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A diminuição da maioridade penal discursivizada
                                               em cartuns de Angeli

          The decrease of the penal’s majoritary in discoursivity
                                       in cartoons of the Angeli
                                                                                    Francis Lampoglia1
                                                                                                  (USP)
                                                                     Jonathan Raphael Bertassi da Silva2
                                                                                                  (USP)
                                                                           Lucília Maria Sousa Romão3
                                                                                                  (USP)

         Resumo: Esse artigo estuda o funcionamento discursivo de três cartuns de Angeli – originalmente
         publicados pelo jornal Folha de S. Paulo em 2007– que tratam sobre a questão da redução da
         maioridade penal no Brasil. As formas como são trabalhados a memória discursiva, os sentidos e o
         posicionamento do sujeito são especialmente observados. Para tanto, trabalharemos com a teoria da
         Análise do Discurso de linha francesa, fundada por Michel Pêcheux e Jean Dubois em 1969 e os
         estudos de Mikhail Bakhtin sobre dialogismo e polifonia, conceitos esses que embasam nosso trabalho.
         A análise preliminar dos dados aponta para a emergência de um espaço de ruptura e contestação do
         sentido dominante sobre o que é considerado óbvio e natural quando se fala em reduzir a maioridade
         penal no país.

         Palavras-chave: Análise do Discurso, polifonia, memória discursiva.


         Abstract: This article aims to study the discoursive functionament of three Angeli’s cartoons –
         originally publicated by Folha de S. Paulo’s newspaper in 2007 – about the decrease of the penal´s
         majority in the Brasil. The way the discoursive memory is worked, the senses and the positionament of
         subject are specially looked. For this, we will work with the theory of the French Discourse Analysis,
         created by Michel Pêcheux and Jean Dubois in 1969, and the studies of the Mikhail Bakhtin’s theories
         about dialogism and polyphony, concepts theses that underlies our work. A preliminary analysis points
         to the emergence of a space of rupture and resistance of the dominant sense which is considered natural
         and obvious when it comes to decreasing the penal´s majoritary in the country.

         Keywords: Discourse analysis, polyphony, discursive memory.




1. Introdução


                                                        Se prestares atenção no teu discurso, perceberás
                                                        que ele é guiado pelos teus propósitos menos
                                                        conscientes.- George Eliot




1
  francidusp@hotmail.com
2
  cid_sem_registro@yahoo.com.br
3
  luciliamsr@uol.com.br
Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010                                                              1
O presente artigo estuda três cartuns de Angeli originalmente publicados no jornal
Folha de S. Paulo, que possuem como tema efeitos de crítica em relação à redução da
maioridade penal na legislação brasileira. Para tanto, adentraremos pelos caminhos teóricos
propostos por Bakhtin (1997), discutindo as noções de dialogismo, intertextualidade e
polifonia. Em seguida, traçaremos conceitos de discurso, condições de produção, ideologia e
sujeito na Análise do Discurso de matriz francesa, observando os efeitos de sentido
produzidos em uma materialidade discursiva. Posteriormente, faremos a análise discursiva do
corpus coletado que obedecerá a uma seqüência gradativa segundo a idade das crianças
retratadas e, por fim, faremos nossas considerações finais.
         Com este trabalho, damos continuidade a análises já tecidas em outro artigo
(LAMPOGLIA; SILVA; ROMÃO, 2010) que, a partir do mesmo referencial teórico, tratou
de investigar os sentidos de resistência de/em diferentes materialidades (fotografia e cartum)
operando movimentos de deslocamentos na formação discursiva (FD) à qual se filiam jornais
brasileiros. Tal como neste texto, aquele artigo tratou do silenciamento da discursividade dos
sujeitos sobre o qual o riso se desdobra, no presente caso, sobre a voz do Estado e da lei
punitiva a respeito da criança e jovem infrator. Registramos aqui análises feitas apenas com
cartuns, sendo todos publicados no primeiro semestre de 2007 no jornal já citado; neles a voz
do cartunista Angeli discursivizou sentidos de denúncia e desagravo em relação à
criminalização da criança e do adolescente.


2. Dialogismo, intertextualidade e discurso

                                                   “Cada eco leva uma voz adiante.”- Adriana
                                                   Calcanhoto


         Mikhail Bakhtin lançou, em 1929, as bases da teoria do dialogismo que anos mais
tarde influenciou a formulação do conceito de intertextualidade, proposto por Julia Kristeva.
De acordo com essas teorias, todo texto é embrião e produto de outros textos em uma espiral
de movimentos que aponta, tanto para a anterioridade, quanto para o futuro. Ou seja, não
existe produção textual isolada ou inaugural, dado que sempre haverá influências de outras
vozes e de outros ditos na constituição de um dizer. Conforme Barros (1997, p.34), o
dialogismo “define o texto como um ‘tecido de muitas vozes’, ou de muitos textos ou
discursos, que se entrecruzam, se completam, respondem umas às outras ou polemizam entre
si no interior do texto (...)”. Isso implica levar em consideração que a linguagem se constitui


Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010                                              2
como um permanente jogo de retomadas, empréstimos e deslocamentos de sentidos já ditos
em contextos anteriores e exteriores.


                  (...) as relações dialógicas, que implicam necessariamente o conceito de vozes, não podem ser
                  reduzidas nem às relações lógicas, nem às relações psicológicas, nem às relações naturais ou
                  mecânicas. Elas constituem uma classe específica de relações de sentidos, cujos participantes
                  podem ser unicamente enunciados completos, ou vistos como completos, e por trás dos quais
                  estão os sujeitos discursivos (BRAIT, 2003, p.25).


         Nessa direção, os atos de linguagem são permanentemente marcados pela presença de
(um) outro(s) que retorna(m), que atravessa(m) e que constitui(em) o enunciado, promovendo
um giro na concepção de que o sujeito inaugura a linguagem a cada momento, de que sua voz
é centrada nela mesma e de que os sentidos estão em estado de dicionário congelados na
mudez da monofonia; longe disso, temos sempre a prática dialética de


                  menção à palavra de outrem, como constitutiva de todo dizer, não se evidencia por seu caráter
                  mostrativo, empírico, mas no jogo das relações de sentidos que atravessam a enunciação (...)
                  passam, portanto, a desconstruir a evidência ou o acobertamento do fato de que o território não
                  pode ser reduzido a fronteiras estruturais, ou a simples relações de pertencimento individual
                  (ZANDWAIS, 2005, p.97).


         As bases conceituais de dialogismo, intertextualidade e polifonia lançadas por Bakhtin
têm ressonância em vários estudos posteriores em campos diversos tais como literatura,
educação, filosofia. No campo dos estudos discursivos, também é possível escutar os ecos do
discurso de outrem na forma como o interdiscurso é concebido.


                  O dialogismo em Bakhtin comporta uma dupla dimensão: por um lado, diz respeito ao
                  permanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes
                  discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. E, nesse sentido,
                  podemos interpretá-lo como o elemento que instaura a constitutiva natureza interdiscursiva da
                  linguagem (GREGOLETO, 2005, p.119).



         A Análise do Discurso de matriz francesa, corrente de estudos ao qual este trabalho se
filia, foi fundada em 1969 por Michel Pêcheux e Jean Dubois, sinalizando um tripé de
interfaces entre a lingüística, o marxismo e a psicanálise. A língua em funcionamento, o jogo
tenso das relações de poder entre as classes e o inconsciente serão estruturantes para
compreender "um processo de significação no qual estão presentes a língua e a história, em
suas materialidades, e o sujeito, devidamente interpelado pela ideologia." (FERREIRA, 1998,
p. 203). Tendo como objeto o discurso, definido como efeitos de sentido entre interlocutores
(PÊCHEUX, 1975), a AD vai além da noção de texto, fechada e estanque, de onde seria
Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010                                                               3
possível extrair um conteúdo, uma mensagem ali encapsulada. Na direção oposta, considera o
discurso em seu funcionamento e permanente movimento de deslocamentos, errâncias e
fluxos de sentidos. Isso nos coloca em contato com uma teoria que reclama o reconhecimento
da opacidade e da incompletude como constitutivas da linguagem, já que buscamos uma
“abordagem materialista do funcionamento das representações e do ‘pensamento’ nos
processos discursivos. Isso supõe, como veremos, o exame da relação do sujeito com aquilo
que o representa.” (PÊCHEUX, 1997, p. 125).
         O discurso, em AD, é tomado, não como transmissão de informação ou da mensagem,
mas como sentido(s) possível(eis) entre/para interlocutores, o que inclui a situação, o contexto
histórico-social, as condições de produção.

                  (...) as CP do discurso mostram a conjuntura em que um discurso é produzido, bem como suas
                  contradições. Nessas condições, o sujeito produz seu discurso não como fonte de
                  conhecimento, mas como efeito dessa rede de relações imaginárias, constituindo-se tal discurso
                  na representação desse imaginário social (INDURSKY, 1997, p.28).


         Para escutar o discurso e(m) seu jogo, é fundamental compreender dois conceitos-
chave da teoria discursiva, a saber, ideologia e sujeito. Sobre o primeiro, temos que ela é o
mecanismo que produz evidências e naturaliza sentidos para o sujeito a partir da posição que
ele ocupa.
                  (...) é a ideologia que, através do “hábito” e do “uso, está designando, ao mesmo tempo, o que
                  é e o que deve ser, e isso, às vezes, por meio de “desvios” lingüisticamente marcados entre a
                  constatação e a norma e que funcionam como um dispositivo de “retomada do jogo”. É a
                  ideologia que fornece as evidências pelas quais “todo mundo sabe” o que é um soldado, um
                  operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc., evidências que fazem com que uma palavra
                  ou um enunciado “queiram dizer o que realmente dizem” e que mascaram, assim, sob a
                  “transparência da linguagem”, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das
                  palavras e dos enunciados (PÊCHEUX, 1997, p.160).


