O documento apresenta o prólogo da Crónica de D. João I. O autor enfatiza que seu objetivo é relatar a verdade dos fatos, sem favorecimentos ou distorções, ao contrário de outros cronistas influenciados por afeições. Ele buscou diversas fontes para garantir a veracidade dos acontecimentos sobre o reinado de D. João I.
1. CRÓNICA DE D. FERNANDO
Como elRei Dom Fernamdo reçebeo de praça Dona Lionor por molher, e foi chamada
Rainha de Portugal.
Andou elRei per seu reino folgamdo, tragemdo comsigo Dona Lionor ataa que chegou
antre Doiro e Minho a huum moesteiro que chamam Leça, que he da hordem do espital, e
alli determinou elRei de a receber de praça; e em huum dia pera isto assiinado, foi a todos
preposto por sua parte dizemdo em esta guisa. «Amigos, bem sabees como a hordem do
casamento he huum dos nobres sacramentos, que Deos em este mundo hordenou, pera
nom soomente os Reis, mas aimda os outros homeens, viverem em estado de salvaçom, e
os Reis averem per lidema linhagem quem depos elles soçeda o reiino, e regimento real
que lhe Deos deu; porende elRei nosso senhor querendo viver em este estado, segumdo a
el perteeçe, e comsiiramdo como a mui nobre Dona Lionor, filha de Dom Martim Affonsso
Tello, e de Dona Aldomça de Vascomçellos, deçemde da linhagem dos Reis, des i como
todollos gramdes e moores fidallgos destes reinos tem com ella gramde divedo de
paremtesco, os quaaes reçebendo delRei homrra, como he aguisado sejam por ello mais
theu dos de o ajudar a defemder a terra; e oolhamdo outro si como a dita Dona Lionor he
molher mui comvinhavel pera elle, por as razoões sobre ditas: tem trautado com ella seu
casamento, e poremde a quer reçeber de praça per pallavras de presemte, como manda a
samta egreja; e lhe emtemde de dar taaes villas e logares de seu senhorio, por que ella
possa manteer homrroso estado de Rainha, como lhe perteemçe». Emtom a reçebeo elRei
peramte todos, e foi notificado pello reino como era sua molher, de que os gramdes e
pequenos ouverom mui gram pesar. E deu-lhe elRei logo Villa viçosa, e Avramtes, e
Almadaã, e Simtra, e Torres vedras, e Alamquer, e Aatouguia, e Oobidos, e Aaveiro, e os
regueemgos de Sacavem, e Freellas, e Unhos, e terra de Merlles em riba de Douro; e dalli
em deamte foi chamada Rainha de Portugal, e beijaromlhe a maão per mandado delRei
quamtos grandes no reino avia, assi homeens como molheres; reçebemdoa por senhora
todallas villas e çidades de seu senhorio, afora. o Iffante Dom Denis, posto que meor fosse
que o Iffamte Dom Joham, que numca lha quis beijar; por a qual razom elRei Dom
Femando lhe quisera dar com huuma daga, se nom fora Gil Vaasquez de Resende seu
ayo, e Airas Gomez da Silva ayo delRei Dom Femamdo, que desviarom elRei de o fazer;
dizemdo elRei sanhudamente contra elle: «Que nom avia ver gomça nenhuuma, beijarem
a maão aa Rainha sua molher o Iffamte Dom Joham, que era moor que elle, e isso
meesmo seu irmaão, e todollos outros fidallgos do reino, e el soomente dizer que lha nom
beijaria, mas que lha beijasse ella a elle». E desta guisa andava o Iffamte Dom Denis assi
como omeziado da corte, e o Iffamte Dom Joham ficou com elRei e com a Rainha muito
amado e bem quisto; por que seemdo o mayor no reino, se ofereçera de boom grado de
beijar a maão aa Rainha, e fora aazo e caminho a outros muitos de gramde estado: porem
todol los do reino de qual quer comdiçom que fossem, eram disto mui mal contentes.
