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1. Domingo, 24 de julho de 2011 • 2ª edição O GLOBO RIO ●
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PERFIL • JOÃO LUIZ DE SOUZA
Mônica Imbuzeiro
Arnaldo Bloch que recebia, do fato de eu ter
arnaldo@oglobo.com.br começado a lecionar aos 18
E
anos, formado em letras. Hoje,
le atende por João do viúvo octogenário e namora-
Corujão, e não é por deiro, só me dá carinho.
menos: tem cara de co- Na roda-viva dos anos 80,
ruja, usa óculos de co- João, por vias de amizades,
ruja e nunca dorme, exceto caiu nas graças de Darcy Ri-
sob efeito de um rodízio de beiro e foi chamado para as-
calmantes da moda, de modo sessorar Cecília Conde, então
a não ficar dependente de ne- coordenadora de animação
nhum deles, ou, na pior das hi- cultural do programa dos
pótese, criar uma dependên- Cieps. Acabou batizando o de
cia “democrática”. Às terças- número 45, implantado em
feiras, porém, é proibido dor- São Gonçalo:
mir: é o dia sagrado do Coru- — Pedi a Darcy que fosse
jão da Poesia, sarau que criou uma homenagem a Neruda.
em 2004, quando a extinta li- Ele subiu numa mesa e recitou
vraria Letras & Expressões era versos do poeta, e o nome de
point cultural do Leblon. Mu- Pablo está lá até hoje.
O homem-coruja
dou-se para a sobreloja de um João não escaparia, porém,
bar em Ipanema (o Conversa da grande praga daquele tem-
Fiada), onde continua atrain- po: a primeira onda de Aids
do tanto patricinhas quanto constrangia o amor livre. João
meninas do morro, pretos e não contraiu a doença, mas
brancos, vampiros e vítimas, perdeu muitos de seus amigos
sem falar nos famosos que já e boa parte de sua energia .
curaram ali suas insônias, de — Aquela vida sem freios,
Ben Jor a Caetano, de Otto a de a gente se amar nas festas,
Alaíde Costa. na praia, sob a Lua, toda a li-
Na última Flip, semanas berdade acabou. Eu era subse-
atrás, João — que é assessor
cultural da Universidade Sal-
Criador do sarau de poesia mais cretário de Cultura de São
Gonçalo e me perdi, dei uma
gado de Oliveira, que apoia
suas iniciativas — protagoni- movimentado da cidade, João do Corujão guinada forte para o álcool.
Darcy segurou minha barra,
zou um desses “embates do me protegeu de verdade.
bem” com o poeta Paulo Hen-
riques Britto, que, desencan-
conta como foi salvo pelos livros Em 1997, ano em que, por si-
nal, Darcy faleceu, veio a gran-
tado, atacou os saraus como de crise: fígado, estômago e
os que ele promove e disse pâncreas deram o aviso. Na
que os leitores de poesia no mesa de cirurgia com boa
Brasil “não passam de 300”. chance de óbito, o médico, en-
— Fiquei furioso. Força de quanto procurava localizar o
expressão à parte, a última foco de infecção que ameaça-
pesquisa “Retratos da leitura va sua vida, perguntou a João
no Brasil”, de 2008, encomen- qual era seu maior prazer.
dada pelas editoras ao Ibope, — Eu disse que era a poesia
mostrou que são quase 30 mi- e ele pediu que eu recitasse,
lhões os que citam poesia en- assim mesmo, de memória.
tre suas preferências. Bem à Obedeci e segui versejando,
frente de contos, autoajuda, até que uma estrofe terminou
biografias e História. O Coru- em grito de dor, apesar da
jão faz a sua parte: é a única anestesia. Escutei um aplauso:
vigília semanal do continente os alunos do lado de fora do
americano, aberta a poetas de aquário constatavam que a ca-
todas as estaturas! — corrupia beça da infecção havia sido lo-
o homem-coruja num café de calizada. A cirurgia foi cance-
cinema onde é sempre visto lada. Tive que conviver com
em companhia de amigos. uma bolsa de drenagem por
meio ano.
Um herói que já Um verso: ‘João,
nasceu insone não vai beber!’
