O documento discute as teorias de Freud e Marx sobre necessidade e desejo. Apesar de abordarem o tema a partir de perspectivas diferentes, as teorias de ambos podem se complementar. Freud diferencia necessidades biológicas e desejo sexual, enquanto Marx não faz essa distinção. A teoria freudiana do desejo pode enriquecer a teoria marxista da necessidade ao reconhecer o papel do imaginário e simbólico na satisfação humana.
Necessidade e desejo um dialogo entre freud e marx ricardo jardim andrade
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Necessidade e Desejo: Um diálogo entre Freud e Marx
Por Ricardo Jardim Andrade
“Desejar é o âmago de nosso ser”, declara Freud numa
de suas obras mais importantes: A interpretação dos
sonhos. Marx, por sua vez, afirma em A ideologia alemã,
ensaio que escreveu em parceria com Engels: “O primeiro
fato histórico é a produção dos meios que permitem a
satisfação das necessidades *humanas+”. Freud teorizou o
desejo e Marx a necessidade, procurando cada um deles
determinar, a partir de horizontes distintos, o que
poderíamos denominar, na esteira de F. Tinland,
“diferença antropológica”. Em que medida estes dois
enfoques da realidade humana se complementam e se
diferenciam? É possível conciliar Marx e Freud ou, antes,
suas perspectivas teóricas divergem fundamentalmente?
É o que discutiremos a seguir.
Freud sempre teve a preocupação de oferecer às
suas investigações e descobertas clínicas um arcabouço
conceptual. Seu projeto era construir um novo campo de
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inteligibilidade para os fenômenos e processos psíquicos
com base na observação clínica das neuroses e dos
sonhos. Surgiu, assim, o que ele próprio denominou
“metapsicologia”, vale dizer, a teoria psicanalítica. Trata-
se do estudo do psiquismo – ou, da alma (Seele) humana,
para empregarmos, como nos mostrou B. Bettelheim, um
termo usado e valorizado pelo próprio Freud – sob tríplice
ponto de vista, a saber, o tópico, que recorre à metáfora
do lugar psíquico (sistemas inconsciente e pré-
consciente/consciente, na primeira tópica; as instâncias
do id, ego e superego, na segunda tópica); o ponto de
vista econômico, que emprega a metáfora da energia
psíquica e dos investimentos energéticos
(desinvestimento, contrainvestimento e
superinvestimento); e, finalmente, o ponto de vista
dinâmico, que corresponde à metáfora do conflito
psíquico, cuja base é sempre de ordem pulsional (pulsões
sexuais versus pulsões de autoconservação ou do ego, na
primeira classificação; pulsões de vida versus pulsões de
morte, na segunda classificação).
Freud, contudo, não se limitou à investigação dos
fenômenos clínicos e à elaboração de uma teoria
complexa para explicar os fenômenos e processos
psíquicos, mas procurou aplicar os modelos
metapsicológicos no campo da cultura. O mesmo desejo
que dinamiza o “aparelho psíquico” e produz sonhos,
sintomas e atos falhos sustenta as mais elevadas criações
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humanas, no plano da arte, da moral, da ciência, da
filosofia e da religião. A interpretação da cultura, porém,
é mais do que uma psicanálise aplicada, pois a própria
metapsicologia foi modificada sob o impacto do dado não
clínico. Com efeito, nem a segunda tópica, nem a segunda
classificação das pulsões seriam viáveis se a atenção de
Freud não tivesse se desviado do recalcado para a
instância que recalca, do desejo para a autoridade, da
clínica para a cultura.
