmisferio norte. Em Eilat, em Israel, as temperaturas se elcvaram a
quase 46° C, enquanto 0 consumo de agua no pais se elevou em
40%. 0 Texas, nos Estados Unidos, experimentou temperaturas
nao muito inferiores a essa. Em todos os oito primeiros meses do
ano a temperatura recorde para aquele mes foi superada. Pouco
tempo depois, no entanto, em algumas das areas afetadas pelas
ondas de calor, nevou em lugares onde isso nunca ocorrera.
Secao altera~6es de temperatura como estas resultado da
interferencia humana no clima do planeta? Nao podemos saber ao certo, mas temos de admitir a possibilidade de que sejam, como tambem 0 crescente mlmero de furac6es, tuf6es e
tempestades registrado nbs ultimos anos. Em conseqiiencia do
desenvolvimento industrial global, talvez tenhamos alter ado 0
clima do mundo, alem de ter danificado uma parte muito maior
de nosso habitat terrestre. Nao sabemos que outras mudan~as
vicao, ou que perigos e1astrarao em sua esteira.
Podemos compreender essas questoes dizendo que elas es·
tao ligadas a risco. Tenho a esperan~a de convence-Ios de que
esta concep~ao aparentemente simples desvenda algumas das
caracteristicas mais fundamentais do mundo em que vivemos
agora.
A primeira vista, 0 conceito de risco pode parecer destitu·
fdo de qualquer relevancia especffica para os nossos tempos em
rela~ao a epocas anteriores. Afinal, nao for am as pessoas sem"
pre obrigadas a enfrentar sua razoavel parcela de riscos? A vida
para a maioria na Idade Media europeia era penosa, brutal e
curta - como e hoje para muitos nas areas mais pobres do
mundo.
Deparamo-nos aqui, porem, com algo realmente interes
sante. Salvo por alguns contextos marginais, na Idade Medh.
nao havia nenhum conceito de risco. Ele tampouco existia
ate onde pude apurar, na maior parte das demais culturas tra·
dicionais. A ideia de risco parece ter se estabeIecido nos secu
los XVI e XVII, e foi originalmente cunhada por explorado·
res ocidentais ao partir em para suas viagens pelo mundo.A
palavra "risk" parece ter se introduzido no ingles atraves do
espanhol ou do portugues, lfnguas em que era usada para
designar a navega~ao rumo a aguas nao cartografadas. Em
outras palavras, original mente e1a possuia uma orienta~ao
espadal. Mais tarde, passou a ser transferida para 0 tempo,
tal como usada em transa~oes bancarias e de investimento)
para designar 0 caIculo das conseqtiencias provaveisde deci·
soes de investimento para os que emprestavam e os que con·
traiam emprestimos. Mais tarde passou a designar umaam·
pIa esfera de outras situa~oes de incerteza. Nao se pode dizer
que uma pessoa esta correndo urn risco quando urn resultado
e 1000/0 certo.
j

•

Uma velha piada eludda muito bem essa ideia. Urn horn em
salta do alto de urn arranha-ceu de cern andares. A medida que
vai passando pel os vcirios andares, na sua descida, as pessoas
dentro do predio 0 ouvem dizer: "ate agora, tudo bem", "ate
agora, tudo bem" ... Ele age como se estivesse fazendo urn ca!culo de risco, mas 0 resultado esta de fato determinado.
As culturas tradicionais nao tinham urn conceito de.risco
porque nao precisavam disso. Risco nao e 0 mesmo que infortt1nio ou perigo. Risco se refere a infortt1nios ativamente avaliados em rela~ao a possibilidades futuras. A palavra s6 passa a
ser amplamente utilizada em sociedadesorientadas para 0 futuro - que veem 0 futuro precisamente como urn territ6rio a
ser conquistado ou colonizado~ 0 conceito de risco pressup6c
uma sociedade que tenta ativamente romper com seu passado
- de fato, a caracterfstica primordial da civiliza~ao industrial
moderna.
Todas as culturas anteriores, entre as quais as primeiras grandes civiliza~oes do mundo, como Roma, ou a China tradicional, viveram sobretudo no passado. Usavam as ideias de destino, sorte ou a vontade dos deuses onde agora tendemos a usar
risco. Nas culturas tradicionais, se alguem sofre urn infortt1nio,
ou, ao contrario, prospera:"'" bem, essas coisas acontecem, ou
esse era 0 designio dos deuses e dos espiritos. Algumas culturas negaram por completo a ideia de acontecimentos casuais.
Os azandes, uma tribo africana, acreditam que 0 informnio que
se abate sobre alguem e resultado de feiti~aria. Uma pessoa adoece, por exemplo, porque urn inimigo andou praticando magia negra.
E claro que essas ideias nao desaparecem completamente
com a moderniza~a6. No~oes magicas, conceitos de destino e
cosmologia ainda tern influencia. Mas com freqtiencia elas
perseveram como supersti~oes em que so se acreditapela metade e que se segue com certoembara~o. As pessoas as usam
para respaldar suas decisoes de uma natureza mais calculista.
A maioria dos jog adores, e isso inclui os que jogam na bolsa de
valores, tern rituais que reduzem psicologicamente as incertezas que tern de enfrentar. 0 mesmo se aplica a muitos riscos
que nao podemos deixar de correr, urna vez que estar vivo e,
por defini~ao, urn neg6cio arriscado. Nao surpreende em absoluto que pessoas continuem consultando astrologos, especialmente em momentos decisivos de suas vidas.
No entanto, a aceita~aodo risco e tambem condi~ao para
entusiasmo e aventura- pense nos prazeres que certas pessoas obtem dos riscos de jogar, de dirigir em alta velocidade, do
aventureirismo sexual, ou do m~rgulho de urna montanha-russa
de parque de diversoes. Alem disso, uma plena aceita~ao do
risco e a propria fonte daquela energia que gera riqueza numa
economia modema.
Os dois aspectos do risco - seus lados negativo e positivo
- se manifestarn desde os primordios da sociedade industrial
moderna. 0 risco e a dinannca mobilizadora de uma sociedade propensa a mudan~a, que deseja determinar seu proprio fu"
turo em vez de confia-Io a religiao, a tradi~ao ou aos caprichos
da natureza. 0 capitalismo moderno difere de todas as formas
anteriores de sistema economico em suas atitudes em rela~ao
ao futuro. Os tipos de empreendimento de mercado anterio,
res eram irregulares ou parciais. As atividades dos mercadores
e negociantes, por exemplo, nWlca tiveram urn efeito mnito pro'
fundo na estrutura basica das civiliza~6es tradicionais, que per'
maneceram amplamente agrfcolas e rurais.
capitalismo moderno insere-se no futuro ao calcular lucro
e perda futuros, e portanto risco, como urn processo continuo.

o

Isso nao podia ser feito ate que a contabilidade com partidas
dobradas foi inventada no seculo
naEuropa, tornando possive! acompanhar precisamentecomo se podiainvestir dinheiro paraganhar mais dinheiro.Ha muitos riscos, e claro, como
os que afetam a saude, que desejamos reduzir tanto quanta
possivel. E por isso que, desde assuas origens, a no~ao de risco
e acompanhada pelo desenvolvimento dos sistemas de seguro.
Nao deverfamos pensar somente em seguros pessoais ou comerciais aqui. 0 welfare state, cujo desenvolvimento pode ser
retra~ado ate ,as leis de assistencia social elisabetanas na Inglaterra, e essencialmente um sistema de administra~ao do risco.
Destina-se aproteger contra informniosque antes eram tratados como designio dos deuses -. doen~a, invalidez, perda do
emprego e velhice.
segura e a base a partir da qual as pessoas estao dispostas a assumir riscos. E a base da seguridade onde 0 destino foi
desalojado por compromisso ativo c'om 0 futuro. Como a ideia
de risco, as formas modernas de seguro tiveram infcio na vida
nautica. Os primeiros seguros maritimos foram lavrados no
seculo XVI. Em 1782 urn contrato de seguro cobrindo riscos
alem-mar foi firmado pela primeira vez por uma companhia
de Londres. Pouco depois a Lloyds of London assumiu uma
posi~ao de lideran~a na emergente industria dos seguros, posi~ao que manteve durante dois seculos.
Seguro e algo s6 concebivel quando acreditamos num futuro humanamente arquitetado. E urn dos meios de operar esse
planejamento. Diz respeito a provisao de seguran~a, mas de fato
e parasita do risco e das atitudes das pessoas com rela~ao a ele.
Os que fornecem seguro, seja na forma do segura privado ou
dos sistemas estatais de seguridade, essencialmente estao apenas
redistribuindo risco. Se alguem faz urn seguro contra incendio

xv

o
~

'j '",>
Anthony Giddens
'
I J'X' ,~.
.
I, "para sua casa, 0 risco nao desaparece. 0 dono da casa transfe~ re 0 risco para a seguradora em troca de pagamento. 0 comercio e a transferencia do risco nao formam urn aspecto meramente casual de uma economia capitalista. De fato 0 capitalismo
e impen~~y~l e impraticavel-sem..d.e. --

,(4<36.
.



Po~"estas raz6es, a ideia de risco·sempre esteve envolvida
na modernidade, mas quero demonstrar que, no periodo atuaI, 0 risco assume uma importfulcia nova e peculiar. Supunhase que 0 riscoseria uma maneira de regular 0 futuro, de
normatiza-Io e de submete-Io ao nosso dominio. As coisas nao
se passaram assim. Nossas pr6prias tentativas de controlar 0
futuro tend em a ricochetear e cair sobre nos, for~ando-nos a
procurar modos diferentes de rela~ao com a incerteza.
A melhor maneira de explicar 0 que esta acontecendo e fazer
uma distin~iio entre dois tipos de risco. Chamarei urn deles de
risco externo. 0 risco externo e 0 risco experimentado como
't--Vindoe fora, das fixidades da tradi~ao ou da natureza. Quero
d
distingui-Io do risco fabricado, com 0 que quero designar 0 risco
criado pelo proprio impacto de nosso crescente conhecimento
sobre 0 mundo. 0 risco fabricado diz respeito a situa~6es em
I cujo contronto
iCInos pouca experiancia hist6rica. Amaior
, parte dos riscos ambientais, como aqueles hgados ao aqueci~Vment?JroQ, recaem nesta ~ia._.~les-s~o
diretallleme
influencia os pe a~
iza~iio cada vez
."cuti rio-capitUlo 1. ----~---_...
, I

m~-

_.---j

.

A melhor maneira que encontropara elucidar a distin~ao
entre os dois tipos de risco e a que se segue. Em toda cultura
tradicional, poderfamos dizer, e na sociedade industrial ate 0
inicio da presente epoca, os seres humanos se inquietararn com
os riscos provenientes da natureza externa - de mas colheitas, enchentes, pragas ou fomes. A certa aitura, porem - muito

recentemente em termos historicos -, passamos a n<;>s
inquietar menos com 0 que a natureza pode fazer conosco, e mais
com 0 que nos fizemoscom a natureza. Isso assinala a transi~ao dopredominio do risco externopara 0 do risco fabricado.
Quem e 0 "nos" aqui, 0 sujeito da inquieta~iio? Bern, penso que agora somos todos nos, quer estejamos nas areas mais
ricas ou nas mais pobres do mundo. Aomesmo tempo, e obvio
que ha uma divisao que separa de uma maneira geral as regi6es
ricas das demais. Urn mlmero muito maior de riscos "tradicionais", do tipo que ha pouco mencionamos - como 0 risco de
fome quando a colheita e ma - continuaexistindo nos paises
mais pobres, e a eles se sobrep6em os novos riscos.
Nossa sociedade vive apos 0 fim da natureza. 0 fim da natureza nao significa, obviamente, que 0 mundo fisico ou os processos fisicos deixam de existir. Significa que poucos aspectos
do ambiente material que nos cerca deixaram de ser afetados
de certo modo pela interven~ao humana. Grande parte do que
costumava ser natural nao e mais completamente natural, embora nem sempre possamos saber ao certo onde termina uma
coisa e come~a a outra. Em 1998 houve grandes cheias na China, em que muitas pessoas perderam a vida. A inunda~ao dos
grandesrios foi parte recorrente da historia chinesa. TIveram
essas cheias recentes em particular basicamente 0 mesmo carater, ou foram influenciadas pela mudan~a global do clima? Ninguem sabe, mas elas apresentaram algumas caracterfsticas inusitadas que sugerem que suas causas nao foram inteiramente
naturais.
risco fabricado nao se liga apenas natureza - ou ao
que antes era natureza.Penelra em outras areas da vida tambem. Tome, por exemplo, 0 casamento e a familia, que estao
sofrendo mudan~as profundas nos paises industrializados e, em

o

a
certa medida, no mundo todo. Duas ou tres gera~6es atnis, as
pessoas~ quando se casavam, sabiam 0 que estavam fazendo. 0
casamento, amplamente estabelecido pela tradi~ao e 0 costume, era analogo a urn estado da natureza -. como continua
sendo, e claro, em muitos paises. Alionde os modos tradicionais de se fazer as coisas estao se dissolvendo, porem, quando
as pessoas se casam ou estabelecemrelacionamentos,
ha urn
sentido importante no fato de que elas nao sabem 0 que estao
fazendo, tamanha a mudan~a sofrida pelas institui~6es do casamento e da familia. Nesse c~o as pessoas estao come~ando
do zero, como pioneiros. Tern de enfrentar fiItul'ospessoais
muito mais abertos do que
com todas as oportunidades e percal~os que isso acarreta.
A medida que 0 risco fabricado se expande, passa a haver
algo de mais arriscado no risco. Como assinalei antes, a ideia
· de risco esteve estr.eitamente vinculada, em seu surgimento, a
· possibilidade de calculo. A maior parte das formas de seguro
: se baseia diretamente nessa conexao. Cada vez que alguem entra
i num carro, por exemplo, e possivel calcular as chances que essa
pessoa tern de ser envolvida num acidente. Isso e previsao
atuarialenvolve uma longa serie temporal. As situa~6es de
risco fabricado nao saDassim. Simplesmente nao sabemos qual
· e 0 nivel de risco, e em muitos casos nao saberemos ao certo
antes que seja tarde demais.
Nao muito tempo atras (1996) assinalou-se 0 decimo aniversario do acidente na usina nuclear de·Chernobyl, na Ucrania.
Ninguem sabe quais serao suas conseqiiencias a longo prazo.
Pode haver ou nao urn desastre para a saude ali guardado,
pronto para eclodir daqui a certo tempo. Exatamente 0 mesmo
podeser dito sobre 0 epis6dio da encefalopatia espongiforme
bovina no Reino Unido - 0 surto da chamada doen~a da vaca

no passino,

louca - em rela~ao a suas implica~6es para os seres humanos.
Nomomento, nao podemos saber ao certo se ela vira a vitimar
urn numero de pessoas muito maior que atualmente.
Ou considere nossa posi~ao em face da mudan~a mundial
do c1ima. A maioria dos cientistas versados no campo acredita
que 0 aquecimento global esta acontecendo e que caberia tomar medidas contra ele. No entanto, ate meados da decada de
1970, a opiniao cientifica ortodoxa era de que 0 mundo passava por rima fase de resfriamento global. Grande parte dos mesmos indicios exibidos para dar apoio a tese do resfriamento
global e agora posta em jogo para corroborar a do aquecimento global - ondas de calor, perfodos frios, condi~6es
meteorol6gicas inusitadas. 0 aquecimento global esta rnesrno
ocorrendo, e tern origens humanas? Provavelmente - mas nao
temos e nao podemos ter certeza absoluta ate que seja tarde
demais.
Nessas circunstancias, a politica esta envolta num novo clima moral, caracterizado por urn empurra e puxa entre acusa~6es de alarmismo por urn lado e de acobertamento por outro.
Se alguem - funcionario do governo, autoridade cientifica ou
pesquisador -leva determinado risco a serio,deve anuncia10. Ele deve ser amplamente divulgado porque epreciso convencer as pessoas de que 0 risco e real-. e preciso fazer urn
estardalha!;o em torno dele. Contudo, quando se faz realmente urn estardalha~o e 0 risco acaba se revelando minimo, os envolvidos SaDacusados de alarrnistas.
Suponha, contudo, que as autoridades avaliem inicialmente que urn risco nao e muito grande, como 0 fez 0 governo
britanico no caso da carne bovina contaminada. Nesse caso, 0
governo corne~ou por declarar: ternos 0 respaldo de cientistas
aqui; nao ha risco significativo, e quem quiser po de continuar
a comer carne bovina sem nenhum temor.· Em situa!roes como
essa, se os acontecimentos tomam urn rumo diferente -como
de fato tomaram - as autoridades sac acusadas de
acobertamento - como realmente. foram.
As coisas sac ainda mais complexas do que estes exemplos
sugerem. Paradoxalmente, 0 alarmismo po de ser necessario para
reduzir os riscos que enfrentamos -contudo, quando surte efeito, a impressao que se tern e de que houve exatarnente isso,
alarmismo. 0 caso da Aids e urn exemplo. Governos e especialistas fizeram grande alarde publico com os riscos associados ao
sexo nao seguro, para conseguir levar as pessoas a mudar seu
comportarnento sexual. Em parte em conseqiiencia disso, nos
pafses desenvolvidos a Aids nao se espalhou tanto quanto fora
originalmente previsto. A rea~ao diante disso foi: por que voces
apavoraram todo mundo daquela maneira? Sabemos, no entanto, pela dissemina~ao que a doen~ continua tendo no mundo,
que eles estavam - e estiio - inteiramente. corretos ao faze-Io.
Esse tipo de paradoxo torna-se rotina na sociedade contemporanea, mas nao ha uma maneira facilmente acessivel de Ii- .
dar com ele. Pois, como mencionei antes, na maioria das situa~oes de risco fabricado, ate a propria existencia de urn risco
tende a ser posta em duvida. Nao.podemossaber de antemao
quando estamos de fato sendo alarmistas ou nao.
Nossa rela~ao com a ciencia e a tecnologia hoje e diferente
daquela caracterfstica de tempos passados.Na sociedade oddental a ciencia atuoupor cerca de dois seculos como uma especie de tradi!j:ao. Supostamente, 0 conhecimento cientffico
superava a tradi~ao, mas de fato eleproprio se transformou
em uma, de certo modo. Era algo que a maioria das pessoas
respeitava, mas que permanecia externo as atividades de1as. Os
leigos "consultavam" os especialistas.

Quanto mais a ciencia e a tecnologia se intrometem em
nossasvidas, e 0 fazem num nivel global, menosessa perspectiva se sustenta. A maioria de nos - incluindo autoridades governarnentais e politicos- tern, e tern de ter, uma reIa~ao muito
mais ativa ou comprometida com a ciencia e a tecnologia do
que antes.
Nao podemos simplesmente "aceitar" os achados que os
cientistas produzem, para inieio de conversa por causa da freqiiencia com que eIes discord am uns dos outros, em particular
em situa!j:oes de risco fabricado. E hoje todos reconhecem 0
carater essencialmente fluido da ciencia. Cada vez que uma
pessoa decide 0 que comer, 0 que tomar no cafe da manha, se
cafe descafeinado ou com urn, ela toma uma decisao no contexto de informa~oes cientificaS e tecnologicas conflitantes c
mutaveis.
Tome 0 caso do vinho tinto. Como outras bebidas alc06licas, 0 vinhotinto era outrora considerado prejudicial a saudc.
Depois a pesquisa indicou que tomarvinho tinto em quantidades moderadas protege contra doen~as cardiacas. Posteriormente, descobriu-se que qualquer forma de alcool atua do mesmo
modo, mas so tern esse efeito protetor para pessoas com mais
de quarenta anos. Quem sabe 0 que 0 novo conjunto de descobertas vai reveIar?
Alguns dizemque a maneira mais eficiente de enfrentar 0
crescimento do risco fabricado e limitar a responsabilidade
mediante a ado~ao do charnado "principio do acautelamento".
A ideia do principio do acauteIamento surgiu pela primeira vez
na Alemanha no inicio da decada de 1980, no contexto dos
debates ecol6gicos que aIi se desenvolviam. Em sua expressao
mais simples, prop6e que se deve agir no caso de questoes
arnbientais (e, por inferencia, no caso de outras formas de risco)
ainda que haja incerteza cientifica com rela~ao a elas. Assinl,
na decada de 1980, varios paises da Europa iniciaram programas para combater a chuva 'acida, ao passe que na GrlBretanha a falta de indidos conclusivos foi usada para justiflcar a inercia com rela~ao a estee tambem a outros problemas
de polui~ao.
o principio do acautelamento, contudo, nem sempre e util
ou mesmo aplicavel como forma de enfrentar problemas de
risco e responsabilidade. 0 preceito de "permanecer pr6ximo
da natureza", ou de limitar a inova~ao em vez de adota-Ia, nenl
sempre pode ser aplicado. Istoporque 0 equilibrio entre 06
beneficios e os perigos advindos do progresso cientffico e
tecnol6gico, e tarnbem de outras tormas de mudan~asocial, e
imponderavel. Tome como exemplo a controversia sobre os
alimentos geneticamente modificados. Produtos agricola. II
geneticamente modificados jaestao crescendo em 35 milhoes
de hectares de terra em todo 0 mundo - uma area 1,5 veL
maior que a da Gra-Bretanha. A maior parte desses produtos
esta sendo cultivada na America do Norte e na China. Entre
eles incluem-se soja, milho, algodao e batata.
Nao seria possivel encontrar situa~ao mais 6bvia em que a
natureza nao e mais natureza. Os riscos envolvem algumas incognitas - ou, se posso dize-Io assim, inc6gnitas conhecidas,
porque 0 mundo tern uma tendencia pronunciada a nos surpreender. Pode haver outras conseqilencias que ate hoje ninguem previu. Urn tipo de risco e que os produtos possam trazer perigos para a saude, a medio ou longo prazo. Afinal, grande
parte da tecnologia genetica e essencialmente nova, diferente
dos metodos mais antigos de hibrida~ao.
, Outra possibilidade e que genes incorporados aos produtos
agricolas para torna-Ios mais resistentes a pestes possam se

propagar por outras plantas - criando "superpragas". Isso, por
sua vez, poderia representar uma amea~a para a biodiversidade
no ambiente.
Uma vez que a pressao para cultivar e consumir produtos
agricolas geneticamente modificados· e em parte movida por
inte~esses puramente comerciais, nao seria sensato sujeita-Ios
a umaproibi~ao global? Mesmo admitindo que essa proibi~ao
fosse viavel, as coisas - como sempre - nao sao tao simples.
A agricultura intensiva amplamente praticada hoje nao e indefinidamente sustentavel. Usa grandes quantidades de fertilizantes e inseticidas qufmicos, destrutivos para oambiente. Nao podemos retornar a modos mais tradicionais de agricultura e ainda
temos a esperan~a de alimentar a popula~ao do mundo. Produtos alterados pela bioengenharia poderiam reduzir 0 usa de
poluentes qufmicos e por conseguinte ajudar a resolver esses
problemas.
./ Seja qual for n?s.sa pe:specti~a, verno-nos e~vo~vidos ~um
problema de admmlstra~ao de rISco. Com a dlfusao do nsco
.
~ , fabricado, os governos nao podem fingir que esse tipo de administra~ao nao lhes compete. E eles precisam colaborar uns
com os outros, uma vez que muito poucos dos riscos de novo
estilo tern algo a ver com as fronteiras nacionais.
Mas tarnpouco n6s, como pessoas comuns, podemos ignorar esses novos riscos - ou esperar a chegada de provas cien':
tificas conclusivas. Como consumidores, cada urn de n6s tern
de decidir se vai tentar evitar produtos geneticamente modificados ou nao. Esses riscos, e os dilemas que os envolvem, penetraram profundamente em nossas vidas cotidianas.
Permitam-me passar a algumas conelusoes e ao mesmo tempo tentar assegurar que meus argumentos sac elaros. Nossa
epoca nao mais perigosa - nem mms arriscada - que as de

e
gera!roes precedentes, mas 0 equilibriode riscos e perigos se
alterou. Vivemos num mundo em que perigos criados por nos
mesmos sac tao amea~adores, ou mais, quanto os que vem de
fora. Alguns sac genuinamente.catastroficos, como 0 risco ecologico global, a prolifera~ao nuclear ou 0 derrocada da economia mundial. Outros nos afetam como indivfduosde maneira
muito mais direta, como por exemplo os relacionados com a
dieta, a medicina ou ate 0 casamento.
'
Uma epoca como a nossa ira engendrar inevitavelmente
revivescencia religiosa e diferentes filosofias da Nova Era,
que se voltarn contra a perspectiva cientifica. Alguns pensadores ecologicos tornaram-se hostis a ciencia, e ate ao pensamento racional de maneira mais geral, porcausa de riscos
ecologicos. Nao e uma atitude que fa~a muito senti do. Sern
analise cientffica, nem sequer saberfamos sobre essesriscos.
No entanto, nossa rela~ao com a ciencia, por raz6es jaexpostas, nao serao e nao podem ser as mesrnas que em tempos passados.
Nao possufmos atualmente institui~oes que nos permitam
monitorar a mudan~a tecnologica, nacional ou globalrnente. 0
debate em torno da encefalopatia espongiforme bovina na GraBretanha e em outros lugares poderia ter sido evitado se rivesse sido estabelecido urn dialogo publico sobre a rnudan~a
tecnologica e suas problematicas conseqiiencias. Urn maior
numero de meios publicos de envolvimento com a ciencia e a
tecnologia nao iria eliminar 0 dilema alarmismo versus
acobertamento, mas poderia nos perrnitir reduzir algumas de
suas conseqiiencias mais danosas.
Finalmente, e impossive! adotar sirnplesmente uma atitude
negariva em rela~ao ao risco. 0 risco sempre precisa ser disciplinado, mas a busca ativa do risco e urn elem~nto essencial de

uma economia dinamica e de urna sociedade inovadora. Viver
numa era global significa enfrentar uma diversidade de situ a~6es de risco. Com muita freqiiencia podemos precisar ser ousados, e nao cautelosos, e apoiar a inova~ao cientffica au outras formas de mudan~a. Afinal, uma raizdo termo "risk" no
original portugues significa "ousar".
Tradi~ao

