Este poema expressa a solidão e angústia do eu lírico enquanto espera pela noite. Ele sente que as horas estão demorando demais para cair e isso o irrita, como frutos maduros que não caem da árvore. Internamente, ele também se sente vazio e deserto. Apesar disso, escolhe contemplar seu sonho interior para encontrar resolução.
1. Cântico de Barro
Pretexto
Inquieta chuva, inquieta me dispersa,
Por que não cai a noite, de uma vez?
esquecida a tradição e o cansado som.
— Custa viver assim aos encontrões!
Dentro e fora de mim tudo é deserto
Já sei de cor os passos que me cercam,
como se as ervas fossem arrancadas
o silêncio que pede pelas ruas,
ou se esgotasse a dor por que se chora.
e o desenho de todos os portões.
Por que não cai a noite, de uma vez? Na grande solidão me basta, e a contemplo
— Irritam-me estas horas penduradas para o sonho interior que me resolve!
como frutos maduros que não tombam. Tão fácil é esperar, que já nem sinto
o que vem a dormir ou a morrer
(E dentro em mim, ninguém vem desfazer na mesma angústia que o silêncio envolve.
o novelo das tardes enroladas.)
SELECÇÃO DE ALINE
2. Deixa contar...
A girafa
Era uma vez
deu
O senhor Mar ao seu
Com uma onda... marido
no dia
Com muita onda...
de Natal
E depois? um lenço
E depois… colorido
de seda natural.
Ondinha vai... Que alegria!
– disse o marido –
Ondinha vem...
ponha a pata
Ondinha vai... nesta pata,
Ondinha vem... com um pescoço
tão comprido
E depois...
você não podia
A menina adormeceu ter-me comprado
SELECÇÃO DE MARIA DE FÁTIMA
Nos braços da sua uma gravata.
3. A erva secou no telhado.
Saudação à Primavera Não dá pão.
Na hora certa As minhas costas estão em carne viva.
Encham agricultores
Disse que chegaria.
o celeiro!
Declarou dia e hora.
Calquei as minhas culpas, meus pecados.
Tão longe que ela mora Fugi para o silêncio. E entretanto
de mim, calado, o pranto todo o dia
que diabo, até
jorrava, e este corpo esmorecia
se lhe perdoaria ossos roídos de suor e febre.
que, perdendo a maré, – Não sejas – me disseste –
chegasse no outro dia. como aqueles cavalos dominados
somente pelo freio e pela mordaça:
eles só se aproximam, se confiam.
Entendi. Este canto bem o mostra.
De tudo se abrigou Prometo que só ficarei atento
os séculos que forem necessários.
na sorte ingrata
Atento nas promessas
e à hora exacta
que fazem os amigos
“aqui estou!” atento na justiça
disse da alta esfera. com a paz na pista dos seus passos.
Bem-vinda Primavera! Vejam só que de frutos se enche a Terra!
Porque és eterno é que criaste o dia.
SELECÇÃO DE EMACULADA Porque és eterno é que me criaste a mim.
4. AS CHÁVENAS
As chaveninhas da avó,
repartidas em partilhas
SEIS DA MANHÃ por netas, noras e filhas,
Para começar bem o dia, lembram-me as chávenas da feira
antes que o dia me veja,
com tatuagem Lembrança
ponho-te aqui de bandeja
a meu lado, gravada a ouro na pança.
rosto de amor, Todas elas são de saldo,
extenuado.
nunca a salvo,
Hoje o teu corpo,
onde quer que ele esteja, todas vêm do desterro
vai ter de se erguer sozinho, e trazem no aro fino
respirar sozinho, um óculo cego, um destino,
sair sozinho,
e tudo lhe vai parecer estranho, um erro.
estranha a luz, estranho o tamanho Anjos de uma asa só,
do caminho. leve penugem de pó.
SELECÇÃO DE DULCELINA