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A palestra de Hugo Penedones


Logo no início da palestra, o Hugo comunicou aos participantes o seu
propósito: “motivar para fazerem aquilo de que gostam e serem bons naquilo
que fazem”.
Claro que o aproveitamento escolar é um dever dos alunos. Mas é essencial
que as pessoas desenvolvam interesses           próprios, complementares ou
paralelos às exigências curriculares. O nosso futuro joga-se naquilo que
soubermos fazer bem e no prazer que nos der fazê-lo. A competência
garante-nos trabalho; o prazer que o trabalho nos der contribuirá
grandemente para a nossa felicidade. Com ou sem crise, há hoje muitas
oportunidades. Temos é que procurar ativamente ser bons naquilo que
queremos fazer. É importante diversificar experiências, conhecer novos
lugares e culturas, enfrentar desafios, pôr-nos à prova.
É o que o Hugo tem feito. Com trinta anos, tem já um longo e rico percurso
académico: fez o Ensino Secundário na Escola Secundária Dr. Júlio Martins,
em Chaves; o curso de Engenharia Informática na Universidade do Porto; foi
selecionado para um estágio de Verão na Microsoft e fez ainda um outro
estágio nos Estados Unidos; fez Erasmus em Barcelona; trabalhou um ano
na Agência Espacial Europeia, na Alemanha; atualmente, trabalha na Suíça.
Não ficará por aqui: neste momento, está a considerar a possibilidade de ir
para Londres. Lá está: os bons têm sempre um mundo pronto a recebê-los e
a recompensá-los. Por isso, não teme a mudança: provoca-a. Sabe, claro,
que pode sempre regressar às suas raízes e que é bom, de vez em quando,
regressar às origens; mas também sabe que a vida vale mais a pena quando
se abre ao mundo, se vê muito, se sente muito, se vive com intensidade.
Quando se tem prazer numa atividade, os desafios enfrentam-se com
entusiasmo, superam-se com menor esforço e a gratificação é maior. É nela
que devemos apostar se queremos ser bons naquilo que fazemos. É certo
que a Escola tende a valorizar mais determinado tipo de capacidades do que
outros. Valoriza muito a memória e a inteligência abstrata, ou seja: o
raciocínio hipotético-dedutivo. Mas há muitas formas de inteligência, que
implicam outras aptidões. Talvez o Hugo tivesse presente a        teoria das
inteligências múltiplas de Gardner. Ou talvez não.