Quando os escoceses se rel1nem para celebrar sua identidade
nacional, fazem-no de maneiras impregnadas de tradi~ao. 0
homens usam 0 kilt, tendo cada cIa seu pr6prio tarta, e seus
cerimoniais saDacompanhados pelo lamento das gaitas de fole.
Pol' meio desses sfmbolos, demonstram sua lealdade a antigos
rituais, cujas origens mergulham num passado distante.
Seria interessante, se fosse verdade. Mas, juntamente com
a maioria dos demais sfmbolos da nacionalidade escocesa, todos estes SaDcria~6es bastante recentes. 0 kilt curto parece ter
sido inventado por urn industrial ingles do Lancashire, Thomas
Rawlinson, no infcio do seculo XVIII. Ele resolveu alterar os
trajes ate entao usados pel os habitantes das Highlands de modo
a toma-Ios convenientes para operarios.
Os kilts foram urn produto da revolu~ao industrial. Seu
objetivo nao foi preservar costumes veneraveis, mas 0 contrario - afastar os highlanders (las urzes e leva-Ios para a fabrica.
o kilt nao apareceu como 0 traje nacional da Esc6cia. Os
low/anders, que formavam a amplamaioria do povo escoces,
viam os trajes usados nas Highlands como urn forma barbara
de vestucu-ioque em geral encaravam com algum desprezo. De
maneira seme1hante, muitos dos tartas de cia hoje usados £0ram tra~ados durante 0 periodo vitoriano, por alfaiates empreendedores que, com razao, viram neles urn mercado.
Muito do que supomos tradicional, e imerso, nas brurnas do
tempo, e na verdade urn produto no maximo dos t1ltimos dois
seculos, e com freqUencia e ainda mais recente. a caso do kilt
escoces vem de urn celebre livro de autoria dos historiadores Eric
Hobsbawm e Terence Ranger, chamado The Invention of
1.radition. Eles dao exemplos de tradi!;oes inventadas tomadc)s
de uma variedade de palses diferentes, entre eles a India coloniaJ.
Na decada de 1860, os britanicos empreenderam urn levantamento arqueol6gico para identificar os monumentosimportantes da India e preservar a "heran~a" indiana. Acreditando
que as artes e oficios locais estavam em declfnio, recolhermn
artefatos para por em museus. Antes de 1860, por exemplo,
tanto os soldados indianos quanto os britanicos usavam fardas
de estilo ocidental. Aos olhos dos britanicos, porem, os indianos deviam parecer indianos. as uniformes foram modificados para incluir turbantes, faixas e mnicas, vistos como "autenticos". Algumas das tradi!;oes que e1es inventaram, ou
adaptaram, persistem hoje no pafs, embora, evidentemente,
outras tenham sido rejeitadas mais tarde.
Tradi!;ao e costume - essa foi a essencia da vida da maio~
ria das pessoas durante a maior parte da hist6ria humana. No
entanto, e notavel 0 reduzido interesse que estudiosos e pensa·
dores tendem a manifestar por eles. Ha infindaveis discussoes
sobre a moderniza~ao e sobre 0 que significa ser moderno, ma.l§
poucos realmente sobre tradi~ao. Quando estava pesquisando
para este capftulo, depareicom dezenas de !ivros academicos
em ingles com "modernidade" no titulo. De fato, eu mesmo

escrevi alguns - mas s6 consegui descobrir uns dois que tratavam especificamente de tradi~ao.
(jie! 0 Illlminismodo sceulo-XVIII na Europa que depreciou; tradi~ao. Uma de suas figuras de maior relevo, 0 barao
d'Holbach,expressou as coisas nestes termos:
as mestresja fixaram os olhos dos homens no ceu por tempo suficiente, deixemos que agora os dirijam para a terra.
Fatigada com uma teologia inconcebfvel, fabulas ridfculas,
misterios impenetraveis, cerimonias pueris, deixemos que a
mente humana se aplique ao estudo da natureza, a objetos
inteligfveis,verdadessensatase conhecimentouti!. Deixemos
que as vas quimeras dos homens sejam removidas, e opini6es razoaveislogo surgirao por si mesmasnaquelas cabe~as
que se pensava estarem para sempre destinadas ao erra.

E claro que d'Holbach

nunca empreendeu uma abordagem seria da tradi~ao e de seu papel na sociedade. A tradi~ao aqui e
meramente 0 lado sombrio da modernidade, urn construto
implausfve1 que po de ser facilmente descartado. Se realmente)
devemos encarar a tradi~ao, nao a podemos tratar como simples toliee. As rafzes lingUfstieas da palavra "tradi~ao" sao antigas: A palavra inglesa tradition tern origem no termo latino
tradere, que significa transmitir, ou confiar algo aguardade
algucm. Traderefoi originalmente usado no contexte do direito romano, em que se referia as leisdah~ran~a. Consideravase quetirna ptopriedade quepassava de uma gera~ao para ou-tr~era dada em confian~a - 0 herdeirotinha obrigagao de
protege-l a e promove-Ia.
, Tudo levaria a crer que a no~ao de tradi~ao, diferentemente
doskilts e das gaitas de fole, esta entre n6s ha muitos scculos.
Mais uma vez, as aparencias enganam. a termo "tradigao", tal

,j-"
';"
como e usado atualmente, e naverdade urn produto dos ultimos duzentos anos na Europa. Assim como 0 conceito de risco, de que falei no capitulo anterior, a nOfraogeral de tradi~o
nao existia nos tempos medievais. Nao havia necessidade de
tal palavra, precisamente porquea tradifrao e 0 costume estayam em toda parte.
A ideia de tradifrao, portanto, e ela propria uma criafrao da
.IIlodernidade. Isso.nao,signi-fka-quenauadeveriarnos
usar am
relafrao a sodedades pre-modernas ou nao odde~tais, mas
implica que deveriamos ab6rdar sua discussao com algum cuidado" Os pensadores do Iluminismo tentaram justificar seu interesse exclusivo pelo novo identificando a tradi~ao com doglua
e ignorancia.
Desvencilhando-nos dos preconceitos do Iluminismo, como
deveriamos compreender "tradi~ao"? Urn born ponto de partida seria retornar a tradifr6es inventadas. Tradi~6es e costumes inventados, Hobsbawm e Ranger sugerem, nao sac genufnos. SaoJabricados, em vez de se desenvolver espontaneamente;
sac usados como meios de poder;e nao existiram desde tempos imemoriais. Qualquer continuidade que implique 0 passado
distante e em grande parte falsa.
Eu viraria a argumenta~ao deles de cabe!!(apara baixo. lbdas as tradi~6es, eu diria, sac tradi~6es inventadas. Nenhuma
sociedade tradicional era inteiramente tradicional, e tradi~6es
e costumes foram inventados por uma diversidade de raz6filS.
Nao deverfamos supor que a constru~ao consciente da tradi~ao encontrada apenas no perfodo modemo. Alem disso, as
tradi~6es sempre incorporam poder, quer tenham si<:to
.'construfdas de maneira deliberada ou nao. Reis, Imperadores,
sacerdotes e outros vem ha muito inventando tradi~6es que lhes
convenham e que legitimem seu mando. '

e

A ideia de que a tradi~ao e impermeavel a mudan~a e Urt
mito. As tradi~6es evoluem ao longo do tempo, mas pode~
tambem ser alteradas ou transformadas de maneira bastant~
repentina. Se posso me expressar assim,elas sac inventadas ~
reinventadas.
i
Algumas tradi~6es, e claro, como aquelas associadas as grandes religi6es, duraram centenas de anos. Ha prescri~6es essendais do islamismo, por exemplo, que quase todos os mu~ulmanos convictos observariam, e que permaneceram as mesmas,
de maneira reconhedve1, por urn longufssimo periodo. Contudo, toda continuidade que possa estar presente nessas doutrinas e acompanhada de muitas mudan~as, algumas ate revolucionarias, no modo como sac interpretadas e cumpridas. Vma
tradi~ao completamente pura e algo que nao existe. Como todas as outras religi6es do mundo, 0 isla se valeu de uma estonteante variedade de recursos culturais - isto e, outras tradi~6es. 0 mesmo se aplica de maneira mais geral ao imperio
otomano, que, ao longo dos anos, incorporou influencias arabes, persas, gregas, romanas, berberes, turcas e indianas, entre
outras.
E simplesmente enDneo, porem, supor que, para ser tradidonal, urn dado conjunto de sfmbolos ou praticas precisa ter
existido por seculos. A fala do monarca por ocasiao do Natal,
transmitida todos os anos pelo radio e a televisao na GraBretanha, tornou-se uma tradi~ao. No entanto, foi iniciada
apenas em 1932. A persistencia ao longo do tempo nao e a
caracterfstica chave que define a tradi~ao, ou seu primo mais
difuso, 0 costume. As caracterfsticas distintivas da tradi~ao sao,
o ritual e a repeti~ao. As tradi~6es sac sempre propriedades de
grupos, comunidades ou coletividades. Indivfduos podem seguir
tradi~6es ou costumes, mas as tradi~6es nao sao uma caracte·
ristica do comportamento individual do modo como os habitos 0 sao.

o que a tradi~ao

tern de distintivoe que ela define umtipo
de verdade. Uma pessoa que segue uma pnltica tradicionalmao
cogita de alternativas. Por mais que a tradi~ao possa nmclar,
ela fornece uma estrutura para a a~ao que pode permanecer
em grande parte nao questionada. As tradi~6es em geral tern
guardiaes - feiticeiros, sacerdotes, sabios. Guardiao nao e 0
mesmo que especialista. Eles conquistam sua posi~ao e poder
gra~as ao fato de serem os unicos capazes de interpretar a verdade ritual da tradi~ao. Somente eles sac capazes de decifrar
os verdadeiros significados dostextos sagrados ou dos outros
simbolos envolvidos nos rituais comunais.
.
r

o Iluminismo

pretendeu destruir a autoridade da tradi!Sio. /
Seu sucesso foi apenas parcial. A tradi~ao continuou forte por
urn longo tempo na,maior parte da Europa moderna e ate roais
firmemente entrincheirada na maior parte do rest~ do munGio.
Muitas tradi~6es foram reinventadas e outras institufdas pel a
primeira vez. Alguns setores da sociedade fizeram uma tentativa combinada de proteger ou adaptar velhas tradi!t6es. Afinal,
as filosofias conservadoras consistiram, e con~istem, exatamente
nisso. A tradi~ao e talvez 0 conceito mais basico do conservantismo, uma vez que os conservadores acreditam que €da
encerra uma sabedoria acumulada.
Uma razao adicional para a persistencia da tradi~ao nos
paises industrializadosfoi que as mudan!tas institucionais sinalizadas pela modernidade limitaram-se em grande parte a institui~6es pl1blicas - especialmente 0 governo e a economia.
.'Maneiras tradicionais de fazer as coisas tenderam a persistir,
ou a ser restabelecidas, em muitas outras areasda vida, entre
elas a vida cotidiana. Poderiamos mesmo dizer que houve uma

especie de simbiose entre modernidade e tradi~ao. Na maior
parte dos paises, por exemplo, a familia, a sexualidade e as
divis6es entre os sexos permaneceram intensamente saturadas
de tradi~ao e costume.
Duas mudan~as basicas estao ocorrendo hoje sob 0 impacto da globaliza~ao. Nos paises ocidentais, nao s6 as institui~6es
publicas mas tambem a vida cotidiana estao se libertando do
dominio da tradi~ao. E em outras sociedades pelo mundo, que
conti~uaram mais tradicionais, a for~a das tradi~6es esta dedinando. Acredito que isto esta no cerne da sodedade cosmopolita global em emergencia de que falei anteriormente.
Trata-se de Uma sociedade que vive apos 0 fim da natureza.
Em outras palavras, poucos aspectos do mundo fisico continuam sendo meramente naturais - isentos da interven~ao humana. Trata-se tambem de uma sociedade que vive ap6s 0 fim
da tradi~ao. 0 fim da tradirao nao significa que a tradirao desaparece, como queriam os pensadores do Iluminismo. Ao contrario, ela continua a florescer em toda parte em vers6es diferentes. Mas trata-se cada vez menos - se e que se pode dize-Io
assim - de tradi~ao vivida da maneira tradidonal. Viver a tradi~ao da maneira tradicional significa defender as atividades
tradicionais por meio de seu proprio ritual e simbolismo defender a tradi~ao por meio de suas pretens6es internas a
verdade.
Urn mundo em que a moderniza~ao nao fica confinada a
uma area geografica mas se faz sentir globalmente tern varias
conseqiiencias para a tradi!Sao.A tradi~ao e a denda por vezes
se mesclam de maneiras estranhas e interessantes. Considere,
por exempIa, 0 epis6dio muita discutido que teve Iugar na india em 1995, em que divindades de alguns santuarios hindus
pareciam tomar leite. No mesmo dia, varios milhoes de pessoas,
nao s6 na India mas no mundo todo, tentaram oferecer leite a
imagens divinas. Denis Vidal, urn antrop610go que escreveu
sobre esse fenomeno, observa:
ao se manifestarem simultaneamente em todos os parsesdo
mundo habitados por indianos, as divindades hindus talvez
tenham conseguido operar 0 primeiro milagre sintonizado
com uma era tomada pelo slogan da globaliza!rao.
De maneiril igualmente interessante, houve a impressao generalizada - entre crentes e nao crentes - de que eram necessarios experimentos cientificos para autenticar 0 milagre. A ciencia foi recrutada a servi~o da fe.
A tradi~ao, num exemplo C0Il10este, nao s6 continua viva,
e ressurgente. No entanto, com freqiiencia as tradi~oes tarnbem sucumbem a modernidade, e em algumas situa~oes iSlo
vem acontecendo pelo mundo todo. Tradi~ao que e esvaziada
de seu 'conteudo, e comercializada, torna-se heran~a ou kitsch
- as bugigangas que se com pram na loja do aeroporto. 1m
como desenvolvida pela industria da heran~a, heran!fa e tract!;.

academicas, como urn todo, como a economia,a sociologia ou
a filosofia, tern tradi!foes. A razao disso e queninguem seria
capaz de trabalharde uma maneira inteiramenteecletica. Sefi1
tradi~oes intelectuais as ideias nao teriam foco nem dire~ao.
No entanto, e parte da vida academica explorar continuamente os limites dessas tradi!foes, e fomentar urn intercambio
ativo entre,elas. A tradi~ao pode muito bem ser defendida de
uma maneira nao tradicional - e este deveria ser seu futuro.
Ritual, cerimonial e repeti~ao tern urn importante papel social,
algo compreendido e posta em pratica pela maioria das organiza~oes, inclusive os governos. As tradi~oes VaG continuar a
ser apoiadas enquanto puderem ser efetivamente justificadas
- nao em termos de seus pr6prios rituais internos, mas mediante a compara~ao delas com outras tradi~oes ou maneiras de
fazer as coisas.
Isto se aplica ate as tradi~oes religiosas. A religiao e normalmente associada a ideia de fe, uma especie de salto emocional na cren~a. No entanto, num mundo cosmopolita, mais pessoas do que nunca estao regularmente em contato com outras
que pensam de maneira diferente delas. Veem-se na necessidade de justificar suas cren~as, pelo menos implicitamente, tanto
para si mesmas quanta para os outros. S6 pode haver uma grande dose de racionalidade na persistencia de rituais e praticas
religiosas numa sociedade em que as tradi!foes declinam. E e
exatamente assim qu~ deveria ser.
A medida que 0 papel da tradi~ao muda, contudo, novas
dinfunicas sac introduzidasem nossas vidas. Estas podem ser
sintetizadas como urn empurra e puxa entre autonomia de a~ao
e compulsividade por um lado, e entre cosmopolitismo e
fundamentalismo peto outro.· ~.l.ionde atradi~ao recuou, so-,
mos for~ados a viyer.cl~ul1:la.g:l~eira·~ais~b~rta e reflexiva.

·······~7f::~;~~:~:~~~~S~~!~~~~:e~~~~~~~;:t:~:::::::;
pode mesmo ser autentica ate 0 minimo detalhe. Mas a herafl._.~~q!!~_~
h~~i~ protegid<l:~~!~.gis~Q.ciadaJla-.seiyi:cLi:. ~ao,
tradi
que e sua conexio'com a experiencia da vida cotidiaI!a./ '
'.."No meUenfe'iiaer;eiiifeiiarnerife [(ldona! rec~'~hecer que
as tradi~oes sac necessarias numa sociedade. Nao deveriamos
aceitar a ideia do lluminismo de que 0 mundo deveria se desveltcilhar por completo da tradi~ao. As tradi~oes sac necessarias,
e persistirao sempre, porque dao continuidade e forma a vid_.
Tome a vida academica, por exemplo. Todos no mundo acadfmico trabalham de acordo com tradi~oes. Ate asdisciplinas
Autonomia e liberdade podem substituir 0 poder oculto da tradi~ao por uma discussao e urn diaIogo mais abertos. Essas Iiberdades, porem, trazem outros.problemas em sua esteira. Uma
sodedade que vive do lado oposto ao da natureza e da tradi~ao - como 0 fazem hoje as dequase todos os paises oddentais - e uma sociedade que exige tomada de dedsao, tanto na
vida cotidiana quanto nos demais domini os. 0 lado sombrio
da tomada de decisao e 0 aumento das dependencias e
compuIs6es. Algo de realmente intrigante, mas tambem de
perturbador, esta acontecendo aqui. Confina-se basicamente aos
paises desenvolvidos, mas come~a a ser observado entre grupos mais ricos em outras partes tambem. Estou me refer indo a
difusao da ideia e da realidade. da dependencia. A no~ao foi
original mente aplicada exclusivamente ao alcoolismo e ao consumo de drogas. Mas agora qualquer area de atividade pode
ser invadida por ela. Podemos ser viciados em trabalho, em
exercfdo, comida, sexo - ou ate em amor. Isso ocone porque
essas atividades, e outras partes da vida tambem, estao muito
menos estruturadas peia tradi~ao e 0 costume do queeram
outrora.
Como a tradi~ao, a dependenda diz respeito a infIuencia
do passado sobre 0 presente;e como no caso da tradi~ao, a
repeti!rao tern urn papel-chave. 0 passado em questao e mais
individual que coletivo, e a repeti~ao e movida pela ansiedade.
Eu tenderia a ver a dependencia como autonomia congelad'l.
Todo contexto de declinio da tradi~ao oferece a possibilidade
de maior liberdade de a!rao do que antes existia. Estamos falando aqui da emancipa!rao humana dos constrangimentos do
passado. A dependencia entra em jogo quando a escolha, que
deveria ser impelida pela autonomia, e subvertida pela ansiedade. Na tradi!rao, 0 passado estrutura 0 presenteatraves de

cren~as e seu'timentos coletivos partilhados. 0 dependente esta
igualmente escravizado ao passado - mas porque nao conse:.
gue escapar do que, originalmente, eram habitos de estilo de
vida livremente escolhidos.
A medida que a infIuencia da tradi~ao e do costume definha em nivel mundial, a pr6pria base de. nossa identidade _.
nosso senso de individualidade - muda. Em situa~6es mais
tradicionais, 0 senso de identidade e sustentado em grande parte
pela estabilidade das posi~6es sociais ocupadas pelos individuos na comunidade. Ali onde a tradi!rao dec1ina, e a escolha do
estilo de vida prevalece, a individualidade nao fica isenta. 0
senso de identidade tern de ser criado e recriado de forma ma~s
ativa que antes. Isto explica por que terapias e aconselhamentos
de todos os tipos se tornaram tao populares nos paises ocidentais. Quando iniciou a psicanalise moderna, Freud supunha que
estava estabelecendo urn tratamento cientifico para a neurose.
Na verdade, estava construindo urn modelo para a renova~ao
do senso de identidade, nos estagios inidais de uma cultura de
tradi~6es em declfnio.
Afinal, 0 que acontece na psicanalise e que 0 indivfduo
revisita seu passado para criar maior autonomia para 0 futuro.
mesmo se aplica tambem em grande parte aos grupos de autoajuda qu~ se tornaram tao comuns nas sociedades ocidentais.
Nos encontros dos Alc06licos Anonimos, por exempIo, pessoas contam suas hist6rias de vida, e recebem apoio dos demais
presentes em seu desejo de mudar. Recobram-se de sua dependenda essencialmente atraves da reescrita da hist6ria de suas
pr6prias vidas.
A Iuta entre dependencia e autonomia esta num p6Io da
globaliza~ao. No outro esta 0 embate entre uma perspectiva
cosmopolitae 0 fundamentalismo. Poderfamos pensar que 0

o
fundamentalismo sempre existiu. Isso nao e verdade - ele sur- '
giu em resposta as influenciasglobalizantes que vemos por todos os ladosa nossa volta. 0 proprio termo data da virada do
seculo, quando foi usado para designar as cren~as de certas
seitas protestantes nos EUA, particularmente aquelas que rejeitavam Darwin. Ate 0 final da decada de 1950, no entanto,
nao havia entrada para a palavra "fundamentalism" no grande
dicionario Oxford English. Ela s6 se tornou de uso comum a
partir da decada de 1960.
Fundamentalismo nao e 0 mesmo que fanatismo ou que
autoritarismo. Os fundamentalistas reclamam urn retorno aDs
textos ou escrituras basicos, a serem lidos de maneira literal, e
propoem que as doutrinas derivadas de talleiturasejam aplicadas a vida social, econamica ou politica. 0 fundamentalismo
c'oiifere nova vitalidade e importancia aos guardiaes da tradi~ao. Somente eles tern acesso ao. "significado exato" dos textos. 0 clero ou outros interpretes privilegiados ganham poder
tanto secular quanto religioso. Podem aspirar a tomar as redeas
do poder diretamente - como aconteceu no Ira - ou trabaIhar em conjun!rao com partidos politicos.
A palavra "fundamentalismo" e controversa,p.orqlle muitos dos que sac chamados por outros defundamentalistas nao
admitem a aplica~ao do termo a eles pr6prios. Seria entao possivel dar-lhe urn significado objetivo? Penso que sim, e 0 definiria d,a seguinte maneira. Fundament~lismb e tradi~ao
sitiada. E tradi~ao defendida da maneira tradicional - por
referencia a verdade ritual - num mundo globalizante que
exige razoes. 0 fundamentalismo, portanto, nada tern a'ver
com 0 contexto das cren~as, religiosas ou outras. 0 que importa e 0 modo como a verdade das cren~as e defendida OU
sustentada.