         Apesar disso, através dos esquecimentos enunciativo e ideológico (PÊCHEUX, op.
cit.), o sujeito não se dá conta de não ser a fonte do que diz, nem de que poderia dizer de
outras formas, quando na verdade ele precisa, tanto para significar quanto para produzir
sentidos, assujeitar-se ao pré-construído, à memória discursiva e a sentidos que já foram
postos em circulação antes.

                  O sujeito se define historicamente: a relação do sujeito com a linguagem é diferente, por
                  exemplo, na Idade Média, no século XVII e hoje. (...) A relação com a linguagem, da forma-
                  sujeito característica das nossas formações sociais, é constituída da ilusão (ideológica) de que o
                  sujeito é a fonte do que diz quando, na verdade, ele retoma sentidos preexistentes e inscritos
                  em formações discursivas determinadas (ORLANDI, 1988, p.77).




Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010                                                                  4
Para a teoria da Análise do Discurso, o sujeito não é o indivíduo empírico, o ser em
sua estrutura biológica, psicologizante ou sociológica; mas uma posição discursiva, o que
implica considerar o sujeito interpelado pela ideologia, atravessado pela captura de algo que
lhe parece evidente na posição em que está e, além disso, constituído por múltiplas vozes que
embasam seu dizer.


                  (...) para a Análise do Discurso, não se focaliza o indivíduo falante, compreendido como um
                  sujeito empírico, ou seja, como alguém que tem uma existência individualizada no mundo.
                  Importa o sujeito inserido em uma conjuntura social, tomado em um lugar social, histórica e
                  ideologicamente marcado; um sujeito que não é homogêneo, e sim heterogêneo, constituído
                  por um conjunto de diferentes vozes (FERNANDES, 2005, p.13).


         Tomado pela ideologia, o sujeito tem a ilusão de ser a origem do que diz, esquecendo-
se dos fios discursivos, sempre alheios, que compõem a malha de seu dizer, o que acarreta no
que Pêcheux (1997) denomina de esquecimento de número 1. Esse esquecimento é condição
necessária para que o sujeito possa dizer de/sobre si e os outros, constituindo-se como suposta
fonte das palavras e lugar originário da linguagem.

                  (...) apelamos para a noção de “sistema inconsciente” para caracterizar um outro
                  “esquecimento”, o esquecimento nº 1, que dá conta do fato de que o sujeito-falante não pode,
                  por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina. Nesse sentido, o
                  esquecimento nº 1 remetia, por uma analogia com o recalque inconsciente, a esse exterior, na
                  medida em que – [...] esse exterior determina a formação discursiva em questão (PÊCHEUX,
                  1997, p. 173).


         O esquecimento de número 2 pertence à ordem da enunciação e diz respeito ao fato de
que o sujeito tem a ilusão de que seu dizer só pode ser dito de uma só forma, com aquelas
palavras e não outras (ORLANDI, 2005). Isto implica o apagamento de tantas outras maneiras
de dizer e significar a linguagem, o que promove a evidência dos sentidos pertinentes ao lugar
em que o sujeito está e de onde ele fala.

                  Concordamos em chamar esquecimento nº 2 ao “esquecimento” pelo qual todo sujeito-falante
                  “seleciona” no interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados,
                  formas e seqüências que nela se encontram em relação de paráfrase – um enunciado, forma ou
                  seqüência, e não um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que poderia reformulá-lo na
                  formação discursiva considerada (PÊCHEUX, 1997, p. 173).


         Estes esquecimentos pavimentam o processo de constituição do sujeito no discurso,
processo este dado pela submissão do sujeito ao que ele pensa (e tem certeza) saber, fazendo-
o deixar de lado a assertiva de que outros saberes e dizeres pode(ria)m vir a assaltá-lo em
outro momento. Assim, trabalhar com esta noção de sujeito reclama compreender a ideologia
Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010                                                              5
como mecanismo que naturaliza sentidos, torna clara uma palavra e nubla outras tantas. Como
sabemos, pelo acesso à teoria do discurso, tais processos – interpelação ideológica e
constituição do sujeito – estão ancorados em bases sócio-históricas ligadas ao modo de
produção econômico, a relações de poder entre as instituições, a sentidos tidos como
dominantes e legitimados. Assim sendo, as noções de memória e interdiscurso também são
fundamentais para analisarmos os cartuns. No caso da primeira, "deve ser entendida aqui não
no sentido diretamente psicologista da ‘memória individual’, mas nos sentidos entrecruzados
da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória do historiador"
(PÊCHEUX, 1999, p. 50). Deste modo, a memória discursiva é uma memória dos sentidos,
que garante o dizível e que possibilita ao sujeito recortar algumas regiões do já-dito para
garantir e sustentar o seu dizer. Essa memória, em sua relação com os sentidos, não é
homogênea e rígida, mas sim passível de disjunções e deslocamentos.

                  (...) uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam
                  transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo
                  de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de
                  deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos,
                  polêmicas e contra-discursos (PÊCHEUX, 1999, p. 56).


          Para o estudo do nosso corpus, as noções de ideologia, sujeito, memória e
interdiscurso mostram-se indispensáveis, uma vez que a materialidade do cartum no dizer
jornalístico recorre a outros discursos já falados antes em outro lugar (ORLANDI, 1999),
retoma de modo jocoso o que circula em outras páginas do jornal, desloca o sentido
cristalizado fazendo falar o outro, o diferente, o estranho.


3. Redução da maioridade em três cartuns de Angeli

                                                       Eu era uma criança, esse monstro que os
                                                       adultos fabricam com as suas mágoas - Jean-
                                                       Paul Sartre


         A partir de agora iremos analisar três cartuns de Angeli, publicados na Folha de S.
Paulo, nos quais buscamos flagrar o funcionamento discursivo, especialmente o modo como o
sujeito se constitui, como a ideologia o interpela e como a memória sustenta a possibilidade
do deslocamento. Também está no nosso horizonte especular sobre a possibilidade de eles
dialogarem entre si, marcados pela inscrição histórica dos sentidos de criança, crime e
punição no país.


Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010                                                           6
A repetição do mesmo título marca a intertextualidade entre os três cartuns e também
reforça o sentido dominante muito recorrente na mídia hegemônica, em favor de reduzir a
idade para o julgamento e a punição penal de jovens no país. Esse sentido dominante tenta se
impor como literal, apagando os outros. Sabemos que "o sentido literal é um efeito discursivo.
O que existe, é um sentido dominante que se institucionaliza como produto da história: o
‘literal’. No processo que é a interlocução, entretanto, os sentidos se recolocam a cada
momento, de forma múltipla e fragmentária" (ORLANDI, 1996, p. 144). Sendo assim, o título
(quase) igual dos três cartuns faz falar a paráfrase ad infinitum desse assunto na mídia de
modo a provocar uma fala seriada já que existe o cartum número um, dois, etc.
        O efeito de escárnio inscrito pela voz de Angeli é colorido se considerarmos a
ilustração com policiais armados, contando os minutos para encarcerar os recém-nascidos
desde o berçário.




                                                                                    34



        Os policiais discursivizados na posição de des-humanizados interessam-se em vigiar e
punir os bebês; não é em vão, portanto, que a única cor pujante no cartum é o preto nas vestes
dos agentes da lei. No uso da cor preta, ainda cabe uma nuance que por si só daria uma análise
à parte: o contraste entre os óculos dos policiais e os do cidadão comum. Enquanto os



4
 Cartum de Angeli extraído do blog PICICA em 08 de maio de 2007, originalmente publicado na Folha de S.
Paulo. Endereço: <http://rogeliocasado.blogspot.com/2007_05_01_archive.html>. Acesso em: 30 mar. 2009.
Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010                                                       7
primeiros usam óculos escuros, o segundo possui lentes brancas, amenas. Isso marca o
interdiscurso do que significa usar óculos escuros, enquanto representante do Estado. Um
fascículo da coleção "A ditadura militar no Brasil", editado pela Caros Amigos, corrobora a
memória das lentes opacas utilizadas por ditadores sul-americanos: "Nas sombras dos óculos
o ditador observa tudo sem que ninguém saiba o que. Não permite saber o que lhe passa no
íntimo, porque os olhos são o espelho da alma. E o que lhe vai na alma é melhor esconder" (A
DITADURA, 2007, p. 261). Dito isso, o sujeito-leitor, identificável na pele do cidadão
comum ilustrado por Angeli, é mostrado passivo diante do poderio armamentista da repressão
policial, mas tem o chapéu na mão, com lentes claras e, assim, cabeça e olhos (os chamados
"espelhos da alma") visíveis para os agentes, enquanto estes dirigem suas lentes escuras para a
vigilância dos menores, dos sujeitos na posição de bebês, sem que seja possível identificar
para qual deles seus olhares são dirigidos.
         Pelo acesso à memória discursiva, temos o sentido dominante de que em um
“berçário” estão colocados bebês inofensivos e frágeis que reclamam cuidado dos adultos
para tudo, em especial para sobreviver. A ruptura nesse sentido legitimado provoca o
desarranjo, isto, é o deslocamento do sujeito-bebê do lugar de indefeso para outro, a saber,
aquele em que será discursivizado como perigoso, possível autor de crimes e, portanto,
responsável juridicamente por seus próprios atos. Daí o efeito ácido de crítica que perpassa a
voz do cartunista, criando uma ruptura na teia da memória discursiva, fazendo furo nos
sentidos de criança e de inocência tais como um bebê recém-nascido evoca. No berçário,
dentro de uma maternidade, a palavra polícia aparece marcada em dois uniformes, indicando
que os policiais têm trabalho a realizar ali, promovem investigação, tentam reconhecer as
digitais, identificar os criminosos bebês. Essas marcas lingüísticas – berçário, policiais,
redução da maioridade penal – apontam para um modo de representar os bebês na posição de
agressores, ainda que não tenham força física nem para se virar no berço da maternidade;
deriva daí justamente o efeito de riso e também de crítica. Como culpabilizar um bebê da
autoria de um crime? Como responsabilizá-lo pela condenação de algo que ele desconhece e
não tem condições de efetuar? Tais questões ficam sem resposta, escorrendo dos traços e
palavras marcados no cartum.




