O documento analisa a obra "A Formação do Brasil Contemporâneo" de Caio Prado Júnior, escrita em 1942, que busca explicar as origens históricas do Brasil. O artigo destaca três pontos: 1) o contexto histórico em que a obra foi escrita, durante um período de transformações políticas no Brasil na década de 1930; 2) a epistemologia marxista que influenciou a abordagem de Caio Prado Júnior, dando ênfase ao papel do Estado e das classes sociais; 3) a her
Plinio marcos um maldito dramaturgo intelectual brasileiro
Caio prado
1. Revista SymposiuM
três elementos na análise de sua obra. O primeiro
desses aspectos é o contexto da época em que
Revista Symposium
Revista circunscreve o texto. O segundo é a epistemologia,
Symposium ou os aspectos críticos de conteúdo científico desse
escrito. O terceiro, e último, é a hermenêutica, ou a
abordagem do sentido das palavras, reveladas na
A FORMAÇÃO interpretação da história que faz Caio Prado Júnior.
Palavras-chave: povoamento, nação, nacionalismo,
DO BRASIL política e economia.
CONTEMPORÂNEO Abstracts: The paper examines Caio Prado Junior’s
The Formation of Contemporary Brazil, written in 1942,
POR CAIO PRADO with a view to explaining the historical origins of
Brazil. It covers the period of economic and po-
JÚNIOR: litical evolution from colonial times to the 20th cen-
tury. The book shows an evolution based on the
contexto, epistemologia concepts of Marxist tradition, that is, a
historiographical perspective not in existence until
e hermenêutica its publication. This perspective underscores the
growing impact of the State and the social classes.
de um clássico da To show the importance of this work, we empha-
size not only its content, its principles (theses) and
historiografia brasileira. logical validation but also the moment when it was
written, and the nature of the author’s narrative style
in setting out a profoundly new vision of Brazilian
history. Therefore this paper stresses three points:
Vera Borges de Sá1 The first one is the period context in which the work
was written. The second one refers to epistemology,
Resumo: A Formação do Brasil Contemporâneo e.g. the critical aspects of scientific content. And
por Caio Prado Júnior: contexto, epistemologia e the last one is hermeneutics, which means an ap-
hermenêutica de um clássico da historiografia proach to the meaning of the words according to
brasileira. O artigo consiste numa caracterização da Caio Prado Júnior’s interpretation of history.
obra de Caio Prado Júnior, escrita em 1942, intitulada Key words: Settlement, nation, nationalism, poli-
Formação do Brasil Contemporâneo, que busca tics, economics.
explicar as origens históricas da nação,
compreendendo a evolução econômica e política do
Brasil, desde a colônia até o nosso século. É uma 1 - ANÁLISE CONTEXTUALISTA
explicação referendada nos conceitos de tradição
C
marxista, perspectiva historiográfica até então aio Prado Júnior nasceu em São Paulo, ca-
inexistente, em que o Estado e as classes sociais pital do Estado, em 11 de fevereiro de
ganham dimensão nessa abordagem. Para situar a 1907. Era filho de Caio da Silva Prado e
importância desse trabalho, destacamos aqui não Antonieta Penteado da Silva Prado. Fez seus es-
apenas seu conteúdo, mas delineamos também o tudos primários em casa, com professores parti-
momento em que foi escrito, suas teses e validação culares, como era comum nas famílias aristocrá-
lógica, bem como a natureza do estilo narrativo em ticas da época. Cursou o secundário no Colégio
que ingressa o autor nas páginas de tão inédita visão São Luís, um famoso instituto de jesuítas, locali-
histórica brasileira. Assim, a resenha cede lugar a zado em São Paulo.
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Sua formação profissional era de historia- moral por se definir de forma contínua, ao longo
dor, economista e filósofo. Na área de história, de sua vida, como eminentemente comunista.
realizou suas obras mais importantes. Militou na
política desde 1928, em 30 e 32, na criação do Contrapondo Caio Prado Júnior ao movi-
Partido Democrático, revolução e movimento mento modernista, Florestan considera que, en-
constitucionalista em São Paulo; em 1935, na Ali- quanto o modernismo é movimento oscilante em
ança Nacional Libertadora e no Cotidiano do Par- suas manifestações de iconoclastia, a atitude de
tido Comunista, desde 1931. Foi um intelectual Caio Prado, em sua visão, é acelerada e contínua,
dedicado simultaneamente à política e aos escri- percorrendo uma rápida passagem do radicalis-
tos, tendo-se dedicado, mais efetiva e reservada- mo democrático-burguês para a oposição intran-
mente, às publicações nos anos que se seguiram sigente proletário-comunista. Sobre as rápidas
ao regime militar no Brasil. Morreu em 1990, aos transições de Caio Prado, ele escreve: “manten-
oitenta e três anos, na discrição e simplicidade do-se na mesma posição de classe, inverteu as
em que soube cultivar como homem pertencente baterias de seu combate e tornou-se um militan-
a uma classe abastada, mas responsavelmente com- te, um político de proa (em 1935, já era vice-pre-
prometido com as classes trabalhadoras ao longo sidente da Aliança Nacional Libertadora) e, rei-
de toda a sua vida. terando a troca de identidade, em 1947 tornou-se
deputado por São Paulo (aliás um deputado re-
No último trabalho de Florestan Fernandes, novador e exemplar).” (Cf. Fernandes, 1995: 79).
intitulado “A Contestação Necessária”2, e que foi
publicado como obra póstuma, há um capítulo Caio Prado Júnior, na verdade, faz parte
dedicado a Caio Prado Júnior, em que o reco- do florescer da inteligência brasileira que buscou
nhece como sendo um símbolo de rebeldia moral explicar as raízes do Brasil, não mais enfatizando
que soube romper com a ordem social existente os heróis individuais, mas a partir de análises de
de sua época. Talvez essa seja uma das visões so- conjecturas em que os grupos políticos, segmen-
bre Caio Prado Júnior das mais representativas. tos de raça e classe têm um papel privilegiado na
explicação da história. Sabe-se que até 1930 a
Florestan lembra que a efervescência inte- historiografia e as ciências sociais brasileiras es-
lectual e política reinante na cidade de São tavam dominadas pela presença de “heróis nacio-
Paulo nos anos 20, época em que essa cidade nais” bem como por preconceitos antropológi-
despontava como a única tipicamente burguesa cos como a “superioridade racial” do homem
do Brasil, era a de um clima em que transparecia europeu. Essas idéias começaram, porém, a ser
a postura de inconformidade de mentes sensí- contestadas com os escritos de Rocha Pombo,
veis, a inquietude dos operários com o contexto Euclides da Cunha, Paulo Prado, Oliveira Viana,
social e a de intelectuais progressistas que se entre outros, nos mesmos anos 20.
colocavam repugnados diante da miséria, explo-
ração e opressão. Por esses aspectos, a época foi A partir da Revolução de 30, a
profícua de rebeldes, como reconhece Florestan, historiografia assume uma diferente maneira de
ao citar a importância de Oswald de Andrade, pensar o Brasil. Em 1933, são publicados dois
Pagu e outros modernistas que ergueram a ban- livros que irão marcar gerações intelectuais pos-
deira da antropofagia e do inconformismo polí- teriores, Casa Grande & Senzala, de Gilberto
tico, através de um tipo de condenação sarcástica Freyre, e Evolução Política do Brasil, de Caio
e simbólica às omissões imperantes. Contudo, para Prado Júnior. Essas obras, juntamente com Raízes
ele, entre os nascidos na elite, ninguém melhor do Brasil, publicada em 1936 por Sérgio Buarque
do que Caio Prado Júnior teve a tenacidade, de Holanda, representam uma perspectiva opos-
congruência e disposição em assumir até o fim, e ta aos escritos dos pensadores da República Ve-
de forma radical, uma rebeldia que passou a ser lha. (Cf. Nosso Século, v. 3, 1980: 160).