o fundamentalismo nao diz respeito aquilo em que as pessoas acreditam, mas, como a tradi~ao de maneira mais geral, ao
modo como acreditam e ao modo como justificam sua cren~a.
Nao esta limitado a religiao. Os Guardas Vermelhos chineses,
com sua devo~ao ao livrinho vermelho de Mao, eram sem duvida fundamentalistas. 0 fundamentalismo tampouco diz respeito
basicamente a resistencia a moderl1iza~ao por culturas mais tradicionais - a uma rejei~ao da decadencia ocidental. 0
fundamentalismo po de se desenvolver no solo de tradi~oes de
todos os tip os. Nao tern tempo para a ambigiiidade, a mUltipla
interpreta~ao ou a multipla identidade - e uma recusa do dialogo num mundo cujo ritmo e continuidade dependem dele.
o fundamentalismo e urn tilho da globaliza~ao, e reage contra ela ao mesmo tempo em qlle a utiliza. Em quase toda parte
os grupos fundamentalistas fizeram urn amplo uso das novas
tecnologias da comunica~ao. Antes de chegar ao poder no Ira,
o aiatola Khomeini pas em circula~ao fUmes e grava~oes de seus
ensinamentos. Militantes hindutwas fizeram intenso usa da
Internet e do correio eletronico para eriar urn "sentimento de
identidade hindu".
Seja qual for a forma que assume ~ religiosa, etnica, nacionalista ou diretamente politica - parece-me correto encarar 0
fundamentalismo como problematico. Ele toca as raias da violencia, e e 0 inimigo dos valores cosmopolitas.
No entanto, 0 fundamentalismo nao e apenas a antitese da
modernidade globalizante, mas the faz perguntas. A mais basica e esta: podemos viver num mundo em que nada e sagrado?
Devo dizer, para conduir, que nao me parece que possamos.
Os cosmopolitas, entre os quais me incluo, tern de deixar claro
que a tolerancia e 0 diaIogo podem ser guiados por val ores de
urn tipo universal.
Todos nos precisamos de compromissos morais que se elevem acimadas preocupa~oes ec6ntendas comuns da vidacotidiana. Devemos estar preparadospara erguer uma defesa ativa
desses valores onde quer que e1es estejam precariamente de; senvolvidos ou amea~ados. A moralidade cosmopolita precisa It,'j,
j! ser ela propria movida por paixao. Nao terfamos, nenhum de fJo':
,II nos, algo por que viver se nao tivessemosalgo por que valesse i :'
I a pena morrer.
,

Entre todas as mudan~as que estao se dando no mundo, nenhumae mais importante do que aquelas que acontecem em
nossas vidas pessoais -(tia sexualidade, nos relacionamentos,
no casamelltoena fanu1ia.)Ha uma revolu~o global em cursoK'
po modo como pensamos sobre nos mesmos e no modo como
iformamosl~~QsJ~ liga~oes com outros.E uma revolu~ao que
~avan~a de maneira desigual em diferentes regioes e culturas,
,encontrando muitas resistencias.
Como ocorre com outros aspectos do Mundo em descontrole, nao sabemos ao certo qual vira a ser a rela~ao entre vantagens e problemas. Sob certos aspectos estas sac as transforma~oes mais diffceis e perturbadoras' de todas. A maioria de
n6s consegue se desligar de problemas maiores durante grande parte do tempo - uma das razoes por que dificil trabalhar
t juntos para resolve-Ios. Nao somos capazes, contudo, de escai par do torveliIiho de mudan;as que atinge diretamente 0 cerne
, de nossas vidas emocionais.
Sao poucos os proses do mundo em que nao esta. se desenrolando uma intensa discussao sobre a igualdade saulY., a
.{

e

I
regula~ao da sexualidade e 0 futuro da familia. E ali onde nao
ha urn debate aberto, isso ocoere sobretudo porque ele e ativamente reprimido por governos autoritarios
ou grupos
fundamentalistas. Em muitos casos, essas controversias sao
nacionais ou locais - como tambem 0 sac as rea~6es sociais e
politicas a eles. Politicos e grupos de pressao sugerem que bastaria que a politicade familia fosse modificada, ou que a ob-ten~ao do div6rcio se tornasse mais dificil ou mais faci! em seu
pr6prio pals, para que as solu~6es para nossos problemas pudessem ser prontamente encontradas.
Mas as transforma~6es que afetam as esferas pessoal e emo
cional vaG muito alem das fronteiras de qualquer pals, mesmo
de urn tao vasto como os Estados Unidos. Encontramos tendencias paralelas quase em toda parte, variando apenas em gran
e segundo 0 contexto cultural em que tern lugar.
Na China, por exemplo, 0 Estado esta cogitando de tOle.
nar 0 div6rcio mais dificil. Na esteira da Revolu~ao Cultural,
foram aprovadas leis de casamento muito liberais. Nelas, ()
casamento e definido como urn contrato de trabalho que pode
ser dissolvido "quando maridoemulher
0 desejam".cMesmo
que urn conjuge objete, 0 div6rcio po de ser con cedi do quando a "afei~ao mutua" desapareceu do casamento. S6 epreci·
so esperar por duas seman as, depois do que 0 casal paga qua:
tro d6lares e dali em diante se ve independente. A taxa chinesa
de div6rcio ainda e baixa se comparada com ados palses oei·
dentais, mas esta se elevando rapidamente - tal como emi
outras sociedades asiaticas em desenvolvimento. Nas eidades
chinesas, nao s6 0 div6rcio mas tambem a coabita~ao estao
Sf tornando mais freqiientes. Na vasta zona rural chinesa, em
contraposi~ao, tudo e diferente. 0 casamento e a familia sa.o
muito mais tradicionais - apesar da polftica oficial de limi-

ta~ao de nascimentos mediante uma mistura de incentivos e
puni~ao. 0 casamento e urn arranjo entre duas familias, decidido mais pelos pais que pelos individuos em questao. Urn
estudo recente na provincia de GaJ:lsu,que tern urn baixo nivel
de desenvolvimento economic6, verificou que 600/0 dos casamentos ainda sac arranjados pelos pais. Como .diz urn velho
ditado chines: "Encontre uma vez, incline a cabe~a e case."
Ha uma singularidade na China em processo de moderniza~ao. Muitos dos que hoje estao se divorciando nos centros
urbanos haviam se casado originalmente da maneira tradicional, no campo.
Fala-semuito de prote~ao a familia na China. Em muitos
p~ises ocidentais, 0 debate e ainda mais estridente. A familia e
urn local pm-a as lutas entre tradi~aoe modernidade, mas tambem uma metafora p~~'ehis:-'HcitalveZ rriais nostalgia em torno do sant1l<U'iop~rdi4<:>d~·f"!!l!1ia.doue em qualquer outra
q
iIl-stitui~,~ocQmra!zes no passado. Politicos e ativist~ diagnosticam rotiJ1eiramenteocolapsocla
vida da familia e clamam
por urn .retorno a faIJ1iliatradiciQnal~
A "familia tradicional" tern muito de uma categoria que
tudo abrange. Houve muitos tipos difereIlJ~s de familia e sistemasdepilrentesco
exIidif~rentes sociedades e culturas. A
familiachinesa,por
exelllpIQ,.s~mpre foi distinta das formas
de familia do Ocidente. Na maioria dos proses europeus, 0
ce.S<l.!!l~utQ
...
e~.!~!}i~~.£;nuncafoi tao comum quanto na China
ou na India. No entanto, a familia em culturas nao modernas
tev-e, e te;, alguns tra~os que encontramos mais ou menos
em toda parte.
familia tradidonal era adma de tudo uma unidade eeon<5mic~~'Ap~od~-ag';icola
normalmente envolvia to(f() 0

~'A
I

..

grupo familiar, enquanto entre a pequena nobrezae aar.isto-
cracia a transmissao da propriedade era a principal base do
'.casamento. Na Europa medieval, 0 casamento nao era
i~ contraido com base no amor sexual, tampouco era encarado
 como urn lugar em que esse arn.or.deveriaflorescer. Como 0
J: expressa 0 historiador france£~GeQrges Duby, nao havia lu~" para "frivolidade, paixao ou fantasia" no casamento na
gar
Idade Media.
!;.. desigualdade entre homens e mulheres era intrfnseca a
famflia tradicionalJ Nao me parece que se possa exagerar a
importancia dlSSO.Na Europa, as mulheres eram propriedade
de seus maridos ou pais.- bens m6veis, na forma definida pela
lei. A desigualdade entre homens e mulheres se estendia obviamente a vida sexual. 0 duplo padrao sexual estava diretamente
Iigacl.Q_~.!1ecessidade assegurar continuidade na linhagem e
de
naher~~~. Durante a maior pCll'tedahist6ria, os homens fiz,~ram urn amplo, e por vezes bastan~~oste~~ivo~"'uso
tes, cortesas e prostitutas.bs mais rico~ titihamavenfiiias amorosas com servas. Mas os homens precisavam ter certeza de
serem eles os pais dos filhos de suasmulheres. 0 que era exaltado nas mo~as respeit<lveis era a virgindade e, nas esposas,
constancia e fidelidade.
Na faruflia tradicional(nao
eram s6 as mulheres que
careciam de direitos: 0 mesmo se dava com as crian~asJA ideia
de consagrar os direitos da crian~a na lei e, em termos hist6I
ricos, re1ativamente recente. Em perfodos pre-modernos,
, como hoje nas culturas tradicionais,as crian~as nao cram criadas no interesse delas pr6prias, mas para a satisfa~ao dos pais.
Poderfamos quase dizer que nao eram reconhecidas como
individuos. Nao e que os pais nao amassem os filhos, mas
, importavam-se mais com a contribui~ao que eles davam para.
a tarefa economica comum do que com eles pr6prios. Alem
I

de-~~-

I

disso, a taxa de mortalidade infantil era assustadora. Na Europa e nos Estados Unidos do seculo XVII quase urn quarto
das crian~as morria em seu pri~eiroano.
Quase 50% M.O
chegavam aos dez anos de idade.
Exceto para certos grupos cortesaos ou de elite, a~
dade na famffu. tradicion~ sempre foi dominada pela reprodu~ao. Era uma questao de natureza e tradi~ao combinadas. A
ausencia de contracep~ao eficaz significava que, para a maior
parte das mulheres, a sexualidade estava, de maneira inevitcivel, estreitamente vinculada ao partqlEm muitas culturas tradicionais, inclusive na Europa ocidental ate 0 limiar do seculo
XX, uma mulher podia .tet:.dez ou mais gesta~6es durante 0
curso de sua vida.
Porraz6es ja apresentadas,(a sex!alidade era dominada pela
ideia da virtudefeminina~
comum pensar-se que 0 duplo padr~o...s_~~l1.a1~
!una.-cria&:aQ.jl'.LQ.t:~:!?!:.~!~!1.hayi N a vertoriana.
dade, emuma versao ou outra, ele foi central em todas as sociedades nao modernas. Envolvia uma concep~ao dualista da
sexualidade feminina - uma clara distin~ao entre a mulher virtuosa por um lado e a libertina por outro. 0 aventureirismo
sexual era considerado em muitas culturas urn tra~o definidor
damasculinidade. James Bonde, ou era, admirado por seu
heroismo tanto fisico quanto sexual. As mulheres sexualmente
aventureiras,
em contraposi~ao,
foram quase sempre
irrevogavelmente condenadas, a despeito do grau de influencia que as amantes de certas figuras proeminentes possam ter
alcan~ado.
As atitudes com reI~~ao amQssexualidade.tambem
eram
governadas par umJIli~tQ g~Jril<:li~ao natureza. Levantamene
tos antropol6gicos mostram que 0 numero de culturas que tolerava ou aprovava abertamente a homossexualidade -pelo
menos a masculina - era maior que 0 das que a proibiam. Por
Iexemplo, em algumas sociedades os meninos eram encorajados
~;:astabelecer rela~6es sexuais com homens mais velhos como
e
f!timaforma de instru;ao sexual. Esperava-se que essas atividades
';cessassem quando os rapazes ficassem noivos ou se casassem.
As sociedades que foram hostis a homossexualidade em genu
a condenaram como especificamente antinatural. As atitudes
ocidentais for am mais extremas que as da maioria; men os de
urn seculo atnis a homossexualidade.aindaera_arnplamente
encarada <:()moulllClperv.ersao_~ ~escrita <;9lPQ ~~)~)ivros
__
tal
de psiquiatria. .
'
EVident~mente:: hostilidade em rela;ao a homossexuali ~
dade ainda e difundida e a visao dualista das mulheres continua a ser sustentada por muitos - tanto horn ens quanto mulheres. No entanto, ao longo das 11ltirhasdecadas os principailS
elementos de nossas vidas sexuais no Ocidente mudaram de
uma maneira absolutamente fundamental. A separa~ao entre
sexualidade e reprodu~ao esta aprincfpio completa. Pela pri··
meira vez a sexualidade e algoaser descoberto, moldado, al,
terado.A sexualidade, que 'costumavaser definida tao estri
tamente em rela~ao ao casamento e a legitimidade, agora
pouca conexao tern com eles. Deverfamos ver a crescente
aceita~ao da homossexualidade nao apenas como urn tributo
a tolerancia liberal. Ela e urn resultado l6gico da separa~ao
entre sexualidade e reprodu~ao. A sexualidade que nao tern
contel1do deixa por defini~ao de ser dominada pela
heterossexualidade.
o que a maioria de seus defensores nos pafses ocidentais
chama de a famflia tradicional e de fato uma fase tardia,
transicional, que teve lugar no desenvolvimento da familia na
decada de 1950. Esta foi uma epoca em que a propor~ao de

mulheres que safa para trabalhar ainda era relativamente baixa e em que continuava sendo diffcil, especial mente para as
mulheres, obter 0 div6rcio sem estigma. No entanto, horn ens
e mulheres eram nessa epoca mais iguais do que haviam sido
anteriormente, tanto de fato quanto legalmente. A familia
havia deixado de ser uma entidade economica e 0 casamento
passou a ser visto como fundamentado no arnor romantico e
nao mais como contrato economicO: Desde entao, a familia
mudou muito mais.
Os detalhes variam de uma sociedade para outra, mas as
mesmas tendencias sac visfveis em quase toda parte no mund
industrializado.$6 uma minoria vive hoje no que poderia se
chamado de a familia padrag da decada de 195~-~mbos
0
pais moran do juntos com os filhos nascidos de seu casamento,
sendo a mae uma dona-:de-casa em tempo integral e 0 pai assegurando 0 sustent~Em alguns paises, mais de urn ter~o de todos
os nascimentosocorrem fora do matrimonio, enquanto a propor~ao de pessoas que vivem sozinhas elevou-se verticalmente
e parece tender a crescer ainda mais. Na maioria das socieda- des, como os Estados Unidos ou a Gra- Bretanha, 0 casamento '
continua muito prestigiado -, elas foram apropriadament~
chamadas de sociedades de intenso div6rcio, intenso casamento. Na Escandinavia, por outro lade, uma grande propor~ao
das pessoas que vivem juntas, inclusive quando ha filhos envolvidos, permanece solteira. Nada menos que urn quarto das
mulheres entre 18 e 35anos nos Estados Unidos e na Europa
declara nao pretender ter filhos - e parece estar dizendo a
verdade.
"'::.. todos os pafses continua existindo uma diversidade
Em
de form as de familia. Nos Estados Unidos, muitas pessoas,
em particular imigrantes recentes, ainda vivem segundo va-
lores tradicionais. A maior parte da vida familiar, porem, foi
transformada pelo surgimento do casal informal e da uniao
informal. :O.j:asam.E}tQ e~famm~Jot:!!aram-se
0 que d€!nominei no Capitulo 1"institui~6es-casca";-~inda sac chamados
pelos mesmos nomes, mas dentro deles seu caniter bcisico
mudouJNa familia tradi~iona1)b casal unido pelo casamento
era apenas uma parte, e com freqiienCia nao a principal, do
sistema familiar. La~os com os filhos e com outros parentes
tendiam a ser igualmente importantes, ou ate mais, na condu~ao diaria da vida social.~oje 0 casa'r)casado ou nao, esta
no cerne do que e a familia. 0 c~sal pasgm a se situar no
centro da vida familiar a medida que 0 papel economico da
familia declinou e 0 amor, ou oamor somado a atra~aO,sexual, se tornou a base da forma~ao dos la~os de casam~nto.
Um casal, uma vez constituido, tem sua hist6ria pr6pria e
exclusiva, sua pr6pria biografia. Euma'.' unidade baseada ..em
-..
comunica~ao ou intimidade emocional. iA ideia de intimidade,
como tantas outras no~6es familiares que discuto neste livro,
soa antiga mas e de fato novissima. Nunca no passado 0 casamento se baseou na intimidade - na comunica~ao emocional.
Isso era sem duvida importante para urn horn casamento, mas
nao 0 seu fundamento. Para o casal, e. A comuniea~ao e 0 meio
de estabelecer 0 la~o, acima de.qualquel"outro, e e a principal
base para sua continua~ao. t
Deveriamos reconheeer a notavel transi~ao que isso representa. As ideias de "uniao" e "nao-uniao" proporcionam agora
uma descri~ao mais acurada da arena da vida pessoal que as de
"casamento e a familia". Para n6s a pergunta "voce esta tendo
urn relacionamento?" e mais importante que "voce esta casado?" A ideia de relacionamento e tamberil surpreendentemente
.