O certo é que, a partir daqui, começou a fase a que chamou “das
provocações”.
A primeira foi uma provocação intrigante, a que os alunos, naturalmente,
acharam piada: “Cristiano Ronaldo é mais inteligente que o campeão
mundial de xadrez”. E tratou de “demonstrá-la”. Explicou        que é mais
simples raciocinar como um xadrezista, porque os seus raciocínios são todos
do tipo lógico-dedutivo e, por isso, relativamente fáceis de estudar, prever,
programar as respostas e os ataques. A prova é que foi possível um
computador já ter ganho ao antigo supercampeão Garry Kasparov. Ao
contrário, é muito mais difícil jogar como Cristiano Ronaldo, porque o número
de variáveis a considerar é muitíssimo maior: é preciso que o seu cérebro
considere uma série de possibilidades, preveja os movimentos de
companheiros e adversários, decida quase instantaneamente, coordene
muito bem os movimentos e seja criativo, de modo a poder surpreender.
Seguiu-se outro um repto provocatório: “Transformem a vossa televisão
num aquário!” A televisão força, insensivelmente, a assimilação passiva da
informação. Por esta razão proporciona um “baixo retorno do investimento
em tempo” que o telespetador lhe dedica; oferece-lhe poucas possibilidades
de escolha; sujeita-o a um marketing agressivo, ao negativismo depressivo
dos telejornais e, mais grave, à uniformização das opiniões. Ao contrário, a
Internet proporciona imensas possibilidades de se aprender autonomamente
e com baixo investimento financeiro, desde que se saiba procurar o que se
quer saber.
A terceira provocação apareceu sob a forma de pergunta: “É melhor ter
muitas ou poucas coisas?” E a resposta, minimalista: poucas. Ter muitas
coisas costuma provocar preocupações, problemas, dependência delas e
insatisfação. Isso não significa que não queiramos usufruir daquilo que
desejamos. Mas hoje, podemos usufruir de tantas coisas, economicamente,
sem a necessidade de as possuirmos!
A quarta ideia a relevar foi, mais do que uma provocação, um tocante
pronunciamento otimista: “Todos podemos ser mais ricos.” Com efeito –
explicou – a riqueza mundial tem crescido exponencialmente ao longo dos
séculos,      com     espetacular   incremento    nas     últimas       décadas.   O
desenvolvimento pode prosseguir porque, afinal, a criação de riqueza
assenta em variáveis relativamente fáceis de controlar: na introdução de
tecnologia,    cada    vez   mais   variada,   precisa,   rápida    e    barata;   na
especialização do trabalho; na organização empresarial. Ora, a economia
não é um jogo de soma zero. Não tem que alguém perder para outrem
ganhar. Devemos procurar soluções “win-win”. Ao nível individual, a maneira
mais segura de se ter uma vida boa, também não apresenta dificuldades
insuperáveis. O sucesso supõe persistência e, eventualmente, correr alguns
riscos. Mas obedece apenas a duas exigências fundamentais. Primeira:
temos que ser bons em alguma coisa. Segunda: temos que ser bons em algo
que possa interessar a outras pessoas. Satisfeitas estas exigências,
sentiremos benefício e prazer em fazer o que fazemos. E assim, lembrando o
início deste texto e quase sem dar por isso, chegamos legitimamente a esta
venturosa     conclusão: seremos bons se fizermos o que nos dá prazer e
teremos prazer se formos de fato bons. É tentador, não?
Fez ainda uma última provocação: “Deus (provavelmente) não existe”. Eu,
pessoalmente, não a sinto como provocação, embora suponha que o fosse
para a generalidade da assistência. Mas perdoar-me-á o Hugo, que foi meu
aluno, uma pequena provocação minha. Não é impossível, mas é raro, que
um racionalista (ou próximo do racionalismo, como costumam ser os
pensadores de formação matemática) tenha como referência um naturalista.
Acresce que, pelo menos naquilo que atribuiu ao autor citado (e que eu não
conheço), não há novidade nenhuma. Acrescento uma nota: sei que o tema
do criacionismo, na acepção fanática em que o expôs, é uma teoria que,
espantosamente, ainda divide os E.U. Mas só é discutido na América. Não é
uma questão europeia.
Parabéns, Hugo, pelo seu percurso e pela palestra. Gostei de o ouvir. Todos
gostámos. Todos lhe agradecemos.


