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1
Archer Quest
Autor: Klaus de Paula Schneesche
2
Todos os mundos têm uma história, e todas as histórias merecem ser contadas,
vistas e vividas. Dedico, então, esse livro aos milhares de mundos que existem. Aos que
ainda estão invisíveis, e esperam as palavras de um autor para que venham a nós. Aos
que já estão entre nós, e nos encantam e maravilham. E aos que ainda virão a existir.
3
Agradecimentos
A todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para meu
crescimento moral, intelectual e espiritual;
A meus pais, verdadeiros guerreiros, por me darem meus maiores
tesouros;
A Flaubert, por ler antes de todos e me dar suas valiosas opiniões, que
tanto contribuíram e ajudaram na evolução do livro;
E ao leitor, pelo voto de confiança;
Muito obrigado.
4
Sumário
Agradecimentos............................................................................................................... 3
Sumário ........................................................................................................................... 4
Prologo ............................................................................................................................ 5
Capitulo Um .................................................................................................................... 8
Capitulo Dois ................................................................................................................ 10
Capitulo Três............................................................................................................... 12
Capitulo Quatro........................................................................................................... 14
Capitulo Cinco............................................................................................................... 16
Capitulo Seis ................................................................................................................. 20
Capitulo Sete ................................................................................................................ 23
Capitulo Oito ................................................................................................................ 27
Capitulo Nove ............................................................................................................... 30
Capitulo Dez................................................................................................................. 42
Capitulo Onze ............................................................................................................... 44
Capitulo Doze............................................................................................................... 47
Capitulo Treze............................................................................................................. 51
Capitulo Catorze ......................................................................................................... 55
Capitulo Quinze ............................................................................................................ 59
Capitulo Dezesseis........................................................................................................ 65
Capitulo Dezessete....................................................................................................... 69
Capitulo Dezoito.......................................................................................................... 78
Capitulo Dezenove........................................................................................................ 86
Capitulo Vinte.............................................................................................................. 91
Capitulo Vinte e Um ..................................................................................................... 96
Capitulo Vinte e Dois................................................................................................. 103
Capitulo Vinte e Tres................................................................................................ 107
Capitulo Vinte e Quatro............................................................................................ 117
Epilogo......................................................................................................................... 137
5
Prologo
O homem olhou para frente fixamente, com o capuz de seu negro manto
encobrindo completamente seu rosto. Seus olhos, com grandes írises vermelhas,
brilhavam maliciosos e frios. A escuridão predominava no recinto, com apenas
uma fonte de luz dissipando-a. O homem começou a caminhar na direção da
luz, lenta e firmemente.
- Como está o ritual? – perguntou ele, com sua voz fria ecoando alta pela
sala.
- Pronto, meu amigo. Apenas precisamos de você para fechar o círculo -
respondeu um vulto alto e magro à sua direita.
- Então, completemos a cerimônia – decidiu ele, dando as mãos para o
segundo homem que falara e para um ser baixo e atarracado à sua esquerda. O
homem fechou seus olhos vermelhos e concentrou-se. Quando falou
novamente, sua voz estava diferente. Mais grave e poderosa. – Aqui selamos
esta poderosa arma para que apenas a pessoa mais digna de possuí-la consiga
retira-la de seu túmulo. Nós, representantes de todas as raças, nos reunimos
para realizar a Jura de Vida que selará o objeto.
- Eu sou Ja-Fis, dos anões – disse o vulto atarracado à esquerda do homem.
- Sou Aelry, dos orcs – gritou um vulto grande e fedorento, a esquerda do
anão.
- Meu nome é Kethel, dos halflings. – sussurrou um vulto baixo a esquerda
do orc.
- Rial Ruil, dos elfos – disse o vulto alto e magro à direita do homem que
falara primeiro.
- Cael Kash, dos humanos – falou o homem. Ao som de seu nome, uma luz
dourada nasceu no centro do círculo e se expandiu, englobando toda a sala. A
inconsciência de quase todos foi imediata.
- Então, a última arma foi selada – sussurrou Cael Kash, caindo de bruços
no chão e morrendo.
6
7
8
Capitulo Um
Corash acordou sobressaltado. Ele tivera um sonho muito estranho.
Algumas pessoas meio macabras estavam fazendo um ritual estranho. E havia
uma arma envolvida...
Talvez uma apresentação seja útil a essa altura. Corash Lam era um típico
elfo, alto e esguio. Sua pele era pálida, e seu cabelo castanho curto era
arrepiado.
Vindo de uma tradicional família de mercadores, Corash foi o primeiro
Lam a treinar para se tornar um guerreiro da vila. Mesmo enfrentando muito
preconceito por parte de seus pais e irmãos, ele conseguiu, por mérito próprio,
entrar no Esquadrão de Arquearia do exército. Mas ele ainda era apenas um
aprendiz, o que significava que ele não poderia combater junto aos formados,
sob pena de morte. Só que a vila precisava, agora mais que nunca, de guerreiros
qualificados, pois uma guerra contra orcs ameaçava todo o Reino de Lynzea, e a
vila de Sparon era o primeiro obstáculo do exército seguinte. E o exército de
Sparon necessitava urgentemente de combatentes para a guerra. Caso contrario,
todo o reino de Lynzea poderia ser esmagado.
Enquanto pensava nisso, Corash ouviu uma batida na porta.
- Entre! – disse ele – Ah!, olá, Mahslia. Como vai?
