O réu Ezequiel Zianenski foi acusado de furto qualificado, mas foi absolvido devido à dúvida razoável sobre sua autoria no crime. Embora a materialidade tenha sido comprovada, nenhuma testemunha presenciou o ato e o réu negou os fatos alegando estar sob efeito de drogas. Sua situação de vida marginal também foi levada em conta para absolvê-lo e não atrapalhar seu tratamento contra as drogas.
1. AUTOS N.038.09.023970-6
RÉU: EZEQUIEL ZIANENSKI
Vistos.
Ezequiel Zianenski, brasileiro, morador de rua, foi denunciado como incurso nas
sanções do art.155, §4º, I e IV do Código Penal, porque segundo a denúncia em 23.6.09, por
volta das 23 horas, juntamente com um adolescente, foi até a biblioteca Municipal de Joinville,
centro, onde arrombou a janela lateral de acesso e subtraiu um CPU, livros e outros pertences.
Acompanhou a denúncia o auto de prisão em flagrante, anteriormente homologado,
onde constaram os termos de apreensão e de declarações.
Concedida liberdade provisória, recebida a denúncia, o réu compareceu
espontaneamente em Juízo quando foi citado, apresentando resposta por meio de defensor.
Não sendo caso de absolvição sumária, em audiência foram inquiridas duas testemunhas
e interrogado o réu. Nada sendo requerido em diligências, em sede de alegações finais a
acusação pugnou pela condenação e a defesa pela absolvição.
É o relatório.
Decido:
No caso em tela, não obstante a materialidade do crime perpetrado tenha restado
indelevelmente demonstrada pelo Termo de Apreensão de fl.9 e Termo de Entrega de fl.11 e
pela prova indireta, quanto à autoria resta alguma dúvida, ainda que mínima.
O réu no interrogatório judicial, ao negar os fatos, disse (fls.95-7) "que na ocasião o
depoente estava na correria, isto é usando droga na região central; que em determinado
momento cruzou com quatro sujeitos próximo a biblioteca sendo que eles carregavam algo;
que continuou na correria usando droga; que foi até o Paiol; que quando a droga acabou saiu
e foi buscar mais; que então acabou vendo novamente os sujeitos com a caixa e acabou
envolvido; que quando a polícia fez a abordagem o rapaz que era menor de idade que estava
no grupo passou segurando a caixa e foi abordado".
De outro viso, nem uma das duas testemunhas ouvidas em Juízo presenciaram a
subtração. O vigilante Sérgio apenas declarou que chegou no local depois dos fatos, viu o
arrombamento e verificou a subtração, sendo informado que a polícia teria prendido os agentes
(fl.93). Já o policial Alan afirmou que receberam a ocorrência do furto e em rondas avistaram o
réu com outros sujeitos e que eles, ao perceberem a presença da polícia, largaram uma caixa
contendo o CPU. Porém, não soube dizer quem de todos segurava a caixa (fl.94).
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Com efeito, o que 980, em frente nos autos Saguaçú o réu foi flagrado juntamente de outros
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2. rapazes com uma caixa contendo a CPU. Mas nenhuma das pessoas oitivadas em Juízo viu o
momento da subtração e o réu nega veementemente o furto, justificando estar numa noite
confusa de consumo de drogas.
Quanto ao depoimento do adolescente na fase policial, apontando o réu como autor do
furto, não houve produção desta prova em Juízo. Ou seja, não pode ser ela aproveitada, uma
vez que sem ressonância na fase judicial.
Conforme dispõe o art. 155, do CPP: "O juiz formará sua convicção pela livre
apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua
decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as
provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. Parágrafo único. Somente quanto ao estado
das pessoas serão observadas as restrições estabelecidas na lei civil."
É claro, pois pacífico, que a prova indiciária pode ser utilizada como fundamento para
uma condenação. Precisa ela porém obrigatoriamente de sustentação harmônica em Juízo, cujo
sistema é acusatório. Este o momento certo para garantirem-se os direitos previstos na
Constituição Federal da ampla defesa e do contraditório, não aplicáveis na fase das
investigações inquisitoriais.
Com este dispositivo firma-se o que a jurisprudência já firmava, ou seja, não é possível
fundamentar a sentença exclusivamente nos elementos do inquérito, salvo cautelares, não
repetíveis e antecipadas.