,

recente. Na decada de 1960, ninguem falava de "relacionamentos". Nao se precisava disso, como nao se precisava falar em
termos de intimidade e compromisso. Na epoca 0 casamento
era 0 compromisso, como 0 atesta a existencia do casamento
for~ado.
.
~Na
familia tradicional, 0 casamento se assemelhava urn
pouco a um estado da natureza. Tanto para homens quanto para
mulheres, era definido como um estagio da vida que se esperava que a ampla maioria atravessasse. Os que permaneciam de
fora eram enearados com certo desprezo ou condescendencia
- em particular a solteirona, mas tambem 0 solteidio se 0 fosse pOl"tempo demais.
Embora estatisticamente 0 casamento ainda seja a condi~ao normal, para a maio ria das pessoas seu significado se transformou mais ou menos completamente. 0 casamento significa
que urn casal esta vivendo uma rela~ao estavel, e pode na verdade promover essa estabilidade, uma vez que envolve uma
declara~ao publica de eompromisso. No entanto, ele nao e mais
a principal base definidora da uniao.
A posi~ao das crian~as em tudo isto e interessante e urn
tanto paradoxal. Nossas atitudes em rela~ao as crian~as e a fsua prote~ao alteraram-se radicalmente ao longo de algumas
gera~6es passadas. Valorizamos tanto as erian~as em parte
porque elas se tornaram muito mais raras, e em parte pol"que a decisao de tel"urn filho agora muito difel"ente do que
foi para gera~6es anteriores. Na fainilia tradicional, os filhos
eram uma vantagem economica. Hoje, nos paises ocidentais,
urn filho, ao contnirio, representa urn grande encargo finaneeiro para os pais. A decisao de ter urn fitho e muito mais
definida e espedfica do que costumava ser, e e guiada por
neeessidades psicol6gicas e emocionais. as temores acerca

e
do efeito do div6rcio sobre os filhos e a existencia de Iuuitas farnflias sem pai tern de ser compreendidos contra 0 pane
de fundo das expectativas muito mais elevadas que temos
com rela~ao ao modo como as crian~as deveriarn ser cuidadas e protegidas.
~a
tres areas principais em que a comunica~ao emocional, e portanto a intimidade, estao substltuindo os velhos la~os que outrora uniam as pes soas - os relacionamentos sexuais e de arnor, os relacionamentos pais-filhos e tambd:m a
arnizade.
Para analisa-Ias quero usar a ideia do "relacionarnento
puro". Designo por isso urn relacionamento baseado na comunica~ao emocional, em que asrecompensas derivadas de tal comunica~ao sac a principal base para a continua~ao do relacionamento. Nao me refiro a uma rela~ao sexualmente pura.
Tampouco tenho em mente algo que existe na realidade. Estou
falando de uma ideia abstrata que nos ajuda a compreeJilder
mudan~as que estao ocorrendo n'o mundo. Cada uma das tres
areas que acabo de mencionar - os relacionamentos sexuais e
de arnor, os relacionamentos pais-filhos e a amizade - esta
tendendo a se aproximar desse modelo. A comunica~ao emodonal ou intimidade esta se tornando a chave para tudo que
elas envolvem.
o relacionarnento puro tern uma dinamica completarnente
diferente da de tip os mais tradicionais de la~os sociais. De'~pende de processos de confian~a ativa - a abertura de, si
I mesmo para 0 outro. Franqueza e a condi~ao basica da intimidade. 0 relacionamento puro e impIicitarnente democrati-'
co. Quando comecei a trabalhar no estudo dos relacionamentos intimos, Ii extensa literatura terapeutica e de auto-ajuda
na materia. Fiquei impressionado com algo que, acredito, nao

foi arnplamente percebido ou assinalado. Se considerarnos 0
modo como urn terapeuta ve urn born relacionamento - em .'
qualquer das tres esferas aqui mencionadas - notaremos al
existencia de urn impressionante paralelo com a democraci';
publica.
born relacionamento, nem preciso dizer, e urn ideal
- a maioria dos relacionamentos comuns nem sequer se
aproxima dele. Nao estou sugerindo que nossas re1a~6es com
c6njuges, amantes, filhos ou amigos nao sac com freqUencia confusas, conflituosas e insatisfat6rias. Mas os prindpios
da democracia sao tambem ideais, e tarnbem eles se encontram com freqUencia a uma distancia bastante grande da

o

e

realidade.
Urn born r~ionamen!2.
e 0 que se estabelece entre iguais,
em que cada parte tern iguais direitos e obriga~6es. Num relacionamento assim, cada pessoa tern respeito pela outra e deseja 0 melhor para ela. 0 relacionamento puro e baseado na comunidade, de tal modo que compreender 0 ponto de vista da
outra pessoa e essencial. A conversa, ou dimogo, e 0 que basicamente faz 0 relacionamento funcionar. -0 relacionamento funciona melhor se as pessoas nao escondem muita coisa uma da
outra preciso haver confian~a mutua. E a confian~a tern
de ser trabalhada; nao pode ser simplesmente pressuposta. Finalmente, urn born relacionarnento e aquele isento de poder
arbitrario, coer~ao e violencia.
. Cada uma dessas qualidades corresponde aos val ores da
polftica democratica. Numa democracia, todos sao iguais em
principio, e com a igualdade de direitos e de responsabilidades
vem - peto menos em prindpio - 0 respeito mutuo. 0 dimogo aberto e uma propriedade essencial da democracia. Os sistemas democraticos procuram substituir 0 poder autoritario,

e
ou 0 poder sedimentado da tradi~ao, pela discussao aberta das
quest6es - urn espa~o publico de dialogo. Nenhuma demoJ cracia pode funcionar sem confian~a. E a democracia e solapaiN da se ceder ao autoritarismoou
a violencia. 
if I .Quando aplicamos essesprincfpios - como ideais - a re,JlaclOnamentos, estamos falando de algo muito importante a poss!vel em~rgenci~ ~o que chamarei de u~ademocra~ia das
',Iemo~oes na vIda cOtidlana. Vma democracla das emo~6es, ao
que me parece, e exatamente tao importante quanto'a democracia publica para 0 aperfei~oamento da qualidade de nossas
vidas.
Isto se aplica aos relacionamentos entre pais e {!U.12S tanto
quanta a outras areas. Eles nao podem, e nao deveri~~- ser
materialmente iguais. as pais dev~.m terautQridade ...
sQQreos
filhos, no illt~ressedeJ()dos. N~-~~tanto, esses relacion~~~tos devet.-iam pressupor uma igualdade em principio. Numa
familia democratica, a autoridade dos pais deveria ser baseada
.~~~c()ntratQjJ!lpli~ito. a pai ou a mae,siizdefatoacrian~a:
"Se voce fosse urn.adu'lto, e soubesse 0 que eu sei, conconlaria
que 0 que estou pedindo que fa~a e born para voce." Nas lamilias tradicionais as crian~as deviam - e devem - s~r vistas e
nao ouvidas. Muitos pais, talvez derrotados pela rebe1dia.dos
filhos, gostariam muitissimo de ressuscitar essa regra. Mas nao
hcicomo retornar a ela, nemdeveria haver. Numa democracia
das emo~6es, as crian~as podem e devem ser capazes de
responder.
1

:

i

A democracia das emo~6es nao implica falta de disci,lina
ou ausencia de respeito. Simplesmente procura situa~los em
bases diferentes. Algo muito semelhante aconteceu na e5fera
publica quando a democracia come~ou a substituir 0 governo
arbitrario e 0 imperio da for~a.
'

A democrac!~_~~~.!!}0s:6~ nao faria quaisquer distin~6es
de principio entre relacionamentos heterossexuais e entre pessoas do mesmo sexo. Os gays, e nao os heterossexuais, foram
os pioneiros na descoberta do novo mundo dos relacionamentos e na explora~ao de suas possibilidades. Foram for~ados a
isso, pois quando a homossexualidade saiu do armario, os gays
nao tinham como depender dos amparos normais do casamento
tradicional.
Defender a promo~ao de uma democracia emocional nao
significa ser fraco com rela~ao aos deveres familiares, ou com
rela~ao a polftica publica voltada para a familia. A democracia significa a aceita~ao de obriga~6es, bem como de direitos sancionados em lei. A prote~ao das crian~as deve ser
o aspecto primordial da legisla~ao e da politica publica. as
pais deveriam ser legalmente obrigados a prover a subsistencia dos filhos ate que se tornem adultos, sejam quais forem
os arranjos de vida em que ingressem. 0 casamento nao e
mais uma institui~ao economica, no entanto, como urn compromisso ritual, pode ajudar a estabilizar relacionamentos
que de outro modo seriam frageis. Se isto se aplica a re1acionamentos heterossexuais, deve se aplicar tambem aos homossexuais.
Ha muitas perguntas a fazer sobre tudo isto - demais para
que as pudessemos responder num curto capitulo. A mais 6bvia e que me concentrei sobretudo em tendencias que afetain a
familia nos pafses ocidentais. Que dizer sobre regi6es em que a
familia permanece em grande parte intacta, como no caso da
China, pelo qual comecei? Irao as mudat:I~as observadas no
Ocidente tornar-se cada vez mais globais?
Penso que irao - que de fato ja estao se tornando. Nao
se trata de saber se as formas existentes de familia tradicio-
nal vao se modificar, mas quandoe como. Eu iria ainda mais
longe. 0 que descrevi como uma democracia emergente das
emo~6es esta na linha de frente daluta entre cosmopolhismo
e fundamentalismo que descrevi antes. A igualdade dos sexos e a liberdade sexual das mulheres, que sao incompatfveis com a famIlia tradicional, SaDanatema para os 3rupos
fundamentalistas. A oposi~ao a des e, de fato, uma das caracterfsticas definidoras do fundamentalismo por todo 0
mundo.
Ha muito 0 que temer em rela~ao ao estado da faroflia,
nos pafses ocident~s e em outros. E tao erroneo dizer que
toda forma de famflia e tao boa como qualqueroutra qiuanto
sustentar que 0 declInio da famIlia tradicional e urn desastre.
Eu viraria a argumenta~ao da direita polftica e fundamentalista
de cabe!ra para baixo. A persistencia da famflia tradicionalou de aspectos dela - em muitas partes do mundo e mms inquietante que seu declinio. 'Pois quais saD as mais importantes for!ras promotoras da democracia e do desenvolvimento
economico nos pafses mais pobres? Ora, precisamente a igualdade e a educa~ao das mulheres. E 0 que precisa ser mudado
para que isso se tome possIvel? Acima de tudo, a famIlia tradicional.
A ~gualdade sexual pao.e apenas um...pci.ndpio essen~
d~mocr~~ Ela e relevante para a felicidade e a realiza~~ pessoal. Muitas das mudan~as que a famIlia esta experimentando
SaDproblemaricas e dificeis. Mas levantamentos feitos nos EVA
e na Europa mostram que poucos querem retornar aos papeis
masculino e feminino tradicionais, ou a desigualdade legalmente
definida. Sempre que me sinto tentado a pensar que a familia
tradicional poderia aflnal de contas ser melhor, lembro do que

uma ria-avo me disse urn dia. Seu casamentQ...~r
sido dos
mai.§~~
tendo ela vivido com 0 mari~o po~ mais_de~ssenta @Q§.. Certa vez ela me confiou que tmha sldQ profunda~liz
.s:o~ ,ele durante todo esse tempo. Naquela epoca, nao havia safda.
No dia 9 de novembro de 1989 eu estava em Bedim, no que
era entao a Alemanha Ocidental. Alguns dos presentes a reuniao de que eu fora participar eram de Bedim Oriental. Urn
deles, que se ausentara durante aquela tarde, voltou depois urn
tanto alvororado. Estivera no lado oriental e the haviam dito
que 0 muro de Bedim estava prestes a ser aberto.
Com urn pequeno grupo de participantes, fomos a toda
pressa ate la. Estavam colocando escadas contra 0 muro, e comeramos a subi-las. Mas fomos obrigados a recuar por equipes de te1evisao que acabavam de chegar ao local. Eles tinham
de subir primeiro, diziam, para poder nos filmar sub indo as
escadas e chegando ao topo. Chegaram ate a convencer algumas pessoas a descer e subir duas vezes, para assegurar uma
boa tomada para a televisao.
Assim a hist6ria feita nos 61timos anos do seculo
A
televisao nao s6 chega primeiro, mas tambem encena 0 espetaculo. A seguir, pretendo defender a ideia de que, de certo modo,
as equipes de televisao tinham 0 direito de abrir seu caminho a
for~aate a frente. Pois a televisao influiu decisivamente para