- Oi, Corash. Eu estou bem, e você? – disse a elfa, inclinando-se para beijar
Corash no rosto. Mahslia era uma bonita elfa, com cabelos ruivos presos em um
rabo de cavalo comprido. Ela parecia ser delicada e meiga. Coisa que,
realmente, ela era. O que não significava que ela era fraca. Pois Mahslia era uma
das melhores aprendizes de maga de toda a vila.
- Eu estou bem, Ma, mas eu tive um sonho realmente estranho.
- Como foi? – perguntou a amiga, solícita. Os sonhos de Corash eram
realmente incríveis. Eram quase que um oráculo para ela.
- Ah, um círculo de pessoas estava selando uma arma dourada. Mas não
pode ser de verdade, não é?
- Pode sim, Co, pode sim. Mas não se preocupe com eles. Preocupe-se em
treinar para se formar rapidamente.
Corash não respondeu. Ele queria, mas não tinha respostas para a amiga.
Afinal, alguma vozinha insistente no fundo de sua cabeça dizia
9
incessantemente que a arma seria vital para a sobrevivência da vila, e que a
mesma arma vital estava na Montanha Selque, gigante e impenetrável.
10
Capitulo Dois
Era meio-dia quando o sino da vila tocou, chamando todos os cidadãos
para uma reunião.
- Como todos devem saber, nossa vila está em mortal perigo. – O autor
desta frase foi o líder da vila, Nisual – E estou convocando a todos, pois creio
que ninguém deve ficar calado. Alguém tem algum plano?
- Líder, eu bolei um, que acho que deverá servir. Por que não plantamos
armadilhas pelo campo de batalha? Poderemos, assim, dizimar parte do
exército inimigo sem que eles ao menos possam revidar. – disse um elfo de voz
fria e estatura grande.
- Excelente, mesmo. Todos os melhores alquimistas e magos, já podem
começar. Mais alguém?
- Líder – disse Corash – eu tive um sonho hoje, sobre uma arma
muitíssimo poderosa. Talvez algum de nós possa sair numa missão para
recuperá-la?
- Corash, todos sabemos que seus sonhos são proféticos, – riu Nisual – mas
você quer mesmo que nós acreditemos que uma arma, apenas uma, poderá
salvar nossa vila? Pelo amor dos deuses!
Corash silenciou, e ele sentiu o olhar de Mahslia em sua nuca. Mas havia
mais alguém o olhando com interesse. Ele só não sabia quem.
Corash estava terminando de desenhar algo em um pergaminho, quando
Mahslia entrou em seu quarto.
- Corash! Eu te disse para esquecer esta arma!
- Desculpe-me, Mahslia, mas esta arma vai nos ajudar, eu tenho certeza. E
eu vou em busca dela, querendo você ou não!
- Onde você está pretendendo ir, posso saber?
- À Montanha Selque, e você não vai junto comigo – acrescentou ele,
captando o olhar da amiga.
- Ah, eu vou sim. E, mesmo eu não acreditando nessa missão, você precisa
de mim. Afinal, quem irá te proteger?
- Engraçadinha. Você não vai, não. Você está muito perto de se formar, eu
não posso deixá-la ir e perder a formatura.
11
- Formatura? Isso só serve para participar do exército! Eu vou com você,
“querendo você ou não”. Assunto encerrado.
- Que seja, Mahslia, mas qualquer coisa que acontecer com você é de
inteira responsabilidade sua. Entendido?
- Tudo bem, Co. Quando nós partimos?
- Assim que você arrumar a sua mochila com cordas, comida, cantis com
água e um pouco de dinheiro. E não esqueça seu cajado!
- Muito bem, eu não me esquecerei. Dê-me meia hora e nós nos
encontramos no portal sul da cidade. Pode ser?
- Feito. Agora, apresse-se, pois eu quero começar esta jornada o quanto
antes.
Mal sabiam os dois amigos que havia uma terceira pessoa escutando sua
conversa pela janela.
Corash olhava para a sombra do relógio de sol da cidade, impaciente.
Mahslia estava atrasada.
- Co! Cheguei! – disse uma Mahslia ofegante.
- Aleluia, garota! Você demorou duas horas a mais que o previsto!
- Desculpe. Eu tive que me livrar dos meus pais. E você, como chegou aqui
no horário? – disse a garota, na defensiva.
- Você conhece meus pais. Eles me acham um fracassado, não ligam se eu
ficar fora até tarde. – respondeu o garoto, irritado.
- Co, desculpe! Eu... – começou a garota
- Deixa pra lá, ok? Vamos logo começar, quanto antes nós começarmos,
antes acabaremos.
- E onde vocês pensam que estão indo? – perguntou uma voz fria
12
Capitulo Três
Corash se virou violentamente, e viu o elfo grande e frio que sugerira o
primeiro plano de batalha.
- O que você quer? – perguntou ele ao outro elfo, rudemente.
- Eu? Eu quero acompanhá-los. Eu não agüento mais essa vidinha pacata
do vilarejo.
- Nós nem sabemos quem é você! Como quer que confiemos em você? –
perguntou Mahslia.
- Meu nome é Avalas, ao seu dispor. E não, vocês não podem confiar em
mim. E a maior prova disso é que, se vocês não me deixarem acompanhá-los, eu
poderia “deixar escapar” para o Nisual que vocês saíram da vila sem a
permissão dele. E acho que ele não vai ficar muito feliz. Em compensação, se
vocês me deixarem ir com vocês, o Nisual irá achar que vocês foram até a
capital do reino buscar uma caravana de guerreiros, graças a um bilhetinho que
eu plantei para despistá-lo. Vocês decidem.