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5




        Em fevereiro de 2007, o menino João Hélio Fernandes Vieites, de seis anos, foi morto
vítima de um assalto no Rio de Janeiro. Embora a questão da violência nas grandes cidades
seja uma constante nos noticiários sem, contudo, despertar grandes mobilizações no sentido
de mudanças para a reversão desse quadro, o caso de João Hélio chamou a atenção da
sociedade, em especial a mídia, pelo modo como foi assassinado. Preso ao cinto de segurança
do carro no qual se encontrava, o menino foi arrastado por cerca de sete quilômetros,
ocasionando sua morte. A brutalidade do crime, coligada à exploração mórbida da mídia,
causou celeuma e revolta na população, que passou a discutir a questão da maioridade penal,
dado que entre os criminosos que vitimaram a criança estava um menor de 16 anos.
        Partindo desse contexto sócio-histórico, Angeli produziu o cartum acima, publicado
em 12 de fevereiro de 2007 sob o título “Redução da maioridade penal”, diJonathanalogando
com a imagem de bebês em seus respectivos bercinhos, agora carrinhos, o que gera o efeito de
ironia, reforçado pela representação de uma grade ao fundo. Considerando que a ironia “é
uma figura que exprime um conceito contrário do que se pensa ou do que realmente se quer
dizer. Por isso, muitas vezes, só pode ser percebida quando se considera o contexto"
(MESQUITA, 1994, apud ROMUALDO, 2000, p. 78), o efeito é dado pelo caso extremo de
se enclausurar bebês que são incapazes até de se locomover por conta própria, provocando o
riso.


5
 Cartum de Angeli extraído do jornal Folha de S. Paulo, 12 fev. 2007.
Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010                                           9
A cena discursiviza a passividade das crianças, já que estão representadas imóveis e
caladas, produzindo o sentido de que nem sequer são capazes de contestar sua condição.
Passivos e quietos, os bebês despertam o sentido de não oferecerem perigo à sociedade, o que
contrasta com o ambiente em que se encontram, principalmente pela grade na janela ao fundo
da cela, que mobiliza o sentido de periculosidade. A grade reforçada ao fundo por uma tela
remete, pelo acesso à memória discursiva, ao efeito de proteção, seja da sociedade - caso em
que o ser aprisionado ofereça perigo a ela, se solto - seja do enclausurado, como as grades de
um berço, por exemplo. Contudo, aqui a grade simboliza também a forma de proteção
escolhida pelo Estado contra a ameaça que esses sujeitos-bebês representam à sociedade e não
a proteção dos mesmos, invertendo a posição do Estado como defensor dos cidadão comum
para apresentá-lo como algoz.
         O cartum ainda apresenta um contraste ao representar a cela como um lugar escuro,
com rachaduras, em contraposição com o azul do lado de fora, azul que instiga o sentido de
liberdade, de horizonte aberto no fundo do céu, no caso, impossível de ser visto tanto pelas
crianças quanto por nós leitores. Além disso, o ambiente monocromático e sombrio da cela
contrasta com o colorido em tom pastel das roupas que vestem os bebês, sinalizando um
litígio entre o escuro do espaço e a inocência ou singeleza dos prisioneiros-bebês. Este
conflito simbólico entre as cores é também marcado pela tez rosada das crianças, em
contraponto ao cinzento tanto das paredes quanto dos carrinhos. Neste ponto, podemos
perceber a retomada de sentidos parafrásticos já colocados em discurso no primeiro cartum.
Se antes os bebês eram colocados na posição de infratores, aqui este sentido se confirma, visto
que eles estão enjaulados em uma cela com enormes paredes que se erguem para muito além
da altura possível de ser alcançada para os bebês. Assim, constrói-se o efeito de denúncia do
sujeito-cartunista marcando o absurdo e o inominável (no último cartum, faltam as palavras)
da condenação e do aprisionamento dado a priori aos sujeitos-bebês, destinando-os já no
nascimento, nas primeiras horas de vida e na primeira infância ao lugar de criminosos.
         Dos itens mencionados, a manifestação mais emblemática da subjugação das crianças
(os sentidos de ruptura) à formação discursiva dominante é indicada em tons sorumbáticos,
melancólicos até, por meio dos carrinhos, que se fazem presente em todas as crianças, sem
exceção. Ou seja, apesar da pluralidade de sentidos dos bebês, conforme percebemos nas
vestimentas, essa potencial ruptura é dependente do assujeitamento ao pré-construído e à
historicidade da luta de classes inerente ao capitalismo (logo, a discursividade dos adultos),
sob pena de não conseguirem locomoção. O encarceramento dos bebês / sentidos de ruptura,
por isso, acontece duas vezes: primeiro na inevitável subserviência ao sentido dominante e,
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depois, na repressão em si exercida aos que se intrometem a afrontar o lugar que lhes "cabe".
No entanto, como a ideologia é um ritual com falhas, não podendo silenciar todas as
manifestações de resistência, as rachaduras na parede e o azul do céu ainda se fazem presente
para as crianças, apesar de, supostamente, serem inatingíveis, mas de qualquer maneira
evidenciando as lacunas e divisões do sujeito-adulto, o qual edificou esse sistema prisional.
         Além disso, o cartum também incita um outro tema polêmico, debatido
constantemente pela mídia e pela sociedade, que é o problema da superlotação das cadeias
públicas. A representação de inúmeras cadeirinhas contendo bebês preconiza o sentido de que
mudam-se os infratores, porém as condições físicas permanecem as mesmas, mobilizando a
memória cristalizada sobre a prisão como solução para os males sociais, culminando na
necessidade da construção de outros presídios, uma vez que no espaço retratado existem
tantos bebês que ao fundo as imagens até se confundem. Aqui o cartum inscreve ao
interdiscurso com a obra de Machado de Assis, “O Alienista”, que depois de prender em um
sanatório todos os habitantes do lugar retratado, o alienista acaba por soltá-los e internar-se a
si mesmo, percebendo que o problema não era com a população, mas com ele. O cartum faz
falar a obra de Machado à medida que o Estado pode ser metaforizado e personificado na
figura do alienista, já que ambos tomam medidas paliativas para o tratamento dos males
sociais, quando na verdade é o agente que efetua as prisões (o alienista e o Estado) quem
precisa de tratamento, de um estudo, de uma análise. Esse desconforto subversivo causado
pelo cartum é ainda ratificado pela imersão do sujeito-leitor naquele contexto, pois verifica-se
que na cela não há grades que separam o leitor do da cena, num movimento de aproximar e
envolver aquele que lê o quadrinho com a situação retratada.
         Convém lembrar que o Estado é comumente notado na estrutura social como extensão
da família, esta tida como sua "unidade", sua "célula". Sendo assim, o estabelecimento
repressor estatal representado pelo sistema carcerário dirigido às crianças de colo nos expede
ainda a outra região do interdiscurso, a saber, o poder instituído aos pais com relação aos
filhos para educá-los, fazendo uso de penitências para controlar os sentidos não desejáveis nas
crianças. Trata-se aí do conflito entre o velho e o novo para (re)significar o que é justiça, onde
o pré-construído, simbolizado pelos pais e pelo Estado, trava embate com a potencial ruptura
de sentidos nas crianças, de modo a perpetuar as condições de produção tidas como evidentes.
Ou seja, a denúncia inscrita no cartum, se observada por esse prisma, vai além da mera
reprimenda à idéia dos supostos benefícios da redução da maioridade penal para fazer circular
dizeres sobre a situação do sujeito-criança num contexto mais amplo, tendo as grades e as


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paredes monocromáticas também o interdiscurso de outras "prisões" para os sentidos intrusos
dos menores, a fim de domesticá-los, desde a família até as instituições pedagógicas.




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        Dois dias após a publicação de “Redução da maioridade penal”, é divulgado o cartum
intitulado “Redução da maioridade penal (2)”, num movimento intertextual que recupera tanto
o contexto sócio-histórico quanto a discussão gerada pelo tema em questão. Nesse cartum, a
criança - que já não é mais um bebê - aparece sentada desenhando, num movimento de
expressar seus sentimentos e pensamentos. Aqui a criança já consegue se expressar,
diferentemente do primeiro cartum publicado em que os menores se encontravam estáticos. O
título do cartum, no entanto, instala um efeito de paráfrase que vem carregado de denúncia,
pois é exatamente o mesmo do recorte anterior, com o acréscimo de um número, remontando
à idéia de mera seqüência enumerativa, ou seja, sem nenhuma mudança de fato entre uma
cena e outra. Assim sendo, o "(2)" do título também significa, dado que a ausência desse
significante produz outros efeitos de sentido. Portanto, não é em vão que o número vem entre
parênteses, reforçando a insignificância da mudança de postura do sujeito-criança de um
cartum para o outro, pois embora o menor infrator supostamente tenha menos dependência do
sujeito-adulto e mais expressividade nessa cena, a mudança causada pelo transcorrer
cronológico é apenas aparente e continua aqui falando a crítica do primeiro cartum. Daí o uso
dos parênteses, reiterando a condição de potencial resistência materializada no desenho do


6
 Cartum de Angeli extraído do jornal Folha de S. Paulo,14 fev. 2007.
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menino, que é o grande diferencial em relação ao primeiro cartum, mas ao mesmo tempo
lembrando que esse desenho pode ser sumariamente ignorado, tal como as palavras que são
linguisticamente marcadas entre parênteses são convencionalmente tidas como portadoras de
sentidos opcionais, ou secundários.
         Na cena, há a separação nítida entre o universo adulto, representado pelos três homens
sentados e a parede com inscrições na qual se encontram apoiados. Esta cena reflete a
formação imaginária (FI) que o sujeito que produziu o cartum tem daqueles que são
retratados. O desenho colorido da criança simboliza a FI do sujeito-cartunista tem do que um
menor de idade pode querer ou pensar num ambiente prisional, e os desenhos e escritos da
parte da parede que se encontram os adultos refletem pensamento que o autor imagina que
esses presos tenham. Segundo Orlandi :

                  Na relação discursiva, são as imagens que constituem as diferentes posições. E isto se faz de tal
                  modo que o que funciona no discurso não é o operário visto empiricamente mas o operário
                  enquanto posição discursiva produzida pelas formações imaginárias (ORLANDI, 2005, p. 40-
                  41).