Tendo em vista o objetivo da presente exposição,
vou deter-me na primeira classificação das pulsões, para
estabelecer um confronto entre a teoria freudiana do
desejo e a teoria marxista da necessidade. Freud, na fase
inicial de seu percurso teórico, distingue explicitamente a
ordem biológica, correspondente às necessidades vitais
(comer, beber, dormir etc.) da ordem sexual,
correspondente ao desejo. Enquanto as pulsões de
autoconservação (necessidades vitais) possuem fontes
(sua base somática), objetos (as coisas que levam à
satisfação) e objetivos (as satisfações provocadas pelos
objetos correspondentes) fixos, as pulsões sexuais são, no
dizer de Freud, “plásticas”, quer dizer, mudam de fontes,
objetos e objetivos[1]. Em relação à fome, sede, micção,
respiração etc., ou seja, a tudo o que concerne à
autoconservação, a única solução possível para reduzir as
tensões do organismo, que provocam insatisfação, é a
realização de certos “atos específicos”, mediante os quais
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se obtém diretamente, sem qualquer mediação e sem
demora excessiva, a satisfação. Não há como eliminar
fome e sede senão pela ingestão de líquidos e de
refeições sólidas (objetos reais e predeterminados) e não
se pode protelar excessivamente o apaziguamento – logo,
no entender de Freud, a satisfação – de tais excitações
(objetivos imediatos), bem localizadas no organismo
(fontes fixas), sem que o indivíduo corra risco de morte
(por isto, falamos de necessidades vitais). O mesmo,
porém, não ocorre em relação à sexualidade. Suas fontes
(zonas erógenas), como demonstrou Freud com a sua
teoria da libido, situam-se em diversas partes do corpo
[2], seus objetos são flexíveis e mutáveis[3] e seus
objetivos, proteláveis. Por isto Freud se refere, como já
foi lembrado, à “plasticidade” das pulsões sexuais. A
plasticidade é de tal ordem que permite até a sublimação
(mudança de objetos e objetivos pulsionais) e o amor
inibido quanto à finalidade (mudança apenas de objetivo
pulsional)[4], ou seja, o prazer sexual humano, como na
sublimação da química, pode mudar de estado,
transformando-se de satisfação genital em prazer
sociocultural. Freud aproxima, portanto, a sublimação
química do sublime estético. Quando a libido se converte
em Eros, a pulsão sexual se transforma em “pulsão
social”, segundo a expressão do próprio Freud. Pode-se
dizer, portanto, que todos os que se dedicam à criação
artística, filosófica e cientifica possuem uma vida sexual
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intensa, pois a energia que mobiliza tais atividades é
sempre a libido e o prazer alcançado desta forma é de
natureza sexual, já que a sexualidade humana ultrapassa
em muito o nível genital. “O destino pouco pode fazer
contra aqueles que se dedicam à sublimação estética”,
declara Freud em Mal estar na civilização. “A obra de arte
é ao mesmo tempo o sintoma e a cura”, afirma, por sua
vez, P. Ricoeur, como intérprete do discurso freudiano.
Convém lembrar que esta leitura de Freud, apenas
esboçada acima, foi realizada por grandes teóricos
franceses, em particular J. Lacan, J. Laplanche e J. B.
Pontalis e, ainda, pelo filósofo P. Ricoeur, que acabo de
citar. Estes pesquisadores ressaltaram, também, a noção
freudiana de “apoio”, segundo a qual a sexualidade
humana se apoia na ordem vital ou biológica, para se
manifestar. Vale dizer, ela só pode emergir a partir do
que não é sexual[5]. Nada mais equivocado, portanto, do
que a crítica, tantas vezes dirigida a Freud, de que a sua
teoria do inconsciente reduz toda a existência humana à
sexualidade (o suposto “pansexualismo” do discurso
freudiano).