● Há 49 anos, João Luiz de Sou-
za (todo herói tem uma iden- ● Durante esses seis meses, os
tidade) veio à luz no municí- amigos ligavam sempre ao
pio de São Gonçalo. Nasceu in- anoitecer, naquele momento
sone, segundo conta a gênese em que o lusco-fusco traz os
de sua transformação. Não pensamentos mais sombrios.
dormia de jeito nenhum, pro- — Era um poema de uma
blema que sua mãe tentou re- nota só: “João, não vai beber!
solver com Água de Melissa, João, não vai beber! João, não
famoso composto de outrora vai beber!”. E não bebi.
tido como calmante. A solu- Sem a birita, sem apreço
ção, à base de erva-cidreira, por outras drogas — o que
não solucionou nada: aos bra- tampouco seria uma solução
dos, Joãozinho queixava-se da —, renovou o pacto com a lei-
noite vazia. Até que, lá pelos 4 tura. Desde 1997, não põe uma
anos de idade, lhe vieram uns gota de álcool na boca.
livros ao berço. — Compreendi o que Bau-
— Meu pai era um operário delaire queria dizer: embria-
da Rede Ferroviária Federal. gue-se de poesia, vinho ou vir-
Tudo lá em casa era na ponta tude. Restou a poesia. A virtu-
do lápis. Coca-Cola, só no fim de não cabe a mim julgar.
de semana. Mas nunca faltou Que julguem, então, os ou-
comida, nem livro: minha mãe tros: de lá para cá, João criou
JOÃO LUIZ de Souza, vulgo João do Corujão, no mesão do café de uma livraria de cinema: trajetória difícil, iluminada pelo amor à leitura
era babá do filho da minha ma- o Corujão. Paralelamente, re-
drinha, Florinda Miranda Fer- colheu e distribuiu mais de
reira, moradora do Leblon, 200 mil livros, criando uma re-
que tinha uma bela biblioteca. de informal de bibliotecas.
Garantiu minha alfabetização — Depois percebi que esse
e kits semanais de livros que modelo se esgotou: as biblio-
acalmavam minhas noites e tecas passaram a ter donos
deixavam meus pais dormir. que queriam regular tudo. Sa-
Ela me levava ao Caiçaras e di- be aquela coisa de microfísica
zia que eu podia brincar e en- do poder, de que Foucault fa-
trar na piscina, mesmo que os lava? É verdade mesmo. Quem
outros negros como eu fossem tem que montar biblioteca é o
funcionários do clube. Isso me governo. Então, adotamos o
deu muita coragem e fé. modelo de Pontos de Liberta-
Na contramão da cidade ção dos Livros: distribuímos
partida, essa ponte São Gonça- exemplares em juizados crimi-
lo-Leblon e a companhia dos nais, lares, UPAs, comunida-
livros fariam de João, já mais des. A população vai lá, apa-
crescidinho, um contador de nha o livro, devolve se quiser,
histórias mirim que entretinha se não quiser guarda, quando
as famílias do lado de lá e de termina a gente manda mais.
cá. E também lhe deram alen- O cara está internado com
O CORUJÃO em seu atual endereço, às terça-feiras, em Ipanema ANIMADOR DE Cieps nos anos 80, João já doou 200 mil livros
to, na puberdade, para enfren- uma crise de pressão alta, pe-
“ “
tar outros percalços: ga um livro, a pressão melho-
— Quando me dei conta de ra, ele tem alta, leva o livro, ou
que não gostava de meninas, piora, pega outro. Ninguém é
os livros já tinham me permi- dono, o livro é livre.
tido uma inserção no mundo Está na hora de partir. Num
masculino: os garotos me res- rompante, João, que não é au-
peitavam por eu ser um cara tor, só leitor, recorda que, pela
cabeça. Fui enfrentando a bar- manhã, ou melhor, à tarde —
ra assim. Também diante dos pois não acorda antes de 14h
meus pais: sou filho do amor, Quando me dei conta de que não gostava Obedeci e segui versejando, até que uma —, abrira a janela para ver o
mas é claro que, casados com
mais de 30 anos, se pudessem
de meninas, os livros já tinham me estrofe terminou em grito de dor, apesar céu e avistara um bougainville
desfolhado, só com os cachos
escolher, prefeririam um filho permitido uma inserção no mundo da anestesia. Escutei um aplauso: os de flor. Ficou pensando que as
hétero. Até troquei de mal com pessoas, todas, tinham que
meu pai um tempo por causa masculino: os garotos me respeitavam alunos do lado de fora do aquário ver aquilo, e lamentou: os que
das minhas roupas coloridas.
Mas ele tinha orgulho de mi-
por eu ser um cara cabeça. Fui constatavam que a cabeça da infecção passam lá embaixo não têm,
nem jamais terão, acesso a es-
nha vida escolar, dos parabéns enfrentando a barra assim. havia sido localizada. se ângulo. ■