         O cartum marca a oposição entre o universo adulto e o infantil através das inscrições
que cada grupo produz. Enquanto a criança desenha seus sonhos de uma família, uma casa,
sendo todo o desenho pintado com cores vivas e variadas, os adultos traçam a realidade em
que vivem, demonstrado pela palavra “crime” e pelo desenho de um homem mascarado,
representado convencionalmente como um bandido, com uma metralhadora na mão.
         Em mais um movimento intertextual com o cartum precedente, notamos aqui a parede
monocromática e as inscrições feitas nela simbolizando os modos de resistência à coação
estatal. Por conseguinte, enquanto a parede do sujeito-adulto é suporte para inscrições que
cobrem toda sua extensão, com significantes verbais e não verbais, a única oposição do
sujeito-criança a essa realidade vem por meio do escapismo com o desenho, que cobre uma
área ínfima do concreto cinzento. Nota-se, portanto, não apenas as cisões nos modos de
resistência dos sujeitos inscritos aqui, mas do alcance dela, quer dizer, da capacidade para
fazer falar sentidos que se opõem à implacável coerção prisional. Nesse sentido, é digno de
nota que a criança seja retratada sozinha, enquanto o adulto pode se organizar com o outro e
re-significar toda a contenção (representada pela parede) que lhe é dirigida – não por acaso
expondo num dos dizeres a palavra "união". Enquanto a criança tem em mente a idéia de
família e casa, significantes que remetem à idéia de segurança e proteção, os adultos
prisioneiros vêem na organização criminosa, marcada pelas palavras “união”, “salve o
comando Z. N.”, “Pavilhão Zero” (em intertextualidade com o pavilhão 9, cenário da chacina

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ocorrida em 1992 no presídio Carandiru, comandada por policiais contra os detentos) e pela
quantidade de homens que estão sentados juntos, os seus conceitos de proteção e segurança.
Ou seja, o cartum sugere a diferença entre os dois mundos, demarcando as idéias e os
pensamentos de cada grupo.
         Os desejos dos adultos também são representados, como as figuras de mulheres nuas
ou seminuas e pela palavra “sexo”, encoberta parcialmente por um dos cartazes, marcando,
com isso, a distinção entre o mundo infantil colorido com o de cores neutras adultas. Percebe-
se também que a criança está isolada, sentada no chão, numa posição inferior aos de seus
companheiros de cela que estão sentados em uma espécie de banco/cama. A posição inferior
do menino remete à submissão em que se encontra em relação aos prisioneiros adultos,
podendo estes, por coibição física, influenciá-lo futuramente.
          O desenho da criança também faz falar a memória das redações que muitas escolas
infantis pedem aos seus alunos para falar de suas férias, embora o desenho não tenha palavras,
já que ao invés de estar na escola, o menor está na prisão. Esta questão também é marcada
pelos objetos dispostos próximos aos prisioneiros, demonstrando, através de utensílios de uso
pessoal como prato, colher, copo, caneca, chinelo, a necessidade física dos adultos,
diferentemente dos lápis ao redor da criança, que remete à carência intelectual, a falta da
escola e do aprendizado de ler e escrever. Por isso mesmo, nota-se que no pequeno espaço do
desenho infantil não se encontram significantes lingüísticos, a não ser talvez abaixo das
figuras humanas ali retratadas, bem diferente da parede do sujeito-adulto, toda coberta por um
emaranhado confuso de dizeres verbais e não-verbais justapostos, remetendo ao efeito de
sujeito "formado", capaz de significar diversas linguagens, enquanto a criança é
marginalizada do ensino alfabético. O aprendizado e a escola apresentam-se, desta forma,
como alternativas para a contenção da criminalidade entre menores, sendo a prisão uma
medida paliativa, que poderia até mesmo exercer uma influência negativa à criança, o que
remete à memória do sistema prisional brasileiro na atualidade como “escola do crime”. Outro
detalhe a ser notado é a grade da janela da cela, marcada, mais uma vez, pela tela que ironiza
a idéia de proteção, remetendo ao cartum publicado dois dias antes.
         Inserir essa figura de elo entre os dois lados envolvidos pela discussão suscitada pelo
caso de João Hélio (a Lei e os menores delituosos) tem, em vista disso, papel ideológico
crucial nos gestos de leitura socialmente inscritos para o sujeito-leitor através da única figura
identificável, cujo laço de responsabilidade, supõe-se, é mais com o bebê do que com os
policiais. Por fim, percebem-se desenhos no interior do berçário, gravados nas paredes. A
colonização repressiva dos menores encontra aqui sua última resistência, num ambiente
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diverso das celas nos cartuns anteriores, mas, conforme ilustrado, passível de observação pela
vidraça, sendo mais uma vez só aparente a liberdade das crianças, na distopia de Angeli
subjugadas pelos adultos desde o berço, literalmente.
         Vale lembrar ainda, que atualmente existem mulheres grávidas nas penitenciárias
brasileiras, marcando que, mesmo em feto, o indivíduo já se encontra inserido no sistema
carcerário. Sendo que, após uma breve passagem pelo hospital para a realização do parto, o
bebê já retorna, nos braços da mãe, para a penitenciária, recebendo os cuidados maternos
durante um tempo determinado. Embora passível de ser interpretado pelo sentido dessa
realidade já existente, o sentido dominante no cartum, no entanto, remete à idéia de que é o
sujeito-criança o autor do delito, ratificado pelo título “Redução da maioridade penal”, já que
não é a mãe, mas sim os policiais armados, que esperam o sujeito-criança pelo lado de fora do
berçário. Convém ressaltar também que o título “Redução da maioridade penal”, embora
intertextualize com os outros dois cartuns aqui estudados, não apresenta um símbolo que
marque alguma seqüência ou que faça referências aos cartuns divulgados sob esse título,
produzindo, com isto, um efeito de silenciamento sobre os outros trabalhos já publicados,
como se antes desse cartum nada mais houvesse a respeito.


4. Considerações finais

         Buscamos, à luz da Análise do Discurso de matriz francesa, interpretar três cartuns
assinados por Angeli e publicados em 2007 na Folha de S. Paulo, veículo da imprensa
majoritária que, com a divulgação desses cartuns, deu espaço à denúncia tida como pueril e
lúdica dos cartuns, mas que ao invés disso rompem com os sentidos ideologicamente
cristalizados daquele periódico, de modo semelhante às rachaduras na parede de concreto que
tentam limar os sentidos de ruptura conforme vimos na obra do cartunista. Com a mobilização
dos pressupostos da AD francesa, evidenciamos o interdiscurso materializado nessas
ilustrações, desvendando possibilidades de leitura menos ingênuas do discurso não-verbal.
Verificamos também como os sentidos podem ser deslocados e reconfigurados conforme o
contexto sócio-histórico em que as materialidades discursivas são produzidas.
         No decorrer deste trabalho pudemos perceber como o sujeito-cartunista toma a idéia
de criança, qual a formação imaginária que esse sujeito tem do universo infantil. No caso dos
desenhos da família, do berçário e dos carrinhos de bebê, observamos, através desses
elementos, sentidos que remetem à necessidade de proteção por parte das crianças, que estas
precisam ser protegidas pelo Estado, e não ao contrário. Com isto, verifica-se que os cartuns

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selecionados sob o título em comum denominado “Redução da maioridade penal” evocam
sentidos múltiplos, conforme suas condições de produção, dentre eles os sentidos
parafrásticos na denúncia do ridículo das situações, na ironia e no equívoco da solução de
aprisionar crianças ao invés de educá-las.


5. Referências bibliográficas

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                                                                  Recebido em 13/08/2010.
                                                                  Aprovado em 11/10/2010.




Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010                                          17

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A diminuição da maioridade penal discursivizada em cartuns de Angeli

  • 1. A diminuição da maioridade penal discursivizada em cartuns de Angeli The decrease of the penal’s majoritary in discoursivity in cartoons of the Angeli Francis Lampoglia1 (USP) Jonathan Raphael Bertassi da Silva2 (USP) Lucília Maria Sousa Romão3 (USP) Resumo: Esse artigo estuda o funcionamento discursivo de três cartuns de Angeli – originalmente publicados pelo jornal Folha de S. Paulo em 2007– que tratam sobre a questão da redução da maioridade penal no Brasil. As formas como são trabalhados a memória discursiva, os sentidos e o posicionamento do sujeito são especialmente observados. Para tanto, trabalharemos com a teoria da Análise do Discurso de linha francesa, fundada por Michel Pêcheux e Jean Dubois em 1969 e os estudos de Mikhail Bakhtin sobre dialogismo e polifonia, conceitos esses que embasam nosso trabalho. A análise preliminar dos dados aponta para a emergência de um espaço de ruptura e contestação do sentido dominante sobre o que é considerado óbvio e natural quando se fala em reduzir a maioridade penal no país. Palavras-chave: Análise do Discurso, polifonia, memória discursiva. Abstract: This article aims to study the discoursive functionament of three Angeli’s cartoons – originally publicated by Folha de S. Paulo’s newspaper in 2007 – about the decrease of the penal´s majority in the Brasil. The way the discoursive memory is worked, the senses and the positionament of subject are specially looked. For this, we will work with the theory of the French Discourse Analysis, created by Michel Pêcheux and Jean Dubois in 1969, and the studies of the Mikhail Bakhtin’s theories about dialogism and polyphony, concepts theses that underlies our work. A preliminary analysis points to the emergence of a space of rupture and resistance of the dominant sense which is considered natural and obvious when it comes to decreasing the penal´s majoritary in the country. Keywords: Discourse analysis, polyphony, discursive memory. 1. Introdução Se prestares atenção no teu discurso, perceberás que ele é guiado pelos teus propósitos menos conscientes.- George Eliot 1 francidusp@hotmail.com 2 cid_sem_registro@yahoo.com.br 3 luciliamsr@uol.com.br Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010 1
  • 2. O presente artigo estuda três cartuns de Angeli originalmente publicados no jornal Folha de S. Paulo, que possuem como tema efeitos de crítica em relação à redução da maioridade penal na legislação brasileira. Para tanto, adentraremos pelos caminhos teóricos propostos por Bakhtin (1997), discutindo as noções de dialogismo, intertextualidade e polifonia. Em seguida, traçaremos conceitos de discurso, condições de produção, ideologia e sujeito na Análise do Discurso de matriz francesa, observando os efeitos de sentido produzidos em uma materialidade discursiva. Posteriormente, faremos a análise discursiva do corpus coletado que obedecerá a uma seqüência gradativa segundo a idade das crianças retratadas e, por fim, faremos nossas considerações finais. Com este trabalho, damos continuidade a análises já tecidas em outro artigo (LAMPOGLIA; SILVA; ROMÃO, 2010) que, a partir do mesmo referencial teórico, tratou de investigar os sentidos de resistência de/em diferentes materialidades (fotografia e cartum) operando movimentos de deslocamentos na formação discursiva (FD) à qual se filiam jornais brasileiros. Tal como neste texto, aquele artigo tratou do silenciamento da discursividade dos sujeitos sobre o qual o riso se desdobra, no presente caso, sobre a voz do Estado e da lei punitiva a respeito da criança e jovem infrator. Registramos aqui análises feitas apenas com cartuns, sendo todos publicados no primeiro semestre de 2007 no jornal já citado; neles a voz do cartunista Angeli discursivizou sentidos de denúncia e desagravo em relação à criminalização da criança e do adolescente. 2. Dialogismo, intertextualidade e discurso “Cada eco leva uma voz adiante.”- Adriana Calcanhoto Mikhail Bakhtin lançou, em 1929, as bases da teoria do dialogismo que anos mais tarde influenciou a formulação do conceito de intertextualidade, proposto por Julia Kristeva. De acordo com essas teorias, todo texto é embrião e produto de outros textos em uma espiral de movimentos que aponta, tanto para a anterioridade, quanto para o futuro. Ou seja, não existe produção textual isolada ou inaugural, dado que sempre haverá influências de outras vozes e de outros ditos na constituição de um dizer. Conforme Barros (1997, p.34), o dialogismo “define o texto como um ‘tecido de muitas vozes’, ou de muitos textos ou discursos, que se entrecruzam, se completam, respondem umas às outras ou polemizam entre si no interior do texto (...)”. Isso implica levar em consideração que a linguagem se constitui Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010 2
  • 3. como um permanente jogo de retomadas, empréstimos e deslocamentos de sentidos já ditos em contextos anteriores e exteriores. (...) as relações dialógicas, que implicam necessariamente o conceito de vozes, não podem ser reduzidas nem às relações lógicas, nem às relações psicológicas, nem às relações naturais ou mecânicas. Elas constituem uma classe específica de relações de sentidos, cujos participantes podem ser unicamente enunciados completos, ou vistos como completos, e por trás dos quais estão os sujeitos discursivos (BRAIT, 2003, p.25). Nessa direção, os atos de linguagem são permanentemente marcados pela presença de (um) outro(s) que retorna(m), que atravessa(m) e que constitui(em) o enunciado, promovendo um giro na concepção de que o sujeito inaugura a linguagem a cada momento, de que sua voz é centrada nela mesma e de que os sentidos estão em estado de dicionário congelados na mudez da monofonia; longe disso, temos sempre a prática dialética de menção à palavra de outrem, como constitutiva de todo dizer, não se evidencia por seu caráter mostrativo, empírico, mas no jogo das relações de sentidos que atravessam a enunciação (...) passam, portanto, a desconstruir a evidência ou o acobertamento do fato de que o território não pode ser reduzido a fronteiras estruturais, ou a simples relações de pertencimento individual (ZANDWAIS, 2005, p.97). As bases conceituais de dialogismo, intertextualidade e polifonia lançadas por Bakhtin têm ressonância em vários estudos posteriores em campos diversos tais como literatura, educação, filosofia. No campo dos estudos discursivos, também é possível escutar os ecos do discurso de outrem na forma como o interdiscurso é concebido. O dialogismo em Bakhtin comporta uma dupla dimensão: por um lado, diz respeito ao permanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. E, nesse sentido, podemos interpretá-lo como o elemento que instaura a constitutiva natureza interdiscursiva da linguagem (GREGOLETO, 2005, p.119). A Análise do Discurso de matriz francesa, corrente de estudos ao qual este trabalho se filia, foi fundada em 1969 por Michel Pêcheux e Jean Dubois, sinalizando um tripé de interfaces entre a lingüística, o marxismo e a psicanálise. A língua em funcionamento, o jogo tenso das relações de poder entre as classes e o inconsciente serão estruturantes para compreender "um processo de significação no qual estão presentes a língua e a história, em suas materialidades, e o sujeito, devidamente interpelado pela ideologia." (FERREIRA, 1998, p. 203). Tendo como objeto o discurso, definido como efeitos de sentido entre interlocutores (PÊCHEUX, 1975), a AD vai além da noção de texto, fechada e estanque, de onde seria Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010 3
  • 4. possível extrair um conteúdo, uma mensagem ali encapsulada. Na direção oposta, considera o discurso em seu funcionamento e permanente movimento de deslocamentos, errâncias e fluxos de sentidos. Isso nos coloca em contato com uma teoria que reclama o reconhecimento da opacidade e da incompletude como constitutivas da linguagem, já que buscamos uma “abordagem materialista do funcionamento das representações e do ‘pensamento’ nos processos discursivos. Isso supõe, como veremos, o exame da relação do sujeito com aquilo que o representa.” (PÊCHEUX, 1997, p. 125). O discurso, em AD, é tomado, não como transmissão de informação ou da mensagem, mas como sentido(s) possível(eis) entre/para interlocutores, o que inclui a situação, o contexto histórico-social, as condições de produção. (...) as CP do discurso mostram a conjuntura em que um discurso é produzido, bem como suas contradições. Nessas condições, o sujeito produz seu discurso não como fonte de conhecimento, mas como efeito dessa rede de relações imaginárias, constituindo-se tal discurso na representação desse imaginário social (INDURSKY, 1997, p.28). Para escutar o discurso e(m) seu jogo, é fundamental compreender dois conceitos- chave da teoria discursiva, a saber, ideologia e sujeito. Sobre o primeiro, temos que ela é o mecanismo que produz evidências e naturaliza sentidos para o sujeito a partir da posição que ele ocupa. (...) é a ideologia que, através do “hábito” e do “uso, está designando, ao mesmo tempo, o que é e o que deve ser, e isso, às vezes, por meio de “desvios” lingüisticamente marcados entre a constatação e a norma e que funcionam como um dispositivo de “retomada do jogo”. É a ideologia que fornece as evidências pelas quais “todo mundo sabe” o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc., evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado “queiram dizer o que realmente dizem” e que mascaram, assim, sob a “transparência da linguagem”, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados (PÊCHEUX, 1997, p.160). Apesar disso, através dos esquecimentos enunciativo e ideológico (PÊCHEUX, op. cit.), o sujeito não se dá conta de não ser a fonte do que diz, nem de que poderia dizer de outras formas, quando na verdade ele precisa, tanto para significar quanto para produzir sentidos, assujeitar-se ao pré-construído, à memória discursiva e a sentidos que já foram postos em circulação antes. O sujeito se define historicamente: a relação do sujeito com a linguagem é diferente, por exemplo, na Idade Média, no século XVII e hoje. (...) A relação com a linguagem, da forma- sujeito característica das nossas formações sociais, é constituída da ilusão (ideológica) de que o sujeito é a fonte do que diz quando, na verdade, ele retoma sentidos preexistentes e inscritos em formações discursivas determinadas (ORLANDI, 1988, p.77). Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010 4