e

xx.
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  • 1. Anthony Giddens Introdu~ao Mundo em descontrole Tradu9iio de MARIA LUIZA X. DE A. BORGES .! EDITORA RIO DE a RECORD JANEIRO "0 mundo esta numa correria, e esta chegando perto do fim" - assim falou um.certo arcebispo Wulfstan, num sermao proferido em York, no anode 1014. E facil imaginar os mesmos sentimentos sendo expressos hoje. Sao as esperan~as e ansiedades de cada periodo uma mera c6pia em carbono das de epocas anteriores? Ha realmente alguma diferen~a entre 0 mundo em que vivemos no termino do seculo xx e 0 de tempos passados? Hci razoes fortes e objetivas para se acreditar que estamos atravessando um perfodo importante de transi~ao hist6rica. A1em disso, as mudan~as que nos afetam nao estao confinadas a nenhuma cireado globo, estendendo-se quase por toda parte. Nossa epoca se desenvolveu sob 0 impacto da ciencia, da tecnologia e do pensamento racional, que tiveram origem na Europa dos seculos XVII e XVIII. A cultura industrial ocidental foi moldada pelo numinismo - pelos escritos de pensadores que se opunham a influencia da religiao e do dogma e. desejavam substitu{·los por uma abordagem mais radonal vida pratica. Os fil6sofos do Iluminismo observavam urn preceito simples mas obviamente muito poderoso. Quanto mais form os capazes de compreender racionalmente 0 mundo, e a n6s • SAO PAULO
  • 2. mesmos, mais poderemos moldar a hist6ria para nossos pr6· prios prop6sitos. Temos de nos libertar dos habitos e precon ceitos do passado a fim de controlar 0 futuro. Karl Marx, cujas ideias muito deveram ao pensamento iluminista, expressou essaconceps;ao em termos muito simples Temos de compreender a hist6ria, afirmou ele, a fim de fazet hist6ria. Orientados por essa no~ao, Marx e 0 marxismo rive· ram vasta influencia sobre 0 seculo XX. Seglindoessa concep~ao, C:Ql!t<>maiQt desenvolvimento da ciencia e da tecnologia 0 mundo iria se tomar mais estavel e ordenado. Ate muitos pensadores que se opunham a Marx acei taram essa ideia. 0 romancista George Orwell, por exemplo, anteviu uma sociedade com excessiva estabilidade t~ previsibilidade - em que nos tornarfamos todos minusculoi!l dentes de engrenagem numa vasta maquina social e economi· ca. 0 mesmo fizeram muitos pertsadores sociais, como 0 fa·· moso soci610go alemao Max Weber •.. o mundo em que nos encontramos hoje, no entanto, nao se parece muito. com 0 que eles previram. Em vez de estar cada vez mais sob nosso comando, parece urn mundo em descon· trole. Alem disso, algumas das influencias que, supunha-se all· tes, iriam tomar a vida mais segura e previsfvel para n6s, entre elas 0 progresso da ciencia e da tecnologia, tiveram muitas ve· zes 0 efeito totalmente oposto. A mudan~a do clima global e os riscos que a acompanham, por exemplo, resultam provavel~, mente de nossa interven~ao no ambiente, Nao sao fenomeno~ naturais. A ciencia e a tecnologia estao inevitavelmente envol· vidas em nossas tentarivas de fazer face a esses riscos, mas tam· hem contribufram para cria-Ios. . Deparamos situa~oes de risco que ninguem teve de enfrep" tar na hist6ria passada - das quais 0 aquecimento global e apenas uma. Muitos dos novos riscos e incertezas nos afetam onde quer que vivamos, nao importa qUaDprivilegiados ou carentes sejamos. Eles estao inextricavelmente ligados a globaliza~ao, esse pacote de mudan~as que e 0 assunto de todo este livro. A ciencia e a tecnologia tomaram-se elas pr6prias globalizadas. Calculou-se que 0 numero de cienristas que trabalham no mundo e maior hoje do que antes em toda a hist6ria da ciencia. Mas a globaliza~ao tern tambem uma diversidade de outras dimens6es. Ela poe em jogo outras formas de risco e incerteza, especialmente aqueIas envolvidasna economia eletronica global - ela pr6pria urn desenvolvimento muito recente. o risco esta estreitamente associado ,a inova~ao. Nem sempre cabe minimiza-Io; a uniao ativa dos riscos financeiro e empresarial e a for~a propulsora mesma da economia globalizante. Que e a globaliza~ao, e se ela representa alguma novidade, sa() foco de intenso debate. Discuto essa polemica no Capitulo' 1, ja que muitas outras coisas dependem dela. No entanto, os fatos da questao estao realmente bastante daros. A globaliza~ao esta reestruturando 0, modo como vivemos, e de uma maneira muito profunda. Ela e conduzida peIo Ocidente, carrega a forte marca do pader politico e economico americano e e extremamente desigual em suas conseqiiencias. Mas a globaliza~ao nao e apenas 0 dominio do Ocidente sobre os demais; afeta os Estados Unidos tanto quanto outros paises. Alem disso, a globaliza~ao influencia a vida cotidiana tanto quanto eventos que ocorrem numa escala global. E por isso que este livro inclui uma extensa discussao sobre sexualidade, casamento e a familia. Na maior parte do mundo, as mulheres estao reivindicando mais autonomia que no passado e ingress$ldo na for~a de trabalho em grandes numeros. Esses aspec- tos da globaliza~ao ~a'opelo menos tao importantes quanto os
  • 3. que tern lugar no mercado global. Eles contribuem para 0 estresse e as tens6es que afetam os modos de vida e as culturas tradicionais na maior parte das regi6es do mundo. A familia tradicional esta amea~ada, esta mudando, e vai mudar muito mais. Outras tradi~6es, como as associadas a religiao, estao tambem passando por transforma~6es de vulto ..Qfundamentalismo tern origem num mundo de tradi~6es que se esboroam. 0 campo de batalha do seculo XXI ira opor 0 fundamentalismo a tolerancia cosmopolita. Num mundo globalizante, em que informa~ao e imagens sac ~otineiramente transmitidas atrayeS do mundo, estamos todos regularmente em contato com outros que pensam, e vivem, de maneira diferente de nos. Os cosmopolitas acolhem essa complexidade cultural com satisfa· ~ao e a abra~am. Os fundamentalistas a veem como perturbad ora e perigosa. Seja nos campos da religiao, da identidade etnica ou do nacionalismo, eles se refugiam numa tradi~ao renovada e purificada - e, com mui.ta freqiiencia,na violencia. .. Podemos legitimamente alimentar a esperan~a de que uma ~ perspectiva cosmopolita acabara por veneer. Tolerancia a & versidade cultural e democracia estao estreitamente vinculadas~ e a democracia esta atualmente se espalhandopor todo 0 mun· do. A globaliza~ao esta por tras da expansao da democrada. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, ela exp6e os limites dal estruturas democraticas mais conhecidas, isto e, as estrutural da democracia parlamentar. Precisamos democratizar mais as institui~6es existentes, e faze-Io de modo a atender as exigen,. cias da era global. Nunca seremos capazes de nos tornar os senhores de nossa propria historia, mas podemos e devemos encontrar meios de tomar as redeas do nosso mundo em des,. controle. Globaliza~ao Vma amiga minha estuda a vida aldea na Africa central. Alguns anos atras, ela fez sua primeira visita a area remota onde devia realizar seu trabalho de campo. No dia em que chegou, foi convidada para urn divertimento noturno numa casa do lugar. Esperava travar conhecimento com os passatempos tradicionais daquela comunidade. Emvez disso, constatou que se tratava de assistir a Instinto selvagem em video. Naquela epoca, 0 fHme nem sequer tinha chegado aos cinemas de Londres. Historias como esta revelam alguma coisa sobre 0 nosso mundo. Eo que revelam nao e sem importancia. Nao e apenas uma questao de pessoas acrescentando uma parafernaIia moderna - videos, aparelhos de televisao, computadores pessoais e assim por diante - a seus modos de vida preexistentes. Vivemos num mundo de transforma~6es, que afetam quase todos os aspectos do que fazemos. Para hem ou para mal, estamos sendo impelidos rump a uma ordem global que ninguem compreende plenamente mas cujosefeitos se fazem sen- tir sobre todos nos.
  • 4. Globaliza~ao pode nao ser uma palavra particularmente atraente ou e1egante. Mas absolutamente ninguem que queira compreender nossas perspectivas no final do seculo pode ignora-Ia. Viajo muito para falar no exterior. Nao estive em urn unico pais recentemente em que a globaliza~ao nao esteja sendo intensamente discutida. Na Fran~a, a palavra e mondialisation. Na Espanha e na America Latina, globalizaci6n. Os alemaes dizem Globalisierung. A difusao global do termo e indicadora dos pr6prios desenvolvimentos a que ele se refere. Todo guru dos neg6cios fala sobre e1e. Nenhum discurso politico e completo sem referencia a ele. No entanto, ate 0 final da decada de 1980 0 termo quase nao era usado, seja na:literatura.academica ou nalinguagem cotidiana. Surgiu de lugar nenhum para estar em, quase toda parte. Dada sua subita popularidade, nao nos deveria surpreender que 0 significado do conceito nem sempre seja claro, ou que ele tenha provocado uma rea~ao intelectuaI. A globaliza~ao tern algo a ver com a tese de que agora vivemos todos num unico mundo - mas exatamente de que maneira, e e essa ideia realmente valida? Diferentes pensadores adotaram opinioes quase diametralmente opostas sobre a globaliza~ao em debates que pipocaram ao loilgo dos ultimos anos. Alguns questionam tudoo que se refere a ela. Eu os chamarei de ceticos. Segundo os ceticos, toda a conversa em torno da globaliza~ao nao passa disso - e mera conversa. Sejam quais forem seus beneficios, seus percal~os e tribula~oes, a econol11iaglobal nao e especialmente diferente da que existiu em perfod08 anteriores. 0 mundo continua muito parecido com 0 que foi por muitos anos. A maioria dos paises, argumentam os ceticos, aufere apenas umapequena parcela de sua receita do comercio exterior. Alem disso, boa parte do intercambio econ6mico se da entre regioes, nao num ambito verdadeiramente mundial. Os paises da Uniao Europeia, pot exemplo, comerciam prineipaimente entre eles mesmos. 0 mesmo pode ser dito dos outros blocos comerciais importantes, como os da Asia-Pacffico ou da America do Norte. Outros assumem uma posi~ao muito diversa. Eu os chamarei de radicais. Os radicais sustentarn nao s6 que a globaliza~ao e muito real, como que suas conseqiiencias podem ser sentidas em toda parte. 0 mercado global, dizem eles, esta muito mais desenvolvido do que mesmo nas decadas de 1960e 1970 e e indiferente a fronteiras nacionais. As na~oes perderam a maior parte da soberania que possufam outrora, e os politicos perderam a maior parte de sua capacidade de influenciar os eventos. Nao e de surpreender que ninguem mais respeite lideres politicos, ou tenha muito interesse no que eles possam ter a dizer. A.~~~.~~ e~taclQ~l1a~aQesta encerrad<l.1'~.g<ls6es,.como 0 ex~1/ p~~.~SQuKeni~hi.Ohmae,.es<:dXQrj<lpones tk~adeIleg6-dos, da ~~~E!1<lram-se as "fiq:qes~'..ES.critores como Ohmae veem as mer dificui(i~d~;~cc;n6mi~~ dacriseasiaticage 1998 como demonstra~6es da realidade da globaliza~ao, ainda que vista sob seu aspecto destrutivo. } Os ceticos tend em a se situar na esquerda polftica, sobretudo na velha esquerda. Pois, se tudo isso for essencialmente urn mito, os governos continuam capazes de controlar a vida econ6mica e o,.1:!!elfare state permanece intacto. A nQ~iiQde glopaliza!;aol~' segundo os ceticos, e uma ideologia espalhada por adeptos do livre mercado que desejam demolir sistemas deprevidencia social ereduzir despesas do Estado. 0 que aconteceu e no
  • 5. maximo uma reversao ao modo como 0 mundo era urn seculo atras. No final do seculo XIX ja havia uma economia global aberta, com consideravel quantidade de comercio, inclusive comercio de moedas. Na nova economia e1etronica global, administradores de fund os, bancos, empresas, assim como milhoes de investidores individuais, podem transferir vastas quantidades de capital <lie urn lado do mundo para outro ao clique de urn mouse. Ao faze· 10, podem desestabilizar economias que pareciam de inaballvel solidez - como aconteceu na Asia. o volume das transa~oes financeiras mundiais e geralmellte medido em d6lares norte-american os. Urn' milhao de d61ares e muito dinheiro para a maioria das pessoas. Medidos na forma de uma pilha de cedulas de cern d61ares, teriam mais de vinte centfmetros de altura. Urn bilhao de d61ares - em ou· tras palavras, mil milhoes - formariam uma pilhamais altla que a catedral de Saint Paul. A pilha de urn trilhao de dolare.s - urn milhao de mil hoes - teria maisde 193 quilometros de altura, vinte vezes mais que 0 monte Everest. Contudo, muito mais que urn trilhao de dol ares saD atualmente movimentados a cada dia nos mercados globais demoedas. Isso ja representa urn enorme aurnento em re1a~ao ao final da decada de 1980, que dira a urn passado mais distante. 0 valor de qualquer dinheiro que possamos ter no bolso, ou em nossas contas bancarias, altera-se de urn momenta para outro segundo flutua~oes ocorridas nesses mercados. Eu nao hesitaria, portanto, em dizer que a globaliza~ao, tal como a estamos experimentando, e sob muitos aspectos nao s6 nova, mas tambem revolucionaria. Na.o acredito, porem,que nem os ceticos nem os radicais tenham compreendido correta· mente nem 0 que ela nem suas implicag5es para nos. Ambo!!! e, os grupos veem 0 fenomeno quase exc1usivamente em termos, economicos. Isso e urn erro. A globaliza~ao e polftica,l"l // tecnol6gica e cultural, tanto quanto economica. Foi influenci- y., ada acima de tudo por desenvolvimentosnos sistemas de co- J munica~ao que remontam apenasao final da decada de 1960. Em meados do seculo XIX, umpintor de retratos de Massachusetts, Samuel Morse, transmitiu a primeira mensagem, "Qualfoi a obra de Deus?", por telegrafo e1etrico. Ao faz~-lo, deu inicio a uma nova fase na hist6riadomundo. Nunca antes uma mensagem puder a ser enviada semque alguem a transportasse ate algum lugar. Contudo, 0 advento das comunica~oes por satelite marca uma ruptura com 0 passado igualmente drastica. 0 primeiro satelite comercial foi langado apenas em 1969. Agora ha mais de duzentos desses satelites sobre a Terra, cada urn transmitindo uma vasta amplitude de informagao. Pela primeira vez, a comunica~ao instantanea de urn lado a outro do mundo e possive!. Outros tipos- de comunicagao eletronica, cada vez mais integrados a transmissao por satelite, tambem se aceleraram durante os ultimos anos. Ate 0 final da; decada de 1950 nao existia nenhum cabo transatlantico ou transpacifico exclusivo. Os primeiros comportavam menos de cern canais de voz. Os de hoje conduzem mais de urn milhao. No dia 1° de fevereiro de 1999, cercade 150 anos depois que Morse inventou seu sistema de pontos e tragos, 0 c6digo Morse finalmente desapareceu da cena mundial. Deixou de ser usado como meio de comunicagao para 0 mar. Em seu lugar foi introduzido urn sistema que utiliza tecnologiade satelite, pe10 qual qualquer embarca~ao em dificuldade pode ser predsamente localizada de imediato. A maioria dos proses se preparou para a transigao algum tempo antes. Os franceses, por exemplo, deixaram de usar 0 c6digo Morse em suas aguas locais em
  • 6. 1997, anunciando 0 fim da ultima transmissao com urn floreio gaules: "Chamada geral. Este enosso ultimo brado antes de nosso silencio eterno." A comunica~ao eletr6nica instantanea nao e apenas urn meio pelo qual noticias ou informa~6es sac transmitidas mais rapidamente. Sua existencia altera a pr6pria estrutura de nossas vidas, quer sejamos ricos ou pobres. Quando a imagem de Nelson Mandela pode ser mais familiar para n6s que 0 rosto do nosso vizinho de porta, alguma coisa mudou na natureza da ". experiencia cotidiana. Nelson Mandela e uma celebridade global, e a pr6pria ce,_ lebridade e em grande parte urn produto da nova tecnologia c:" ~tas comunica~oes. 0 alc~ce das_tecnologias de m~d~aesra cresy 'cendo com cada onda de mova~ao. Foram necessarlOS quaren'1 ta anos para que 0 radio atingisse nos Estados Unidos uma au,~ i diencia de SO milh6es. 0 mesmo mlmero de pessoas estava r:: usando computadores apenas lS anos ap6s a introdu~aodesII' f sas maquinas. Depois que a Internet se tornou disponivel, fo" , ram necessarios meros quatro anos para que SO milh6es de americanos a estivessem usando regularmente. , E errado pensar que a globaliza~~o afeta unicamente os gran des sistemas, como a ordem financeira mundial. A globaliza~ao nao diz respeito apenas ao que esta "Ia fora' afas· , tado e muito distante do individuo. E tambem urn fen6meno que se da "aqui dentro", influenciando aspectos intimos e pes., ; ii~OaiS nossas vidas. 0 debate sabre valores familiares que esta de ',e desenvolvendo em varios pafses, por exemplo, poderia pa· ' I ~ec~r muito dis~~cia~o de in~~encias globalizantes. Mas nao e. SIstemas tradiClOnaISde familIa estao come~ando a ser trans1formados, ou estao sob tensao,especialmente a medida que as ; mulheres reivindicam maior igualdade. Ate ~nde sabemos pelo registro hist6rico,jamais houve antes uma .sociedade em que as mulheres fossem sequer aproximadamente iguais aos homens. Esta e uma revolu~ao verdadeiramente global da vida cotidiana, cujas conseqiiencias estao sendo sentidas no mundo todo, em esferas que VaGdo trabalho' a politica. A globaliza~ao nao e portanto um processo singular, mas um conjunto complexo de processos. E estes operam de uma maneira contradit6ria au antag6nica. A maioria das pessoas pensa que a globaliza~ao esta simplesmente "retirando" poder ou influencia de comunidades locais e na~6es para transferi-Io para a arena global. E realmente esta e uma de suas conseqiiencias. As na~6es perdem de fato parte do poder econ6mico que antes possufam. Contudo, ela tern tambem 0 efeito oposto. A globaliza~ao nao somente puxa para cima, mas tambem empurra para baixo, criando novas press6es por autonomia local. 0 soci610go americano Daniel Bell descreve isso muito bem quando diz que a na~ao se torna nao s6 pequena demais para resolver os grandes problemas, como tambem grande demais para resolver os pequenos. A globaliza~ao e a razao do ressurgimento de identidades culturais locais em varias partes do mundo. Se alguem pergunta, por exemplo, por que os escoceses querem mais independencia no Reino Unido, ou por que ha um forte movimento separatista em Quebec, nao podera encontrar a resposta apenas na hist6ria cultural deles. Nacionalismos locais brotam como uma resposta a tendencias globalizantes, a medida que 0 dominio de estados nacionais mais antigos enfraquece. A globaliza~ao pressiona tambem para os lados. Crianovas zonas econ6micas e culturais dentro e an-aves das na~6es. Exem:pIos sao a regUia de Horig Kong, 0 norte da ItaIia e 0 Vale dQ Silicio naCalif6rnia. Ou considere aregHio de Barcelona. A area
  • 7. em torno de Barcelona, no norte da Espanha, se estende pela Fran~a. A Catalunha, .onde Barcelona se situa, esta estreitamente integrada a Uniao Europeia.Eparte da Espanha, no entanto olha tambem para fora. Essas mudan~as estao sendo impelidas por uma serie de fatores, algunsestruturais, outros mais especfficos e hist6ricos. Influencias economicas estao certamente entre as for~as propulsoras - especialmente o sistema financeiro global. Elas nao SaD, contudo, como for~as da natureza. Foram moldadas pda tecnologia e pela difusao cultural, assim como pelas decisoes tomadas pelos governos para liberalizar e desregulamentar suas economias nacionais. o colapso do comunismo sovietico deu maior peso a esses desenvolvimentos, uma vez quenenhum grupo expressivo de paises permanece fora de1es._ Esse colapso nao foi apenas alga que simplesmente aconteceu. A globaliza~ao explicatanto por que quanta como 0 comunismosovietico acabou. Aex·Uniao Sovietica e os paises da Europa oriental tinham taxas de crescimento companiveis as' dos paises ocidentais ate por volta do inicio da decada de 1970. Dessa altura em diante, passaram a ficar rapidamente para tras. 0 comunismo sovietico, com sua enfase na.empresa dirigida pelo Estado e na industria pesada nao podia competir na economia eletronica global.-De maneira semelhante, 0 controle ideol6gico e cultural em que a autoridade polftica comunista se baseava nao podia sobreviver numa era de mfdia global. Os regimes sovietico e.da Europa oriental foram incapazes de evitar a recep!Jao de transmissoes ocidentais de radio e televisao. A televisao desempenhou urn pape! direto nas revolu~oes de 1989, que foram corretamente chamadas de asprimei. ras "revolu!Joes da televisao". Protestos de-rua que ocorriam num lugar eram assistidos em outrospor publicos de televisao, grande parte dos quais ia tambem para as ruas. Evidentemente, a globaliza!Jao nao esta se desenvolvendo de uma maneira eqUitativa, e esta longe de ser inteiramente rbenefica em suas conseqUencias. Para muitos que vivem fora da Europa e da America do Norte, ela tern a desagradavel aparencia de uma ocidentaliza!Jao - ou, talvez, de uma americaniza!Jao, uma vez que os EVA saDagora a unica superpotencia, com uma posi!Jao economica, cultural e militardominante na ordem global. Muitas das expressoes culturais mais visiveis da globaliza!Jao SaDamericanas - Coca-Cola, McDonald's, CNN. A maioria das empresas multinacionais gigantes e tambem sediada nos EVA. Todas as que nao saD vem de palses ricos, nao das areas mais pobres do mundo. Vma visao pessimista da globaliza!Jao a consideraria em grande parte urn neg6cio do Norte industrializado, em que as sociedades em desenvolvimento do SuI tern pouco ou nenhum papel ativo. Ela estaria destruindo culturas locais, ampliando desigualdades mundiais e piorando a sorte dos empobrecidos. A globaliza!Jao, sustentam; alguns, cria urn mundo de vencedores e perdedores, urn peque-,~"'" no numero na via expressa para a prosperidade, a maioria con- .i denada a uma vida de miseria e desesperan!Ja. De fato, as estatisticas saD desalentadoras. A participa!Jao da quinta parte maispobredapopula!Jaodo mundona renda global caiu de 2,3% para 1,4% entre 1989 e 1998. Apropor~~()apropriada pela qllintaparte mais rica, por outrolado, su,,·, biu. Na Africa subsaariana, vinte pafses tern renda per capita em termos reais mais baixa que no finaldadecada.de ..1970. Em muitos paises menos desenvolvidos, regulamenta~oes de seguran!Ja e de preserva~ao do meio ambiente sac pratic;amente inexistentes. Algumas empresas transnacionais vendem ali /,
  • 8. produtos controlados ou proibidos nos paises industrializados :,_ medicamentos de baixa qualidade, pesticidas destrutivosou i .cigarros com elevado teor dealcatrao e nicotina. Seria possivel dizer que isso pareee menos uma aldeia global que uma pilha" 'gem global. Ao lado do risco ecologicb, a que esta ligada, a crescente desigualdade e 0 problema mais serio com que a sociedade global se defronta. Nao adiapta, porem, simplesmente lan~ar' a culpa sobre os ricos. E fundamental na minha argumenta~a() a ideia de que a globaliza~ao hoje e apenas parcialmente uma ocidentaliza~ao. E claro que as na~6es ocidentais, ede modo mais geral os paises industrializados, ainda tern uma influencia muito maior sobre os negocios mundiais que os estados mais pobres. Mas a globaliza~ao estase tomando cada vez mais descentralizada - nao submetida ao controle de nenhum grupo de na~6es, e menos ainda das gran des empresas. Seus efeitos saD sentidos tanto nos paises ocidentais quanto em qualquer outro lugar. ' Isto se aplica ao sistema financeiro global e a mudan~as que afetam a natureza do)propriogovemo. 0 que poderiamos chamar de "eoloniza~ao inversa"esta se tomando cada vez mais comum:C6Ioiiiza~ao inv~rsa significa que pais~$D_~Q::(lcident!1ris influenciam desenv()lvime-ntQ$DO. Ocidente: Os exemplos sio muitos·--' comoa.latiniza~ao de Los Angeles, a emergenciaJ.i~ _ urn setor de alta tecnologia glob~mente' orientado fndia, ou a venda de programas de tdevisacfhtasIldrps para Portugal. E a globaliza~ao uma for~a que promove -ob~~geral? A questao nao pode ser respondida de uma maneira simples, dada a complexidade do fenomeno. As pessoas que a formulam, e que aeusam a globaliza~ao de estar aprofundando as desigualdades mundiais, tern em mente em geral a globa1iza~ao economica e, na dentro disso, 0 livre comercio. Ora, e sem duvida obvio que 0 livre comercio nao e urn beneficio absoluto. Isso e especialmente verdade no que dizrespeito aos paises menos desenvolvidos. A aberturade urn pais, ou de uma regiao de urn pais, ao livre comercio pode solapar uma economia local de subsistencia. Uma area que se torna dependente de urn pequeno numero de produtos vendidos em mercados mundiais fica muiro vulneravel tanto a altera~6es nos pre~os quanta a mudan~a tecnologica. Tal como outras formas de desenvolvimento economico, 0 comercio sempre requer uma estrutura de institui~6es. Nao e 'possivel criar mercados por meios puramente economieos e 0 grau em que dada economia deveria ser exposta ao mercado mundial depende de uma serie de criterios. No entanto, resistir a globaliza~ao economica, optando pelo protecionismo ceonomico, seria uma tatica equivocada tanto para as na~6es ricas quanto para as pobres. 0 protecionismo pode ser uma estrategia necessaria em alguns momentos e em alguns paises. Na minha opiniao, por exemplo, a Malasia estava certa quando, em 1998, introduziu controles para conter a saida de capitais do pais. Formas mais permanentes de protecionismo, porem, nao favorececao 0 desenvolvimento dos paises pobres, e entre os ricos levariam a blocos de comercio conflitantes. Os debates sobre a globaliza~ao que mencionei no inicio se concentraram sobretudo em suas implica~6espara 0 estadona~ao. Sao ainda poderosos os estados-na~6es, e portanto os lfderes polfticos nacionais, ou estao se tomando em grande parte irre1evantes para as for~as que moldam 0 mundo? Na verdade estados-na~6es continuam poderosos e os lideres politicos tern urn grande papd a desempenhar no mundo. Contudo, ao mesmo tempo 0 estado·na~ao esta sendo transform ado ante nossos olhos.A politica economica nacional ja nao pode ser tao eficaz