Corash pensou seriamente nisso. Talvez ter outra cabeça no time fosse
bom, mas eles não conheciam o tal Avalas. Corash já o havia visto com várias
garotas diferentes, mas era apenas isso que ele conhecia.
- Qual é a sua arma? – perguntou o aprendiz de arqueiro, desconfiado.
- Eu uso espadas. Mas sou apenas um aprendiz.
- E como você quer acompanhar-nos sem conhecer a fundo os segredos da
sua arma? – blefou Mahslia. Para a surpresa da elfa, o estranho sorriu.
- Do mesmo jeito que vocês, aprendizes, eu também tenho o direito de não
conhecer minha arma tão bem quanto os mestres. Ou não?
Mahslia enrubesceu e se calou. Corash ainda avaliava Avalas abertamente.
- Venha conosco então, Avalas. Mas você está desarmado. Como pretende
se defender de monstros? Apenas com os punhos?
- Quem disse que eu estou desarmado? – perguntou o gigante, virando-se
de costas. Ali, presa pelo cinto do elfo, havia uma bainha, que continha uma
espada grande, escondida por suas enormes costas. – Eu nunca ando
desarmado... qual é mesmo seu nome?
- Corash.
13
- Eu nunca ando desarmado, Corash. – repetiu ele, virando-se para os
companheiros. – Ao contrário de vocês, eu sou precavido – disse ele, mostrando
uma mochila que até agora passara despercebida pelos amigos.
- Ótimo. Estamos prontos, então. Vamos. – decidiu Corash. Ele virou-se
para o portão e saiu da vila, com seus companheiros às suas costas.
14
Capitulo Quatro
Avalas não era um companheiro alegre, nem mesmo sorridente ou
animador. Parecia apenas um gigante emudecido, perdido em seus
pensamentos. Enquanto Mahslia e Corash aproveitavam a liberdade recém
conquistada com piadas, palavras e sorrisos, Avalas apenas olhava os novos
companheiros.
A história de vida do grande elfo parecia um livro. Nascera, para logo ser
abandonado por sua mãe. Seu pai, um elfo beberrão e despreocupado, entregou
o bebê para um orfanato assim que soube. Não queria a criança.
Com mais idade, Avalas percebera que não era igual as crianças do
orfanato. Ele era maior e mais forte. Até seu físico robusto destoava do físico
normal dos elfos. Por causa disso, aos treze anos ele se candidatou a aprendiz
do Exército de Lynzea. Quando o recrutador do exército viu sua altura
impressionante e seus ombros largos, aceitou-o imediatamente no esquadrão
dos espadachins. O recrutador nunca se arrependeu de sua escolha.
Com quinze anos, Avalas entrou no grupo dos formandos espadachins,
três anos mais cedo que o normal para quem começava com treze anos.
Conhecia centenas de técnicas, era o mais alto e mais forte entre os elfos e tinha
uma grande inteligência, fruto de muitas noites perdidas em nome do estudo.
Seus treinadores estavam orgulhosos: Avalas era o garoto modelo da academia!
O que eles não esperavam era que o grande elfo, um gigante
aparentemente manso, fosse capaz de se rebelar. Ele estava cansado da sujeira
política que era essa história do Exército de Lynzea. Seus esforços solitários, em
busca de técnicas de guerra e conhecimentos estratégicos de nada valiam?
Foram os professores que ensinaram isso? Não!
Assim, na calada da noite, enquanto seus instrutores e mentores dormiam,
ele pegou sua espada e, silencioso como um sussurro, matou todos os altos
generais, limpou o sangue da espada e voltou a dormir, com a consciência mais
leve.
O único porém é alguém havia visto ele levantar. Este alguém avisou um
professor, que avisou o novo general. Este, por sua vez, avisou o rei de Lynzea
que resolveu expulsar Avalas da capital do reino e mandá-lo para Sparon, sob o
pretexto de “colocá-lo em posição estratégica, em um lugar que o clima seja
15
bom para seu temperamento e que ele possa esvaziar sua ira sem matar
pessoas.”. Essa, claro, era a versão oficial da história.
A vida calma na pequena vila de Sparon irritava Avalas. Ele nascera para a
grandiosidade, e não para uma pequena vila de aldeões simplórios. Assim que
a primeira oportunidade de sair do marasmo que era Sparon e ir a alguma
aventura apareceu, o grande elfo agarrou-a com unhas e dentes. Seria perfeito,
não fosse Corash e Mahslia. Que haviam parado e estavam discutindo alguma
coisa.
- ...temos que ir para a direita, Mahslia! – exclamava Corash. – Só assim
chegaremos rapidamente à Montanha Selque!
- Não, Co! Temos que dar a volta, indo pela esquerda! Se formos pela
direita, inevitavelmente passaremos pelas Dunas Congeladas! Certo, Avalas? –
retrucou Mahslia, surpreendendo o grande elfo com sua pergunta.
- Acho que sim. É melhor evitarmos as Dunas Congeladas, pois não
viemos preparados para encará-las. Além disso, elas são imensas, o que
significa que poderemos nos perder nelas facilmente. Melhor não arriscarmos e
irmos pela esquerda. – ponderou Avalas, sensatamente.
- Ótimo. Demoraremos mais um dia para chegar na montanha Selque. Um
dia em que Sparon pode ser destruída – respondeu Corash, amargamente.
- Não seja tolo, Corash. Nenhuma vila é destruída em um único dia, ainda
mais uma vila com tantos guerreiros como Sparon. Um dia não fará diferença. –
sentenciou Avalas.