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Caio Prado Júnior aparece, nesse momen- lões onde floresciam as sementes modernistas.
to, como intelectual que, influenciado pelo clima Mário de Andrade houvera feito uma autocrítica
fecundo de discussões nacionalistas, vai procurar ao Modernismo, ponderando o seguinte: “Nós
também as origens históricas de sua nação para éramos os filhos finais de uma civilização que se
compreender a evolução política e econômica do acabou”. Não nega, porém, a herança deixada pela
Brasil, em moldes de tradição marxista, em que o Semana de 22: “a conquista do direito permanente
Estado e as classes sociais ganham dimensão na à pesquisa estética; a atualização da inteligência
abordagem, perspectiva historiográfica, até então, artística brasileira; e a estabilização de uma cons-
inexistente. ciência criadora nacional”. (Cf. Nosso Século,
1980: 162).
Para entender a emergência de Caio Prado
Júnior, enquanto inteligência de uma época de Os temas nacionalistas vão dominando a li-
transformações políticas marcantes no curso da teratura e procurando uma identidade em perso-
história da nova República, como foram os anos nagens históricos como o negro, o índio, o caipi-
30, necessário é lembrar acontecimentos na lite- ra, a paisagem dos canaviais nordestinos, dos ca-
ratura e na arte daquele momento, além de acon- fezais do Sul. Nos anos 30, temas que haviam
tecimentos políticos que perfizeram influências sido delineados na década de 20, vão sendo suge-
simultâneas naquelas mudanças assinaladas no ridos como resolução ao impasse gerado pelo
Brasil. Modernismo - importação de estilos numa repre-
sentação nacionalista de esquerda ou uma litera-
1.1 LITERATURA E ARTE NOS ANOS 30 tura de puro nacionalismo direitista. Ressurge,
então, o fascínio pelas lendas indígenas que já se
Em 1930, a literatura brasileira vivia uma houvera infiltrado na criação de modernistas
crise, conseqüência do abalo provocado pelo mo- como Oswald de Andrade, com seu poema Pau-
vimento modernista representado pela Semana de Brasil; Mário de Andrade, com sua obra
Arte Moderna de 1922, que pôs em cheque as es- Macunaíma (1928); Cassiano Ricardo, com Martim
truturas do academicismo anterior, ao tentar in- Cererê (1928); Raul Bopp, com Cobra Norato
troduzir novas técnicas estrangeiras de influênci- (1931); e Vila-Lobos com sua música. Assim é
as do Surrealismo e do Futurismo, do cinema à que se move uma preocupação em desvendar o
sociedade brasileira. Brasil no plano artístico, colocando como pauta
fundamental o regionalismo e a crítica social. Per-
Nos debates dos anos 30, os escritores se cebe-se, nesse momento, a influência da sociolo-
polarizaram em duas tendências de projetos na- gia e antropologia, que desvendavam a massa anô-
cionalistas. A primeira, caracterizada por um pro- nima de raças formadoras da nacionalidade e dos
grama autoritário de direita, denominado de ver- trabalhadores do campo e da cidade, que passam
de-amarelismo, cujos representantes eram Plínio a ser percebidos como elementos, também, cons-
Salgado e Menotti del Picchia. A segunda era um trutores de um projeto de civilização ou de urba-
programa de esquerda que punha em relevo a nismo, este já intenso nos anos 30.
questão social. Representava esse programa
Oswald de Andrade. Tal tendência ficou conhe- É interessante ressaltar a literatura proletá-
cida como antropofagia. ria emergente nos anos 30, que vai comparecer
ao lado da literatura que problematizava a misé-
A Semana, apesar de ter escandalizado a ria dos sertões. O tema da vida operária vai pre-
“alta sociedade” paulista, continha os germes da ferir ter por enfoque a miséria das cidades. Os
contradição, pois não deixava de ter a presença romances proletários descrevem a vida daqueles
de figuras consideradas aristocráticas, tais como cuja única propriedade era sua prole, tendo por
Paulo Prado e Olívia Guedes Penteado, nos sa- objetivo retratar o cotidiano dos oprimidos do
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contexto urbano ou do campo, como miseráveis vanguarda da inteligência, buscando escrever a his-
que seriam frutos do capitalismo. São escritores tória do Brasil a partir de suas diferenças e con-
desse estilo Patrícia Galvão, Ranulfo Prata, trastes, apoiando-se na sociologia, economia , an-
Dalcídio Jurandir e Jorge Amado. tropologia e geografia como ciências sociais que
se impunham naquela época.
Patrícia Galvão (Pagu) publicou em São
Paulo, 1933, a obra Parque Industrial, com o pseu- 1.2 CAIO PRADO JÚNIOR E A POLÍTICA
dônimo de Mara Lobo. Nesse trabalho, ela des- DE SUA ÉPOCA
creve a vida dos tecelões do bairro paulista do
Brás. Aborda, então, a vida daqueles que ela cha- Em 1930, a população brasileira era de apro-
ma de “os filhos naturais da sociedade “, isto é, ximadamente 37 milhões de pessoas, e 70% ainda
todo tipo de operário e de empregado do comér- viviam no campo. Vivenciava-se a crise do café
cio, incluindo ainda os do pequeno funcionalis- em razão do “crash” da Bolsa de Nova York,
mo público. Sua narrativa de cunho notadamente afetando o nível das exportações desse produto
marxista é considerada próxima do chamado “re- para os Estados Unidos, que, uma vez não com-
alismo socialista” por relatar as lutas dos operá- prando o nosso café, favorece a queda vertigino-
rios, os quais, na sua visão, estavam divididos en- sa do preço de suas sacas. Em 1929, a saca estava
tre não-politizados e militantes ativos. Em 1937, cotada a 200.000 réis; em janeiro de 1930, caiu
Ranulfo Prata publica a obra Navios Iluminados para 21.000 réis. (Cf. Nosso Século, 1982:VIII).
revelando as dificuldades cotidianas dos trabalha-
dores do Porto de Santos. A obra Chove nos Cam- Nesse mesmo momento, a política se arma
pos de Cachoeira, de autoria de Dalcídio Jurandir, para as eleições que aconteceriam em março. Em
publicada em 1941, por sua vez, retrata desven- janeiro de 1930, é publicada a plataforma da Ali-
turas do campo paraense. Já o estilo poético de ança Liberal por parte da oposição, que lança o
Jorge Amado, impresso na sua literatura, irá mos- gaúcho Getúlio Vargas para a Presidência da Re-
trar como vive a gente miserável da Bahia a par- pública e, para a vice candidatura desse cargo, o
tir de uma série de romances: Cacau (1933), Suor paraibano João Pessoa . Os candidatos da situa-
(1934), Jubiabá (1936), Capitães da Areia (1937), ção propostos pelo presidente Washington Luiz
Terras do Sem-Fim e O Cavaleiro da Esperança são os paulistas Júlio Prestes, para presidente, e
(biografia de Luís Carlos Prestes), ambos escri- Vital Soares, para vice. Em março, realizam-se as
tos em 1942. eleições presidenciais, e Júlio Prestes vence , dei-
xando no descontentamento as forças que apoia-
Os enfoques intimistas também permearam vam Getúlio.
a literatura na década de 30, ao lado de escritos
regionalistas e proletários. Escritores desse estilo É de bom alvitre lembrar que Caio Prado
são aqueles preocupados em descrever o mundo Júnior apoiou ideologicamente, bem como na sua
interior da criatura humana. Destacam-se Lúcio militância, a candidatura de Getúlio Vargas. Es-
Cardoso, com a obra Maleita (1934), Clarice creve Francisco Iglesias (1982:13)que o jovem
Lispector preocupada em denunciar a Caio, uma vez inscrito no Partido Democrático
racionalidade desenvolvida pelo homem e o em 1928, vai atuar intensamente, prezando a sua
distanciamento de si mesmo e do sentido da vida; primeira experiência política. Ou seja, ele se filiou
e, em 1942, aos 17 anos, publica Perto do Cora- ao partido criado como oposição ao Partido Re-
ção Selvagem. publicano - o P.R.P.-3, que mantinha a tradição e
os vícios da política clientelística e oligárquica, e
Esse contexto de intelectualidade não fará contra a qual os tenentes já em 22 se houveram
de Caio Prado Júnior um homem fora de seu tem- manifestado. Nesse partido, Caio Prado Júnior não
po, ao contrário, alguém que estará inserido na teve cargos de relevo, mas notória atuação. Como
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5. Revista SymposiuM
um militante ativo, colaborou na organização de militância lhe punha em contato com gente bem
entidade nos bairros da capital e no interior do diversa daquela com quem vivera. Ele represen-
Estado, em serviços de rotina e em comícios. tava o homem de alta burguesia misturando-se
ao povo, mais especificamente, ao operariado.
