inquieta chuva de barro
Este poema descreve a análise de uma lágrima recolhida de uma mulher negra que estava chorando. Ao analisar a lágrima em um tubo de ensaio, o autor descobre que ela é composta basicamente de água e cloreto de sódio, ou seja, sal comum, contrariando estereótipos sobre lágrimas de pessoas negras.
2. reta
Encontrei uma preta
ep
que estava a chorar,
ma d pedi-lhe uma lágrima
gri
para a analisar.
Lá Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
SELECÇÃO DE JANILSON
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
3. Regresso Letra para um Hino
É possível falar sem um nó na garganta
E contudo perdendo-te encontraste.
é possível amar sem que venham proibir
E nem deuses nem monstros nem tiranos
te puderam deter. A mim os oceanos. é possível correr sem que seja fugir.
E foste. E aproximaste. Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.
Antes de ti o mar era mistério.
Tu mostraste que o mar era só mar. É possível andar sem olhar para o chão
Maior do que qualquer império é possível viver sem que seja de rastos.
foi a aventura de partir e de chegar.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros
Mas já no mar quem fomos é estrangeiro se te apetece dizer não grita comigo: não.
e já em Portugal estrangeiros somos.
Se em cada um de nós há ainda um marinheiro
vamos achar em Portugal quem nunca fomos. É possível viver de outro modo. É
possível transformares em arma a tua mão.
De Calcute até Lisboa sobre o sal É possível o amor. É possível o pão.
e o Tempo. Porque é tempo de voltar
e de voltando achar em Portugal É possível viver de pé.
esse país que se perdeu de mar em mar.
Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
SELECÇÃO DE JOSEFT PRAZERES
É possível ser homem.
É possível ser livre livre livre.
4. Um Pouco Mais de Nós
Podes dar uma centelha de lua, Quando Eu For Pequeno
um colar de pétalas breves
Quando eu for pequeno, mãe,
ou um farrapo de nuvem;
quero ouvir de novo a tua voz
podes dar mais uma asa
na campânula de som dos meus dias
a quem tem sede de voar
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
ou apenas o tesouro sem preço
Subirás comigo as ruas íngremes
do teu tempo em qualquer lugar;
com a certeza dócil de que só o empedrado
podes dar o que és e o que sentes
e o cansaço da subida
sem que te perguntem
me entregarão ao sossego do sono.
nome, sexo ou endereço;
podes dar em suma, com emoção, Quando eu for pequeno, mãe,
tudo aquilo que, em silêncio, os teus olhos voltarão a ver
te segreda o coração; nem que seja o fio do destino
podes dar a rima sem rima desenhado por uma estrela cadente
de uma música só tua no cetim azul das tardes
a quem sofre a miséria dos dias sobre a baía dos veleiros imaginados.
na noite sem tecto de uma rua;
Quando eu for pequeno, mãe,
podes juntar o diamante da dádiva
nenhum de nós falará da morte,
ao húmus de uma crença forte e antiga,
a não ser para confirmarmos
sob a forma de poema ou de cantiga;
que ela só vem quando a chamamos
podes ser o livro, o sonho, o ponteiro
e que os animais fazem um círculo
do relógio da vida sem atraso,
para sabermos de antemão que vai chegar.
e sendo tudo isso serás ainda mais,
anónimo, pleno e livre, Quando eu for pequeno, mãe,
nau sempre aparelhada para deixar o cais, trarei as papoilas e os búzios
porque o que conta, vendo bem, para a tua mesa de tricotar encontros,
é dar sempre um pouco mais, e então ficaremos debaixo de um alpendre
sem factura, sem fama, sem horário, a ouvir uma banda a tocar
que a máxima recompensa de quem dá enquanto o pai ao longe nos acena,
é o júbilo de um gesto voluntário. SELECÇÃO DE IDALMIRA lenço branco na mão com as iniciais bordadas,
anunciando que vai voltar porque eu sou pequeno
E, afinal, tudo isso quanto vale ? e a orfandade até nos olhos deixa marcas.
Vale o nada que é tudo in O Livro Branco da Melancolia
sempre que damos de nós
o que, sendo acto amor, ganha voz
e se torna eterno por ser único e total.
5. Porque os outros se mascaram mas tu não Poema
Porque os outros usam a virtude
A minha vida é o mar o Abril a rua
Para comprar o que não tem perdão. O meu interior é uma atenção voltada para fora
Porque os outros têm medo mas tu não. O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita
Porque os outros são os túmulos caiados
Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Onde germina calada a podridão. Sabendo que o real o mostrará
Porque os outros se calam mas tu não.
Não tenho explicações
Olho e confronto
Porque os outros se compram e se vendem E por método é nu meu pensamento
E os seus gestos dão sempre dividendo. A terra o sol o vento o mar
Porque os outros são hábeis mas tu não. São a minha biografia e são meu rosto
Por isso não me peçam cartão de identidade
Porque os outros vão à sombra dos abrigos Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
E tu vais de mãos dadas com os perigos. Não me perguntem datas nem moradas
Porque os outros calculam mas tu não. De tudo quanto vejo me acrescento
E a hora da minha morte aflora lentamente
SELECÇÃO DE YURAN SEMEDO Cada dia preparada
6. É urgente o amor
É urgente o amor. O sal da Língua
É urgente um barco no mar. Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
É urgente destruir certas palavras, Não é importante, eu sei, não vai
ódio, solidão e crueldade, salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
alguns lamentos,
é hoje capaz de salvar o mundo
muitas espadas.