Corash resmungou alguma coisa ininteligível e calou-se, seguindo os
companheiros pelo caminho da esquerda.
16
Capitulo Cinco
Corash e seus companheiros já estavam caminhando há cinco horas. Os
sorrisos e brincadeiras entre ele e Mahslia haviam cessado, e só o que havia
entre os três era um silêncio cansado. Apesar disso, eles prosseguiam.
- Que som é esse? - perguntou Avalas, quebrando o silêncio e apurando os
ouvidos.
Realmente, um som abafado e ritmado chegava às orelhas pontudas dos
companheiros.
- Parece... – começou Corash
- Cavalos!!! Para a mata, rápido! – gritou Avalas, descontrolado,
empurrando os companheiros para dentro da mata fechada e pulando atrás
deles.
- Você ficou louco?! – berrou Corash, assustado. – Por que você...- tentou
continuar ele, antes que a manzorra de Avalas tapasse sua boca.
- Fale baixo, idiota! Esse som é de cavalo. Apenas o rei e sua comitiva real
possuem cavalos.
- E por que não podemos falar com o rei sobre nossa missão?! – perguntou
Mahslia – Tenho certeza que ele nos apoiará. Talvez ele até nos mande reforços!
- Apenas nos seus sonhos delirantes, Mahslia – respondeu Corash,
desvencilhando-se de Avalas. – É mais provável que o rei nos capture e nos
torture até falarmos tudo o que sabemos.
- Além disso, o rei não gosta muito de mim. – ajuntou Avalas,
concordando com Corash.
- E alguém gosta, Avalas? – perguntou uma voz cruel e cortante,
colocando uma espada no pescoço do grande elfo. Corash e Mahslia,
subitamente, foram dominados por dois elfos surgidos do meio da mata. –
Vocês vêm comigo. Com o que vocês sabem, minha vida está garantida.
Os três companheiros foram vendados e amarrados antes de começarem a
andar. Suas armas e mochilas foram entregues para o rei, que, ao invés de
torturá-los, colocou-os presos a cavalos, que por sua vez estavam amarrados a
outros cavalos. Onde a comitiva fosse, eles iriam atrás.
17
- Ora, Avalas, há quanto tempo!!! Você aparenta ter dobrado de tamanho!
– disse o rei, pomposo
- E você parece ter dobrado seu vocabulário almofadinhas ridículo. –
cuspiu Avalas, com desprezo.
- Avalas, seja razoável! Nós não podemos esquecer os erros do passado e
nos concentrarmos no futuro? Sabe, uma guerra eclodirá logo, e eu não gostaria
de correr o risco de morrer sabendo que alguém não perdoou os meus erros. –
disse o rei, eloquentemente, sendo aplaudido pela comitiva.
- Se a sua preocupação se estendesse a qualquer pessoa do reino que não
pode te dar qualquer vantagem, ela seria tocante. Acontece que eu não sou
burro para acreditar que você se preocupe com qualquer um que não você. –
retrucou o grande elfo, astuto.
- Avalas, você está passando dos limites! – sibilou Mahslia.
- Silêncio, sua tola. Não meta seu nariz onde não foi convidada. –
repreendeu o rei, encarando o grande elfo abertamente. – Sabe, Avalas, você
merece a morte. Mas...
- Mas você sabe que você não conseguiria me matar se eu estivesse com
minha espada e não estivesse preso! – gritou o espadachim, corando de raiva.
- Não, meu pequeno súdito. – disse o rei, com um traço de irritação na voz
– Mas vocês três darão excelentes gladiadores. A Arena precisa de pessoas
como vocês.
Uma espada, um cajado, um arco e uma aljava com flechas foi tudo que
deram aos companheiros. Todas as armas eram toscas e vagabundas. Estava
claro que o rei não queria ver os três amigos vivos. Eles estavam em uma cela
minúscula de pedra, com uma porta de ferro maciço que só tinha uma
portinhola para a comida.
- E agora? – perguntou Mahslia, desesperada. Ela nunca estivera presa
antes.
- Não adianta tentarmos fugir – respondeu Avalas, calmo. – Essas grades
são, provavelmente, reforçadas com alquimia, e não magia. Reparem que eles
deram um cajado para Mahslia, sem medo de suas magias. E também nos
deram armas, o que significa que brutalidade não adiantará aqui.
Os argumentos de Avalas eram coerentes, então não foram contestados.
Os três ficaram em silêncio, até que um guarda os chamou.
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- Venham cá, cães sarnentos! – gritou o guarda, prendendo os pulsos dos
amigos e tirando-os da cela. – Andem por este corredor até o final! Vocês estão
sendo convocados para lutar! E não tentem nada! Eu tenho uma lança, e até hoje
eu nunca errei um alvo!
Os companheiros se entreolharam. Se estivessem com as mãos livres, eles
certamente poderiam dominar o guarda, mas... Era melhor não arriscar a vida
algemados.
- E agora, Avalas? – sussurrou Corash, por entre os dentes.
- Lutamos por nossas vidas, o que você esperava? Não temos outra opção:
ou lutamos ou morremos. E eu prefiro lutar. – retrucou o grande elfo.
Eles continuaram por um grande túnel escuro e saíram para a arena.
O chão redondo da arena era de terra batida. Uma grande multidão
urrava, olhando para os novos gladiadores com sede de sangue. Do ponto mais
privilegiado dos assentos, um camarote dourado era ostentado. O rei e seus
compinchas. As pedras que foram usadas na construção da arena eram negras e
lisas. Impossíveis de escalar.