Note-se que o principal empenho do Parti-
do Democrático foi na Campanha Liberal em prol Em 1932, inclinado para a esquerda, ficou
da candidatura de Getúlio Vargas e contra a can- contra os revoltosos de 32, porque via como pe-
didatura de Prestes. Não é de se espantar que Caio rigo a restauração da ordem antiga. Interessava-
Prado Júnior, como assíduo militante, tenha tra- se cada vez mais pelo Partido Comunista, mas,
balhado intensamente contra o Republicano rarissimamente pelos cargos expressivos. Foi mi-
Paulista nas bases populares. Sobre seu perfil en- litante comum trabalhando na organização das
tusiasta, Iglesias (1982:14) narra o episódio acon- bases. Fez uma visita à União Soviética para co-
tecido numa cerimônia da candidatura oficial, na nhecer a primeira experiência comunista, fato
presença de Júlio Prestes e do oficialismo federal marcante em sua vida e que registrou com um
e estadual, quando Caio Prado Júnior deu um viva livro.
a Getúlio Vargas, ousadia que lhe valeu a prisão.
Por sinal, a primeira de uma série delas relacio- Na primeira metade dos anos 30, o Brasil
nadas ao seu nobre radicalismo político. vive as lutas políticas de conotação ideológica. A
pregação da direita se faz atuante e intensa atra-
Ao que consta, a dedicação de Caio Prado vés da Ação Integralista Brasileira, como há a da
era exclusiva à política. Ele trabalhou na ligação esquerda menos espetaculosa, e o governo cami-
de conspiradores, no estímulo aos hesitantes, na nhando para tendências tradicionais. A direita tem
sabotagem de vias de comunicação que seriam a ajuda da Igreja e da burguesia emergente, en-
usadas por forças destinadas a destruir o avanço quanto a esquerda tem a perseguição das forças
das forças revolucionárias que viriam do Sul. Com estabelecidas e apoio do povo mais simples. A
a vitória da revolução que levou Getúlio ao po- Constituinte de 34 e a eleição indireta de Vargas
der em outubro de 1930, como chefe do governo para presidência da República vão mostrar um
provisório, Caio Prado Júnior foi pleiteado para quadro de dissenções em que o próprio Getúlio
desenvolver atividades no interior do Estado. ora se apóia na direita, ora nos políticos de es-
Com a organização de delegacias revolucionárias querda.
para apurar erros e desvios do passado, que pro-
cederam a grandes inquéritos, foi mandado a Ri- Em 1935, a esquerda consegue formar, atra-
beirão Preto, lá passou três meses. Trabalhou bas- vés de um movimento amplo, a Aliança Nacional
tante, então, dando-se conta de que não se chega- Libertadora, que tinha como presidente de honra
ria a lugar algum, e foram os inquéritos arquiva- Luís Carlos Prestes, que custara aderir ao partido
dos. comunista. A trajetória acidentada da ANL pela
interpretações equivocadas de seus líderes, os le-
A falta de programa político dos vitorio- vantes armados no Nordeste e no Rio sem pers-
sos, os choques entre políticos tradicionais e a pectiva de êxito foram fermento para que refor-
vanguarda dos tenentes desiludiram o moço re- çasse a reação e ato prol golpe em 37, com carac-
volucionário, que, em 1931, se torna membro do terísticas marcadamente fascistas no Brasil, num
Partido Comunista, força atuante de pouca ex- momento em que a direita ascendia em várias par-
pressão numérica, mas com programa radical. Tal tes do mundo.
escolha há de lhe marcar a vida inteira e ser pon-
to de destaque para todo aquele que evoca seu A ANL teve expressividade em São Paulo,
perfil. Como comunista recente, entregou-se ao mesmo não se chegando aí à luta armada. Miguel
trabalho de organização do proletariado. A Costa, ex-comandante da Coluna Prestes, foi seu
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6. Humanidades, Ciências e Letras
presidente e Caio Prado Júnior seu vice-presiden- ano. Com mandato cassado em 1947, ao lado de
te, estando, pela primeira vez, num cargo de rele- outros parlamentares comunistas, não se deixou
vo. Em 1935, a Aliança é perseguida e, em julho levar pela derrota e continuou seu trabalho num
desse mesmo ano, já havia sido fechada oficial- âmbito mais restrito. Gostava de dizer que o que
mente. Caio Prado foi preso junto com outros o partido lhe deu foi o senso de igualdade diante
chefes do movimento, e isso lhe anunciava dois dos operários. Até 1982, Caio Pardo Júnior vivia
anos de cadeia. Passado algum tempo, readquire em São Paulo, levando uma vida recatada, pouca
liberdade e vai embora para a Europa, quando, aparição e sem participação em grupos literários.
pouco tempo depois, começa o Estado Novo dan- Dava entrevistas quando solicitado, fazia confe-
do prosseguimento a uma série de repressões. Pelo rências ou pequenos cursos a pedido de alunos.
menos, havia-se retirado no momento certo. Tinha dedicação exclusiva a seus livros,
reeditando artigos e publicando novos títulos. A
Aos esquerdistas ou mesmo liberais só res- atividade para ele não deveria ser objeto de pro-
tara o ostracismo ou o exílio. Caio Prado escolhe moção, por isso a reclusão à vida intelectual, fa-
o exílio. Ao sair da cadeia, vai para a França, onde zendo da filosofia sua paixão constante. Por isso,
atuará politicamente, no Partido Comunista des- com tanta propriedade Florestan Fernandes com-
se país, que na época tentava auxiliar os republi- pararia sua vida política e intelectual como sen-
canos espanhóis que fugiam do ditador Franco do, antes de tudo, uma “rebelião moral” por ter
na Espanha e da guerra civil espanhola. Caio terá sabido fazer suas rupturas, inclusive de classe.
participação na organização destinada a facilitar
passagem clandestina na fronteira França/ 1.3 CAIO PRADO JÚNIOR E SEUS ESCRI-
Espanha, como estrangeiro conhecedor das lín- TOS
guas francesa, inglesa e espanhola. A estréia de Caio Prado deu-se em 1933,
com um ensaio intitulado Evolução Política do
Às vésperas da segunda guerra, com o Es- Brasil. Dividida essa obra em quatro partes, de-
tado Novo reinante, mesmo assim, Caio decide dicou duas delas à Colônia, uma à Revolução e
regressar ao Brasil. Em 1939, exerce militância uma última ao Império. Explana a idéia sobre o
política reservada, pois o partido estava na clan- feudalismo brasileiro como figura retórica para
destinidade e a repressão era acirrada, tanto quan- se compreender a economia da nação e a da Eu-
to o policiamento. ropa medieval, além de lançar como chave de com-
preensão ao estudo do Brasil a questão do lati-
Com as mudanças políticas de 45, Vargas é fúndio, que buscava entendê-la no período colo-
forçado a sair em outubro desse mesmo ano e, nial.
sob governo dirigido pelo judiciário, são realiza-
das eleições para a Assembléia Constituinte e para O segundo livro de história de Caio, e que,
a presidência da República. O Partido Comunis- neste trabalho, vamos abordá-lo como objeto de
ta disputa as duas. Para a Constituinte, o partido estudo epistemológico e hermenêutico, é For-
faz 15 deputados e um senador. Em eleição de mação do Brasil Contemporâneo- Colônia, pu-
janeiro de 47, para os legislativos estaduais e su- blicado em 1942.
plementar para a Câmara Federal, faz mais dois
deputados. Também em São Paulo, a bancada co- Em 1945, publica outro livro de história
munista é expressiva e para ela Caio Prado foi intitulado “História Econômica do Brasil”, com
eleito, juntamente com seis companheiros. Como o intuito de atender às necessidades do público
Deputado estadual será incansável atuante. Um presente nos cursos de História, Ciências Sociais
processo na Justiça declarou o partido fora da e Ciências Econômicas.