Os objetos das necessidades (pulsões de
autoconservação) são reais e produzem satisfação; já os
objetos do desejo são irreais (imaginários e simbólicos) e
provocam prazer. A sexualidade humana, ressalte-se,
pertence às duas ordens, vale dizer, é simultaneamente
necessidade e desejo. Por isto, pode ser fonte tanto de
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satisfação como de prazer. Convém mencionar outro
ponto importante da teoria freudiana da libido: a
satisfação das necessidades é claramente limitada, ou
seja, ultrapassando certo nível, deixa de ser satisfação,
para se tornar insatisfação (como se diz à mesa: “estou
satisfeito: não aguento comer mais nada”). Já o desejo
nunca é plenamente realizado. Como mostrou Lacan, ele
emerge com a perda da mãe, ou mais precisamente, no
momento em que o pai, representante da Lei, porta-voz
da cultura, castra a relação simbiótica da criança com a
mãe – o famoso “complexo de Édipo” -, levando-a a
buscar incessantemente substitutos simbólicos do objeto
perdido. O novo objeto se torna representante (ou
significante) do objeto perdido, vale dizer, significa ou
simboliza este objeto. A perda dolorosa da mãe é a
condição de possibilidade de emergência da cultura, é o
que faculta ao homem a inserção na ordem simbólica. O
símbolo é o elemento chave da cultura. Esta, com efeito,
pode ser definida, segundo a célebre fórmula de Cl. Lévi-
Strauss, como “um conjunto de sistemas simbólicos”. O
homem é este ser radicalmente inconcluso, sempre
insatisfeito consigo mesmo, sempre a procura de “algo”
mais. O fundamento da existência humana não é “logos”,
como afirma a metafísica ocidental, mas “Eros”: o desejo.
Este, no dizer de Lacan, é falta e é enquanto falta que
humaniza o homem, introduzindo-o na ordem simbólica.
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Temos de convir com Sófocles: “De todas as coisas
extraordinárias, a mais extraordinária é o homem”.
Marx, como Freud, não concebe o fundamento da
existência como “logos”. A razão não é primeira, mas
segunda. De fato, ele define o homem pelo trabalho. O
primeiro fato histórico, que distingue os homens dos
animais, não é o fato de pensar, como sustenta a
metafísica ocidental, mas o de produzir os seus próprios
meios (ou instrumentos) de subsistência.
Originariamente, o pensamento vinculava-se, portanto, à
criação de instrumentos para satisfação das necessidades
humanas. Enquanto animal, o homem é um feixe de
necessidades, no núcleo das quais se encontram as
necessidades biológicas: comer, dormir, reproduzir etc.
Contudo, diferentemente dos animais, o homem não
satisfaz suas necessidades diretamente, mas pela
mediação de instrumentos[6]. Não nos alimentamos pura
e simplesmente, como os animais, mas utilizamos
talheres e vasilhas para nos nutrirmos e, a certo
momento de nossa história, inventamos o fogo para
transformar o cru em cozido. Mesmo para satisfazer a
necessidade de dormir utilizamos instrumentos, como,
por exemplo, pijama, rede, cama, ar refrigerado, sem
falar do quarto (ou do recinto). Marx, como se vê, enraíza
a razão na ação (práxis). Contudo, ele não distingue,
como Freud, a ordem vital (necessidades biológicas) da
ordem sexual (desejo). Embora seu conceito de
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necessidade seja, como insiste Agnes Heller no seu ensaio
sobre o assunto, extremamente sofisticado, Marx não
diferencia desejo e necessidade, prazer e satisfação. Esta
distinção, ao que parece, pode enriquecer
consideravelmente o discurso marxista, assim como os
temas acima mencionados e outros deste discurso, em
particular a teoria marxista da ideologia, podem
contribuir para um melhor entendimento do freudismo.
Quando, por exemplo, o fundador da psicanálise se refere
em Mal-estar na civilização à “natural aversão do homem
pelo trabalho” e, em outro momento deste mesmo
ensaio, lamenta que a sublimação seja um recurso
disponível apenas para uma minoria, seus discípulos,
instruídos pelos ensinamentos de Marx, devem denunciar
os elementos ideológicos de tais afirmações.
Voltemos à teoria freudiana, enquanto apta a
complementar o enfoque marxista do homem. O apoio
da ordem sexual na ordem vital, estudado por Freud na
sua primeira classificação das pulsões, permite entender
a projeção permanente, peculiar à condição humana, do
imaginário e do simbólico sobre a satisfação das
necessidades. Enquanto animais, alimentamo-nos;
enquanto seres humanos, porém, complexificamos as
nossas refeições com inúmeros rituais, alguns
extremamente requintados, como, por exemplo, o
banquete. O mesmo se pode dizer da satisfação de todas
as outras necessidades (vestir, dormir, tomar banho etc.).