Do outro lado de onde os companheiros estavam, um portão de ferro
fechado escondia o inimigo deles.
Enquanto esperavam o inimigo, Avalas começou a passar a mão nas
pedras e pisar mais forte que de costume.
- O que... – começou Mahslia.
- Testando terreno. Calculando probabilidades e possibilidades. Tentando
sobreviver. – respondeu Avalas, sem olhar para a companheira.
- Senhoras e senhores! Bem-vindos à Arena Querua! E hoje a luta será de
intensas emoções! – gritava o mestre de cerimônias, com a voz magicamente
ampliada.
“As regras são simples! Seis gladiadores lutarão entre si! Podem fazer
parcerias ou lutar por si próprios, com duas condições: três gladiadores lutarão
algemados, enquanto os outros três não!” disse o homem, para delírio do
público.
- Adivinhem só quem lutará algemado? – perguntou Avalas, por entre os
dentes. Sua voz pingava ódio.
- A segunda condição é que apenas três gladiadores serão classificados! Os
outros três morrerão! – continuou o Mestre de Cerimônias. – Agora, o rei vai
falar algumas palavras.
Altivo e imponente, o rei caminhou para a frente de seu pomposo
camarote, onde todos pudessem vê-lo. Posição de poder.
19
- Gladiadores! – gritou ele. – Lutem como se suas vidas dependessem
disso!
O público riu e aplaudiu seu engraçado governante, que voltou para seu
assento, satisfeito.
“Que abram os portões!”, berrou o Mestre de Cerimônias.
Como mágica, os pesados portões se abriram e, de dentro de um corredor
mal-iluminado, saíram três figuras grandes, de pele negra como piche,
implacáveis, musculosas e feias, com machados enormes nas mãos e armaduras
completas de batalha.
Orcs sedentos de sangue. Isso nunca era uma visão bonita.
20
Capitulo Seis
Avalas pegou sua espada presa às costas e falou para os companheiros
estenderem a mão. Quando obedeceram, o grande elfo quebrou as algemas
como se fossem feitas de manteiga.
- Quebre as minhas! Eu não luto com duas mãos! – pediu Avalas a Corash,
que também golpeou as algemas uma, duas, três vezes até quebrar, enquanto
Mahslia desferia esferas mágicas contra os orcs, mantendo-os afastados.
Avalas recuperou sua grande espada e a segurou na mão direita. O mais
impressionante, ele era o único elfo capaz de fazer isso. Os outros precisavam
das duas mãos.
- Corash, ataque o feio do meio. Mahslia, você cuida do feio da direita. O
da esquerda é meu! – disse ele, correndo para seu inimigo enquanto flechas e
esferas de magia passavam ao seu lado.
- Você acha mesmo que é páreo para mim, elfo desgraçado? Por esse
atrevimento, você vai morrer! – gritou o orc, levantando e abaixando o
machado na direção da cabeça de Avalas, que, por sua vez, aparou o golpe com
a espada e socou o inimigo no peito. Foi quase tão efetivo quanto tentar apagar
fogo com marshmallows, mas serviu para assustar o orc. Avalas era um
oponente a ser respeitado e temido, justamente porque ele era louco de socar
um orc quando tinha uma espada em mãos.
O orc do meio sabia que Corash não iria durar muito. Era impossível ele
ganhar: suas flechas eram limitadas. Quando acabassem suas flechas, acabaria
sua vida. A não ser que os amigos o ajudassem... As flechas estavam vindo
rápidas e em grande quantidade. Várias atingiam em pontos não vitais, ou
seja... era só esperar que ele veria sangue em seu machado.
Mahslia, apesar de frágil, era destemida. Não temia chegar perto do
inimigo para usar uma magia. Um erro, talvez, mas o inimigo não sabia o que
fazer, vendo uma maga assim tão perto dele. E isso o machucava. Seriamente.
21
- Pare com isso, elfa maldita! - berrou o orc, irritado, quando um
relâmpago queimou seu braço.
- Venha me parar, então! - respondeu a elfa, provocando o inimigo a meros
dois metros de distância.
O orc saltou na direção dela numa velocidade que ela julgava impossível e
preparou o machado para bater na cabeça dela. A morte dela era certa.
Corash viu que a amiga estava em perigo. Ele não podia deixar que ela
morresse. Então, ele fez a única coisa que poderia. Atirou na cabeça do orc que
atacava Mahslia. E acertou.
Pena que o orc com quem ele estava lutando também viu a dúvida dele. E
partiu para cima do arqueiro.
Avalas estava com dificuldade de achar uma brecha na defesa do inimigo,
pois ele atacava rápido demais. O grande elfo nada podia fazer, a não ser se
defender e observar os companheiros.
O orc de Corash avançava sem freios, o machado pronto para cortar
qualquer parte élfica que cruzasse com ele. Avalas não podia deixar isso
acontecer. Ele aparou um outro golpe de machado com sua espada e empurrou
o inimigo, que caiu com o traseiro no chão, bufando, e correu para salvar
Corash.
- Morra, elfo! – berrou o orc, brandindo o machado contra o tronco
desprotegido de Corash.
- Não! – berrou Avalas, parando o golpe com sua espada e fazendo uma
acrobacia para passar por cima do machado do inimigo e girando, fazendo com
que a lâmina fizesse um arco luminoso que decepou a cabeça do adversário.
Dois já estavam mortos. Faltava um, que tentava estupidamente escalar as
pedras para fugir.
- Obrigado, Avalas. Você me salvou. Não é típico de você fazer isso.