lei, e a participação comunista no parlamento, sin-
gular e assustadora para muitos, durou apenas um Caio Prado também publicou escritos de
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7. Revista SymposiuM
outras especialidades. Dois foram livros de via- do com informações que mostrem as diferencia-
gens: um escrito em 1934, logo após sua volta da ções regionais como algo que faz parte da mesma
União Soviética, intitulado U.R.S.S., Um Novo lógica de colonização agro-exportadora. São fon-
Mundo; outro escrito após sua viagem à União tes, por sua vez, primárias e secundárias, mas bem
Soviética, novamente, e à China em 1960. Dessa observadas por Iglesias (1982: 25), como sendo
forma, em 1962, publica O Mundo do Socialis- impressas e não retiradas de arquivos onde os
mo. É menos uma descrição de viagem que o de- documentos estariam soltos. Aliás, isso não dimi-
bate de problemas comunistas. nui em nada o magistral trabalho de Caio Prado
Júnior. Muito pelo contrário, a meu ver, mostra
Afora suas atividades de escritor, Caio Pra- como soube ordenar essas fontes já publicadas.
do Júnior foi editor de livros, por ter fundado a São escritos de viajantes, Atas de Câmara já
Editora Brasiliense. Foi antes mesmo de ser de- publicadas, Almanaques Históricos referentes às
putado que ele se dedicou aos negócios, criando cidades brasileiras, Anais, Apontamentos biográ-
a Livraria Brasiliense, também Editora de amplas ficos, Cartas de governadores, Cartas de vice-rei,
atividades. Sem gosto por atividades empresari- Cartas econômico-políticas sobre agricultura e
ais, mesmo assim uniu-se à editora famosa, que comércio das capitanias, a obra de Gilberto Freyre
era a Urupês, publicando intensamente. Na ver- Casa Grande & Senzala, Diários de Viagem, Dis-
dade, quem acabou por assumir os negócios da cursos, Dicionários de botânica, Ensaios econô-
editora foram seu filhos. Em 1955, criou a Revis- micos, Legislação portuguesa, literatura, Memó-
ta Brasiliense cujo primeiro número surgiu em rias referentes a assuntos variados, Ofícios, entre
setembro-outubro daquele ano. Essa revista sairá outros.
por muitos anos debatendo os problemas políti-
cos diários, em especial do Brasil, bem como con- Constituída de três partes, essa obra tor-
seguirá reunir em torno dela intelectuais da me- nou-se famosa exatamente pela sua introdução
lhor qualidade. A revista publicou cinqüenta e cujo título é o “Sentido da Colonização”. As de-
um números; suspendeu o aparecimento pelo cli- mais partes do livro são intituladas “Povoamen-
ma da ditadura instaurado em 1964, com o golpe to”, “Vida Material” e “Vida Social”.
militar. O número 52, correspondente a março
de 1964, já pronto, foi destruído pelos militares, Nessa introdução, o autor deixa clara sua
que puseram fim, então, à Revista Brasiliense. tese sobre a formação do Brasil, numa análise que
se tornou clássica como fundamento para discus-
2 - ANÁLISE EPISTEMOLÓGICA sões e debates em salas de aula. A tese é a de que
o Brasil contemporâneo se define pelo seu perío-
A obra de Caio Prado Júnior intitulada do colonial, que se balanceia e se encerra com o
“For mação do Brasil Contemporâneo” foi século XVIII, mas as transformações que se ope-
publicada em São Paulo, em 1942. Para Dante ram sucederam no decorrer do decênio anterior
Moreira Leite4, essa é a obra de Caio Prado mais a este e no atual. Considera que, naquele passado
importante, em razão de apresentar uma inter- se constituíram os fundamentos da nacionalida-
pretação global positiva sobre o Brasil, mesmo de: povou-se um território semideserto, organi-
que ele não tenha dado continuidade à obra como zou-se nele uma vida humana divergente da nati-
pretendia. As fontes pesquisadas mostram toda va, isto é, dos indígenas e suas nações, como tam-
a minuciosa reflexão e paciente compilação do bém da dos portugueses, embora em menor esca-
autor, que produziu um original trabalho, mar- la a dos portugueses que empreenderam a ocupa-
cando seu estilo cuidadoso em não ser generalista ção do território.5 Ou seja, para ele, o passado
nas abordagens que faz sobre o Brasil-colônia. A colonial está presente no Brasil de hoje, mesmo
cada capítulo, sente-se um Caio Prado preocupa- em parte esse passado modificado.
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8. Humanidades, Ciências e Letras
No plano econômico, por exemplo, consi- não são senão partes, por si só incompletas, de
dera que o trabalho livre não se organizou com- um todo que deve ser sempre o objetivo último
pletamente em todo o país (em relação à época do historiador, por mais particularista que seja
que escreveu). Percebia que, em muitos setores, (Ibidem, p. 13). Aqui percebemos como Caio pra-
havia um ajustamento em pleno vigor, um esfor- do Júnior concebe uma análise da história: como
ço razoavelmente bem sucedido naquela direção, uma síntese. E, sobre o Brasil, considera que, por
mas conservando traços bem vivos do regime mais transformações ocorridas, o conjunto per-
escravista que o precede. Por isso, afirma repeti- manece quase que inalterado econômica e social-
damente que não está completa ainda a evolução mente. Escreve a esse respeito o seguinte:
da economia colonial para a nacional. No social,
a mesma coisa. Verifica que as relações de classe “Não sofremos nenhuma descontinuidade no de-
ainda conservam seu cunho colonial. Essas dife- correr da história da colônia. E se escolhi um momen-
renças profundas dividem a população rural en- to, apenas a sua última página, foi tão somente porque,
tre nós, brasileiros, como se fossem categorias (...), aquele momento se apresenta como um termo final
díspares. Disparidade que se mostra não apenas e a resultante de toda nossa evolução anterior. A sua
no nível material da vida, já inteiramente despro- síntese. Não se compreende por isso, se desprezarmos
porcionado, como também no estatuto moral res- inteiramente aquela evolução, o que nela houve de fun-
pectivo de umas e outras e que nos dá uma idéia damental e permanente. Numa palavra, o seu sentido.”
do passado. Para Prado Júnior, os depoimentos (Ibidem, p.14).
dos viajantes estrangeiros que nos visitaram em
princípios do século passado são extremamente E qual é o sentido da colonização? Caio
atuais. Percorrer o Brasil de hoje significa ser pego Prado compara a nossa colonização com a das
na surpresa de poder encontrar aspectos que só outras colônias americanas e deixa claro que a
se imagina existirem nos livros de história. Isso, nossa procurou obter os produtos tropicais
para ele, não significa apenas reminiscências ana- inexistentes na Europa, o que determinou a es-
crônicas, mas fatos profundos que se encadeiam colha apenas de certos produtos agrícolas aqui
na corrente histórica do presente com o passado conseguidos, construindo fases de desenvolvimen-
recente. to e decadência dos mesmos, inclusive das dife-
rentes regiões brasileiras. Ou seja, é consistente
O que Caio Prado Júnior defende é que os em afirmar que a nossa economia não estava
germes da organização social não são novos, mas, dirigida para as necessidades do mercado inter-
apesar disso, o Brasil padece dos mesmos males no, mas para as exigências do mercado europeu.
encontrados no século passado, sem que muita Tal aspecto determinou o tipo de exploração do
transformação tenha acontecido para remover tais solo e de organização da produção que foi a gran-
problemas. de propriedade monocultura e escravocrata, as-
sim como as pequenas proporções da economia
Mas, como perceber historicamente o sen- de subsistência que se destinavam ao consumo
tido da colonização sugerido por Caio Prado, en- dos colonos.