Ramiro Anjos

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Palestra do Hugo Penedones

  • 1. A palestra de Hugo Penedones Logo no início da palestra, o Hugo comunicou aos participantes o seu propósito: “motivar para fazerem aquilo de que gostam e serem bons naquilo que fazem”. Claro que o aproveitamento escolar é um dever dos alunos. Mas é essencial que as pessoas desenvolvam interesses próprios, complementares ou paralelos às exigências curriculares. O nosso futuro joga-se naquilo que soubermos fazer bem e no prazer que nos der fazê-lo. A competência garante-nos trabalho; o prazer que o trabalho nos der contribuirá grandemente para a nossa felicidade. Com ou sem crise, há hoje muitas oportunidades. Temos é que procurar ativamente ser bons naquilo que queremos fazer. É importante diversificar experiências, conhecer novos lugares e culturas, enfrentar desafios, pôr-nos à prova. É o que o Hugo tem feito. Com trinta anos, tem já um longo e rico percurso académico: fez o Ensino Secundário na Escola Secundária Dr. Júlio Martins, em Chaves; o curso de Engenharia Informática na Universidade do Porto; foi selecionado para um estágio de Verão na Microsoft e fez ainda um outro estágio nos Estados Unidos; fez Erasmus em Barcelona; trabalhou um ano na Agência Espacial Europeia, na Alemanha; atualmente, trabalha na Suíça. Não ficará por aqui: neste momento, está a considerar a possibilidade de ir para Londres. Lá está: os bons têm sempre um mundo pronto a recebê-los e a recompensá-los. Por isso, não teme a mudança: provoca-a. Sabe, claro, que pode sempre regressar às suas raízes e que é bom, de vez em quando, regressar às origens; mas também sabe que a vida vale mais a pena quando se abre ao mundo, se vê muito, se sente muito, se vive com intensidade. Quando se tem prazer numa atividade, os desafios enfrentam-se com entusiasmo, superam-se com menor esforço e a gratificação é maior. É nela que devemos apostar se queremos ser bons naquilo que fazemos. É certo que a Escola tende a valorizar mais determinado tipo de capacidades do que outros. Valoriza muito a memória e a inteligência abstrata, ou seja: o raciocínio hipotético-dedutivo. Mas há muitas formas de inteligência, que
  • 2. implicam outras aptidões. Talvez o Hugo tivesse presente a teoria das inteligências múltiplas de Gardner. Ou talvez não. O certo é que, a partir daqui, começou a fase a que chamou “das provocações”. A primeira foi uma provocação intrigante, a que os alunos, naturalmente, acharam piada: “Cristiano Ronaldo é mais inteligente que o campeão mundial de xadrez”. E tratou de “demonstrá-la”. Explicou que é mais simples raciocinar como um xadrezista, porque os seus raciocínios são todos do tipo lógico-dedutivo e, por isso, relativamente fáceis de estudar, prever, programar as respostas e os ataques. A prova é que foi possível um computador já ter ganho ao antigo supercampeão Garry Kasparov. Ao contrário, é muito mais difícil jogar como Cristiano Ronaldo, porque o número de variáveis a considerar é muitíssimo maior: é preciso que o seu cérebro considere uma série de possibilidades, preveja os movimentos de companheiros e adversários, decida quase instantaneamente, coordene muito bem os movimentos e seja criativo, de modo a poder surpreender. Seguiu-se outro um repto provocatório: “Transformem a vossa televisão num aquário!” A televisão força, insensivelmente, a assimilação passiva da informação. Por esta razão proporciona um “baixo retorno do investimento em tempo” que o telespetador lhe dedica; oferece-lhe poucas possibilidades de escolha; sujeita-o a um marketing agressivo, ao negativismo depressivo dos telejornais e, mais grave, à uniformização das opiniões. Ao contrário, a Internet proporciona imensas possibilidades de se aprender autonomamente e com baixo investimento financeiro, desde que se saiba procurar o que se quer saber. A terceira provocação apareceu sob a forma de pergunta: “É melhor ter muitas ou poucas coisas?” E a resposta, minimalista: poucas. Ter muitas coisas costuma provocar preocupações, problemas, dependência delas e insatisfação. Isso não significa que não queiramos usufruir daquilo que desejamos. Mas hoje, podemos usufruir de tantas coisas, economicamente, sem a necessidade de as possuirmos! A quarta ideia a relevar foi, mais do que uma provocação, um tocante pronunciamento otimista: “Todos podemos ser mais ricos.” Com efeito –
  • 3. explicou – a riqueza mundial tem crescido exponencialmente ao longo dos séculos, com espetacular incremento nas últimas décadas. O desenvolvimento pode prosseguir porque, afinal, a criação de riqueza assenta em variáveis relativamente fáceis de controlar: na introdução de tecnologia, cada vez mais variada, precisa, rápida e barata; na especialização do trabalho; na organização empresarial. Ora, a economia não é um jogo de soma zero. Não tem que alguém perder para outrem ganhar. Devemos procurar soluções “win-win”. Ao nível individual, a maneira mais segura de se ter uma vida boa, também não apresenta dificuldades insuperáveis. O sucesso supõe persistência e, eventualmente, correr alguns riscos. Mas obedece apenas a duas exigências fundamentais. Primeira: temos que ser bons em alguma coisa. Segunda: temos que ser bons em algo que possa interessar a outras pessoas. Satisfeitas estas exigências, sentiremos benefício e prazer em fazer o que fazemos. E assim, lembrando o início deste texto e quase sem dar por isso, chegamos legitimamente a esta venturosa conclusão: seremos bons se fizermos o que nos dá prazer e teremos prazer se formos de fato bons. É tentador, não? Fez ainda uma última provocação: “Deus (provavelmente) não existe”. Eu, pessoalmente, não a sinto como provocação, embora suponha que o fosse para a generalidade da assistência. Mas perdoar-me-á o Hugo, que foi meu aluno, uma pequena provocação minha. Não é impossível, mas é raro, que um racionalista (ou próximo do racionalismo, como costumam ser os pensadores de formação matemática) tenha como referência um naturalista. Acresce que, pelo menos naquilo que atribuiu ao autor citado (e que eu não conheço), não há novidade nenhuma. Acrescento uma nota: sei que o tema do criacionismo, na acepção fanática em que o expôs, é uma teoria que, espantosamente, ainda divide os E.U. Mas só é discutido na América. Não é uma questão europeia. Parabéns, Hugo, pelo seu percurso e pela palestra. Gostei de o ouvir. Todos gostámos. Todos lhe agradecemos. Ramiro Anjos