-Não se acostume, também. Eu apenas não quero ser forçado a deixar um
orc vivo. – disse Avalas, para a surpresa de Corash. Como ele era frio!
- Ei, vocês dois... Temos um orc a solta. Deveríamos derrotá-lo, não?
- Verdade. Posso fazer as honras? – perguntou Corash, pegando sua última
flecha e preparando-a no arco.
22
- Ele é seu – disseram os outros dois, se afastando. Corash mirou, mas
antes de consegui atirar, o orc se virou e saiu correndo em sua direção.
Imparável. Apenas cem metros de corrida. Avalas e Mahslia não conseguiriam
ajudá-lo agora, de tão rápido que estava o orc.
O fundo da garganta de Corash começou a coçar, como se algo quisesse
sair de lá. Ele abriu a boca e disse, enquanto soltava a flecha do arco:
- Eldr Or! – aquela com certeza não era sua voz. Era muito mais grave,
rouca e retumbante. Algo ancestral, antigo. Algo que fez com que a flecha
pegasse fogo.
A flecha flamejante viajou até chegar ao orc, que sentiu seu crânio se
esmigalhando e seu corpo queimando. A magia do elfo era forte. O suficiente
para pará-lo.
23
Capitulo Sete
O rei levantou-se furioso. Como aqueles moleques não haviam morrido?!
Era inaceitável. Ele precisava fazer alguma coisa.
- Esse golpe não foi válido! – gritou o monarca, sorrindo consigo mesmo.
Sua palavra, em grande parte do tempo, era lei.
- Como assim? – berrou Avalas, alterado. Uma veia pulsava em sua testa. –
Como não valeu? Corash nunca infringiu uma única regra dessa arena
estúpida!
- Esse golpe foi, claramente, mágico. E Corash se disse arqueiro, não mago.
A não ser que a senhorita Mahslia o tenha ajudado, mas ela não moveu um
músculo sequer. Então, o golpe foi inválido. E eu condeno vocês a...
- Nada. Quem condena sou eu, e não Vossa Majestade – disse uma voz de
trovão. Um elfo alto e magro ergueu-se do seu trono no camarote do rei. – Por
favor, não se esqueça de quem é o Grande Juiz aqui.
O rei hesitou, mas cedeu a palavra ao outro elfo, com a cabeça baixa. Ele
parecia...
- ... derrotado. Humilhado. Não é o que parece? – perguntou Mahslia,
surpresa com a súbita mudança de postura do monarca.
- Sim. Lian Fiar sempre foi imponente. De fato, por sua imponência e
sabedoria, conquistou merecidamente o posto de Grande Juiz. – respondeu
Avalas.
- Lian Fiar? Que nome estranho. Como você o conhece? – questionou
Corash.
- Deixe de ser ignorante, Corash. “Lian” significa “Mestre”. – retrucou
Avalas, impaciente. - Eu fiz a Escola Militar antes de ser enviado para Sparon.
Ele era o professor de Arquearia e de Estratégias. As aulas dele eram excelentes.
- Calem a boca! – sussurrou Mahslia, mortificada – Lian Fiar quer falar!
Ambos Corash e Avalas coraram e silenciaram.
- Muito bem. Agora que temos silêncio, podemos começar o julgamento. –
sentenciou o elfo, magnânimo.
24
A esta altura, talvez seja apropriada uma breve descrição da política de
Lynzea.
Existiam cinco Poderes do governo, cada qual com vantagens e prejuízos
em relação aos outros, mas com igual influência.
O primeiro deles era a Aliança Real, formada pelos nobres e membros da
Família Real, ou simplesmente Família. A Aliança Real cuidava das questões
administrativas de Lynzea. Tinha muito poder, aparentemente, mas, na
verdade, era o governo mais fraco do continente, apesar de ser, de longe, o mais
luxuoso. Como exemplo de sua luxuosidade, só o rei e sua comitiva podiam
andar a cavalo no reino quando não fosse treinamento militar ou guerra.
O segundo Poder governamental era chamada de “O Tribunal”, ou
simplesmente “Tribunal”. Responsável por fazer cumprir as leis de Lynzea, O
Tribunal era composto por vários juízes, espalhados pelo território de Lynzea.
Em sua máxima instância, o Tribunal era composto por dez Juízes, que não
poderiam conversar com os outros para não serem influenciados em seu
julgamento. A sentença de cada Juiz tinha de ser explicada, ou o julgamento
seria refeito, até que a justiça fosse feita. Em caso de empate, o Grande Juiz
decidiria o que seria feito. O poder d’O Tribunal era, provavelmente, o maior.
Os outros poderes, invariavelmente, acabavam se curvando perante O Tribunal.
O terceiro Poder era conhecido como LPMC, Laboratório de Pesquisas
Mágicas e Cientificas, responsável pela promoção de novas tecnologias bélicas
(espadas mais resistentes, arcos que alcançassem mais longe, etc.) e
desenvolvimento de magias, tanto de cura quanto de luta. O chefe do LPMC,
conhecido apenas como Sarbrar, era um homem magro e pequeno, apesar de
ser inteligentíssimo e ter uma aura que dava medo. O LPMC era tratado como
um órgão a parte, livre para fazer o que quisesse, desde que fosse legalizado.
O quarto Poder se chamava Ministério da População. Oficialmente, claro.
Para o povo, o Ministério da População se chamava Bem-Estar. Na verdade,
esse deveria ser o objetivo final do Ministério. Zelar pelo interesse da
população, propondo novas leis, projetos sociais, construindo escolas e
hospitais... O Ministro, invariavelmente, era um elfo amado pelo povo.