tão? Ele responde que o sentido só é percebido
observando o conjunto dos fatos e acontecimen-
tos essenciais que constituíram a história de um 2.1 A OBRA E SUAS PARTES
povo num largo período de tempo. Sobre isso,
afirma que este conjunto tem uma linha mestra 2.1.1 POVOAMENTO
ininterrupta de acontecimentos que se suce-
dem em ordem rigorosa, e dirigida sempre Analisando por ora a composição das par-
numa deter minada orientação (Cf. Prado tes da obra aqui objeto de estudo, da autoria de
Júnior, 1963: 13). Todos os momentos e aspectos Caio Prado, verificaremos algumas de suas argu-
Universidade Católica de Pernambuco - 26
9. Revista SymposiuM
mentações. Na parte relativa ao povoamento, para o povoamento se circunscrever a certas áre-
aborda a distribuição do território da colônia, par- as, a exemplo do extremo-norte da bacia amazô-
tindo da afirmação de que o povoamento só co- nica, que foi ocupada pelas missões católicas
meçou a penetrar o interior, de fato, no final do catequisadoras, precisamente pelos padres da
segundo século (XVII).Evoca Frei Vicente do Sal- Companhia de Jesus; além da colonização leiga
vador, isto é, a obra desse religioso sobre a histó- que aí se estabeleceu para explorar produtos na-
ria do Brasil, mostrando que o franciscano já re- turais da floresta amazônica como o cacau, a
clamava, em seu escrito, que os colonos se con- salsaparrilha e outros.
tentavam em arranhar as terras ao longo do mar
como se fossem “caranguejos”. (Cf. Prado Júnior, Quanto ao povoamento interior, ressalta
1963: 33). Dessa forma, parte do pressuposto de que correntes migratórias se movimentavam con-
que a distribuição pelo território da colônia teve tinuamente, ocupando o território, saindo de um
povoamento irregular, havendo apenas alguns nú- lugar e se estabelecendo em outro. Ou seja, ocu-
cleos bastante densos. Afirma que, de forma ge- pavam-se novos territórios até então desertos,
ral, guardada as devidas proporções quantitati- abandonavam-se outros já devassados; a popula-
vas, o aspecto do território, em termos de povoa- ção refluía de um para outro ponto, adensando-
mento, é praticamente o mesmo. Há uma seme- se nalguns, reduzindo-se em outros. Como sínte-
lhança, principalmente, a seu ver, entre o povoa- se da evolução do nosso povoamento, argumenta
mento no século XIX e a atualidade do início que, basicamente, há três grandes fases. A primeira
dos anos quarenta, quando foi escrita a obra. So- se inaugura com a colonização e vai até fins do
bre isso afirma: “Salvo o adensamento posterior, séc. XVII. Essa representa, a seu ver, o período
a estrutura geral do povoamento continua mais de ocupação inicial caminhando para o estabele-
ou menos a mesma ; excetuando-se apenas a re- cimento dos portugueses na colônia. Compreen-
modelação que sofreu o Sul e o Centro-Sul do de a ocupação do extremo litoral, desde o Ama-
país, bem como esta região dos altos afluentes do zonas (1616) até o Rio da Prata; para o interior, a
Amazonas, que hoje forma o Território do Acre, penetração dos sertões do Nordeste pelas fazen-
e que não fazia parte ainda do Brasil, nem se acha- das de gado, e a ligeira infiltração pelo vale acima
va ocupada. Afora isto, pouca é a diferença”. do rio Amazonas. Afora isso, apenas a
(Ibidem, p. 30). modestíssima ocupação do bordo oriental do pla-
nalto meridional em São Paulo e no Paraná. A
O autor esclarece sobre os fatores que teri- segunda fase seria a do século XVIII, que se abre
am determinado essa disposição para o povoa- com a revolução demográfica em busca da desco-
mento irregular. O primeiro deles foi a extensão berta do ouro nas Minas Gerais, seguidas por
da costa que coube a Portugal na partilha do Mato grosso e Goiás. Formam-se núcleos de ori-
Tratado de Tordesilhas com os espanhóis, o que gem mineradora e neles vai se concentrar grande
o obrigou a uma ocupação e defesa eficientes, as- parcela da população colonial. Também favorece
sumindo, assim, uma colonização simultânea em esse fluxo a decadência da pecuária nos sertões
vários pontos dela. Outros fatores teriam sido o do Nordeste, assolados pela seca, e o
bandeirismo “predador de índios e prospector de florescimento dela no Extremo-Sul da colônia.
metais e pedras preciosas”, que abriu o caminho, Esse conjunto de fatores vai provocar uma
explorou a terra e repeliu as vanguardas da colo- redistribuição do povoamento. Finalmente a ter-
nização espanhola concorrente. Também a explo- ceira fase, marcada a partir de finais do século
ração das minas, descobertas sucessivamente nos XVIII e adentrando-se pelo século XIX, consti-
últimos anos do século XVII, contribuiu para fi- tui-se como uma perpetuação de correntes mi-
xar núcleos estáveis e definitivos na área central gratórias para o sul e, sobretudo, para o planalto
do país (Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso.) paulista indo refazer a economia paulista uma vez
Acrescenta que as missões também contribuíram decaída pela fase da mineração. Territórios vir-
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10. Humanidades, Ciências e Letras
gens são devassados e ocupados; novas ativida- cionalidades. Mas, até a extinção do tráfico afri-
des se iniciam, e o café, principalmente, começa cano em 1850, essa população branca permanece
sua grande trajetória que transformaria o país no aquém da de negros. Tal deficiência em parte é
correr do século em curso. O eixo econômico do compensada com a multiplicação do elemento
Brasil se desloca definitivamente para esse setor. branco, em razão do favorecimento das imigra-
Assim, escreve: “A mineração o levara do norte ções desse povo, mais regular na organização fa-
açucareiro para o Centro do território da colô- miliar e constituído de um contingente de mu-
nia. Ele se fixará agora neste setor que compre- lheres bem mais numeroso.
ende as capitanias do Rio de Janeiro e S. Paulo, e
as regiões de Minas Gerais limítrofes destas.” Do ponto de vista da posição social das ra-
(Ibdem, p. 78). ças, o preto e o índio afluirão para as camadas
inferiores; o branco, para as camadas mais eleva-
O terceiro capítulo da primeira parte é uma das - se não sempre de início, quando chegam
discussão sobre os cruzamentos raciais no Brasil desprovidos de recursos, pelo menos, mais tarde.
e o lugar que passaram a ocupar os indivíduos A tendência para ascensão é geral, argumenta Caio
nascidos na colônia. Percebemos nesse capítulo o Prado Júnior (1963:106-107), o que não se veri-
uso do conceito “progresso material”, para de- fica no caso do negro ou do índio. Só muito mais
nominar o nível do acréscimo ou decréscimo da tarde, e em áreas restritas do país, começará o
população indígena aldeada e a forma como vai imigrante branco a afluir em grandes levas para
ser empregada no projeto português de coloniza- as camadas inferiores da população e nelas per-
ção. Considera que o índio foi o problema mais manecer.
complexo que a colonização teve de enfrentar,
pois diferentemente da colonização norte-ameri- 2.1.2 VIDA MATERIAL
cana, aqui o que se tinha em vista era aproveitar
o indígena na obra colonizadora. Os colonos viam A segunda parte da obra, denominada
no índio um fornecedor de produtos nativos, mas, “Vida Material”, contém capítulos referentes aos
especialmente um trabalhador aproveitável; a me- temas: Economia, Grande Lavoura, Agricultura
trópole via como um povoador para a área imensa de Subsistência, Mineração, Pecuária, Produções
que tinha de ocupar, muito além de sua capacida- Extrativas, Artes e Indústrias, Comércio, Vias de
de demográfica. Comunicação e Transporte. É com minúcia e
acuidade que Caio Prado Júnior escreve esses te-
O resumo do panorama étnico brasileiro mas, de forma exaustiva e economicista, num es-
em princípios do século passado é que havia um tilo inigualável que demonstra uma habilidade no
predomínio de mestiços dominando em geral o trato com fontes as mais variadas que foram por
cruzamento de branco com pretos. Sobre estes ele pesquisadas.