Razoões desvairadas, que alguuns fallavam sobre o casamento delRei Dom
Fernamdo
Quamdo foi sabudo pello reino, como elRei reçebera de praça Dona Lionor por sua molher,
e lhe beijarom a maão todos por Rainha, foi o poboo de tal feito mui maravilhado, muito
mais que da primeira; por que ante desto nom enbargando que o alguuns sospeitassem,
por o gramde e honrroso geito que viiam a elRei teer com ella, nom eram porem çertos se
era sua molher ou nom; e muitos duvidamdo, cuidavom que se emfa daria elRei della, e
que depois casaria segundo perteemçia a seu real estado: e huuns e outros todos fallavam
desvairadas razõoes sobresto, maravilhamdose muito delRei nom emtemder quamto
desfazia em si, por se comtemtar de tal casamento. E delles diziam que melhor fezera
2. elRei teella por tempo, e des i casar com outra molher; mas que esto era cousa que mui
poucos ou ne nhuum, posto que emtemdessem que tal amor lhe era danoso, o leixavom
depois e desemparavom, moormente nos mançebos anos. E leixadas as fallas dalguuns
simprezes, que em favor delle razoavom, dizendo que nom era maravilha o que elRei
fezera, e que ja a outros acomteçera semelhavel erro, avemdo gramde amor a alguumas
molheres; dos ditos dos emtemdidos fundados em siso, alguuma cousa digamos em breve:
os quaaes fallamdo em esto o que pareçia, diziam que tal bem queremça era muito
demgeitar, moormente nos Reis e senhores, que mais que nenhuuns dos outros desfaziam
em si per liamça de taaes amores. Ca pois que os antiigos derom por doutrina, que ho Rei
na molher que ouvesse de tomar, principalmente devia desguar dar nobreza de geeraçom,
mais que outra alguuma cousa, que aquel que o comtrario desto fazia, nom lhe viinha de
boom siso, mas de samdiçe, salvo se husamça dos homeens em tal feito lhe emprestasse
nome de sesudo: e pois que elRei Dom Fernamdo leixava filhas de tam altos Reis; com
que lhe davom gramdes e homrrosos casamentos, e tomava Dona Lionor, que tantos com
trairos tiinha pera o nom ser, que bem devia seer posto no conto de taaes. Outros diziam,
que isto era assi como door da qual ao homem prazia e nom prazia, dizemdo que todollos
sabedores concordavom, que todo homem namorado tem huuma espeçia de samdiçe; e
esto por duas razoões, a primeira por que aquello que em alguuns he causa intrimseca das
outras maneiras de sam diçe, he em estes causa de taaes amores: a segunda por que a
virtude extimativa, que he emperatriz das outras potemçias da alma açerca das cousas
senssivees, he tam doemte em taaes homeens, que nom julga o ogeito da cousa que vee
tal qual elle he, mas tal qual a elle parece; ca el jullga a fea por fremosa, e aquella que traz
dampno seer a elle proveitosa; e por tanto todo juizo da razom he sovertido açerca de tal
ogeito, em tanto que qual quer outra cousa que lhe consselhem, podera bem reçeber; mas
quamto açena de tal molher a elle prazivel, cousa que lhe digam do boom comsselho nom
reçebe, se o consselho he que a leixe e nom cure delle, ante lhe faz huum acreçentamento
de door, que he fora de todo boom juizo; de guisa que se he tal pessoa o que comsselhou,
de que possa tomar vimgamça, tomaa assi como fez elRei Dom Fernamdo, que mandou
fazer justiça em alguuns do seu poboo, que o bem comsselhavom em semelhamte caso,
segundo ja teendes ouvido.
CRÓNICA DE D. JOÃO I
PRÓLOGO
Grande licença deu a afeiçom a muitos que teverom cárrego d'ordenar estorias,
moormente dos senhores em cuja mercee e terra viviam e u forom nados seus antigos
avoos, seendo-lhe muito favorávees no recontamento de seus feitos; e tal favoreza como
esta nace de mundanal afeiçom, a qual nom é salvo conformidade dalgüa cousa ao
entendimento do homem. Assi que a terra em que os homeés per longo costume e tempo
forom criados geera üa tal eonformidade antre o seu entendimento e ela que, avendo de
julgar algüa sua cousa, assim em louvor como per contrairo, nunca per eles é dereitamente
recontada; porque, louvando-a, dizem sempre mais daquelo que é; e, se doutro modo, nom
escrevem suas perdas tam minguadamente como acontecerom.