  • 5. Para a teoria da Análise do Discurso, o sujeito não é o indivíduo empírico, o ser em sua estrutura biológica, psicologizante ou sociológica; mas uma posição discursiva, o que implica considerar o sujeito interpelado pela ideologia, atravessado pela captura de algo que lhe parece evidente na posição em que está e, além disso, constituído por múltiplas vozes que embasam seu dizer. (...) para a Análise do Discurso, não se focaliza o indivíduo falante, compreendido como um sujeito empírico, ou seja, como alguém que tem uma existência individualizada no mundo. Importa o sujeito inserido em uma conjuntura social, tomado em um lugar social, histórica e ideologicamente marcado; um sujeito que não é homogêneo, e sim heterogêneo, constituído por um conjunto de diferentes vozes (FERNANDES, 2005, p.13). Tomado pela ideologia, o sujeito tem a ilusão de ser a origem do que diz, esquecendo- se dos fios discursivos, sempre alheios, que compõem a malha de seu dizer, o que acarreta no que Pêcheux (1997) denomina de esquecimento de número 1. Esse esquecimento é condição necessária para que o sujeito possa dizer de/sobre si e os outros, constituindo-se como suposta fonte das palavras e lugar originário da linguagem. (...) apelamos para a noção de “sistema inconsciente” para caracterizar um outro “esquecimento”, o esquecimento nº 1, que dá conta do fato de que o sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina. Nesse sentido, o esquecimento nº 1 remetia, por uma analogia com o recalque inconsciente, a esse exterior, na medida em que – [...] esse exterior determina a formação discursiva em questão (PÊCHEUX, 1997, p. 173). O esquecimento de número 2 pertence à ordem da enunciação e diz respeito ao fato de que o sujeito tem a ilusão de que seu dizer só pode ser dito de uma só forma, com aquelas palavras e não outras (ORLANDI, 2005). Isto implica o apagamento de tantas outras maneiras de dizer e significar a linguagem, o que promove a evidência dos sentidos pertinentes ao lugar em que o sujeito está e de onde ele fala. Concordamos em chamar esquecimento nº 2 ao “esquecimento” pelo qual todo sujeito-falante “seleciona” no interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados, formas e seqüências que nela se encontram em relação de paráfrase – um enunciado, forma ou seqüência, e não um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que poderia reformulá-lo na formação discursiva considerada (PÊCHEUX, 1997, p. 173). Estes esquecimentos pavimentam o processo de constituição do sujeito no discurso, processo este dado pela submissão do sujeito ao que ele pensa (e tem certeza) saber, fazendo- o deixar de lado a assertiva de que outros saberes e dizeres pode(ria)m vir a assaltá-lo em outro momento. Assim, trabalhar com esta noção de sujeito reclama compreender a ideologia Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010 5
  • 6. como mecanismo que naturaliza sentidos, torna clara uma palavra e nubla outras tantas. Como sabemos, pelo acesso à teoria do discurso, tais processos – interpelação ideológica e constituição do sujeito – estão ancorados em bases sócio-históricas ligadas ao modo de produção econômico, a relações de poder entre as instituições, a sentidos tidos como dominantes e legitimados. Assim sendo, as noções de memória e interdiscurso também são fundamentais para analisarmos os cartuns. No caso da primeira, "deve ser entendida aqui não no sentido diretamente psicologista da ‘memória individual’, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória do historiador" (PÊCHEUX, 1999, p. 50). Deste modo, a memória discursiva é uma memória dos sentidos, que garante o dizível e que possibilita ao sujeito recortar algumas regiões do já-dito para garantir e sustentar o seu dizer. Essa memória, em sua relação com os sentidos, não é homogênea e rígida, mas sim passível de disjunções e deslocamentos. (...) uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos, polêmicas e contra-discursos (PÊCHEUX, 1999, p. 56). Para o estudo do nosso corpus, as noções de ideologia, sujeito, memória e interdiscurso mostram-se indispensáveis, uma vez que a materialidade do cartum no dizer jornalístico recorre a outros discursos já falados antes em outro lugar (ORLANDI, 1999), retoma de modo jocoso o que circula em outras páginas do jornal, desloca o sentido cristalizado fazendo falar o outro, o diferente, o estranho. 3. Redução da maioridade em três cartuns de Angeli Eu era uma criança, esse monstro que os adultos fabricam com as suas mágoas - Jean- Paul Sartre A partir de agora iremos analisar três cartuns de Angeli, publicados na Folha de S. Paulo, nos quais buscamos flagrar o funcionamento discursivo, especialmente o modo como o sujeito se constitui, como a ideologia o interpela e como a memória sustenta a possibilidade do deslocamento. Também está no nosso horizonte especular sobre a possibilidade de eles dialogarem entre si, marcados pela inscrição histórica dos sentidos de criança, crime e punição no país. Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010 6
  • 7. A repetição do mesmo título marca a intertextualidade entre os três cartuns e também reforça o sentido dominante muito recorrente na mídia hegemônica, em favor de reduzir a idade para o julgamento e a punição penal de jovens no país. Esse sentido dominante tenta se impor como literal, apagando os outros. Sabemos que "o sentido literal é um efeito discursivo. O que existe, é um sentido dominante que se institucionaliza como produto da história: o ‘literal’. No processo que é a interlocução, entretanto, os sentidos se recolocam a cada momento, de forma múltipla e fragmentária" (ORLANDI, 1996, p. 144). Sendo assim, o título (quase) igual dos três cartuns faz falar a paráfrase ad infinitum desse assunto na mídia de modo a provocar uma fala seriada já que existe o cartum número um, dois, etc. O efeito de escárnio inscrito pela voz de Angeli é colorido se considerarmos a ilustração com policiais armados, contando os minutos para encarcerar os recém-nascidos desde o berçário. 34 Os policiais discursivizados na posição de des-humanizados interessam-se em vigiar e punir os bebês; não é em vão, portanto, que a única cor pujante no cartum é o preto nas vestes dos agentes da lei. No uso da cor preta, ainda cabe uma nuance que por si só daria uma análise à parte: o contraste entre os óculos dos policiais e os do cidadão comum. Enquanto os 4 Cartum de Angeli extraído do blog PICICA em 08 de maio de 2007, originalmente publicado na Folha de S. Paulo. Endereço: <http://rogeliocasado.blogspot.com/2007_05_01_archive.html>. Acesso em: 30 mar. 2009. Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010 7
  • 8. primeiros usam óculos escuros, o segundo possui lentes brancas, amenas. Isso marca o interdiscurso do que significa usar óculos escuros, enquanto representante do Estado. Um fascículo da coleção "A ditadura militar no Brasil", editado pela Caros Amigos, corrobora a memória das lentes opacas utilizadas por ditadores sul-americanos: "Nas sombras dos óculos o ditador observa tudo sem que ninguém saiba o que. Não permite saber o que lhe passa no íntimo, porque os olhos são o espelho da alma. E o que lhe vai na alma é melhor esconder" (A DITADURA, 2007, p. 261). Dito isso, o sujeito-leitor, identificável na pele do cidadão comum ilustrado por Angeli, é mostrado passivo diante do poderio armamentista da repressão policial, mas tem o chapéu na mão, com lentes claras e, assim, cabeça e olhos (os chamados "espelhos da alma") visíveis para os agentes, enquanto estes dirigem suas lentes escuras para a vigilância dos menores, dos sujeitos na posição de bebês, sem que seja possível identificar para qual deles seus olhares são dirigidos. Pelo acesso à memória discursiva, temos o sentido dominante de que em um “berçário” estão colocados bebês inofensivos e frágeis que reclamam cuidado dos adultos para tudo, em especial para sobreviver. A ruptura nesse sentido legitimado provoca o desarranjo, isto, é o deslocamento do sujeito-bebê do lugar de indefeso para outro, a saber, aquele em que será discursivizado como perigoso, possível autor de crimes e, portanto, responsável juridicamente por seus próprios atos. Daí o efeito ácido de crítica que perpassa a voz do cartunista, criando uma ruptura na teia da memória discursiva, fazendo furo nos sentidos de criança e de inocência tais como um bebê recém-nascido evoca. No berçário, dentro de uma maternidade, a palavra polícia aparece marcada em dois uniformes, indicando que os policiais têm trabalho a realizar ali, promovem investigação, tentam reconhecer as digitais, identificar os criminosos bebês. Essas marcas lingüísticas – berçário, policiais, redução da maioridade penal – apontam para um modo de representar os bebês na posição de agressores, ainda que não tenham força física nem para se virar no berço da maternidade; deriva daí justamente o efeito de riso e também de crítica. Como culpabilizar um bebê da autoria de um crime? Como responsabilizá-lo pela condenação de algo que ele desconhece e não tem condições de efetuar? Tais questões ficam sem resposta, escorrendo dos traços e palavras marcados no cartum. Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010 8
  • 9. 5 Em fevereiro de 2007, o menino João Hélio Fernandes Vieites, de seis anos, foi morto vítima de um assalto no Rio de Janeiro. Embora a questão da violência nas grandes cidades seja uma constante nos noticiários sem, contudo, despertar grandes mobilizações no sentido de mudanças para a reversão desse quadro, o caso de João Hélio chamou a atenção da sociedade, em especial a mídia, pelo modo como foi assassinado. Preso ao cinto de segurança do carro no qual se encontrava, o menino foi arrastado por cerca de sete quilômetros, ocasionando sua morte. A brutalidade do crime, coligada à exploração mórbida da mídia, causou celeuma e revolta na população, que passou a discutir a questão da maioridade penal, dado que entre os criminosos que vitimaram a criança estava um menor de 16 anos. Partindo desse contexto sócio-histórico, Angeli produziu o cartum acima, publicado em 12 de fevereiro de 2007 sob o título “Redução da maioridade penal”, diJonathanalogando com a imagem de bebês em seus respectivos bercinhos, agora carrinhos, o que gera o efeito de ironia, reforçado pela representação de uma grade ao fundo. Considerando que a ironia “é uma figura que exprime um conceito contrário do que se pensa ou do que realmente se quer dizer. Por isso, muitas vezes, só pode ser percebida quando se considera o contexto" (MESQUITA, 1994, apud ROMUALDO, 2000, p. 78), o efeito é dado pelo caso extremo de se enclausurar bebês que são incapazes até de se locomover por conta própria, provocando o riso. 5 Cartum de Angeli extraído do jornal Folha de S. Paulo, 12 fev. 2007. Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010 9