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Articulamos a satisfação das necessidades com o prazer
alcançado pela realização de nossos desejos. Não é a
mesma coisa tomar um vinho de safra especial num copo
de plástico – que horror! – ou numa taça de cristal – que
maravilha! A satisfação é a mesma, mas o prazer muda
completamente num caso e noutro. Na verdade, não é
qualquer instrumento que nos interessa, mas aquele que
além de útil possui uma forma esteticamente agradável,
ou seja, que corresponda a nossos desejos. Daí não ser
possível ao homem, na satisfação de suas necessidades,
privar-se de certo luxo e sofisticação, sem correr o risco
de se desumanizar. Nem todo luxo é lixo, embora isto
ocorra frequentemente. A ironia do Joãozinho 30 a certa
militância de esquerda, não muito esclarecida, é
perfeitamente legítima: “Quem gosta de pobreza é
intelectual; pobre gosta de luxo”. Pobre e todo ser
humano que assume, sem culpa de classe injustificada,
sua humanidade e seu erotismo criador (no sentido
amplo que Freud atribuiu ao termo “Eros”). Destas duas
ordens – biológica e sexual –, sem dúvida é a segunda que
distingue os homens dos animais. “Viver não é preciso,
navegar é preciso”.
Marx, pensador pelo qual tenho grande admiração,
não distingue as duas ordens. Daí a conveniência de
completar a sua teoria da necessidade – e o seu
importantíssimo e atualíssimo conceito de alienação,
ligado a esta teoria, além da sua noção de ideologia, já
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mencionada – com a teoria freudiana do desejo. Afinal,
“nem só de pão vive o homem”.
[1] Freud distingue instinto (Instinkt) de pulsão (Trieb). O
primeiro termo designa uma herança genética que
permite a uma espécie animal adaptar-se rígida e
mecanicamente ao meio físico e natural. Trieb , ao
contrário, não se refere a um comportamento
preestabelecido, específico e hereditário. Freud emprega
este termo, sobretudo, para caracterizar a grande
plasticidade da sexualidade humana, o que a diferencia
essencialmente da sexualidade animal. Enquanto esta é
instintiva e, por isto mesmo, rígida, aquela muda, como
estamos analisando, de fontes, objetos e objetivos ao
longo da nossa história pessoal. A libido percorre todo o
nosso corpo (fases oral, anal, fálica) até alcançar, apenas
na puberdade, a fase genital.
[2] Freud emprega, inclusive, a expressão “corpo
erógeno”, já que o corpo inteiro pode ser fonte de prazer
sexual.
[3] O primeiro objeto de amor – ou objeto libidinal – de
todo ser humano é a própria mãe, que é abandonado na
situação edipiana, pela interferência paterna. A escolha
definitiva de objeto (por exemplo, uma escolha
heterossexual ou homossexual) só ocorre na puberdade,
ou melhor, na fase genital.
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[4] É com esta noção que Freud explica a ternura e os
vínculos sociais. Nas relações familiares, por exemplo, o
objeto da libido é o mesmo (mãe, pai ou irmãos), mas o
objetivo sexual é “freado” e se transforma em ternura ou
amizade. É assim que Freud explica, também, a formação
dos vínculos sociais necessários à transformação da
natureza pelo trabalho. Curiosamente, ele apresenta
como modelo do amor inibido quanto ao objetivo a figura
de Francisco de Assis.
[5] Daí J. Laplanche afirmar que “a pulsão sexual é
estruturalmente perversa”, ou seja, desviante em relação
à ordem vital ou biológica.
[6] É o que mostra, de modo admirável, o início do filme
“2001, uma odisseia no espaço” de Stanley Kubrick.