estão dispostos os grupos originais das três ra-
ças formadoras (brancos, dominantemente por- O capítulo intitulado Economia, basica-
tugueses, índios e negros), sendo alimentados con- mente, é um preâmbulo daquilo que ele irá dis-
tinuamente por novos contingentes, que são pe- cutir a respeito dos aspectos materiais. Nesse, ele
quenos no caso dos índios, e por isso esse grupo reforça sua tese sobre o sentido da colonização,
se reduz e vai desaparecendo. Considerável volu- uma vez exposto na introdução do livro, ou seja,
me de contingente negro cresce também já que a de que tal sentido é o de uma colônia destinada
mão de obra no Brasil era oficialmente escrava a fornecer ao comércio europeu alguns gêneros
até o final do século passado. A afluência migra- tropicais ou minerais de grande importância,
tória de brancos se avoluma depois da abertura constituindo uma economia subordinada inteira-
dos portos em 1808, quando, a par dos portugue- mente a esse fim. Sendo esse capítulo o funda-
ses, começam a chegar indivíduos de outras na- mento das suas argumentações sobre o que cha-
Universidade Católica de Pernambuco - 28
11. Revista SymposiuM
ma de “vida material”, aproveito a oportunidade, como simples trabalhador assalariado do campo. A
em que o estou analisando, para mostrar como escravidão torna-se assim necessidade: o problema e
nele se definiam os conceitos-chave da obra como a solução foram idênticos em todas as colônias
um todo. Considero que ele (o capítulo) é tropicais.” (Ibidem, p. 116).
revelador do que o autor chama de “estrutura
material do Brasil-colônia”, como também da te- Prado Júnior percebe a estrutura econô-
oria presente no livro. Tanto é assim que o autor mica do Brasil-colônia como questão agrária de
traz à lume novamente a tese apresentada na in- fato, que, apoiada no latifúndio, na monocultura
trodução, como se esse texto fosse, de fato, para e na escravidão formaram um único sistema, fun-
ele, o fundamento da obra. Assim, tomo como damento das relações econômico-sociais. A idéia
ponto de referência a idéia de que o capítulo re- de unidade e complementariedade é aplicada à in-
presenta toda a base argumentativa do livro, para terpretação que faz do sistema produtivo do Bra-
afirmar que esse núcleo se constitui como sendo sil-colônia. Isso pode ser detectado no trecho a
uma análise enfaticamente econômica da história seguir:
do Brasil, sobretudo, ancorada no estilo marxis-
ta. Os conceitos ressaltados no capítulo são: uni- “Completam-se assim os três elementos
dade produtiva, organização do trabalho, estrutura eco- constitutivos da organização agrária do Brasil coloni-
nômica, organismo reprodutor, sistema organizado da al: a grande propriedade, a monocultura e o
produção, distribuição de recursos, subsistência material, trabalho escravo. Estes três elementos se conjugam num
funcionamento, evolução, conseqüência final, necessida- sistema típico, a grande exploração rural , isto é, a
de, etc.. reunião numa mesma unidade produtora de
grande número de indivíduos ; isto é que constitui a
Assim, nesse capítulo, podemos pontuar, nas célula fundamental da economia agrária brasileira.”
idéias elaboradas, alguns desses conceitos de sen- (Ibidem, p. 117).
tido marxista. Quando, por exemplo, o autor ar-
gumenta que a monocultura foi a grande propri- Toda a instabilidade da colônia em termos
edade tropical, ele não afirma que foi apenas isso, econômicos é apreciada como uma lógica
mas que tal acontecimento era uma condição in- encadeada nas suas partes, e não como algo de
trinsecamente necessária, isto é, algo fadado a se per si, explicado apenas a partir de seus fracassos
realizar ou, em outros termos, determinado a enquanto ciclos econômicos compreendidos iso-
acontecer sob aquelas condições. Veja-se a seguir: ladamente. A idéia de estrutura, de organismo e
“A monocultura acompanha necessariamente a de processo evolutivo da economia brasileira pode
grande propriedade tropical; os dois fatos são ser percebida na conclusão, do capítulo referido,
correlatos e derivam das mesmas causas. A agri- que tece o Autor:
cultura tropical tem por objetivo único a produ-
ção de certos gêneros de grande valor comercial “Da economia brasileira, em suma, e é o que
e por isso altamente lucrativos.”(Ibidem, p. 116). devemos levar daqui, o que se destaca e lhe serve de
O conceito de necessidade ainda aparece para característica fundamental é: de um lado, na sua
explicar a escravidão, como condição de trabalho estrutura, um organismo meramente produtor, e cons-
presente na monocultura. É este o trecho: tituído só para isto: um pequeno número de empre-
sários e dirigentes que senhoreiam tudo, e a grande
“Com a grande propriedade monocultural ins- massa da população que lhe serve de mão de obra.
tala-se no Brasil o trabalho escravo. Não só Portu- Doutro lado, no funcionamento, um fornecedor do
gal não contava população suficiente para abastecer comércio internacional dos gêneros que este reclama e de
sua colônia de mão de obra, como também, já o vimos, que ela dispõe. finalmente, na sua evolução, e como
o português, como qualquer outro colono europeu, não conseqüência daquelas feições, a exploração extensiva e
emigra para os trópicos em princípio, para se engajar simplesmente especuladora, instável no tempo e no espa-
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12. Humanidades, Ciências e Letras
ço, dos recursos naturais do país. É isto a economia to, para abandoná-lo logo em seguida e passar
brasileira que vamos encontrar no momento em que adiante. Descreve os locais de exploração da mi-
ora abordamos sua história.” (Ibidem, p. 123). neração; a forma de regime de trabalho extrema-
mente rigorosa e disciplinarizada; a aparição de
Os demais capítulos contidos, ainda, nessa leis que perduraram até o Império e que tinham
segunda parte da obra, merecerão apenas algu- por objetivo preservar os locais de extração bem
mas considerações. Quando aborda sobre a gran- como garantir sua propriedade etc.; o contraban-
de lavoura cultivando produtos para exportação, do que se fazia abertamente e as razões da deca-
o que o autor argumenta é que esta representa o dência desse tipo de exploração. Sobre a pecuá-
nervo da agricultura colonial e que a produção ria, considera-a como pouco abordada na
dos gêneros de consumo interno como a mandi- historiografia, mas como um dos mais importan-
oca, o milho e o feijão, foi um apêndice dela, de tes acontecimentos da história do país. Percebe
expressão puramente subsidiária. Toma como tra- esse setor econômico como ainda extremamente
ço essencial das grandes lavouras a sua explora- ligado ao passado, a se ver nas boiadas que
ção em grande escala, ou seja, cada unidade pro- palmilham o país, tangidas pelas estradas e co-
dutora, conjugando áreas extensas e numerosos brindo, no seu passo lerdo, as distâncias imensas
trabalhadores, constitui-se como uma usina, uma que separam o Brasil. Percebe a pecuária como
organização coletiva do trabalho e mesmo espe- atividade separada completamente da cultura da
cializações. Esse aspecto se observa, na sua visão, terra e que se viu relegada para setores afastados
particularmente na produção do açúcar, na qual e impróprios para a agricultura. O deslocamento
o engenho, com seu conjunto de máquinas e apa- das zonas criatórias para longe dessa área se veri-
relhamentos, forma uma verdadeira organização fica desde o início da colonização, citando o exem-
fabril. (Cf. Prado Júnior, 1963: 137). No que se plo da Bahia, Pernambuco e São Vicente. Quan-
refere ao capítulo sobre a agricultura de subsis- to ao capítulo sobre as produções extrativas, re-
tência desenvolvida no Brasil-colônia, é impor- fere-se ao vale do Amazonas, cuja colonização
tante salientar que o autor a considera como re- não se entende sem verificar esta análise, assim o
presentando um papel secundário e, por conse- compreende. No vale amazônico, as formas de
qüência, criando um problema, na sua visão, um atividade se reduzem praticamente a duas: pene-
tanto quanto grave, que era o do abastecimento trar a floresta ou os rios para colher os produtos
dos núcleos de povoamento mais denso, em que e capturar o peixe. Para isso o índio estava total-
a insuficiência alimentar se tornou quase sempre mente preparado. A organização do trabalho se
a regra. Cita a Bahia e Pernambuco como exem- faz esporádica e coincide com épocas próprias,
plos de locais onde aconteceu um verdadeiro es- contratando índios por um salário oficialmente
tado crônico gerador de carestia e crise de ali- fixado, segundo as leis protetoras pombalinas. No
mentos. Isso ocorreu, sobretudo, no momento da capítulo sobre artes e indústrias ou sobre as ati-
alta dos preços dos produtos da grande lavoura, vidades que têm por objeto elaborar a matéria-
quando as atividades e atenções se voltam para prima, assinala que é nos centros urbanos do Bra-
ela e as culturas alimentares são abandonadas. sil que as profissões mecânicas são mais numero-
(Ibidem, p. 157). No capítulo dedicado à minera- sas. Destaque-se de sua narrativa a afirmação que
ção, considera que essa exploração foi tão desas- faz sobre o fato de os artesãos se fazerem auxili-
trosa quanto a da grande lavoura. Analisa os ins- ar por escravos e a existência de pequenas indús-
trumentos utilizados no processo, a ignorância trias domésticas disseminadas pela colônia. As pe-
dos mineradores em tudo quanto se referisse ao quenas indústrias existentes eram as olarias para
seu ofício, exceto os conhecimentos empíricos ad- fabricação de telhas, tijolos e os curtumes disse-
quiridos na experiência, como aspectos que con- minados nas regiões de grande comércio de gado:
tribuíram para que a mineração não passasse de Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco. Sobre o
uma aventura passageira que mal tocava um pon- comércio, ressalta que ele está em consonância
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13. Revista SymposiuM
com o caráter da colonização, isto é, organizado co apresentava de uniformidade e simetria funci-
para gêneros tropicais e metais preciosos. Dessa onais e que é impossível ser comparada ao que
forma, o comércio externo é todo marítimo. Des- vemos hoje, nas administrações contemporâneas.