O quinto e último Poder era o militar. O Eixo da Guerra era um dos
Poderes mais importantes, por ser o poder que defendia o reino de Lynzea nos
tempos de guerra. O Eixo da Guerra possuía um dos mais poderosos exércitos
da época, graças ao Comandante-Geral Malrua, também conhecido como
Estrela da Guerra, que era um gênio estratégico.
25
Todos os meses os chefes de governo se reuniam oficialmente para discutir
a política do reino e assistir algumas lutas na Arena. Nunca havia acontecido do
Grande Juiz em pessoa assumir um julgamento. O rei estava abismado com o
que havia acontecido.
- Qual o nome do arqueiro? – perguntou Lian Fiar
- Corash, senhor. Corash Lam. – respondeu Corash. Ele falaria antes do
rei?
- Muito bem, Corash. Conte-nos o que aconteceu.
- Bom... Meus companheiros e eu estávamos viajando. Para dar passagem
ao rei, que ouvimos à distância, nos embrenhamos na mata, onde não o
incomodaríamos. Porém, quando estávamos conversando, fomos capturados
por batedores do rei. Fomos trazidos para cá e... – hesitou Corash, pensando no
que acontecera. De fato, agora parecia surreal.
- Prossiga. E não se preocupe, o que for justo será feito. – encorajou Lian
Fiar, acenando positivamente com a cabeça.
- Bom, nós lutamos, como todos viram. E a flecha flamejante
simplesmente...
- Saiu. Veio do fundo de sua garganta, como algo ancestral despertado em
você. – completou o Juiz, acenando compreensivamente com a cabeça.
- Exato! Como o senhor...
- Não importa como sei, o que importa é que sei. – respondeu,
magnânimo, Lian Fiar. – Terminou, Corash?
- Sim... – respondeu o arqueiro, hesitante
- Então, é a vez de nosso queridíssimo monarca falar. – replicou Lian Fiar,
com certa ironia na voz. Era claro que existia uma rixa entre o rei e Lian Fiar.
Algo na relação deles não tinha ocorrido nada bem.
- Perfeito. – respondeu o rei, levantando-se. – Caro senhor Juiz, este
moleque disse a nós que era um arqueiro.
- Ele falou por vontade própria? - perguntou o Juiz, com sagacidade.
- É... Não. Nós os capturamos como reféns, após um de nossos batedores
ouvir coisas deles. Nós não fizemos interrogatórios, apenas perguntamos suas
classes e os amarramos. Eles foram trazidos como gladiadores.
- Certo, e qual o seu argumento? – tornou Lian Fiar, com tédio.
- Como ele se disse arqueiro, não pode usar magias! – respondeu o rei,
sorrindo maliciosamente.
- Entendo... Você lembra do que ele disse, especificamente? – questionou o
Juiz, com um brilho nos olhos. Um brilho que deveria ter alertado o monarca.
26
- Sim. Ao perguntarmos: “Você, garoto que usa um arco, é um arqueiro?”,
ele respondeu: “Sim, sou da vila de Sparon, arqueiro em treino”. Para começar,
como arqueiro em treino, nem poderia estar viajando sozinho.
- Discordo. Para começar, meu caríssimo monarca, os garotos nem
deveriam ter sido trazidos para a Arena. Apenas os guerreiros formados e
maiores de idade podem lutar aqui. Então, o senhor é tão ou mais culpado que
ele. Corash Lam omitiu informações, mas o senhor infringiu as leis. – disse Lian
Fiar, ferozmente. – Portanto, caro monarca, eu digo que Corash Lam é inocente,
em relação à sua acusação.
Avalas, Mahslia e Corash respiraram, aliviados. Livres, finalmente?
- Porém... – hesitou o Juiz, como que lutando contra si mesmo – Corash
Lam e seus colegas atuaram, respectivamente, como mentiroso e cúmplices. A
mentira é passível de punição, quando sua magnitude é grande. Uma morte é
grande coisa. E, segundo as leis de Lynzea, um participante só pode ser retirado
de um torneio que começou a participar de um modo: sendo impossibilitado de
lutar. Assim, condeno Corash Lam e seus amigos, Avalas e Mahslia, à prisão e à
luta na Arena.
27
Capitulo Oito
Eles estavam de volta à cela. Avalas havia achado uma pedra meio
quadrada, perfeita para amolar sua espada, e as flechas de Corash haviam sido
repostas.
- Estou inconformada com o Juiz! – disse Mahslia, subitamente.
- Não adianta preocupar sua cabeça com isso, Mahslia. Ele apenas seguiu a
lei. E, verdade seja dita, foi o mais justo possível, dentro dos limites legais de
Lynzea. – disse Avalas, friamente, enquanto afiava sua enorme lâmina.
- Então, se ele queria ser tão justo assim, por que não nos libertou? –
perguntou Corash.
- Ele é um juiz, Corash. A obrigação dele é fazer cumprir a lei, não fazer a
justiça. Não se esqueça que essas leis são muito mais velhas que ele.
- Oras, não tem desculpas! Ele é um...
- Cuidado com suas próximas palavras, seu verme! Ele está aqui para ver
vocês. Portanto, comportem-se decentemente! – disse o guarda, enquanto abria
a porta da cela. Lian Fiar entrou no minúsculo cubo de pedra e concreto e
ordenou que todos os seus guardas pessoais e os guardas da prisão fossem
embora.