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
É urgente inventar alegria,
Escuta-me, não te demoro.
multiplicar os beijos, as searas,
É coisa pouca, como a chuvinha
é urgente descobrir rosas e rios
que vem vindo devagar.
e manhãs claras. São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
Cai o silêncio nos ombros e a luz para que não se extinga o seu lume,
impura, até doer. o seu lume breve.
É urgente o amor, é urgente SELECÇÃO DE RAMIRO CÁ Palavras que muito amei,
permanecer.
7. Amor que morre
O nosso amor morreu... Quem o diria!
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!
Minha culpa
Bem estava a sentir que ele morria...
E outro clarão, ao longe, já desponta! Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem
Um engano que morre... e logo aponta Quem sou? Um fogo-fátuo, uma miragem...
A luz doutra miragem fugidia... Sou um reflexo... um canto de paisagem
Ou apenas cenário! Um vaivém
Eu bem sei, meu Amor, que pra viver Como a sorte: hoje aqui, depois além!
São precisos amores, pra morrer, Sei lá quem sou? Sei lá! Sou a roupagem
E são precisos sonhos para partir. De um doido que partiu numa romagem
E nunca mais voltou! Eu sei lá quem!...
E bem sei, meu Amor, que era preciso Sou um verme que um dia quis ser astro...
Fazer do amor que parte o claro riso Uma estátua truncada de alabastro…
De outro amor impossível que há-de vir! Uma chaga sangrenta do Senhor...
Sei lá quem sou?! Sei lá! Cumprindo os fados,
Num mundo de maldades e pecados,
Sou mais um mau, sou mais um pecador...
SELECÇÃO DE EUNICE BARBOSA
8. A leoa convenceu o leão,
depois de uma grande discussão,
a passarem juntos o Verão.
Sei lá... talvez no Ceilão!
O leão, convencido,
com a leoa foi mesmo querido:
- Ouve lá o teu rico marido:
e se fôssemos para um sítio bem florido?
A leoa rosnou e ripostou:
- Sabes bem como é que eu sou.
Há climas com os quais eu não me dou.
Prefiro o fresco. Para o pólo eu vou.
E lá partiram, a rugir, para a zona polar.
Fartaram-se de pular, de rosnar e de andar.
Chegaram lá... o pólo estava a fechar:
Pedimos desculpa, mas estamos a gelar!
- O pólo está fechado?
- gritou a leoa. O leão, escaldado,
olhou de alto a baixo e depois de lado.
SELECÇÃO DE VICTA SOARES - Anda daí, vamos mas é comer um gelado!
9. O MAR
Rio
As águas vêm de longe,
O mar,
trazem o mundo,
o meu mar.
os montes a terra as pedras
todo o mar
os bichos pólen do mundo
ao meu encontro.
as folhas e a luz Mar meu,
a chuva o granizo centro.
e a sede dos homens Mergulho
no mar.
o rumor das noites e dos dias.
Entro?
Rio vivo, quase mudo,
cheio de água
Ou entra
cheio de terra
em mim
cheio de tudo.
o mar?
SELECÇÃO DE ADILSON
10. EU SOU PORTUGUÊS AQUI
Eu sou português
aqui Eu sou português
em terra e fome talhado aqui
feito de barro e carvão no teatro mentiroso Nasci
rasgado pelo vento norte mas afinal verdadeiro aqui
amante certo da morte na finta fácil no mês de Abril
no silêncio da agressão. no gozo quando esqueci toda a saudade
no sorriso doloroso e comecei a inventar
Eu sou português no gingar de um marinheiro. em cada gesto
aqui
a liberdade.o
mas nascido deste lado Nasci
do lado de cá da vida deste lado da ternura Nasci
do lado do sofrimento do coração esfarrapado aqui
da miséria repetida eu sou filho da aventura SELECÇÃO DE ADMILSON
ao pé do mar
do pé descalço da anedota do acaso de uma garganta magoada no cantar.
do vento campeão do improviso Eu sou a festa
trago as mãos sujas do sangue inacabada
Nasci que empapa a terra que piso. quase ausente
deste lado da cidade
eu sou a briga
nesta margem Eu sou português a luta antiga
no meio da tempestade aqui renovada
durante o reino do medo. na brilhantina em que embrulho ainda urgente.
Sempre a apostar na viagem no alto da minha esquina
quando os frutos amargavam a conversa e a borrasca Eu sou português
e o luar sabia a azedo. eu sou filho do sarilho aqui
no gesto desmesurado o português sem mestre
nos cordéis do desenrasca. mas com jeito.