Outra cousa geera ainda esta conformidade e natural inclinaçom, segundo sentença
dalguüs, dizendo que o pregoeiro da vida, que é a fame, recebendo refeiçom pera o corpo,
o sangue e espritos geerados de taes virandas tem üa tal semelhança antre si que causa
esta conformidade. Alguüs outros teveron que esto decia na semente, no tempo da
geeraçom; a qual despõe per tal guisa aquelo que dela é geerado, que lhe fica esta
conformidade tam bem acerca da terra como de seus dívidos.
3. E assi parece que o sentio Túlio, quando veo a dizer: «Nós nom somos nados a nós
meesmos, porque üa parte de nós tem a terra e outra os parentes.» E porém o juizo do
homem, acena de tal terra ou pessoas, recontando seus feitos, sempre çopega.
Esta mundanal afeiçom fez a alguüs estoriadores que os feitos de Castela com os de
Portugal escreverom, posto que homeës de boa autoridade fossem, desviar da dereita
estrada e correr per semideiros escusos, por as mínguas das terras de que eram em certos
passos claramente nom seerem vistas; e espicialmente no grande desvairo que o mui
virtuoso Rei da boa memoria Dom Joam, cujo regimento e reinado se segue, ouve com o
nobre e poderoso Rei Dom Joam de Castela, poendo parte de seus boõs feitos fora do
louvor que mereciam, e ëadendo em alguãs outros da guisa que nom acontecerom,
atrevendo-se a pubricar esto em vida de taes que lhe forom companheiros, bem sabedores
de todo o contrairo.
Nós certamente levando outro modo, posta a de parte toda a afeiçom que por aazo das
ditas razões aver podiamos, nosso desejo foi em esta obra escrever verdade, sem outra
mestura, leixando nos boõs aqueecimentos todo fingido louvor, e nuamente mostrar ao
poboo quaesquer contrairas cousas, da guisa que aveerom.
E se o Senhor Deos a nós outorgasse o que a alguüs escrevendo nom negou, convem a
saber, em suas obras clara certidom da verdade, sem duvida nom soomente mentir do que
sabemos mas ainda errando, falso nom queriamos dizer; como assi seja que outra cousa
nom é errar salvo cuidar que é verdade aquelo que é falso. E nós, engando per ignorancia
de velhas escrituras e desvairados autores, bem podiamos ditando errar; porque,
escrevendo homem do que nom é certo, ou contará mais curto do que foi, ou falará mais
largo do que deve; mas mentira em este volume é muito afastada da nossa voontade. Ó!
com quanto cuidado e diligência vimos grandes volumes de livros de desvairadas
linguageës e terras! e isso meesmo púbricas escrituras de muitos cartários e outros
logares, nas quaes, depois de longas vegilias e grandes trabalhos mais certidom aver non
podemos da conteúda em esta obra. E seendo achado em alguüs livros o contrairo do que
ela fala, cuidae que nom sabedormente mas errando muito, disserom taes cousas.
Se outros per ventuira em esta cronica buscam fremosura e novidade de palavras, e nom a
certidom das estorias, desprazer-lhe-á de nosso razoado, muito ligeiro a eles d'ouvir e nom
sem gram trabalho a nós de ordenar. Mas nós, nom curando de seu juizo, leixados os
compostos e afeitados razoamentos, que muito deleitom aqueles que ouvem, ante poemos
a simprez verdade que a afremosentada falsidade. Nem entendaes que certificamos
cousa, salvo de muitos aprovada e per escrituras vestidas de fé; doutra guisa, ante nos
calariamos que escrever cousas falsas.
Que logar nos ficaria pera a fremosura e afeitamento das palavras, pois todo nosso
cuidado em isto despes nom basta pera ordenar a nua verdade? Porém, apegando-nos a
ela firme, os claros feitos, dignos de grande renembrança, do mui famoso Rei Dom Joan,
seendo Meestre, de que guisa matou o conde Joam Fernández, e como o poboo de Lisboa
o tomou primeiro por seu regedor e defensor, e depois outros alguüs do reino, e d'i em
deante como reinou e em que tempo, breve e sãamente contados, poemos em praça na
seguinte ordem.
Crónica de D. João I, Primeira Parte, Prólogo