  • 9. quanta no passado. E, 0 que e roais importante, as na~oes tem de repensar suas identidades agora que as formas mais antig3i degeopoHtica estao se tornando obsoletas.Embora esta sej. uma ideia controversa, eu diriaque,ap6s adissolu~ao da guetw ra fria, a maioria das na~oes nao tern mais inimigos. Quem SaG os inimigos da Gra-Bretanha, ouda Fran~a, ou do Brasil? A guerra em Kosovo nao lan~ou na~ao contra na~ao. Foi urn con~· flito entre 0 nacionalismo territorial de estilo antigo e urn novo intervencionismo, de inspira~ao·etica. As na~oes enfrentam hoje antes riscos e perigos que inimi" gos, 0 que representa uma enorme transformalrao em sua pr6,. pria natureza. Estes .comentarios nao se aplicam somente as na·· lr0es. Para onde quer que olhemos, vemos instituilroesque, de fora, parecem as mesmas de sempre, e exibem os mesmos nomes, mas que por dentro se tornaram muito diferentes. Conti·· nuamos a falar da nalrao, da familia, do trabalho, da tradi~o, da natureza, como se todos continuassem iguais ao que foram no passado. Nao continuam. A casca permanece, mas por dentro eles mudaram - e isto esm ac'ontecendo nao s6 nos EUA, na Gra-Bretanha ou na Fran~ mas em quase toda parte. Sao o que: chamamos "institui~oes-casca"ihstitui~oes que se tornaram inadequadas para as fun!roes que sao chamadas a desempenhar .. A medida que ganham for~a, as mudan~quedescrevi nes· te capitulo estao criando algo que nunca existiu antes, uma socie· dade cosmopolita global. Somos a primeira gera!rao a vivernes· sa sociedade, cujos contornos ate agora s6podemos perceber indistintamente. Ela esta sacudindo nosso modo de vida atual nao importa 0 que sejamos. Nao se trata - pelo menos no mo· mento - de uma ordem global conduzida por uma vontade hu· mana coletiva. Ao contrario, e1aesta emergindo de umamanei· ra anaxquica, fortuita, trazida por uma misttlra de influencias. j Ela nao e firme nemsegura, mas repleta de ansiedades, bem como marcada por pro fund as divisoes. Muitos de n6s nos sentimos presos as garras de for~as sobre as quais nao temos poder. Podemos sujeita-Ias novamente a nossa vontade? Acredito que sim. A impotencia que experimentamos nao e urn sinal de deficiencias individuais, mas reflete a incapacidade de nossas institui~oes. Precisamos reconstruir as que temos, ou criar novas. Pois a globaliza~ao nao e urn acidente em nossas vidas hoje. E uma mudan~a de nossas pr6prias circunstancias de vida. E 0 modo como vivemos agora.
  • 10. Julho de 1998 foi possivelmente 0 mes mais quente na hist6ria do mundo e 1998, como urn todo, talvez tenha sido 0 ano mais qucnte. Ondas de calor causaram devasta~ao em muitas areas do hcmisferio norte. Em Eilat, em Israel, as temperaturas se elcvaram a quase 46° C, enquanto 0 consumo de agua no pais se elevou em 40%. 0 Texas, nos Estados Unidos, experimentou temperaturas nao muito inferiores a essa. Em todos os oito primeiros meses do ano a temperatura recorde para aquele mes foi superada. Pouco tempo depois, no entanto, em algumas das areas afetadas pelas ondas de calor, nevou em lugares onde isso nunca ocorrera. Secao altera~6es de temperatura como estas resultado da interferencia humana no clima do planeta? Nao podemos saber ao certo, mas temos de admitir a possibilidade de que sejam, como tambem 0 crescente mlmero de furac6es, tuf6es e tempestades registrado nbs ultimos anos. Em conseqiiencia do desenvolvimento industrial global, talvez tenhamos alter ado 0 clima do mundo, alem de ter danificado uma parte muito maior de nosso habitat terrestre. Nao sabemos que outras mudan~as vicao, ou que perigos e1astrarao em sua esteira.
  • 11. Podemos compreender essas questoes dizendo que elas es· tao ligadas a risco. Tenho a esperan~a de convence-Ios de que esta concep~ao aparentemente simples desvenda algumas das caracteristicas mais fundamentais do mundo em que vivemos agora. A primeira vista, 0 conceito de risco pode parecer destitu· fdo de qualquer relevancia especffica para os nossos tempos em rela~ao a epocas anteriores. Afinal, nao for am as pessoas sem" pre obrigadas a enfrentar sua razoavel parcela de riscos? A vida para a maioria na Idade Media europeia era penosa, brutal e curta - como e hoje para muitos nas areas mais pobres do mundo. Deparamo-nos aqui, porem, com algo realmente interes sante. Salvo por alguns contextos marginais, na Idade Medh. nao havia nenhum conceito de risco. Ele tampouco existia ate onde pude apurar, na maior parte das demais culturas tra· dicionais. A ideia de risco parece ter se estabeIecido nos secu los XVI e XVII, e foi originalmente cunhada por explorado· res ocidentais ao partir em para suas viagens pelo mundo.A palavra "risk" parece ter se introduzido no ingles atraves do espanhol ou do portugues, lfnguas em que era usada para designar a navega~ao rumo a aguas nao cartografadas. Em outras palavras, original mente e1a possuia uma orienta~ao espadal. Mais tarde, passou a ser transferida para 0 tempo, tal como usada em transa~oes bancarias e de investimento) para designar 0 caIculo das conseqtiencias provaveisde deci· soes de investimento para os que emprestavam e os que con· traiam emprestimos. Mais tarde passou a designar umaam· pIa esfera de outras situa~oes de incerteza. Nao se pode dizer que uma pessoa esta correndo urn risco quando urn resultado e 1000/0 certo. j • Uma velha piada eludda muito bem essa ideia. Urn horn em salta do alto de urn arranha-ceu de cern andares. A medida que vai passando pel os vcirios andares, na sua descida, as pessoas dentro do predio 0 ouvem dizer: "ate agora, tudo bem", "ate agora, tudo bem" ... Ele age como se estivesse fazendo urn ca!culo de risco, mas 0 resultado esta de fato determinado. As culturas tradicionais nao tinham urn conceito de.risco porque nao precisavam disso. Risco nao e 0 mesmo que infortt1nio ou perigo. Risco se refere a infortt1nios ativamente avaliados em rela~ao a possibilidades futuras. A palavra s6 passa a ser amplamente utilizada em sociedadesorientadas para 0 futuro - que veem 0 futuro precisamente como urn territ6rio a ser conquistado ou colonizado~ 0 conceito de risco pressup6c uma sociedade que tenta ativamente romper com seu passado - de fato, a caracterfstica primordial da civiliza~ao industrial moderna. Todas as culturas anteriores, entre as quais as primeiras grandes civiliza~oes do mundo, como Roma, ou a China tradicional, viveram sobretudo no passado. Usavam as ideias de destino, sorte ou a vontade dos deuses onde agora tendemos a usar risco. Nas culturas tradicionais, se alguem sofre urn infortt1nio, ou, ao contrario, prospera:"'" bem, essas coisas acontecem, ou esse era 0 designio dos deuses e dos espiritos. Algumas culturas negaram por completo a ideia de acontecimentos casuais. Os azandes, uma tribo africana, acreditam que 0 informnio que se abate sobre alguem e resultado de feiti~aria. Uma pessoa adoece, por exemplo, porque urn inimigo andou praticando magia negra. E claro que essas ideias nao desaparecem completamente com a moderniza~a6. No~oes magicas, conceitos de destino e cosmologia ainda tern influencia. Mas com freqtiencia elas
  • 12. perseveram como supersti~oes em que so se acreditapela metade e que se segue com certoembara~o. As pessoas as usam para respaldar suas decisoes de uma natureza mais calculista. A maioria dos jog adores, e isso inclui os que jogam na bolsa de valores, tern rituais que reduzem psicologicamente as incertezas que tern de enfrentar. 0 mesmo se aplica a muitos riscos que nao podemos deixar de correr, urna vez que estar vivo e, por defini~ao, urn neg6cio arriscado. Nao surpreende em absoluto que pessoas continuem consultando astrologos, especialmente em momentos decisivos de suas vidas. No entanto, a aceita~aodo risco e tambem condi~ao para entusiasmo e aventura- pense nos prazeres que certas pessoas obtem dos riscos de jogar, de dirigir em alta velocidade, do aventureirismo sexual, ou do m~rgulho de urna montanha-russa de parque de diversoes. Alem disso, uma plena aceita~ao do risco e a propria fonte daquela energia que gera riqueza numa economia modema. Os dois aspectos do risco - seus lados negativo e positivo - se manifestarn desde os primordios da sociedade industrial moderna. 0 risco e a dinannca mobilizadora de uma sociedade propensa a mudan~a, que deseja determinar seu proprio fu" turo em vez de confia-Io a religiao, a tradi~ao ou aos caprichos da natureza. 0 capitalismo moderno difere de todas as formas anteriores de sistema economico em suas atitudes em rela~ao ao futuro. Os tipos de empreendimento de mercado anterio, res eram irregulares ou parciais. As atividades dos mercadores e negociantes, por exemplo, nWlca tiveram urn efeito mnito pro' fundo na estrutura basica das civiliza~6es tradicionais, que per' maneceram amplamente agrfcolas e rurais. capitalismo moderno insere-se no futuro ao calcular lucro e perda futuros, e portanto risco, como urn processo continuo. o Isso nao podia ser feito ate que a contabilidade com partidas dobradas foi inventada no seculo naEuropa, tornando possive! acompanhar precisamentecomo se podiainvestir dinheiro paraganhar mais dinheiro.Ha muitos riscos, e claro, como os que afetam a saude, que desejamos reduzir tanto quanta possivel. E por isso que, desde assuas origens, a no~ao de risco e acompanhada pelo desenvolvimento dos sistemas de seguro. Nao deverfamos pensar somente em seguros pessoais ou comerciais aqui. 0 welfare state, cujo desenvolvimento pode ser retra~ado ate ,as leis de assistencia social elisabetanas na Inglaterra, e essencialmente um sistema de administra~ao do risco. Destina-se aproteger contra informniosque antes eram tratados como designio dos deuses -. doen~a, invalidez, perda do emprego e velhice. segura e a base a partir da qual as pessoas estao dispostas a assumir riscos. E a base da seguridade onde 0 destino foi desalojado por compromisso ativo c'om 0 futuro. Como a ideia de risco, as formas modernas de seguro tiveram infcio na vida nautica. Os primeiros seguros maritimos foram lavrados no seculo XVI. Em 1782 urn contrato de seguro cobrindo riscos alem-mar foi firmado pela primeira vez por uma companhia de Londres. Pouco depois a Lloyds of London assumiu uma posi~ao de lideran~a na emergente industria dos seguros, posi~ao que manteve durante dois seculos. Seguro e algo s6 concebivel quando acreditamos num futuro humanamente arquitetado. E urn dos meios de operar esse planejamento. Diz respeito a provisao de seguran~a, mas de fato e parasita do risco e das atitudes das pessoas com rela~ao a ele. Os que fornecem seguro, seja na forma do segura privado ou dos sistemas estatais de seguridade, essencialmente estao apenas redistribuindo risco. Se alguem faz urn seguro contra incendio xv o
  • 13. ~ 'j '",> Anthony Giddens ' I J'X' ,~. . I, "para sua casa, 0 risco nao desaparece. 0 dono da casa transfe~ re 0 risco para a seguradora em troca de pagamento. 0 comercio e a transferencia do risco nao formam urn aspecto meramente casual de uma economia capitalista. De fato 0 capitalismo e impen~~y~l e impraticavel-sem..d.e. -- ,(4<36. . Po~"estas raz6es, a ideia de risco·sempre esteve envolvida na modernidade, mas quero demonstrar que, no periodo atuaI, 0 risco assume uma importfulcia nova e peculiar. Supunhase que 0 riscoseria uma maneira de regular 0 futuro, de normatiza-Io e de submete-Io ao nosso dominio. As coisas nao se passaram assim. Nossas pr6prias tentativas de controlar 0 futuro tend em a ricochetear e cair sobre nos, for~ando-nos a procurar modos diferentes de rela~ao com a incerteza. A melhor maneira de explicar 0 que esta acontecendo e fazer uma distin~iio entre dois tipos de risco. Chamarei urn deles de risco externo. 0 risco externo e 0 risco experimentado como 't--Vindoe fora, das fixidades da tradi~ao ou da natureza. Quero d distingui-Io do risco fabricado, com 0 que quero designar 0 risco criado pelo proprio impacto de nosso crescente conhecimento sobre 0 mundo. 0 risco fabricado diz respeito a situa~6es em I cujo contronto iCInos pouca experiancia hist6rica. Amaior , parte dos riscos ambientais, como aqueles hgados ao aqueci~Vment?JroQ, recaem nesta ~ia._.~les-s~o diretallleme influencia os pe a~ iza~iio cada vez ."cuti rio-capitUlo 1. ----~---_... , I m~- _.---j . A melhor maneira que encontropara elucidar a distin~ao entre os dois tipos de risco e a que se segue. Em toda cultura tradicional, poderfamos dizer, e na sociedade industrial ate 0 inicio da presente epoca, os seres humanos se inquietararn com os riscos provenientes da natureza externa - de mas colheitas, enchentes, pragas ou fomes. A certa aitura, porem - muito recentemente em termos historicos -, passamos a n<;>s inquietar menos com 0 que a natureza pode fazer conosco, e mais com 0 que nos fizemoscom a natureza. Isso assinala a transi~ao dopredominio do risco externopara 0 do risco fabricado. Quem e 0 "nos" aqui, 0 sujeito da inquieta~iio? Bern, penso que agora somos todos nos, quer estejamos nas areas mais ricas ou nas mais pobres do mundo. Aomesmo tempo, e obvio que ha uma divisao que separa de uma maneira geral as regi6es ricas das demais. Urn mlmero muito maior de riscos "tradicionais", do tipo que ha pouco mencionamos - como 0 risco de fome quando a colheita e ma - continuaexistindo nos paises mais pobres, e a eles se sobrep6em os novos riscos. Nossa sociedade vive apos 0 fim da natureza. 0 fim da natureza nao significa, obviamente, que 0 mundo fisico ou os processos fisicos deixam de existir. Significa que poucos aspectos do ambiente material que nos cerca deixaram de ser afetados de certo modo pela interven~ao humana. Grande parte do que costumava ser natural nao e mais completamente natural, embora nem sempre possamos saber ao certo onde termina uma coisa e come~a a outra. Em 1998 houve grandes cheias na China, em que muitas pessoas perderam a vida. A inunda~ao dos grandesrios foi parte recorrente da historia chinesa. TIveram essas cheias recentes em particular basicamente 0 mesmo carater, ou foram influenciadas pela mudan~a global do clima? Ninguem sabe, mas elas apresentaram algumas caracterfsticas inusitadas que sugerem que suas causas nao foram inteiramente naturais. risco fabricado nao se liga apenas natureza - ou ao que antes era natureza.Penelra em outras areas da vida tambem. Tome, por exemplo, 0 casamento e a familia, que estao sofrendo mudan~as profundas nos paises industrializados e, em o a
  • 14. certa medida, no mundo todo. Duas ou tres gera~6es atnis, as pessoas~ quando se casavam, sabiam 0 que estavam fazendo. 0 casamento, amplamente estabelecido pela tradi~ao e 0 costume, era analogo a urn estado da natureza -. como continua sendo, e claro, em muitos paises. Alionde os modos tradicionais de se fazer as coisas estao se dissolvendo, porem, quando as pessoas se casam ou estabelecemrelacionamentos, ha urn sentido importante no fato de que elas nao sabem 0 que estao fazendo, tamanha a mudan~a sofrida pelas institui~6es do casamento e da familia. Nesse c~o as pessoas estao come~ando do zero, como pioneiros. Tern de enfrentar fiItul'ospessoais muito mais abertos do que com todas as oportunidades e percal~os que isso acarreta. A medida que 0 risco fabricado se expande, passa a haver algo de mais arriscado no risco. Como assinalei antes, a ideia · de risco esteve estr.eitamente vinculada, em seu surgimento, a · possibilidade de calculo. A maior parte das formas de seguro : se baseia diretamente nessa conexao. Cada vez que alguem entra i num carro, por exemplo, e possivel calcular as chances que essa pessoa tern de ser envolvida num acidente. Isso e previsao atuarialenvolve uma longa serie temporal. As situa~6es de risco fabricado nao saDassim. Simplesmente nao sabemos qual · e 0 nivel de risco, e em muitos casos nao saberemos ao certo antes que seja tarde demais. Nao muito tempo atras (1996) assinalou-se 0 decimo aniversario do acidente na usina nuclear de·Chernobyl, na Ucrania. Ninguem sabe quais serao suas conseqiiencias a longo prazo. Pode haver ou nao urn desastre para a saude ali guardado, pronto para eclodir daqui a certo tempo. Exatamente 0 mesmo podeser dito sobre 0 epis6dio da encefalopatia espongiforme bovina no Reino Unido - 0 surto da chamada doen~a da vaca no passino, louca - em rela~ao a suas implica~6es para os seres humanos. Nomomento, nao podemos saber ao certo se ela vira a vitimar urn numero de pessoas muito maior que atualmente. Ou considere nossa posi~ao em face da mudan~a mundial do c1ima. A maioria dos cientistas versados no campo acredita que 0 aquecimento global esta acontecendo e que caberia tomar medidas contra ele. No entanto, ate meados da decada de 1970, a opiniao cientifica ortodoxa era de que 0 mundo passava por rima fase de resfriamento global. Grande parte dos mesmos indicios exibidos para dar apoio a tese do resfriamento global e agora posta em jogo para corroborar a do aquecimento global - ondas de calor, perfodos frios, condi~6es meteorol6gicas inusitadas. 0 aquecimento global esta rnesrno ocorrendo, e tern origens humanas? Provavelmente - mas nao temos e nao podemos ter certeza absoluta ate que seja tarde demais. Nessas circunstancias, a politica esta envolta num novo clima moral, caracterizado por urn empurra e puxa entre acusa~6es de alarmismo por urn lado e de acobertamento por outro. Se alguem - funcionario do governo, autoridade cientifica ou pesquisador -leva determinado risco a serio,deve anuncia10. Ele deve ser amplamente divulgado porque epreciso convencer as pessoas de que 0 risco e real-. e preciso fazer urn estardalha!;o em torno dele. Contudo, quando se faz realmente urn estardalha~o e 0 risco acaba se revelando minimo, os envolvidos SaDacusados de alarrnistas. Suponha, contudo, que as autoridades avaliem inicialmente que urn risco nao e muito grande, como 0 fez 0 governo britanico no caso da carne bovina contaminada. Nesse caso, 0 governo corne~ou por declarar: ternos 0 respaldo de cientistas aqui; nao ha risco significativo, e quem quiser po de continuar
  • 15. a comer carne bovina sem nenhum temor.· Em situa!roes como essa, se os acontecimentos tomam urn rumo diferente -como de fato tomaram - as autoridades sac acusadas de acobertamento - como realmente. foram. As coisas sac ainda mais complexas do que estes exemplos sugerem. Paradoxalmente, 0 alarmismo po de ser necessario para reduzir os riscos que enfrentamos -contudo, quando surte efeito, a impressao que se tern e de que houve exatarnente isso, alarmismo. 0 caso da Aids e urn exemplo. Governos e especialistas fizeram grande alarde publico com os riscos associados ao sexo nao seguro, para conseguir levar as pessoas a mudar seu comportarnento sexual. Em parte em conseqiiencia disso, nos pafses desenvolvidos a Aids nao se espalhou tanto quanto fora originalmente previsto. A rea~ao diante disso foi: por que voces apavoraram todo mundo daquela maneira? Sabemos, no entanto, pela dissemina~ao que a doen~ continua tendo no mundo, que eles estavam - e estiio - inteiramente. corretos ao faze-Io. Esse tipo de paradoxo torna-se rotina na sociedade contemporanea, mas nao ha uma maneira facilmente acessivel de Ii- . dar com ele. Pois, como mencionei antes, na maioria das situa~oes de risco fabricado, ate a propria existencia de urn risco tende a ser posta em duvida. Nao.podemossaber de antemao quando estamos de fato sendo alarmistas ou nao. Nossa rela~ao com a ciencia e a tecnologia hoje e diferente daquela caracterfstica de tempos passados.Na sociedade oddental a ciencia atuoupor cerca de dois seculos como uma especie de tradi!j:ao. Supostamente, 0 conhecimento cientffico superava a tradi~ao, mas de fato eleproprio se transformou em uma, de certo modo. Era algo que a maioria das pessoas respeitava, mas que permanecia externo as atividades de1as. Os leigos "consultavam" os especialistas. Quanto mais a ciencia e a tecnologia se intrometem em nossasvidas, e 0 fazem num nivel global, menosessa perspectiva se sustenta. A maioria de nos - incluindo autoridades governarnentais e politicos- tern, e tern de ter, uma reIa~ao muito mais ativa ou comprometida com a ciencia e a tecnologia do que antes. Nao podemos simplesmente "aceitar" os achados que os cientistas produzem, para inieio de conversa por causa da freqiiencia com que eIes discord am uns dos outros, em particular em situa!j:oes de risco fabricado. E hoje todos reconhecem 0 carater essencialmente fluido da ciencia. Cada vez que uma pessoa decide 0 que comer, 0 que tomar no cafe da manha, se cafe descafeinado ou com urn, ela toma uma decisao no contexto de informa~oes cientificaS e tecnologicas conflitantes c mutaveis. Tome 0 caso do vinho tinto. Como outras bebidas alc06licas, 0 vinhotinto era outrora considerado prejudicial a saudc. Depois a pesquisa indicou que tomarvinho tinto em quantidades moderadas protege contra doen~as cardiacas. Posteriormente, descobriu-se que qualquer forma de alcool atua do mesmo modo, mas so tern esse efeito protetor para pessoas com mais de quarenta anos. Quem sabe 0 que 0 novo conjunto de descobertas vai reveIar? Alguns dizemque a maneira mais eficiente de enfrentar 0 crescimento do risco fabricado e limitar a responsabilidade mediante a ado~ao do charnado "principio do acautelamento". A ideia do principio do acauteIamento surgiu pela primeira vez na Alemanha no inicio da decada de 1980, no contexto dos debates ecol6gicos que aIi se desenvolviam. Em sua expressao mais simples, prop6e que se deve agir no caso de questoes arnbientais (e, por inferencia, no caso de outras formas de risco)
  • 16. ainda que haja incerteza cientifica com rela~ao a elas. Assinl, na decada de 1980, varios paises da Europa iniciaram programas para combater a chuva 'acida, ao passe que na GrlBretanha a falta de indidos conclusivos foi usada para justiflcar a inercia com rela~ao a estee tambem a outros problemas de polui~ao. o principio do acautelamento, contudo, nem sempre e util ou mesmo aplicavel como forma de enfrentar problemas de risco e responsabilidade. 0 preceito de "permanecer pr6ximo da natureza", ou de limitar a inova~ao em vez de adota-Ia, nenl sempre pode ser aplicado. Istoporque 0 equilibrio entre 06 beneficios e os perigos advindos do progresso cientffico e tecnol6gico, e tarnbem de outras tormas de mudan~asocial, e imponderavel. Tome como exemplo a controversia sobre os alimentos geneticamente modificados. Produtos agricola. II geneticamente modificados jaestao crescendo em 35 milhoes de hectares de terra em todo 0 mundo - uma area 1,5 veL maior que a da Gra-Bretanha. A maior parte desses produtos esta sendo cultivada na America do Norte e na China. Entre eles incluem-se soja, milho, algodao e batata. Nao seria possivel encontrar situa~ao mais 6bvia em que a natureza nao e mais natureza. Os riscos envolvem algumas incognitas - ou, se posso dize-Io assim, inc6gnitas conhecidas, porque 0 mundo tern uma tendencia pronunciada a nos surpreender. Pode haver outras conseqilencias que ate hoje ninguem previu. Urn tipo de risco e que os produtos possam trazer perigos para a saude, a medio ou longo prazo. Afinal, grande parte da tecnologia genetica e essencialmente nova, diferente dos metodos mais antigos de hibrida~ao. , Outra possibilidade e que genes incorporados aos produtos agricolas para torna-Ios mais resistentes a pestes possam se propagar por outras plantas - criando "superpragas". Isso, por sua vez, poderia representar uma amea~a para a biodiversidade no ambiente. Uma vez que a pressao para cultivar e consumir produtos agricolas geneticamente modificados· e em parte movida por inte~esses puramente comerciais, nao seria sensato sujeita-Ios a umaproibi~ao global? Mesmo admitindo que essa proibi~ao fosse viavel, as coisas - como sempre - nao sao tao simples. A agricultura intensiva amplamente praticada hoje nao e indefinidamente sustentavel. Usa grandes quantidades de fertilizantes e inseticidas qufmicos, destrutivos para oambiente. Nao podemos retornar a modos mais tradicionais de agricultura e ainda temos a esperan~a de alimentar a popula~ao do mundo. Produtos alterados pela bioengenharia poderiam reduzir 0 usa de poluentes qufmicos e por conseguinte ajudar a resolver esses problemas. ./ Seja qual for n?s.sa pe:specti~a, verno-nos e~vo~vidos ~um problema de admmlstra~ao de rISco. Com a dlfusao do nsco . ~ , fabricado, os governos nao podem fingir que esse tipo de administra~ao nao lhes compete. E eles precisam colaborar uns com os outros, uma vez que muito poucos dos riscos de novo estilo tern algo a ver com as fronteiras nacionais. Mas tarnpouco n6s, como pessoas comuns, podemos ignorar esses novos riscos - ou esperar a chegada de provas cien': tificas conclusivas. Como consumidores, cada urn de n6s tern de decidir se vai tentar evitar produtos geneticamente modificados ou nao. Esses riscos, e os dilemas que os envolvem, penetraram profundamente em nossas vidas cotidianas. Permitam-me passar a algumas conelusoes e ao mesmo tempo tentar assegurar que meus argumentos sac elaros. Nossa epoca nao mais perigosa - nem mms arriscada - que as de e