  • 10. A cena discursiviza a passividade das crianças, já que estão representadas imóveis e caladas, produzindo o sentido de que nem sequer são capazes de contestar sua condição. Passivos e quietos, os bebês despertam o sentido de não oferecerem perigo à sociedade, o que contrasta com o ambiente em que se encontram, principalmente pela grade na janela ao fundo da cela, que mobiliza o sentido de periculosidade. A grade reforçada ao fundo por uma tela remete, pelo acesso à memória discursiva, ao efeito de proteção, seja da sociedade - caso em que o ser aprisionado ofereça perigo a ela, se solto - seja do enclausurado, como as grades de um berço, por exemplo. Contudo, aqui a grade simboliza também a forma de proteção escolhida pelo Estado contra a ameaça que esses sujeitos-bebês representam à sociedade e não a proteção dos mesmos, invertendo a posição do Estado como defensor dos cidadão comum para apresentá-lo como algoz. O cartum ainda apresenta um contraste ao representar a cela como um lugar escuro, com rachaduras, em contraposição com o azul do lado de fora, azul que instiga o sentido de liberdade, de horizonte aberto no fundo do céu, no caso, impossível de ser visto tanto pelas crianças quanto por nós leitores. Além disso, o ambiente monocromático e sombrio da cela contrasta com o colorido em tom pastel das roupas que vestem os bebês, sinalizando um litígio entre o escuro do espaço e a inocência ou singeleza dos prisioneiros-bebês. Este conflito simbólico entre as cores é também marcado pela tez rosada das crianças, em contraponto ao cinzento tanto das paredes quanto dos carrinhos. Neste ponto, podemos perceber a retomada de sentidos parafrásticos já colocados em discurso no primeiro cartum. Se antes os bebês eram colocados na posição de infratores, aqui este sentido se confirma, visto que eles estão enjaulados em uma cela com enormes paredes que se erguem para muito além da altura possível de ser alcançada para os bebês. Assim, constrói-se o efeito de denúncia do sujeito-cartunista marcando o absurdo e o inominável (no último cartum, faltam as palavras) da condenação e do aprisionamento dado a priori aos sujeitos-bebês, destinando-os já no nascimento, nas primeiras horas de vida e na primeira infância ao lugar de criminosos. Dos itens mencionados, a manifestação mais emblemática da subjugação das crianças (os sentidos de ruptura) à formação discursiva dominante é indicada em tons sorumbáticos, melancólicos até, por meio dos carrinhos, que se fazem presente em todas as crianças, sem exceção. Ou seja, apesar da pluralidade de sentidos dos bebês, conforme percebemos nas vestimentas, essa potencial ruptura é dependente do assujeitamento ao pré-construído e à historicidade da luta de classes inerente ao capitalismo (logo, a discursividade dos adultos), sob pena de não conseguirem locomoção. O encarceramento dos bebês / sentidos de ruptura, por isso, acontece duas vezes: primeiro na inevitável subserviência ao sentido dominante e, Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010 10
  • 11. depois, na repressão em si exercida aos que se intrometem a afrontar o lugar que lhes "cabe". No entanto, como a ideologia é um ritual com falhas, não podendo silenciar todas as manifestações de resistência, as rachaduras na parede e o azul do céu ainda se fazem presente para as crianças, apesar de, supostamente, serem inatingíveis, mas de qualquer maneira evidenciando as lacunas e divisões do sujeito-adulto, o qual edificou esse sistema prisional. Além disso, o cartum também incita um outro tema polêmico, debatido constantemente pela mídia e pela sociedade, que é o problema da superlotação das cadeias públicas. A representação de inúmeras cadeirinhas contendo bebês preconiza o sentido de que mudam-se os infratores, porém as condições físicas permanecem as mesmas, mobilizando a memória cristalizada sobre a prisão como solução para os males sociais, culminando na necessidade da construção de outros presídios, uma vez que no espaço retratado existem tantos bebês que ao fundo as imagens até se confundem. Aqui o cartum inscreve ao interdiscurso com a obra de Machado de Assis, “O Alienista”, que depois de prender em um sanatório todos os habitantes do lugar retratado, o alienista acaba por soltá-los e internar-se a si mesmo, percebendo que o problema não era com a população, mas com ele. O cartum faz falar a obra de Machado à medida que o Estado pode ser metaforizado e personificado na figura do alienista, já que ambos tomam medidas paliativas para o tratamento dos males sociais, quando na verdade é o agente que efetua as prisões (o alienista e o Estado) quem precisa de tratamento, de um estudo, de uma análise. Esse desconforto subversivo causado pelo cartum é ainda ratificado pela imersão do sujeito-leitor naquele contexto, pois verifica-se que na cela não há grades que separam o leitor do da cena, num movimento de aproximar e envolver aquele que lê o quadrinho com a situação retratada. Convém lembrar que o Estado é comumente notado na estrutura social como extensão da família, esta tida como sua "unidade", sua "célula". Sendo assim, o estabelecimento repressor estatal representado pelo sistema carcerário dirigido às crianças de colo nos expede ainda a outra região do interdiscurso, a saber, o poder instituído aos pais com relação aos filhos para educá-los, fazendo uso de penitências para controlar os sentidos não desejáveis nas crianças. Trata-se aí do conflito entre o velho e o novo para (re)significar o que é justiça, onde o pré-construído, simbolizado pelos pais e pelo Estado, trava embate com a potencial ruptura de sentidos nas crianças, de modo a perpetuar as condições de produção tidas como evidentes. Ou seja, a denúncia inscrita no cartum, se observada por esse prisma, vai além da mera reprimenda à idéia dos supostos benefícios da redução da maioridade penal para fazer circular dizeres sobre a situação do sujeito-criança num contexto mais amplo, tendo as grades e as Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010 11
  • 12. paredes monocromáticas também o interdiscurso de outras "prisões" para os sentidos intrusos dos menores, a fim de domesticá-los, desde a família até as instituições pedagógicas. 6 Dois dias após a publicação de “Redução da maioridade penal”, é divulgado o cartum intitulado “Redução da maioridade penal (2)”, num movimento intertextual que recupera tanto o contexto sócio-histórico quanto a discussão gerada pelo tema em questão. Nesse cartum, a criança - que já não é mais um bebê - aparece sentada desenhando, num movimento de expressar seus sentimentos e pensamentos. Aqui a criança já consegue se expressar, diferentemente do primeiro cartum publicado em que os menores se encontravam estáticos. O título do cartum, no entanto, instala um efeito de paráfrase que vem carregado de denúncia, pois é exatamente o mesmo do recorte anterior, com o acréscimo de um número, remontando à idéia de mera seqüência enumerativa, ou seja, sem nenhuma mudança de fato entre uma cena e outra. Assim sendo, o "(2)" do título também significa, dado que a ausência desse significante produz outros efeitos de sentido. Portanto, não é em vão que o número vem entre parênteses, reforçando a insignificância da mudança de postura do sujeito-criança de um cartum para o outro, pois embora o menor infrator supostamente tenha menos dependência do sujeito-adulto e mais expressividade nessa cena, a mudança causada pelo transcorrer cronológico é apenas aparente e continua aqui falando a crítica do primeiro cartum. Daí o uso dos parênteses, reiterando a condição de potencial resistência materializada no desenho do 6 Cartum de Angeli extraído do jornal Folha de S. Paulo,14 fev. 2007. Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010 12
  • 13. menino, que é o grande diferencial em relação ao primeiro cartum, mas ao mesmo tempo lembrando que esse desenho pode ser sumariamente ignorado, tal como as palavras que são linguisticamente marcadas entre parênteses são convencionalmente tidas como portadoras de sentidos opcionais, ou secundários. Na cena, há a separação nítida entre o universo adulto, representado pelos três homens sentados e a parede com inscrições na qual se encontram apoiados. Esta cena reflete a formação imaginária (FI) que o sujeito que produziu o cartum tem daqueles que são retratados. O desenho colorido da criança simboliza a FI do sujeito-cartunista tem do que um menor de idade pode querer ou pensar num ambiente prisional, e os desenhos e escritos da parte da parede que se encontram os adultos refletem pensamento que o autor imagina que esses presos tenham. Segundo Orlandi : Na relação discursiva, são as imagens que constituem as diferentes posições. E isto se faz de tal modo que o que funciona no discurso não é o operário visto empiricamente mas o operário enquanto posição discursiva produzida pelas formações imaginárias (ORLANDI, 2005, p. 40- 41). O cartum marca a oposição entre o universo adulto e o infantil através das inscrições que cada grupo produz. Enquanto a criança desenha seus sonhos de uma família, uma casa, sendo todo o desenho pintado com cores vivas e variadas, os adultos traçam a realidade em que vivem, demonstrado pela palavra “crime” e pelo desenho de um homem mascarado, representado convencionalmente como um bandido, com uma metralhadora na mão. Em mais um movimento intertextual com o cartum precedente, notamos aqui a parede monocromática e as inscrições feitas nela simbolizando os modos de resistência à coação estatal. Por conseguinte, enquanto a parede do sujeito-adulto é suporte para inscrições que cobrem toda sua extensão, com significantes verbais e não verbais, a única oposição do sujeito-criança a essa realidade vem por meio do escapismo com o desenho, que cobre uma área ínfima do concreto cinzento. Nota-se, portanto, não apenas as cisões nos modos de resistência dos sujeitos inscritos aqui, mas do alcance dela, quer dizer, da capacidade para fazer falar sentidos que se opõem à implacável coerção prisional. Nesse sentido, é digno de nota que a criança seja retratada sozinha, enquanto o adulto pode se organizar com o outro e re-significar toda a contenção (representada pela parede) que lhe é dirigida – não por acaso expondo num dos dizeres a palavra "união". Enquanto a criança tem em mente a idéia de família e casa, significantes que remetem à idéia de segurança e proteção, os adultos prisioneiros vêem na organização criminosa, marcada pelas palavras “união”, “salve o comando Z. N.”, “Pavilhão Zero” (em intertextualidade com o pavilhão 9, cenário da chacina Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010 13