taca que o contrabando era vultoso nas frontei- Isto é, são funções bem discriminadas ou com-
ras do sul, por onde chegava ao Rio Grande do petências bem definidas obedecendo a um
Sul. Sobre o capítulo das vias de comunicação e princípio de hierarquia. Isso porque não existia
transporte, afirma que, no dobrar do século no direito público da monarquia, ou eram muito
XVIII, elas estavam voltadas para o mar, predo- poucas, normas gerais regulando as atribuições
minantemente. Nesse caso, é a via marítima que de competência. Ao contrário, na legislação ad-
determinava as formas de pequenos serviços au- ministrativa da colônia, encontrava-se um amon-
tônomos de transportes que articulavam entre si toado inteiramente desconexo . (Cf. Prado Júnior,
os núcleos de povoamento. Observa que a via ter- 1963: 298).
restre paralela oferece obstáculos intransponíveis
e será sempre menos cômoda ou econômica que Considera que, de modo geral, pode-se afir-
a do mar. Mas os transportes terrestres na colô- mar que a administração portuguesa estendeu ao
nia não se achavam entregues aos azares das cir- Brasil sua organização e seu sistema e não criou
cunstâncias como, por exemplo, as boiadas. Elas nada de original para a colônia. (Cf. p.299). A res-
“são entregues a um capataz que tem sob suas ordens os peito da vida social e política, primeiramente con-
tocadores, um para cada grupo de 20 animais; assim sidera que a sociedade colonial antes se definirá
seguem para seu destino em marchas de 3 léguas diárias pela desagregação, pela forças dispersivas, porque
em média”. (Ibidem, p. 259). não há uma integridade do conjunto de seus ele-
mentos. Para o Autor, o único núcleo central or-
2.1.3 VIDA SOCIAL ganizado, mas degradado moralmente, é a escra-
vidão, que redundará em relações sociais primá-
Esta parte compreende os capítulos “Or- rias através de duas funções que desempenharam
ganização Social”, “Administração”, “Vida Soci- papel importante: o fator trabalho e o fator sexu-
al e Política”. No capítulo referente à organiza- al. Sobre a escravidão enquanto sistema cultural
ção social, destaca que o que mais caracterizava a ele afirma: “O trabalho escravo nunca irá além de seu
sociedade brasileira de princípios do século XIX, ponto de partida: o esforço físico constrangido; não educa-
é a escravidão. Preocupa-se, portanto, em salien- rá o indivíduo, não o preparará para o plano da vida
tar com quais diferenças era a escravidão assumi- mais elevado” (Ibidem, p. 342). Caio Prado lembra
da nas colônias americanas, que, no seu entender, que as relações sexuais do colono branco com a
são mais singulares que as da escravidão, de ma- mulher escrava estavam muito longe de elevarem
neira geral. Defende que, na América, por exem- essa mulher a uma relação de dignidade e ascen-
plo, o caráter da escravidão foi pior que na escra- são moral. Afirma que a função sexual da mulher
vidão romana, pois, na colonização das Améri- escrava não ultrapassava o nível “primário e pu-
cas, foi considerado apenas o esforço físico quer ramente animal do contato sexual, não se aproxi-
do homem escravo, ou da mulher escrava; e des- mando senão muito remotamente da esfera pro-
ta, além do mais, seu uso sexual. Ressalta que em priamente dita do amor.” (Ibidem, p. 342). Con-
Roma o escravo não foi simples máquina de tra- corda com Gilberto Freyre, inclusive citando-o,
balho bruto e inconsciente, mas também contri- que o escravo enchia o cenário brasileiro coloni-
buinte ativo da cultura dessa civilização. al, sobretudo na vida doméstica dos senhores de
engenho, onde se encontravam as amas negras a
No capítulo sobre a administração, critica criar seu filhos. Contudo, afirma que a socieda-
a visão em que a administração portuguesa é in- de colonial se manteve apenas por tênues laços
terpretada como uma unidade. Sua tese é a de materiais primários, econômicos e sexuais, não
que a administração colonial nada ou muito pou- destacados de seu plano inferior. Enfatiza que as
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14. Humanidades, Ciências e Letras
relações sociais se estabeleceram como resultado tilhar as opiniões de Gilberto Freyre, especial-
imediato de aproximação de indivíduos, raças e mente sobre a organização social do Brasil-colô-
grupos díspares que não ultrapassavam o conta- nia. Mas, é Caio Prado um Autor plenamente ori-
to elementar, mesmo tendo sido capaz de gerar a ginal em sua abordagem materialista da história
mestiçagem brasileira. Quanto à política lusitana do Brasil, diferente dos demais de sua geração, a
no Brasil-colônia, considera que ela foi, antes de exemplo desses acima citados. Ele não percebe o
tudo, um negócio de Rei, isto é, todos os proble- problema cultural como o determinante das difi-
mas políticos e administrativos aqui ocorridos culdades do Brasil. Ressaltando-se que, enquan-
eram abordados como estritamente financeiros. to Gilberto Freyre é o saudosista dos momentos
Para a política portuguesa, não havia aqui uma senhoriais (portugueses) do Brasil-colônia, Sér-
sociedade ou uma economia de que se ocupar, gio Buarque é aquele que acusa a mentalidade lu-
fosse embora em função de interesses portugue- sitana de ter sido incapaz de produzir uma civili-
ses, mas tão-somente de “finanças” a cuidar. zação moderna no Brasil.
(Ibdem, p. 362).
3. ANÁLISE HERMENÊUTICA
2.1.4 OUTRAS CONSIDERAÇÕES A partir da obra Formação do Brasil Con-
EPISTEMOLÓGICAS temporâneo, de Caio Prado Júnior, não se tem
dúvida a respeito de seu modo de elaboração de
Há de se verificar que Caio Prado assume enredo, que é a tragédia. Os argumentos se cons-
de fato uma análise marxista no teor da obra re- troem num fio condutor que percebe, atrás ou
ferida. Existe uma teoria materialista da história, dentro da sucessão de eventos contidos na crô-
presente em seu trabalho. Baseando-se no escrito nica, uma estrutura vigente de relações ou um
de Marx e Engels, intitulado Ideologia Alemã, eterno retorno do mesmo naquilo que aparente-
Bertrand Russel6 afirma que a teoria materialista mente se apresenta como diferente. É o que diz
se inicia exatamente com o processo de produção Hayden White sobre esse estilo7. Isso pode ser
de uma época e considera como base da história visto logo na Introdução da obra de Prado Júnior,
a forma de vida econômica relacionada com essa quando afirma sua tese, nesse trecho:
forma de produção e por ela gerada. Mostra a
sociedade civil nos seus vários estádios e na sua “No seu conjunto, e vista no plano mundial e
ação com o Estado. Além disso, a partir da base internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto
econômica, a teoria marxista explica ainda assun- de uma vasta empresa comercial, mais complexa que a
tos como a religião, a filosofia e a moral, e a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo cará-
razão do curso que seguiu a sua evolução. Em ter que ela (grifos nossos), destinada a explorar os
Caio Prado Júnior, podemos notar esse método e recursos naturais de um território virgem em proveito do
também um refinamento da interpretação comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colo-
embasada no materialismo histórico. Se, em Marx nização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e
e Engels, a história é praticamente assumida como ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econô-
um processo racional, nesse Autor, a desorgani- mico como no social, da formação e evolução históricas
zação, o caos, a ausência de coerência do Estado dos trópicos americanos. (Prado Júnior, 1963: 25).