Eu sou português
aqui
e trago o mês de Abril
a voar
11. Rei, Capitão, Soldado, Ladrão
Tudo de pernas para o ar Rei, capitão,
soldado, ladrão,
Numa noite escura, escura, menina bonita
o sol brilhava no céu. do meu coração.
Subi pela rua abaixo,
Não quero ter coroa,
vestido de corpo ao léu.
nem arma na mão,
nem fazer assaltos
Fui cair dentro de um poço com um facalhão.
mais alto que a chaminé,
Quero ser criança,
vi peixes a beber pão, quero ser feliz,
rãs a comerem café. não quero nas lutas
partir o nariz.
Construí a minha casa
Quero ter amigos
com o telhado no chão jogar futebol,
e a porta bem no cimo descobrir o mundo
para lá entrar de avião. debaixo do sol.
Rei, capitão,
Na escola daquela terra
soldado, ladrão,
ensinavam trinta burros.
não.
O professor aprendia
SELECÇÃO DE EDWIGES
a dar coices e dar zurros. Mas quero a menina
do meu coração.
12. Poemas perdidos.
Real, real porque me abandonaste?
E, no entanto, às vezes bem preciso
de entregar nas tuas mãos o meu espírito
e que, por um momento, baste
que seja feita a tua vontade
para tudo de novo ter sentido,
não digo a vida, mas ao menos o vivido,
nomes e coisas, livre arbítrio, causalidade.
Oh, juntar os pedaços de todos os livros
e desimaginar o mundo, descriá-lo,
amarrado ao mastro mais altivo
do passado! Mas onde encontrar um passado?
SELECÇÃO DE CLAUDINA
13. Cântico de Barro
Pretexto
Inquieta chuva, inquieta me dispersa,
Por que não cai a noite, de uma vez?
esquecida a tradição e o cansado som.
— Custa viver assim aos encontrões!
Dentro e fora de mim tudo é deserto
Já sei de cor os passos que me cercam,
como se as ervas fossem arrancadas
o silêncio que pede pelas ruas,
ou se esgotasse a dor por que se chora.
e o desenho de todos os portões.
Por que não cai a noite, de uma vez? Na grande solidão me basta, e a contemplo
— Irritam-me estas horas penduradas para o sonho interior que me resolve!
como frutos maduros que não tombam. Tão fácil é esperar, que já nem sinto
o que vem a dormir ou a morrer
(E dentro em mim, ninguém vem desfazer na mesma angústia que o silêncio envolve.
o novelo das tardes enroladas.)
SELECÇÃO DE ALINE
14. Deixa contar...
A girafa
Era uma vez
deu
O senhor Mar ao seu
Com uma onda... marido
no dia
Com muita onda...
de Natal
E depois? um lenço
E depois… colorido
de seda natural.
Ondinha vai... Que alegria!
– disse o marido –
Ondinha vem...
ponha a pata
Ondinha vai... nesta pata,
Ondinha vem... com um pescoço
tão comprido
E depois...
você não podia
A menina adormeceu ter-me comprado
SELECÇÃO DE MARIA DE FÁTIMA
Nos braços da sua uma gravata.
15. A erva secou no telhado.
Saudação à Primavera Não dá pão.
Na hora certa As minhas costas estão em carne viva.
Encham agricultores
Disse que chegaria.
o celeiro!
Declarou dia e hora.
Calquei as minhas culpas, meus pecados.
Tão longe que ela mora Fugi para o silêncio. E entretanto
de mim, calado, o pranto todo o dia
que diabo, até
jorrava, e este corpo esmorecia
se lhe perdoaria ossos roídos de suor e febre.
que, perdendo a maré, – Não sejas – me disseste –
chegasse no outro dia. como aqueles cavalos dominados
somente pelo freio e pela mordaça:
eles só se aproximam, se confiam.
Entendi. Este canto bem o mostra.
De tudo se abrigou Prometo que só ficarei atento
os séculos que forem necessários.
na sorte ingrata
Atento nas promessas
e à hora exacta
que fazem os amigos
“aqui estou!” atento na justiça
disse da alta esfera. com a paz na pista dos seus passos.
Bem-vinda Primavera! Vejam só que de frutos se enche a Terra!
Porque és eterno é que criaste o dia.
SELECÇÃO DE EMACULADA Porque és eterno é que me criaste a mim.
16. AS CHÁVENAS
As chaveninhas da avó,
repartidas em partilhas
SEIS DA MANHÃ por netas, noras e filhas,
Para começar bem o dia, lembram-me as chávenas da feira
antes que o dia me veja,
com tatuagem Lembrança
ponho-te aqui de bandeja
a meu lado, gravada a ouro na pança.
rosto de amor, Todas elas são de saldo,
extenuado.
nunca a salvo,
Hoje o teu corpo,
onde quer que ele esteja, todas vêm do desterro
vai ter de se erguer sozinho, e trazem no aro fino
respirar sozinho, um óculo cego, um destino,
sair sozinho,
e tudo lhe vai parecer estranho, um erro.
estranha a luz, estranho o tamanho Anjos de uma asa só,
do caminho. leve penugem de pó.
SELECÇÃO DE DULCELINA