  • 17. gera!roes precedentes, mas 0 equilibriode riscos e perigos se alterou. Vivemos num mundo em que perigos criados por nos mesmos sac tao amea~adores, ou mais, quanto os que vem de fora. Alguns sac genuinamente.catastroficos, como 0 risco ecologico global, a prolifera~ao nuclear ou 0 derrocada da economia mundial. Outros nos afetam como indivfduosde maneira muito mais direta, como por exemplo os relacionados com a dieta, a medicina ou ate 0 casamento. ' Uma epoca como a nossa ira engendrar inevitavelmente revivescencia religiosa e diferentes filosofias da Nova Era, que se voltarn contra a perspectiva cientifica. Alguns pensadores ecologicos tornaram-se hostis a ciencia, e ate ao pensamento racional de maneira mais geral, porcausa de riscos ecologicos. Nao e uma atitude que fa~a muito senti do. Sern analise cientffica, nem sequer saberfamos sobre essesriscos. No entanto, nossa rela~ao com a ciencia, por raz6es jaexpostas, nao serao e nao podem ser as mesrnas que em tempos passados. Nao possufmos atualmente institui~oes que nos permitam monitorar a mudan~a tecnologica, nacional ou globalrnente. 0 debate em torno da encefalopatia espongiforme bovina na GraBretanha e em outros lugares poderia ter sido evitado se rivesse sido estabelecido urn dialogo publico sobre a rnudan~a tecnologica e suas problematicas conseqiiencias. Urn maior numero de meios publicos de envolvimento com a ciencia e a tecnologia nao iria eliminar 0 dilema alarmismo versus acobertamento, mas poderia nos perrnitir reduzir algumas de suas conseqiiencias mais danosas. Finalmente, e impossive! adotar sirnplesmente uma atitude negariva em rela~ao ao risco. 0 risco sempre precisa ser disciplinado, mas a busca ativa do risco e urn elem~nto essencial de uma economia dinamica e de urna sociedade inovadora. Viver numa era global significa enfrentar uma diversidade de situ a~6es de risco. Com muita freqiiencia podemos precisar ser ousados, e nao cautelosos, e apoiar a inova~ao cientffica au outras formas de mudan~a. Afinal, uma raizdo termo "risk" no original portugues significa "ousar".
  • 18. Tradi~ao Quando os escoceses se rel1nem para celebrar sua identidade nacional, fazem-no de maneiras impregnadas de tradi~ao. 0 homens usam 0 kilt, tendo cada cIa seu pr6prio tarta, e seus cerimoniais saDacompanhados pelo lamento das gaitas de fole. Pol' meio desses sfmbolos, demonstram sua lealdade a antigos rituais, cujas origens mergulham num passado distante. Seria interessante, se fosse verdade. Mas, juntamente com a maioria dos demais sfmbolos da nacionalidade escocesa, todos estes SaDcria~6es bastante recentes. 0 kilt curto parece ter sido inventado por urn industrial ingles do Lancashire, Thomas Rawlinson, no infcio do seculo XVIII. Ele resolveu alterar os trajes ate entao usados pel os habitantes das Highlands de modo a toma-Ios convenientes para operarios. Os kilts foram urn produto da revolu~ao industrial. Seu objetivo nao foi preservar costumes veneraveis, mas 0 contrario - afastar os highlanders (las urzes e leva-Ios para a fabrica. o kilt nao apareceu como 0 traje nacional da Esc6cia. Os low/anders, que formavam a amplamaioria do povo escoces, viam os trajes usados nas Highlands como urn forma barbara
  • 19. de vestucu-ioque em geral encaravam com algum desprezo. De maneira seme1hante, muitos dos tartas de cia hoje usados £0ram tra~ados durante 0 periodo vitoriano, por alfaiates empreendedores que, com razao, viram neles urn mercado. Muito do que supomos tradicional, e imerso, nas brurnas do tempo, e na verdade urn produto no maximo dos t1ltimos dois seculos, e com freqUencia e ainda mais recente. a caso do kilt escoces vem de urn celebre livro de autoria dos historiadores Eric Hobsbawm e Terence Ranger, chamado The Invention of 1.radition. Eles dao exemplos de tradi!;oes inventadas tomadc)s de uma variedade de palses diferentes, entre eles a India coloniaJ. Na decada de 1860, os britanicos empreenderam urn levantamento arqueol6gico para identificar os monumentosimportantes da India e preservar a "heran~a" indiana. Acreditando que as artes e oficios locais estavam em declfnio, recolhermn artefatos para por em museus. Antes de 1860, por exemplo, tanto os soldados indianos quanto os britanicos usavam fardas de estilo ocidental. Aos olhos dos britanicos, porem, os indianos deviam parecer indianos. as uniformes foram modificados para incluir turbantes, faixas e mnicas, vistos como "autenticos". Algumas das tradi!;oes que e1es inventaram, ou adaptaram, persistem hoje no pafs, embora, evidentemente, outras tenham sido rejeitadas mais tarde. Tradi!;ao e costume - essa foi a essencia da vida da maio~ ria das pessoas durante a maior parte da hist6ria humana. No entanto, e notavel 0 reduzido interesse que estudiosos e pensa· dores tendem a manifestar por eles. Ha infindaveis discussoes sobre a moderniza~ao e sobre 0 que significa ser moderno, ma.l§ poucos realmente sobre tradi~ao. Quando estava pesquisando para este capftulo, depareicom dezenas de !ivros academicos em ingles com "modernidade" no titulo. De fato, eu mesmo escrevi alguns - mas s6 consegui descobrir uns dois que tratavam especificamente de tradi~ao. (jie! 0 Illlminismodo sceulo-XVIII na Europa que depreciou; tradi~ao. Uma de suas figuras de maior relevo, 0 barao d'Holbach,expressou as coisas nestes termos: as mestresja fixaram os olhos dos homens no ceu por tempo suficiente, deixemos que agora os dirijam para a terra. Fatigada com uma teologia inconcebfvel, fabulas ridfculas, misterios impenetraveis, cerimonias pueris, deixemos que a mente humana se aplique ao estudo da natureza, a objetos inteligfveis,verdadessensatase conhecimentouti!. Deixemos que as vas quimeras dos homens sejam removidas, e opini6es razoaveislogo surgirao por si mesmasnaquelas cabe~as que se pensava estarem para sempre destinadas ao erra. E claro que d'Holbach nunca empreendeu uma abordagem seria da tradi~ao e de seu papel na sociedade. A tradi~ao aqui e meramente 0 lado sombrio da modernidade, urn construto implausfve1 que po de ser facilmente descartado. Se realmente) devemos encarar a tradi~ao, nao a podemos tratar como simples toliee. As rafzes lingUfstieas da palavra "tradi~ao" sao antigas: A palavra inglesa tradition tern origem no termo latino tradere, que significa transmitir, ou confiar algo aguardade algucm. Traderefoi originalmente usado no contexte do direito romano, em que se referia as leisdah~ran~a. Consideravase quetirna ptopriedade quepassava de uma gera~ao para ou-tr~era dada em confian~a - 0 herdeirotinha obrigagao de protege-l a e promove-Ia. , Tudo levaria a crer que a no~ao de tradi~ao, diferentemente doskilts e das gaitas de fole, esta entre n6s ha muitos scculos. Mais uma vez, as aparencias enganam. a termo "tradigao", tal ,j-" ';"
  • 20. como e usado atualmente, e naverdade urn produto dos ultimos duzentos anos na Europa. Assim como 0 conceito de risco, de que falei no capitulo anterior, a nOfraogeral de tradi~o nao existia nos tempos medievais. Nao havia necessidade de tal palavra, precisamente porquea tradifrao e 0 costume estayam em toda parte. A ideia de tradifrao, portanto, e ela propria uma criafrao da .IIlodernidade. Isso.nao,signi-fka-quenauadeveriarnos usar am relafrao a sodedades pre-modernas ou nao odde~tais, mas implica que deveriamos ab6rdar sua discussao com algum cuidado" Os pensadores do Iluminismo tentaram justificar seu interesse exclusivo pelo novo identificando a tradi~ao com doglua e ignorancia. Desvencilhando-nos dos preconceitos do Iluminismo, como deveriamos compreender "tradi~ao"? Urn born ponto de partida seria retornar a tradifr6es inventadas. Tradi~6es e costumes inventados, Hobsbawm e Ranger sugerem, nao sac genufnos. SaoJabricados, em vez de se desenvolver espontaneamente; sac usados como meios de poder;e nao existiram desde tempos imemoriais. Qualquer continuidade que implique 0 passado distante e em grande parte falsa. Eu viraria a argumenta~ao deles de cabe!!(apara baixo. lbdas as tradi~6es, eu diria, sac tradi~6es inventadas. Nenhuma sociedade tradicional era inteiramente tradicional, e tradi~6es e costumes foram inventados por uma diversidade de raz6filS. Nao deverfamos supor que a constru~ao consciente da tradi~ao encontrada apenas no perfodo modemo. Alem disso, as tradi~6es sempre incorporam poder, quer tenham si<:to .'construfdas de maneira deliberada ou nao. Reis, Imperadores, sacerdotes e outros vem ha muito inventando tradi~6es que lhes convenham e que legitimem seu mando. ' e A ideia de que a tradi~ao e impermeavel a mudan~a e Urt mito. As tradi~6es evoluem ao longo do tempo, mas pode~ tambem ser alteradas ou transformadas de maneira bastant~ repentina. Se posso me expressar assim,elas sac inventadas ~ reinventadas. i Algumas tradi~6es, e claro, como aquelas associadas as grandes religi6es, duraram centenas de anos. Ha prescri~6es essendais do islamismo, por exemplo, que quase todos os mu~ulmanos convictos observariam, e que permaneceram as mesmas, de maneira reconhedve1, por urn longufssimo periodo. Contudo, toda continuidade que possa estar presente nessas doutrinas e acompanhada de muitas mudan~as, algumas ate revolucionarias, no modo como sac interpretadas e cumpridas. Vma tradi~ao completamente pura e algo que nao existe. Como todas as outras religi6es do mundo, 0 isla se valeu de uma estonteante variedade de recursos culturais - isto e, outras tradi~6es. 0 mesmo se aplica de maneira mais geral ao imperio otomano, que, ao longo dos anos, incorporou influencias arabes, persas, gregas, romanas, berberes, turcas e indianas, entre outras. E simplesmente enDneo, porem, supor que, para ser tradidonal, urn dado conjunto de sfmbolos ou praticas precisa ter existido por seculos. A fala do monarca por ocasiao do Natal, transmitida todos os anos pelo radio e a televisao na GraBretanha, tornou-se uma tradi~ao. No entanto, foi iniciada apenas em 1932. A persistencia ao longo do tempo nao e a caracterfstica chave que define a tradi~ao, ou seu primo mais difuso, 0 costume. As caracterfsticas distintivas da tradi~ao sao, o ritual e a repeti~ao. As tradi~6es sac sempre propriedades de grupos, comunidades ou coletividades. Indivfduos podem seguir tradi~6es ou costumes, mas as tradi~6es nao sao uma caracte·
  • 21. ristica do comportamento individual do modo como os habitos 0 sao. o que a tradi~ao tern de distintivoe que ela define umtipo de verdade. Uma pessoa que segue uma pnltica tradicionalmao cogita de alternativas. Por mais que a tradi~ao possa nmclar, ela fornece uma estrutura para a a~ao que pode permanecer em grande parte nao questionada. As tradi~6es em geral tern guardiaes - feiticeiros, sacerdotes, sabios. Guardiao nao e 0 mesmo que especialista. Eles conquistam sua posi~ao e poder gra~as ao fato de serem os unicos capazes de interpretar a verdade ritual da tradi~ao. Somente eles sac capazes de decifrar os verdadeiros significados dostextos sagrados ou dos outros simbolos envolvidos nos rituais comunais. . r o Iluminismo pretendeu destruir a autoridade da tradi!Sio. / Seu sucesso foi apenas parcial. A tradi~ao continuou forte por urn longo tempo na,maior parte da Europa moderna e ate roais firmemente entrincheirada na maior parte do rest~ do munGio. Muitas tradi~6es foram reinventadas e outras institufdas pel a primeira vez. Alguns setores da sociedade fizeram uma tentativa combinada de proteger ou adaptar velhas tradi!t6es. Afinal, as filosofias conservadoras consistiram, e con~istem, exatamente nisso. A tradi~ao e talvez 0 conceito mais basico do conservantismo, uma vez que os conservadores acreditam que €da encerra uma sabedoria acumulada. Uma razao adicional para a persistencia da tradi~ao nos paises industrializadosfoi que as mudan!tas institucionais sinalizadas pela modernidade limitaram-se em grande parte a institui~6es pl1blicas - especialmente 0 governo e a economia. .'Maneiras tradicionais de fazer as coisas tenderam a persistir, ou a ser restabelecidas, em muitas outras areasda vida, entre elas a vida cotidiana. Poderiamos mesmo dizer que houve uma especie de simbiose entre modernidade e tradi~ao. Na maior parte dos paises, por exemplo, a familia, a sexualidade e as divis6es entre os sexos permaneceram intensamente saturadas de tradi~ao e costume. Duas mudan~as basicas estao ocorrendo hoje sob 0 impacto da globaliza~ao. Nos paises ocidentais, nao s6 as institui~6es publicas mas tambem a vida cotidiana estao se libertando do dominio da tradi~ao. E em outras sociedades pelo mundo, que conti~uaram mais tradicionais, a for~a das tradi~6es esta dedinando. Acredito que isto esta no cerne da sodedade cosmopolita global em emergencia de que falei anteriormente. Trata-se de Uma sociedade que vive apos 0 fim da natureza. Em outras palavras, poucos aspectos do mundo fisico continuam sendo meramente naturais - isentos da interven~ao humana. Trata-se tambem de uma sociedade que vive ap6s 0 fim da tradi~ao. 0 fim da tradirao nao significa que a tradirao desaparece, como queriam os pensadores do Iluminismo. Ao contrario, ela continua a florescer em toda parte em vers6es diferentes. Mas trata-se cada vez menos - se e que se pode dize-Io assim - de tradi~ao vivida da maneira tradidonal. Viver a tradi~ao da maneira tradicional significa defender as atividades tradicionais por meio de seu proprio ritual e simbolismo defender a tradi~ao por meio de suas pretens6es internas a verdade. Urn mundo em que a moderniza~ao nao fica confinada a uma area geografica mas se faz sentir globalmente tern varias conseqiiencias para a tradi!Sao.A tradi~ao e a denda por vezes se mesclam de maneiras estranhas e interessantes. Considere, por exempIa, 0 epis6dio muita discutido que teve Iugar na india em 1995, em que divindades de alguns santuarios hindus pareciam tomar leite. No mesmo dia, varios milhoes de pessoas,
  • 22. nao s6 na India mas no mundo todo, tentaram oferecer leite a imagens divinas. Denis Vidal, urn antrop610go que escreveu sobre esse fenomeno, observa: ao se manifestarem simultaneamente em todos os parsesdo mundo habitados por indianos, as divindades hindus talvez tenham conseguido operar 0 primeiro milagre sintonizado com uma era tomada pelo slogan da globaliza!rao. De maneiril igualmente interessante, houve a impressao generalizada - entre crentes e nao crentes - de que eram necessarios experimentos cientificos para autenticar 0 milagre. A ciencia foi recrutada a servi~o da fe. A tradi~ao, num exemplo C0Il10este, nao s6 continua viva, e ressurgente. No entanto, com freqiiencia as tradi~oes tarnbem sucumbem a modernidade, e em algumas situa~oes iSlo vem acontecendo pelo mundo todo. Tradi~ao que e esvaziada de seu 'conteudo, e comercializada, torna-se heran~a ou kitsch - as bugigangas que se com pram na loja do aeroporto. 1m como desenvolvida pela industria da heran~a, heran!fa e tract!;. academicas, como urn todo, como a economia,a sociologia ou a filosofia, tern tradi!foes. A razao disso e queninguem seria capaz de trabalharde uma maneira inteiramenteecletica. Sefi1 tradi~oes intelectuais as ideias nao teriam foco nem dire~ao. No entanto, e parte da vida academica explorar continuamente os limites dessas tradi!foes, e fomentar urn intercambio ativo entre,elas. A tradi~ao pode muito bem ser defendida de uma maneira nao tradicional - e este deveria ser seu futuro. Ritual, cerimonial e repeti~ao tern urn importante papel social, algo compreendido e posta em pratica pela maioria das organiza~oes, inclusive os governos. As tradi~oes VaG continuar a ser apoiadas enquanto puderem ser efetivamente justificadas - nao em termos de seus pr6prios rituais internos, mas mediante a compara~ao delas com outras tradi~oes ou maneiras de fazer as coisas. Isto se aplica ate as tradi~oes religiosas. A religiao e normalmente associada a ideia de fe, uma especie de salto emocional na cren~a. No entanto, num mundo cosmopolita, mais pessoas do que nunca estao regularmente em contato com outras que pensam de maneira diferente delas. Veem-se na necessidade de justificar suas cren~as, pelo menos implicitamente, tanto para si mesmas quanta para os outros. S6 pode haver uma grande dose de racionalidade na persistencia de rituais e praticas religiosas numa sociedade em que as tradi!foes declinam. E e exatamente assim qu~ deveria ser. A medida que 0 papel da tradi~ao muda, contudo, novas dinfunicas sac introduzidasem nossas vidas. Estas podem ser sintetizadas como urn empurra e puxa entre autonomia de a~ao e compulsividade por um lado, e entre cosmopolitismo e fundamentalismo peto outro.· ~.l.ionde atradi~ao recuou, so-, mos for~ados a viyer.cl~ul1:la.g:l~eira·~ais~b~rta e reflexiva. ·······~7f::~;~~:~:~~~~S~~!~~~~:e~~~~~~~;:t:~:::::::; pode mesmo ser autentica ate 0 minimo detalhe. Mas a herafl._.~~q!!~_~ h~~i~ protegid<l:~~!~.gis~Q.ciadaJla-.seiyi:cLi:. ~ao, tradi que e sua conexio'com a experiencia da vida cotidiaI!a./ ' '.."No meUenfe'iiaer;eiiifeiiarnerife [(ldona! rec~'~hecer que as tradi~oes sac necessarias numa sociedade. Nao deveriamos aceitar a ideia do lluminismo de que 0 mundo deveria se desveltcilhar por completo da tradi~ao. As tradi~oes sac necessarias, e persistirao sempre, porque dao continuidade e forma a vid_. Tome a vida academica, por exemplo. Todos no mundo acadfmico trabalham de acordo com tradi~oes. Ate asdisciplinas
  • 23. Autonomia e liberdade podem substituir 0 poder oculto da tradi~ao por uma discussao e urn diaIogo mais abertos. Essas Iiberdades, porem, trazem outros.problemas em sua esteira. Uma sodedade que vive do lado oposto ao da natureza e da tradi~ao - como 0 fazem hoje as dequase todos os paises oddentais - e uma sociedade que exige tomada de dedsao, tanto na vida cotidiana quanto nos demais domini os. 0 lado sombrio da tomada de decisao e 0 aumento das dependencias e compuIs6es. Algo de realmente intrigante, mas tambem de perturbador, esta acontecendo aqui. Confina-se basicamente aos paises desenvolvidos, mas come~a a ser observado entre grupos mais ricos em outras partes tambem. Estou me refer indo a difusao da ideia e da realidade. da dependencia. A no~ao foi original mente aplicada exclusivamente ao alcoolismo e ao consumo de drogas. Mas agora qualquer area de atividade pode ser invadida por ela. Podemos ser viciados em trabalho, em exercfdo, comida, sexo - ou ate em amor. Isso ocone porque essas atividades, e outras partes da vida tambem, estao muito menos estruturadas peia tradi~ao e 0 costume do queeram outrora. Como a tradi~ao, a dependenda diz respeito a infIuencia do passado sobre 0 presente;e como no caso da tradi~ao, a repeti!rao tern urn papel-chave. 0 passado em questao e mais individual que coletivo, e a repeti~ao e movida pela ansiedade. Eu tenderia a ver a dependencia como autonomia congelad'l. Todo contexto de declinio da tradi~ao oferece a possibilidade de maior liberdade de a!rao do que antes existia. Estamos falando aqui da emancipa!rao humana dos constrangimentos do passado. A dependencia entra em jogo quando a escolha, que deveria ser impelida pela autonomia, e subvertida pela ansiedade. Na tradi!rao, 0 passado estrutura 0 presenteatraves de cren~as e seu'timentos coletivos partilhados. 0 dependente esta igualmente escravizado ao passado - mas porque nao conse:. gue escapar do que, originalmente, eram habitos de estilo de vida livremente escolhidos. A medida que a infIuencia da tradi~ao e do costume definha em nivel mundial, a pr6pria base de. nossa identidade _. nosso senso de individualidade - muda. Em situa~6es mais tradicionais, 0 senso de identidade e sustentado em grande parte pela estabilidade das posi~6es sociais ocupadas pelos individuos na comunidade. Ali onde a tradi!rao dec1ina, e a escolha do estilo de vida prevalece, a individualidade nao fica isenta. 0 senso de identidade tern de ser criado e recriado de forma ma~s ativa que antes. Isto explica por que terapias e aconselhamentos de todos os tipos se tornaram tao populares nos paises ocidentais. Quando iniciou a psicanalise moderna, Freud supunha que estava estabelecendo urn tratamento cientifico para a neurose. Na verdade, estava construindo urn modelo para a renova~ao do senso de identidade, nos estagios inidais de uma cultura de tradi~6es em declfnio. Afinal, 0 que acontece na psicanalise e que 0 indivfduo revisita seu passado para criar maior autonomia para 0 futuro. mesmo se aplica tambem em grande parte aos grupos de autoajuda qu~ se tornaram tao comuns nas sociedades ocidentais. Nos encontros dos Alc06licos Anonimos, por exempIo, pessoas contam suas hist6rias de vida, e recebem apoio dos demais presentes em seu desejo de mudar. Recobram-se de sua dependenda essencialmente atraves da reescrita da hist6ria de suas pr6prias vidas. A Iuta entre dependencia e autonomia esta num p6Io da globaliza~ao. No outro esta 0 embate entre uma perspectiva cosmopolitae 0 fundamentalismo. Poderfamos pensar que 0 o
  • 24. fundamentalismo sempre existiu. Isso nao e verdade - ele sur- ' giu em resposta as influenciasglobalizantes que vemos por todos os ladosa nossa volta. 0 proprio termo data da virada do seculo, quando foi usado para designar as cren~as de certas seitas protestantes nos EUA, particularmente aquelas que rejeitavam Darwin. Ate 0 final da decada de 1950, no entanto, nao havia entrada para a palavra "fundamentalism" no grande dicionario Oxford English. Ela s6 se tornou de uso comum a partir da decada de 1960. Fundamentalismo nao e 0 mesmo que fanatismo ou que autoritarismo. Os fundamentalistas reclamam urn retorno aDs textos ou escrituras basicos, a serem lidos de maneira literal, e propoem que as doutrinas derivadas de talleiturasejam aplicadas a vida social, econamica ou politica. 0 fundamentalismo c'oiifere nova vitalidade e importancia aos guardiaes da tradi~ao. Somente eles tern acesso ao. "significado exato" dos textos. 0 clero ou outros interpretes privilegiados ganham poder tanto secular quanto religioso. Podem aspirar a tomar as redeas do poder diretamente - como aconteceu no Ira - ou trabaIhar em conjun!rao com partidos politicos. A palavra "fundamentalismo" e controversa,p.orqlle muitos dos que sac chamados por outros defundamentalistas nao admitem a aplica~ao do termo a eles pr6prios. Seria entao possivel dar-lhe urn significado objetivo? Penso que sim, e 0 definiria d,a seguinte maneira. Fundament~lismb e tradi~ao sitiada. E tradi~ao defendida da maneira tradicional - por referencia a verdade ritual - num mundo globalizante que exige razoes. 0 fundamentalismo, portanto, nada tern a'ver com 0 contexto das cren~as, religiosas ou outras. 0 que importa e 0 modo como a verdade das cren~as e defendida OU sustentada. o fundamentalismo nao diz respeito aquilo em que as pessoas acreditam, mas, como a tradi~ao de maneira mais geral, ao modo como acreditam e ao modo como justificam sua cren~a. Nao esta limitado a religiao. Os Guardas Vermelhos chineses, com sua devo~ao ao livrinho vermelho de Mao, eram sem duvida fundamentalistas. 0 fundamentalismo tampouco diz respeito basicamente a resistencia a moderl1iza~ao por culturas mais tradicionais - a uma rejei~ao da decadencia ocidental. 0 fundamentalismo po de se desenvolver no solo de tradi~oes de todos os tip os. Nao tern tempo para a ambigiiidade, a mUltipla interpreta~ao ou a multipla identidade - e uma recusa do dialogo num mundo cujo ritmo e continuidade dependem dele. o fundamentalismo e urn tilho da globaliza~ao, e reage contra ela ao mesmo tempo em qlle a utiliza. Em quase toda parte os grupos fundamentalistas fizeram urn amplo uso das novas tecnologias da comunica~ao. Antes de chegar ao poder no Ira, o aiatola Khomeini pas em circula~ao fUmes e grava~oes de seus ensinamentos. Militantes hindutwas fizeram intenso usa da Internet e do correio eletronico para eriar urn "sentimento de identidade hindu". Seja qual for a forma que assume ~ religiosa, etnica, nacionalista ou diretamente politica - parece-me correto encarar 0 fundamentalismo como problematico. Ele toca as raias da violencia, e e 0 inimigo dos valores cosmopolitas. No entanto, 0 fundamentalismo nao e apenas a antitese da modernidade globalizante, mas the faz perguntas. A mais basica e esta: podemos viver num mundo em que nada e sagrado? Devo dizer, para conduir, que nao me parece que possamos. Os cosmopolitas, entre os quais me incluo, tern de deixar claro que a tolerancia e 0 diaIogo podem ser guiados por val ores de urn tipo universal.