Como dito, nenhuma das pessoas ouvidas em Juízo presenciou a subtração.
Neste ponto, respeitante à análise da prova, este Juízo vem interpretando o disposto no
art.156 do CPP de forma restritiva, uma vez que se trata de norma originária de instituto
processual civil, onde o princípio da igualdade rege o ônus da prova. A bem da verdade em
seara penal não há como se aplicar o instituto, irrestritamente.
Do magistério de Aury Lopes Junior, extrai-se: 'Como explicamos em outra
oportunidade, a partir do momento em que o imputado é presumidamente inocente, não lhe
incumbe provar absolutamente nada. Existe uma presunção que deve ser destruída pelo
acusador, sem que o réu (e muito menos o juiz) tenha qualquer dever de contribuir nessa
desconstrução (direito do silêncio – nemo tenetur detegere).FERRAJOLI, esclarece que a
acusação tem carga de descobrir hipóteses e provas, e a defesa tem o direito (não dever) de
contradizer com contra-hipóteses e contra-provas. O juiz, que deve ter como hábito
profissional a imparcialidade e a dúvida, tem a tarefa de analisar todas as hipóteses,
aceitando a acusatória somente se estiver provada e, não a aceitando, se desmentida ou, ainda
que não desmentida, não restar suficientemente comprovada. É importante recordar que,
no processo penal, não há distribuição de cargas probatórias: a carga da prova está
inteiramente nas mãos do acusador, não só porque a primeira afirmação é feita por ele na
peça acusatória (denúncia ou queixa), mas também porque o réu está protegido pela
presunção da inocência.Erro crasso pode ser percebido quase que diariamente nos foros
brasileiros: sentenças e acórdãos fazendo uma absurda distribuição de cargas no processo
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penal, Av. Hermann August Lepper, 980, em frente forma que Saguaçú - CEP 89.221-902, Joinville-SC - são
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3. condenatórias fundamentadas na “falta de provas na tese defensiva”, como se o réu tivesse
que provar sua versão negativa de autoria ou da presença de uma excludente' (LOPES
JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, Vol. 1, p. 494-5,
2ª edição, Lumen Juris Editora).
Não cabe ao réu comprovar assim que não realizou a subtração ou então tentar provar
sua versão, de que apenas se encontrou após com as pessoas que teriam arrombado e apanhado
o CPU, mas sim à acusação, de comprovar o tipo de injusto e a culpabilidade, com a necessária
prova da autoria. E esta não conseguiu, uma vez que, como já dito, dos depoimentos colhidos,
única prova produzida, não se extraiu nada que pudesse infirmar a versão do réu.
Ressalte-se que a condenação em um processo criminal não se pode basear na grande
probabilidade da autoria, materialidade e demais elementos necessários a configuração do
crime. Isto porque neste caso o princípio do livre convencimento não mais estaria presente, mas
sim o "princípio do livre arbítrio".
Malatesta já ensinou que "O direito da sociedade só se afirma racionalmente como
direito de punir o verdadeiro réu; e para o espírito humano só é verdadeiro o que é certo; por
isso, absolvendo em caso de dúvida razoável, presta-se homenagem ao direito do acusado, e
não se oprime o da sociedade. A pena que atingisse um inocente perturbaria a tranqüilidade
social, mais do que teria abalado o crime particular que se pretendesse punir; porquanto todos
se sentiriam na possibilidade de serem, por sua vez, vítimas de um erro judiciário. Lançai na
consciência social a dúvida, por pequena que seja, de aberração da pena, e esta não será mais
segurança dos honestos, mas grande perturbação daquela mesma tranqüilidade para cujo
restabelecimento foi constituída; não será mais a defensora do direito, e sim a força imane que
pode, por sua vez, esmagar o direito inébil"(in: Lógica das Provas. Ed. Saraiva, p.14-5).
Cumpre portanto absolver o réu das imputações que lhe foram feitas.
Finalmente, a título apenas de registro, não poderia este Juízo fechar os olhos à grave
situação de vida do réu.