  • 14. ocorrida em 1992 no presídio Carandiru, comandada por policiais contra os detentos) e pela quantidade de homens que estão sentados juntos, os seus conceitos de proteção e segurança. Ou seja, o cartum sugere a diferença entre os dois mundos, demarcando as idéias e os pensamentos de cada grupo. Os desejos dos adultos também são representados, como as figuras de mulheres nuas ou seminuas e pela palavra “sexo”, encoberta parcialmente por um dos cartazes, marcando, com isso, a distinção entre o mundo infantil colorido com o de cores neutras adultas. Percebe- se também que a criança está isolada, sentada no chão, numa posição inferior aos de seus companheiros de cela que estão sentados em uma espécie de banco/cama. A posição inferior do menino remete à submissão em que se encontra em relação aos prisioneiros adultos, podendo estes, por coibição física, influenciá-lo futuramente. O desenho da criança também faz falar a memória das redações que muitas escolas infantis pedem aos seus alunos para falar de suas férias, embora o desenho não tenha palavras, já que ao invés de estar na escola, o menor está na prisão. Esta questão também é marcada pelos objetos dispostos próximos aos prisioneiros, demonstrando, através de utensílios de uso pessoal como prato, colher, copo, caneca, chinelo, a necessidade física dos adultos, diferentemente dos lápis ao redor da criança, que remete à carência intelectual, a falta da escola e do aprendizado de ler e escrever. Por isso mesmo, nota-se que no pequeno espaço do desenho infantil não se encontram significantes lingüísticos, a não ser talvez abaixo das figuras humanas ali retratadas, bem diferente da parede do sujeito-adulto, toda coberta por um emaranhado confuso de dizeres verbais e não-verbais justapostos, remetendo ao efeito de sujeito "formado", capaz de significar diversas linguagens, enquanto a criança é marginalizada do ensino alfabético. O aprendizado e a escola apresentam-se, desta forma, como alternativas para a contenção da criminalidade entre menores, sendo a prisão uma medida paliativa, que poderia até mesmo exercer uma influência negativa à criança, o que remete à memória do sistema prisional brasileiro na atualidade como “escola do crime”. Outro detalhe a ser notado é a grade da janela da cela, marcada, mais uma vez, pela tela que ironiza a idéia de proteção, remetendo ao cartum publicado dois dias antes. Inserir essa figura de elo entre os dois lados envolvidos pela discussão suscitada pelo caso de João Hélio (a Lei e os menores delituosos) tem, em vista disso, papel ideológico crucial nos gestos de leitura socialmente inscritos para o sujeito-leitor através da única figura identificável, cujo laço de responsabilidade, supõe-se, é mais com o bebê do que com os policiais. Por fim, percebem-se desenhos no interior do berçário, gravados nas paredes. A colonização repressiva dos menores encontra aqui sua última resistência, num ambiente Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010 14
  • 15. diverso das celas nos cartuns anteriores, mas, conforme ilustrado, passível de observação pela vidraça, sendo mais uma vez só aparente a liberdade das crianças, na distopia de Angeli subjugadas pelos adultos desde o berço, literalmente. Vale lembrar ainda, que atualmente existem mulheres grávidas nas penitenciárias brasileiras, marcando que, mesmo em feto, o indivíduo já se encontra inserido no sistema carcerário. Sendo que, após uma breve passagem pelo hospital para a realização do parto, o bebê já retorna, nos braços da mãe, para a penitenciária, recebendo os cuidados maternos durante um tempo determinado. Embora passível de ser interpretado pelo sentido dessa realidade já existente, o sentido dominante no cartum, no entanto, remete à idéia de que é o sujeito-criança o autor do delito, ratificado pelo título “Redução da maioridade penal”, já que não é a mãe, mas sim os policiais armados, que esperam o sujeito-criança pelo lado de fora do berçário. Convém ressaltar também que o título “Redução da maioridade penal”, embora intertextualize com os outros dois cartuns aqui estudados, não apresenta um símbolo que marque alguma seqüência ou que faça referências aos cartuns divulgados sob esse título, produzindo, com isto, um efeito de silenciamento sobre os outros trabalhos já publicados, como se antes desse cartum nada mais houvesse a respeito. 4. Considerações finais Buscamos, à luz da Análise do Discurso de matriz francesa, interpretar três cartuns assinados por Angeli e publicados em 2007 na Folha de S. Paulo, veículo da imprensa majoritária que, com a divulgação desses cartuns, deu espaço à denúncia tida como pueril e lúdica dos cartuns, mas que ao invés disso rompem com os sentidos ideologicamente cristalizados daquele periódico, de modo semelhante às rachaduras na parede de concreto que tentam limar os sentidos de ruptura conforme vimos na obra do cartunista. Com a mobilização dos pressupostos da AD francesa, evidenciamos o interdiscurso materializado nessas ilustrações, desvendando possibilidades de leitura menos ingênuas do discurso não-verbal. Verificamos também como os sentidos podem ser deslocados e reconfigurados conforme o contexto sócio-histórico em que as materialidades discursivas são produzidas. No decorrer deste trabalho pudemos perceber como o sujeito-cartunista toma a idéia de criança, qual a formação imaginária que esse sujeito tem do universo infantil. No caso dos desenhos da família, do berçário e dos carrinhos de bebê, observamos, através desses elementos, sentidos que remetem à necessidade de proteção por parte das crianças, que estas precisam ser protegidas pelo Estado, e não ao contrário. Com isto, verifica-se que os cartuns Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010 15
  • 16. selecionados sob o título em comum denominado “Redução da maioridade penal” evocam sentidos múltiplos, conforme suas condições de produção, dentre eles os sentidos parafrásticos na denúncia do ridículo das situações, na ironia e no equívoco da solução de aprisionar crianças ao invés de educá-las. 5. Referências bibliográficas ARBEX JR., J. Showrnalismo: a notícia como espetáculo. São Paulo: Casa Amarela, 2001. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1997. BARBOSA, P. L. N. O papel da imagem e da memória na escrita jornalística da história do tempo presente. In: GREGOLIN, M. R. (Org.). Discurso e Mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003. Coleção Olhares Oblíquos. BARROS, D. L. P.. Contribuições de Bakhtin às teorias do discurso. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas, Editora da Unicamp, 1997. BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Relógio d’água ed.: Lisboa, 1991. BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas, Editora da Unicamp, 1997. CITELLI, A. Linguagem e persuasão. São Paulo: Ática, 2005. A DITADURA militar no Brasil: a história em cima dos fatos. Por que ditador gosta de óculos escuros?. São Paulo: Caros Amigos Editora, 2007. v. 9. (Coleções Caros Amigos) FERNANDES, C. A. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. Goiânia: Trilhas Urbanas, 2005. FERREIRA, M. C. L. Nas trilhas do discurso: a propósito de leitura, sentido e interpretação. In: ORLANDI, E. (Org.). A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1998. p. 201-208. FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 13. ed. Edições Loyola: São Paulo, 1996. 2006. INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e as outras vozes. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. LAMPOGLIA, F.; SILVA, J. R. B.; ROMÃO, L. M. S. Da fotografia ao cartum, um percurso de sentidos sobre detentos e deputados. Revista do GEL, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 156-174. 2010 . LIEBEL, V. Humor gráfico: apontamentos sobre a análise das charges na história. XIII Simpósio Nacional de História. História: guerra e paz. Londrina, 2005. Disponível em: <http://www.anpuh.uepg.br/Xxiii- simposio/anais/textos/VIN%C3%8DCIUS%20AUR%C3%89LIO%20LIEBEL.pdf>. Acesso em: 05 nov. 2007. MUSSALIM, F. Análise do Discurso. In: _____ (org.); BENTES, Anna Christina (org.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2004. cap. 4. p. 101-142. ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 6. ed. Campinas: Pontes, 2005. _____. Discurso e leitura. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988. p. 75-82. _____. O sentido dominante: a literalidade como produto da história. In: ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas: Pontes, 1996. PÊCHEUX, M. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et. al.. Papel da Memória. Campinas: Pontes, 1999. Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010 16
  • 17. _____. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3. ed. 1997. Editora da UNICAMP. PROPP, V. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992. RECHDAN, M. L. A. Dialogismo ou polifonia?. Disponível em: <http://www.unitau.br/scripts/prppg/humanas/download/dialogismo-N1-2003.pdf>. Acesso em: 25 mar. 2009. ROMÃO, L. M. S. Fazenda Modelo: a propósito da memória e da historicidade. Matraga, Rio de Janeiro, v.14, n.20, jan./jun. 2007, p. 38-56. _____. Mais de perto, mil faces secretas sob a face neutra: considerações sobre a heterogeneidade no discurso jornalístico. Artigo publicado nos Anais da página eletrônica da Associação Latinoamericana dos Estudos do discurso, Santiago, Chile, 2005. ROMUALDO, E. C. Charge jornalística: intertextualidade e polifonia: um estudo de charges da Folha de S. Paulo. Maringá: Eduem, 2000. SANT’ANNA, A. R. Paródia, paráfrase e cia. 4ªed. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1991. ZANCHETTA JR, J. Imprensa escrita e telejornal. São Paulo: UNESP, 2004. (Coleção Paradidáticos) ZANDWAIS, Ana. Relações entre a filosofia da práxis e a filosofia da linguagem sob a ótica de Mikhail Bakhtin: um discurso fundador. IN: Mikhail Bakhtin- contribuições para a Filosofia da Linguagem e Estudos Discursivos. Ana Zandwais (org). Porto Alegre: Editora Sagra Luzzatto, 2005. Recebido em 13/08/2010. Aprovado em 11/10/2010. Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 2, p. 1-17, 2010 17