  • 25. Todos nos precisamos de compromissos morais que se elevem acimadas preocupa~oes ec6ntendas comuns da vidacotidiana. Devemos estar preparadospara erguer uma defesa ativa desses valores onde quer que e1es estejam precariamente de; senvolvidos ou amea~ados. A moralidade cosmopolita precisa It,'j, j! ser ela propria movida por paixao. Nao terfamos, nenhum de fJo': ,II nos, algo por que viver se nao tivessemosalgo por que valesse i :' I a pena morrer. , Entre todas as mudan~as que estao se dando no mundo, nenhumae mais importante do que aquelas que acontecem em nossas vidas pessoais -(tia sexualidade, nos relacionamentos, no casamelltoena fanu1ia.)Ha uma revolu~o global em cursoK' po modo como pensamos sobre nos mesmos e no modo como iformamosl~~QsJ~ liga~oes com outros.E uma revolu~ao que ~avan~a de maneira desigual em diferentes regioes e culturas, ,encontrando muitas resistencias. Como ocorre com outros aspectos do Mundo em descontrole, nao sabemos ao certo qual vira a ser a rela~ao entre vantagens e problemas. Sob certos aspectos estas sac as transforma~oes mais diffceis e perturbadoras' de todas. A maioria de n6s consegue se desligar de problemas maiores durante grande parte do tempo - uma das razoes por que dificil trabalhar t juntos para resolve-Ios. Nao somos capazes, contudo, de escai par do torveliIiho de mudan;as que atinge diretamente 0 cerne , de nossas vidas emocionais. Sao poucos os proses do mundo em que nao esta. se desenrolando uma intensa discussao sobre a igualdade saulY., a .{ e I
  • 26. regula~ao da sexualidade e 0 futuro da familia. E ali onde nao ha urn debate aberto, isso ocoere sobretudo porque ele e ativamente reprimido por governos autoritarios ou grupos fundamentalistas. Em muitos casos, essas controversias sao nacionais ou locais - como tambem 0 sac as rea~6es sociais e politicas a eles. Politicos e grupos de pressao sugerem que bastaria que a politicade familia fosse modificada, ou que a ob-ten~ao do div6rcio se tornasse mais dificil ou mais faci! em seu pr6prio pals, para que as solu~6es para nossos problemas pudessem ser prontamente encontradas. Mas as transforma~6es que afetam as esferas pessoal e emo cional vaG muito alem das fronteiras de qualquer pals, mesmo de urn tao vasto como os Estados Unidos. Encontramos tendencias paralelas quase em toda parte, variando apenas em gran e segundo 0 contexto cultural em que tern lugar. Na China, por exemplo, 0 Estado esta cogitando de tOle. nar 0 div6rcio mais dificil. Na esteira da Revolu~ao Cultural, foram aprovadas leis de casamento muito liberais. Nelas, () casamento e definido como urn contrato de trabalho que pode ser dissolvido "quando maridoemulher 0 desejam".cMesmo que urn conjuge objete, 0 div6rcio po de ser con cedi do quando a "afei~ao mutua" desapareceu do casamento. S6 epreci· so esperar por duas seman as, depois do que 0 casal paga qua: tro d6lares e dali em diante se ve independente. A taxa chinesa de div6rcio ainda e baixa se comparada com ados palses oei· dentais, mas esta se elevando rapidamente - tal como emi outras sociedades asiaticas em desenvolvimento. Nas eidades chinesas, nao s6 0 div6rcio mas tambem a coabita~ao estao Sf tornando mais freqiientes. Na vasta zona rural chinesa, em contraposi~ao, tudo e diferente. 0 casamento e a familia sa.o muito mais tradicionais - apesar da polftica oficial de limi- ta~ao de nascimentos mediante uma mistura de incentivos e puni~ao. 0 casamento e urn arranjo entre duas familias, decidido mais pelos pais que pelos individuos em questao. Urn estudo recente na provincia de GaJ:lsu,que tern urn baixo nivel de desenvolvimento economic6, verificou que 600/0 dos casamentos ainda sac arranjados pelos pais. Como .diz urn velho ditado chines: "Encontre uma vez, incline a cabe~a e case." Ha uma singularidade na China em processo de moderniza~ao. Muitos dos que hoje estao se divorciando nos centros urbanos haviam se casado originalmente da maneira tradicional, no campo. Fala-semuito de prote~ao a familia na China. Em muitos p~ises ocidentais, 0 debate e ainda mais estridente. A familia e urn local pm-a as lutas entre tradi~aoe modernidade, mas tambem uma metafora p~~'ehis:-'HcitalveZ rriais nostalgia em torno do sant1l<U'iop~rdi4<:>d~·f"!!l!1ia.doue em qualquer outra q iIl-stitui~,~ocQmra!zes no passado. Politicos e ativist~ diagnosticam rotiJ1eiramenteocolapsocla vida da familia e clamam por urn .retorno a faIJ1iliatradiciQnal~ A "familia tradicional" tern muito de uma categoria que tudo abrange. Houve muitos tipos difereIlJ~s de familia e sistemasdepilrentesco exIidif~rentes sociedades e culturas. A familiachinesa,por exelllpIQ,.s~mpre foi distinta das formas de familia do Ocidente. Na maioria dos proses europeus, 0 ce.S<l.!!l~utQ ... e~.!~!}i~~.£;nuncafoi tao comum quanto na China ou na India. No entanto, a familia em culturas nao modernas tev-e, e te;, alguns tra~os que encontramos mais ou menos em toda parte. familia tradidonal era adma de tudo uma unidade eeon<5mic~~'Ap~od~-ag';icola normalmente envolvia to(f() 0 ~'A I .. grupo familiar, enquanto entre a pequena nobrezae aar.isto-
  • 27. cracia a transmissao da propriedade era a principal base do '.casamento. Na Europa medieval, 0 casamento nao era i~ contraido com base no amor sexual, tampouco era encarado como urn lugar em que esse arn.or.deveriaflorescer. Como 0 J: expressa 0 historiador france£~GeQrges Duby, nao havia lu~" para "frivolidade, paixao ou fantasia" no casamento na gar Idade Media. !;.. desigualdade entre homens e mulheres era intrfnseca a famflia tradicionalJ Nao me parece que se possa exagerar a importancia dlSSO.Na Europa, as mulheres eram propriedade de seus maridos ou pais.- bens m6veis, na forma definida pela lei. A desigualdade entre homens e mulheres se estendia obviamente a vida sexual. 0 duplo padrao sexual estava diretamente Iigacl.Q_~.!1ecessidade assegurar continuidade na linhagem e de naher~~~. Durante a maior pCll'tedahist6ria, os homens fiz,~ram urn amplo, e por vezes bastan~~oste~~ivo~"'uso tes, cortesas e prostitutas.bs mais rico~ titihamavenfiiias amorosas com servas. Mas os homens precisavam ter certeza de serem eles os pais dos filhos de suasmulheres. 0 que era exaltado nas mo~as respeit<lveis era a virgindade e, nas esposas, constancia e fidelidade. Na faruflia tradicional(nao eram s6 as mulheres que careciam de direitos: 0 mesmo se dava com as crian~asJA ideia de consagrar os direitos da crian~a na lei e, em termos hist6I ricos, re1ativamente recente. Em perfodos pre-modernos, , como hoje nas culturas tradicionais,as crian~as nao cram criadas no interesse delas pr6prias, mas para a satisfa~ao dos pais. Poderfamos quase dizer que nao eram reconhecidas como individuos. Nao e que os pais nao amassem os filhos, mas , importavam-se mais com a contribui~ao que eles davam para. a tarefa economica comum do que com eles pr6prios. Alem I de-~~- I disso, a taxa de mortalidade infantil era assustadora. Na Europa e nos Estados Unidos do seculo XVII quase urn quarto das crian~as morria em seu pri~eiroano. Quase 50% M.O chegavam aos dez anos de idade. Exceto para certos grupos cortesaos ou de elite, a~ dade na famffu. tradicion~ sempre foi dominada pela reprodu~ao. Era uma questao de natureza e tradi~ao combinadas. A ausencia de contracep~ao eficaz significava que, para a maior parte das mulheres, a sexualidade estava, de maneira inevitcivel, estreitamente vinculada ao partqlEm muitas culturas tradicionais, inclusive na Europa ocidental ate 0 limiar do seculo XX, uma mulher podia .tet:.dez ou mais gesta~6es durante 0 curso de sua vida. Porraz6es ja apresentadas,(a sex!alidade era dominada pela ideia da virtudefeminina~ comum pensar-se que 0 duplo padr~o...s_~~l1.a1~ !una.-cria&:aQ.jl'.LQ.t:~:!?!:.~!~!1.hayi N a vertoriana. dade, emuma versao ou outra, ele foi central em todas as sociedades nao modernas. Envolvia uma concep~ao dualista da sexualidade feminina - uma clara distin~ao entre a mulher virtuosa por um lado e a libertina por outro. 0 aventureirismo sexual era considerado em muitas culturas urn tra~o definidor damasculinidade. James Bonde, ou era, admirado por seu heroismo tanto fisico quanto sexual. As mulheres sexualmente aventureiras, em contraposi~ao, foram quase sempre irrevogavelmente condenadas, a despeito do grau de influencia que as amantes de certas figuras proeminentes possam ter alcan~ado. As atitudes com reI~~ao amQssexualidade.tambem eram governadas par umJIli~tQ g~Jril<:li~ao natureza. Levantamene tos antropol6gicos mostram que 0 numero de culturas que tolerava ou aprovava abertamente a homossexualidade -pelo
  • 28. menos a masculina - era maior que 0 das que a proibiam. Por Iexemplo, em algumas sociedades os meninos eram encorajados ~;:astabelecer rela~6es sexuais com homens mais velhos como e f!timaforma de instru;ao sexual. Esperava-se que essas atividades ';cessassem quando os rapazes ficassem noivos ou se casassem. As sociedades que foram hostis a homossexualidade em genu a condenaram como especificamente antinatural. As atitudes ocidentais for am mais extremas que as da maioria; men os de urn seculo atnis a homossexualidade.aindaera_arnplamente encarada <:()moulllClperv.ersao_~ ~escrita <;9lPQ ~~)~)ivros __ tal de psiquiatria. . ' EVident~mente:: hostilidade em rela;ao a homossexuali ~ dade ainda e difundida e a visao dualista das mulheres continua a ser sustentada por muitos - tanto horn ens quanto mulheres. No entanto, ao longo das 11ltirhasdecadas os principailS elementos de nossas vidas sexuais no Ocidente mudaram de uma maneira absolutamente fundamental. A separa~ao entre sexualidade e reprodu~ao esta aprincfpio completa. Pela pri·· meira vez a sexualidade e algoaser descoberto, moldado, al, terado.A sexualidade, que 'costumavaser definida tao estri tamente em rela~ao ao casamento e a legitimidade, agora pouca conexao tern com eles. Deverfamos ver a crescente aceita~ao da homossexualidade nao apenas como urn tributo a tolerancia liberal. Ela e urn resultado l6gico da separa~ao entre sexualidade e reprodu~ao. A sexualidade que nao tern contel1do deixa por defini~ao de ser dominada pela heterossexualidade. o que a maioria de seus defensores nos pafses ocidentais chama de a famflia tradicional e de fato uma fase tardia, transicional, que teve lugar no desenvolvimento da familia na decada de 1950. Esta foi uma epoca em que a propor~ao de mulheres que safa para trabalhar ainda era relativamente baixa e em que continuava sendo diffcil, especial mente para as mulheres, obter 0 div6rcio sem estigma. No entanto, horn ens e mulheres eram nessa epoca mais iguais do que haviam sido anteriormente, tanto de fato quanto legalmente. A familia havia deixado de ser uma entidade economica e 0 casamento passou a ser visto como fundamentado no arnor romantico e nao mais como contrato economicO: Desde entao, a familia mudou muito mais. Os detalhes variam de uma sociedade para outra, mas as mesmas tendencias sac visfveis em quase toda parte no mund industrializado.$6 uma minoria vive hoje no que poderia se chamado de a familia padrag da decada de 195~-~mbos 0 pais moran do juntos com os filhos nascidos de seu casamento, sendo a mae uma dona-:de-casa em tempo integral e 0 pai assegurando 0 sustent~Em alguns paises, mais de urn ter~o de todos os nascimentosocorrem fora do matrimonio, enquanto a propor~ao de pessoas que vivem sozinhas elevou-se verticalmente e parece tender a crescer ainda mais. Na maioria das socieda- des, como os Estados Unidos ou a Gra- Bretanha, 0 casamento ' continua muito prestigiado -, elas foram apropriadament~ chamadas de sociedades de intenso div6rcio, intenso casamento. Na Escandinavia, por outro lade, uma grande propor~ao das pessoas que vivem juntas, inclusive quando ha filhos envolvidos, permanece solteira. Nada menos que urn quarto das mulheres entre 18 e 35anos nos Estados Unidos e na Europa declara nao pretender ter filhos - e parece estar dizendo a verdade. "'::.. todos os pafses continua existindo uma diversidade Em de form as de familia. Nos Estados Unidos, muitas pessoas, em particular imigrantes recentes, ainda vivem segundo va-
  • 29. lores tradicionais. A maior parte da vida familiar, porem, foi transformada pelo surgimento do casal informal e da uniao informal. :O.j:asam.E}tQ e~famm~Jot:!!aram-se 0 que d€!nominei no Capitulo 1"institui~6es-casca";-~inda sac chamados pelos mesmos nomes, mas dentro deles seu caniter bcisico mudouJNa familia tradi~iona1)b casal unido pelo casamento era apenas uma parte, e com freqiienCia nao a principal, do sistema familiar. La~os com os filhos e com outros parentes tendiam a ser igualmente importantes, ou ate mais, na condu~ao diaria da vida social.~oje 0 casa'r)casado ou nao, esta no cerne do que e a familia. 0 c~sal pasgm a se situar no centro da vida familiar a medida que 0 papel economico da familia declinou e 0 amor, ou oamor somado a atra~aO,sexual, se tornou a base da forma~ao dos la~os de casam~nto. Um casal, uma vez constituido, tem sua hist6ria pr6pria e exclusiva, sua pr6pria biografia. Euma'.' unidade baseada ..em -.. comunica~ao ou intimidade emocional. iA ideia de intimidade, como tantas outras no~6es familiares que discuto neste livro, soa antiga mas e de fato novissima. Nunca no passado 0 casamento se baseou na intimidade - na comunica~ao emocional. Isso era sem duvida importante para urn horn casamento, mas nao 0 seu fundamento. Para o casal, e. A comuniea~ao e 0 meio de estabelecer 0 la~o, acima de.qualquel"outro, e e a principal base para sua continua~ao. t Deveriamos reconheeer a notavel transi~ao que isso representa. As ideias de "uniao" e "nao-uniao" proporcionam agora uma descri~ao mais acurada da arena da vida pessoal que as de "casamento e a familia". Para n6s a pergunta "voce esta tendo urn relacionamento?" e mais importante que "voce esta casado?" A ideia de relacionamento e tamberil surpreendentemente . , recente. Na decada de 1960, ninguem falava de "relacionamentos". Nao se precisava disso, como nao se precisava falar em termos de intimidade e compromisso. Na epoca 0 casamento era 0 compromisso, como 0 atesta a existencia do casamento for~ado. . ~Na familia tradicional, 0 casamento se assemelhava urn pouco a um estado da natureza. Tanto para homens quanto para mulheres, era definido como um estagio da vida que se esperava que a ampla maioria atravessasse. Os que permaneciam de fora eram enearados com certo desprezo ou condescendencia - em particular a solteirona, mas tambem 0 solteidio se 0 fosse pOl"tempo demais. Embora estatisticamente 0 casamento ainda seja a condi~ao normal, para a maio ria das pessoas seu significado se transformou mais ou menos completamente. 0 casamento significa que urn casal esta vivendo uma rela~ao estavel, e pode na verdade promover essa estabilidade, uma vez que envolve uma declara~ao publica de eompromisso. No entanto, ele nao e mais a principal base definidora da uniao. A posi~ao das crian~as em tudo isto e interessante e urn tanto paradoxal. Nossas atitudes em rela~ao as crian~as e a fsua prote~ao alteraram-se radicalmente ao longo de algumas gera~6es passadas. Valorizamos tanto as erian~as em parte porque elas se tornaram muito mais raras, e em parte pol"que a decisao de tel"urn filho agora muito difel"ente do que foi para gera~6es anteriores. Na fainilia tradicional, os filhos eram uma vantagem economica. Hoje, nos paises ocidentais, urn filho, ao contnirio, representa urn grande encargo finaneeiro para os pais. A decisao de ter urn fitho e muito mais definida e espedfica do que costumava ser, e e guiada por neeessidades psicol6gicas e emocionais. as temores acerca e
  • 30. do efeito do div6rcio sobre os filhos e a existencia de Iuuitas farnflias sem pai tern de ser compreendidos contra 0 pane de fundo das expectativas muito mais elevadas que temos com rela~ao ao modo como as crian~as deveriarn ser cuidadas e protegidas. ~a tres areas principais em que a comunica~ao emocional, e portanto a intimidade, estao substltuindo os velhos la~os que outrora uniam as pes soas - os relacionamentos sexuais e de arnor, os relacionamentos pais-filhos e tambd:m a arnizade. Para analisa-Ias quero usar a ideia do "relacionarnento puro". Designo por isso urn relacionamento baseado na comunica~ao emocional, em que asrecompensas derivadas de tal comunica~ao sac a principal base para a continua~ao do relacionamento. Nao me refiro a uma rela~ao sexualmente pura. Tampouco tenho em mente algo que existe na realidade. Estou falando de uma ideia abstrata que nos ajuda a compreeJilder mudan~as que estao ocorrendo n'o mundo. Cada uma das tres areas que acabo de mencionar - os relacionamentos sexuais e de arnor, os relacionamentos pais-filhos e a amizade - esta tendendo a se aproximar desse modelo. A comunica~ao emodonal ou intimidade esta se tornando a chave para tudo que elas envolvem. o relacionarnento puro tern uma dinamica completarnente diferente da de tip os mais tradicionais de la~os sociais. De'~pende de processos de confian~a ativa - a abertura de, si I mesmo para 0 outro. Franqueza e a condi~ao basica da intimidade. 0 relacionamento puro e impIicitarnente democrati-' co. Quando comecei a trabalhar no estudo dos relacionamentos intimos, Ii extensa literatura terapeutica e de auto-ajuda na materia. Fiquei impressionado com algo que, acredito, nao foi arnplamente percebido ou assinalado. Se considerarnos 0 modo como urn terapeuta ve urn born relacionamento - em .' qualquer das tres esferas aqui mencionadas - notaremos al existencia de urn impressionante paralelo com a democraci'; publica. born relacionamento, nem preciso dizer, e urn ideal - a maioria dos relacionamentos comuns nem sequer se aproxima dele. Nao estou sugerindo que nossas re1a~6es com c6njuges, amantes, filhos ou amigos nao sac com freqUencia confusas, conflituosas e insatisfat6rias. Mas os prindpios da democracia sao tambem ideais, e tarnbem eles se encontram com freqUencia a uma distancia bastante grande da o e realidade. Urn born r~ionamen!2. e 0 que se estabelece entre iguais, em que cada parte tern iguais direitos e obriga~6es. Num relacionamento assim, cada pessoa tern respeito pela outra e deseja 0 melhor para ela. 0 relacionamento puro e baseado na comunidade, de tal modo que compreender 0 ponto de vista da outra pessoa e essencial. A conversa, ou dimogo, e 0 que basicamente faz 0 relacionamento funcionar. -0 relacionamento funciona melhor se as pessoas nao escondem muita coisa uma da outra preciso haver confian~a mutua. E a confian~a tern de ser trabalhada; nao pode ser simplesmente pressuposta. Finalmente, urn born relacionarnento e aquele isento de poder arbitrario, coer~ao e violencia. . Cada uma dessas qualidades corresponde aos val ores da polftica democratica. Numa democracia, todos sao iguais em principio, e com a igualdade de direitos e de responsabilidades vem - peto menos em prindpio - 0 respeito mutuo. 0 dimogo aberto e uma propriedade essencial da democracia. Os sistemas democraticos procuram substituir 0 poder autoritario, e
  • 31. ou 0 poder sedimentado da tradi~ao, pela discussao aberta das quest6es - urn espa~o publico de dialogo. Nenhuma demoJ cracia pode funcionar sem confian~a. E a democracia e solapaiN da se ceder ao autoritarismoou a violencia. if I .Quando aplicamos essesprincfpios - como ideais - a re,JlaclOnamentos, estamos falando de algo muito importante a poss!vel em~rgenci~ ~o que chamarei de u~ademocra~ia das ',Iemo~oes na vIda cOtidlana. Vma democracla das emo~6es, ao que me parece, e exatamente tao importante quanto'a democracia publica para 0 aperfei~oamento da qualidade de nossas vidas. Isto se aplica aos relacionamentos entre pais e {!U.12S tanto quanta a outras areas. Eles nao podem, e nao deveri~~- ser materialmente iguais. as pais dev~.m terautQridade ... sQQreos filhos, no illt~ressedeJ()dos. N~-~~tanto, esses relacion~~~tos devet.-iam pressupor uma igualdade em principio. Numa familia democratica, a autoridade dos pais deveria ser baseada .~~~c()ntratQjJ!lpli~ito. a pai ou a mae,siizdefatoacrian~a: "Se voce fosse urn.adu'lto, e soubesse 0 que eu sei, conconlaria que 0 que estou pedindo que fa~a e born para voce." Nas lamilias tradicionais as crian~as deviam - e devem - s~r vistas e nao ouvidas. Muitos pais, talvez derrotados pela rebe1dia.dos filhos, gostariam muitissimo de ressuscitar essa regra. Mas nao hcicomo retornar a ela, nemdeveria haver. Numa democracia das emo~6es, as crian~as podem e devem ser capazes de responder. 1 : i A democracia das emo~6es nao implica falta de disci,lina ou ausencia de respeito. Simplesmente procura situa~los em bases diferentes. Algo muito semelhante aconteceu na e5fera publica quando a democracia come~ou a substituir 0 governo arbitrario e 0 imperio da for~a. ' A democrac!~_~~~.!!}0s:6~ nao faria quaisquer distin~6es de principio entre relacionamentos heterossexuais e entre pessoas do mesmo sexo. Os gays, e nao os heterossexuais, foram os pioneiros na descoberta do novo mundo dos relacionamentos e na explora~ao de suas possibilidades. Foram for~ados a isso, pois quando a homossexualidade saiu do armario, os gays nao tinham como depender dos amparos normais do casamento tradicional. Defender a promo~ao de uma democracia emocional nao significa ser fraco com rela~ao aos deveres familiares, ou com rela~ao a polftica publica voltada para a familia. A democracia significa a aceita~ao de obriga~6es, bem como de direitos sancionados em lei. A prote~ao das crian~as deve ser o aspecto primordial da legisla~ao e da politica publica. as pais deveriam ser legalmente obrigados a prover a subsistencia dos filhos ate que se tornem adultos, sejam quais forem os arranjos de vida em que ingressem. 0 casamento nao e mais uma institui~ao economica, no entanto, como urn compromisso ritual, pode ajudar a estabilizar relacionamentos que de outro modo seriam frageis. Se isto se aplica a re1acionamentos heterossexuais, deve se aplicar tambem aos homossexuais. Ha muitas perguntas a fazer sobre tudo isto - demais para que as pudessemos responder num curto capitulo. A mais 6bvia e que me concentrei sobretudo em tendencias que afetain a familia nos pafses ocidentais. Que dizer sobre regi6es em que a familia permanece em grande parte intacta, como no caso da China, pelo qual comecei? Irao as mudat:I~as observadas no Ocidente tornar-se cada vez mais globais? Penso que irao - que de fato ja estao se tornando. Nao se trata de saber se as formas existentes de familia tradicio-
  • 32. nal vao se modificar, mas quandoe como. Eu iria ainda mais longe. 0 que descrevi como uma democracia emergente das emo~6es esta na linha de frente daluta entre cosmopolhismo e fundamentalismo que descrevi antes. A igualdade dos sexos e a liberdade sexual das mulheres, que sao incompatfveis com a famIlia tradicional, SaDanatema para os 3rupos fundamentalistas. A oposi~ao a des e, de fato, uma das caracterfsticas definidoras do fundamentalismo por todo 0 mundo. Ha muito 0 que temer em rela~ao ao estado da faroflia, nos pafses ocident~s e em outros. E tao erroneo dizer que toda forma de famflia e tao boa como qualqueroutra qiuanto sustentar que 0 declInio da famIlia tradicional e urn desastre. Eu viraria a argumenta~ao da direita polftica e fundamentalista de cabe!ra para baixo. A persistencia da famflia tradicionalou de aspectos dela - em muitas partes do mundo e mms inquietante que seu declinio. 'Pois quais saD as mais importantes for!ras promotoras da democracia e do desenvolvimento economico nos pafses mais pobres? Ora, precisamente a igualdade e a educa~ao das mulheres. E 0 que precisa ser mudado para que isso se tome possIvel? Acima de tudo, a famIlia tradicional. A ~gualdade sexual pao.e apenas um...pci.ndpio essen~ d~mocr~~ Ela e relevante para a felicidade e a realiza~~ pessoal. Muitas das mudan~as que a famIlia esta experimentando SaDproblemaricas e dificeis. Mas levantamentos feitos nos EVA e na Europa mostram que poucos querem retornar aos papeis masculino e feminino tradicionais, ou a desigualdade legalmente definida. Sempre que me sinto tentado a pensar que a familia tradicional poderia aflnal de contas ser melhor, lembro do que uma ria-avo me disse urn dia. Seu casamentQ...~r sido dos mai.§~~ tendo ela vivido com 0 mari~o po~ mais_de~ssenta @Q§.. Certa vez ela me confiou que tmha sldQ profunda~liz .s:o~ ,ele durante todo esse tempo. Naquela epoca, nao havia safda.
  • 33. No dia 9 de novembro de 1989 eu estava em Bedim, no que era entao a Alemanha Ocidental. Alguns dos presentes a reuniao de que eu fora participar eram de Bedim Oriental. Urn deles, que se ausentara durante aquela tarde, voltou depois urn tanto alvororado. Estivera no lado oriental e the haviam dito que 0 muro de Bedim estava prestes a ser aberto. Com urn pequeno grupo de participantes, fomos a toda pressa ate la. Estavam colocando escadas contra 0 muro, e comeramos a subi-las. Mas fomos obrigados a recuar por equipes de te1evisao que acabavam de chegar ao local. Eles tinham de subir primeiro, diziam, para poder nos filmar sub indo as escadas e chegando ao topo. Chegaram ate a convencer algumas pessoas a descer e subir duas vezes, para assegurar uma boa tomada para a televisao. Assim a hist6ria feita nos 61timos anos do seculo A televisao nao s6 chega primeiro, mas tambem encena 0 espetaculo. A seguir, pretendo defender a ideia de que, de certo modo, as equipes de televisao tinham 0 direito de abrir seu caminho a for~aate a frente. Pois a televisao influiu decisivamente para e xx.