Conforme declarou no interrogatório, "faz dois meses e dez dias que está sem usar
droga pois está em tratamento; que está morando no instituto laços de solidariedade; que teve
um problema sério de saúde em razão da droga; que foi levado ao hospital e sofreu uma
cirurgia; que depois de liberado do hospital voltou a usar droga; que quando estava quase
morrendo foi acolhido pela pastora Neusa e encaminhado ao instituto; que o tempo passou e
quanto a família a única pessoa que lembra é da mãe e mais ninguém; que faz três anos que
não tem contato com ela."
Como se viu, na época dos fatos, era o réu morador de rua e pelo que consta fazia
bastante uso de crack. Perambulava assim pela insegura região central de Joinville, no escuro
da noite, consumindo psicotrópicos e sujeito aos fatídicos flagelos que esse meio traz, tão
graves que pessoas com alguma estabilidade emocional e social não imaginam que possam
existir. De sua família lembra apenas da mãe, com quem não tem contato há anos. Após o
desenfreado consumo de droga sofreu cirurgia, voltou às ruas e ao vício e quase morreu. Foi
Endereço: Av. Hermann August Lepper, 980, emsendo levado ao Saguaçú - CEP 89.221-902,Solidariedade.
ajudado por uma alma caridosa, frente ao Centreventos, Instituto Laços de Joinville-SC - E-mail:
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4. E hoje, durante a audiência, banho tomado, face limpa, vestindo simples e bem cuidadas
roupas, acompanhado de psicóloga do Instituto, num dos únicos momentos de convicção em
seu interrogatório, conforme colacionado acima, levantou a cabeça e declarou com a voz firme
que faz dois meses e dez dias que está sem usar droga, pois está em tratamento.
Não é possível portanto ignorar que a ajuda e retirada do réu do meio marginal que
viveu foi exclusivamente pelo viés da saúde, mental e física. Neste aspecto o lançamento
estigmatizante de uma sentença condenatória sobre sua cabeça afastaria todas as tentativas de
socorro que vieram ao seu encontro e ceifaria sua esperança de quem sabe algum dia conseguir
voltar a ter uma vida regular, honrada e limpa.
Já é ora do Estado perceber que não se combate a violência urbana com o chicote da
pena. Antes de comparecer para penalizar e mandar para o cárcere o Estado, que se pretende
Democrático de Direito, precisa aprender, e este é seu constitucional fundamento, a garantir a
dignidade da pessoa humana (art.1ª, III, da CF), com todo o peso histórico e evolutivo que isto
significa. Antes de comparecer assim como o Leviatã de Hobes, para alcançar pessoas e
mandá-las para o cárcere, o Estado deve concretizar sua missão constitucional, proporcionando
aos seus o bem estar, saúde, educação, lazer, moradia e demais direitos individuais e sociais
previstos na Constituição, cláusulas pétreas, de eternidade.
Quiçá as outras tantas milhares de pessoas que se encontram na situação do réu
tivessem a oportunidade que ele ora está tendo junto à Instituição referida. Quiçá o direito
devesse ser usado pelos Órgãos do Estado para fazer levar a sério a Constituição e seus
comandos.
Até lá, no caso dos autos, para o réu o direito penal punitivo e impiedoso não se fará
presente. Antes de tudo, presente estará o direito penal garantidor dos direitos das pessoas em
face do poder punitivo do Estado, o direito constitucional penal.
EX POSITIS:
JULGO IMPROCEDENTE a denúncia, para ABSOLVER o réu Eziquiel Zianenski, já
qualificado, da imputação que lhe foi feita na exordial acusatória, com base no art.386, V, do
CPP.
Sem custas.
Fixo a remuneração da defensora dativa nomeada à fl.91 em 15 URH.
Em caso de recurso, observe-se o disposto no art.596, do CPP.
Publique-se.
Registre-se.
Intimem-se.
Endereço: Av. Hermann August Lepper, 980, em frente ao Solidariedade, registrando os encômios deste
Oficie-se ao Instituto Laços de Centreventos, Saguaçú - CEP 89.221-902, Joinville-SC - E-mail: Juízo com
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5. o dignificante trabalho que vêm desempenhando para com o réu, que sirva de exemplo.
Transitada em julgado, expeça-se a certidão de URH e arquivem-se os autos, com as
baixas de estilo.
Joinville, 29 de julho de 2010.
João Marcos Buch
Juiz de Direito
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