lusitano não deixam de ser pontos constantemente
levantados, ao invés de partir do pressuposto de Caio Prado também não se furta às recon-
que o estado português tinha propósitos bem de- ciliações trágicas nas quais o Brasil ainda deve
finidos e racionais de exploração. Às vezes, sua “sofrer”muito. É como se essas condições, da co-
análise chega a ter semelhança com a de Sérgio lônia até os nossos dias, estivessem declaradas
Buarque de Holanda, o autor de Raízes do Bra- como inalteráveis e eternas, pelo menos por um
sil, nesse aspecto. Outras vezes, chega a compar- tempo indeterminado, implicando que, ao homem
Universidade Católica de Pernambuco - 32
15. Revista SymposiuM
não é possível mudá-las, mas cumpre agir dentro territórios que os forneciam. Adotaram-na por isso em
delas. No seu enredo, percebem-se os limites da sua colônia quase que de início - possivelmente de início
história brasileira, que está baseada no tripé: la- mesmo -, precedendo os ingleses, sempre imitadores retar-
tifúndio, monocultura e escravidão, deixando cla- datários, de quase um século.” (Ibdem, p. 24).
ro ao que se pode aspirar e o que se pode cons-
truir em termos econômicos e sociais para um Apóia-se na busca de leis causais que de-
patamar melhor do aquele em que o Brasil se en- terminam os resultados de processos descober-
contra. tos no campo histórico brasileiro. Os objetos que
supõe habitar tal campo histórico são interpreta-
Leva o conflito a sério, como bom historia- dos como existentes na modalidade de relações
dor trágico que é. Como Tocqueville, Caio Pardo de parte a parte, cujas configurações singulares
Júnior faz da história um realismo trágico, como são determinadas pelas leis que presume gover-
se o mundo social e econômico, colonial brasilei- narem suas interpretações. Veja-se o trecho a se-
ro, estivesse entre dois abismos. É o colonizado guir:
alguém que se esforça por se elevar constante-
mente acima de sua condição animal. Pode-se per- “O fio condutor que na complexidade dos fatos
ceber isso no trecho em que narra sobre a mu- com que temos de lidar nos conduzirá ao mais íntimo da
lher escrava: sociedade colonial para nele descobrirmos a origem de tais
“forças”, que se manifestam exteriormente sobretudo
“A outra função do escravo, ou antes da mulher por aquele mal-estar generalizado que assinalei acima e
escrava, instrumento de satisfação das necessidades sexu- que atinge toda a colônia, é a mesma infra-estrutura eco-
ais de seus senhores e dominadores, não tem um efeito nômica descrita nos primeiros capítulos deste trabalho.”
menos elementar. Não ultrapassará também o nível pri- (Ibidem, p. 358)
mário e puramente animal do contacto sexual, não se
aproximando senão muito remotamente da esfera propri- Sobre o modo de implicação ideológica, White
amente humana do amor, em que o ato sexual se envolve (1995:205) afirma que esse tipo de estilo, mecanicista,
de todo um complexo de emoções e sentimentos tão am- não é exaustivamente descritível de um determina-
plos que chegam até a fazer passar para o segundo plano do rótulo ideológico (como liberal ou conservador)
aquele ato que afinal lhe deu origem”(Ibidem, p. 342). ou especificamente disciplinar (como, por exemplo,
econômico). De fato, como o estilo de Caio Prado
O modo de argumentação é mecanicista, Junior se assemelha ao de Tocqueville, pode-se afir-
porque as hipóteses do mundo observado são mar que o do autor apreciado aqui é de um histori-
integrativas em seu objeto e são redutivas nas ex- ador radical, pelo fato de ter estudado a história do
plicações assumidas. Verifica o ato dos agentes Brasil segundo leis causais que regem suas opera-
que povoam o campo histórico como manifesta- ções como processo. Além disso, o autor se com-
ções de “agências” extra-históricas que têm suas prometeu, implicitamente, com uma concepção a
origens na “cena” dentro da qual acontece a ação respeito da manipulação do processo social. Lem-
da narrativa.O modo de colonização português, bre-se de que Caio Prado esteve comprometido toda
baseado na escravidão, por exemplo, é visto como a sua vida com o Partido Comunista, do qual nunca
algo imposto e que determinou predominante- quis auferir maiores posições hierárquicas. Lembre-
mente os rumos do que hoje chamamos nação se ainda de Florestan Fernandes que, nesse sentido,
brasileira. Sobre isso afirma: definiu o seu perfil como “a rebelião moral”. Ele
significou, na teoria e na prática, uma forma mo-
“Finalmente os portugueses tinham sido precurso- derna de se assumir materialista, tal qual Tocqueville.
res, nisto também, desta feição particular do mundo mo- Sua vida e seus escritos bem refletem isso.
derno: a escravidão de negros africanos; e dominavam os
Vol. 2 • nº 2 • julho-dezembro, 98 - 33
16. Humanidades, Ciências e Letras
Quanto à figura de linguagem, a que pre- 1963.
domina é a metonímia, porque define sua WHITE, Hayden. Meta-História: a Imaginação His-
metodologia dialética como uma totalidade tórica do Século XIX. 2 ed. São Paulo:
redutiva. Sobre a insistência na redução, escreve USP, 1995.
que escolheu uma parte da história do Brasil ape-
nas, mas que é reveladora de todo um processo NOTAS
mais genérico. Então escreve: “E se escolhi um mo-
mento dela (da história), apenas a sua última página, foi 1
Professora do Departamento de Sociologia da
tão somente porque, já me expliquei na Introdução, aquele Universidade Católica de Pernambuco, Mestra em
momento se apresenta como um termo final e a resultan- Sociologia e Doutoranda em História pela Uni-
te de toda nossa evolução anterior.”(Ibidem, p. 14). versidade Federal de Pernambuco.
2
FERNANDES, Florestan. A Contestação Necessá-
BIBLIOGRAFIA ria: Retratos Intelectuais de Inconformistas e Revolucio-
nários. São Paulo: Ática, 1995.
FERNANDES, Florestan. A Contestação Necessá-
ria: retratos intelectuais de inconformistas e revo- 3
São Paulo houvera sido dominado politicamen-
lucionários. São Paulo: Ática, 1995. te pelo Partido Republicano Paulista -P.R.P.-, uma
vez que a República da época, aqui referida, des-
GARDINER, Patrick. Teorias da História. Lisboa: conhecia partidos nacionais.
Fundação Gulbenkian, 1964.
4
LEITE, Dante Moreira. O Caráter Nacional Bra-
IGLESIAS, Francisco (org.). Caio Prado Júnior: sileiro: História de uma Ideologia. São Paulo: Ática,
História. São Paulo: Ática, 1982. 1992. p.314.
LEITE, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasi- 5
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Con-
leiro: história de uma ideologia. 5 ed. São Pau- temporâneo-Colônia.. 7ed. São Paulo: Brasiliense,
lo: Ática, 1996. 1963. p.
NOSSO, SÉCULO. São Paulo: Abril Cultural, 6
RUSSEL, Bertand. O Materialismo Dialético. In:
1980: Memória e fotografia no Século 20: 1930 / Teorias da História. Lisboa: Fundação Gulbenkian,
1945). 1959. p. 350
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Con- WHITE, Hayden. Meta História: A Imaginação
7
temporâneo. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, Histórica do Século XIX. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1995. p. 26.
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