- Mas, mestre... Não é adequado... – começou o guarda
- Por favor. É um pedido pessoal meu a todos vocês. – pediu Lian Fiar,
charmoso.
- Já estou indo, senhor. Tenha uma boa conversa com os prisioneiros. –
disse o guarda, saindo humildemente da cela e guiando todos os outros
guardas para longe. O Juiz tirou uma flecha de uma aljava em seu cinto e
atirou-a, com o arco que sacou das costas, na porta.
- Pronto. Agora podemos conversar com privacidade. Encantei essa porta,
de modo que os guardas só possam ouvir gritos. É bom vê-los com saúde. Meu
nome é Fiar. Suponho que vocês não sabiam, não é? – disse ele, dirigindo-se a
Corash e Mahslia.
- O que o senhor veio fazer aqui? – perguntou Corash, seco.
- Eu? Vim explicar algumas coisas. Tentar ajudá-los.
28
- Podia ter nos ajudado julgando corretamente. Poderíamos estar em nosso
caminho, sem fazer mal a ninguém, nesse exato momento. Agora, por sua
culpa, estamos aqui, esperando para morrer. – respondeu Corash, enraivecido.
- Bem que eu queria. No entanto, eu fiz isso para salvá-los. Se eu libertasse
vocês naquela hora, o rei iria ficar furioso e mandaria os guardas matá-los.
Desse modo, eu satisfiz os desejos do rei e consegui preservar suas vidas. Como
ele é um rei, qualquer processo judicial ou julgamento será negado. Mesmo as
minhas sentenças não serviriam de nada. Tive que fazer isso, pelo bem de
vocês.
- Certo. E como, exatamente, você pretende nos ajudar? – perguntou
Avalas, frio.
- Explicando como vão ser as coisas na Arena, para vocês conseguirem
sobreviver.
“Eram trinta e dois participantes, trinta e dois presos, em chaves
individuais. Como vocês três foram capturados juntos, também lutaram juntos.
Cada um daqueles orcs tinha um de vocês como objetivo. Por sorte, vocês
escaparam ilesos. Agora há dezesseis participantes – os sobreviventes das
batalhas. Esses dezesseis serão divididos em quatro grupos de quatro. Como
vocês, novamente, foram capturados juntos, ficarão juntos também. Um dos
outros participantes ingressará em seu grupo. Por sorte, tenho um companheiro
perfeito para vocês. Quando apenas sobrar um grupo, os participantes deverão
digladiar entre si, depois de dois dias de descanso. O último de pé será
considerado vencedor. Simples, mas brutal. Meu plano é que vocês cheguem na
final. Depois disso, vocês descansarão por um dia. No segundo dia de descanso
vocês fugirão. Infiltrarei um fiel servo aqui nas masmorras, para que ele lhes dê
suas armas. Não se preocupem com o mapa das masmorras, esse seu
companheiro já o tem, pois já conversei com ele.”
- Certo. É só isso? – perguntou Corash. Ele ainda não havia perdoado Lian
Fiar.
- Quanto ao plano de fuga, sim. Agora, vocês precisam saber de uma coisa.
Os três, sem exceção, lutam muito bem. Seriam excelentes soldados. No
entanto, vocês não estão se entendendo bem dentro do campo de batalha. Essa
última luta vocês ganharam por pura sorte.
“Para começar, vocês resolveram ir um contra um. Sem problemas se
fossem três espadachins, ou três bárbaros. Mas só um de vocês é espadachim.
Corash e Mahslia, vocês não têm condições de enfrentar bárbaros e espadachins
sozinhos, pois não conseguem lutar muito bem de perto. Assim, o papel de
29
vocês em uma batalha é de apoio, não de ataque direto. Mahslia, você é uma
excelente maga, diria que é uma formanda. Ajude Avalas alterando o campo de
batalha, elevando-o quando ele corre perigo, colocando paredes de pedras entre
os ataques... Você é boa o suficiente para isso. Corash, você é um ótimo
arqueiro, use suas habilidades para ferir quem ousar chegar perto de Avalas ou
Mahslia, ou até mesmo de você! Isso serve também para seu novo companheiro.
Lembrem-se disso, e com certeza vocês sobreviverão.”
- Lian Fiar, por que você quer nos ajudar? – perguntou Corash,
subitamente.
Os olhos do Juiz se desfocaram por um momento, e ele começou a contar.
30
Capitulo Nove
Parte Um
Quinze anos antes do desenrolar dessa história, Lian Fiar era conhecido
apenas como Fiar Lam. Ele havia recém-casado com a linda princesa de Lynzea,
Amaky, e recentemente fora promovido a um dos dez Juízes. Ele fora bem
aceito na Família Real, principalmente pelo sogro, que o recebera literalmente
de braços abertos, sorrindo de orelha a orelha. Apesar de sua vida parecer uma
maravilha, não estava tudo tão bem assim. Como Juiz, ele estava tendo muito
trabalho – Lynzea passava por uma crise de fome e pobreza, e os surtos de
roubo e assassinatos aumentaram absurdamente. Em todos os casos em que
havia apelação, e eram muitos, Fiar tinha que trabalhar. Por diversas vezes ele
ficara até tarde no trabalho, para depois se reunir com o Conselho de Lynzea
tentando achar um jeito de resolver a situação do reino. Mal tinha tempo para
dar atenção à sua esposa. E foi numa noite de reunião que tudo começou.
- Desculpem-me o atraso, senhores, eu estava até agora a pouco em
julgamento. Era o caso de um caçador que, para comer, assassinou um padeiro
e sua mulher. Terrível... – começou Fiar, para logo depois notar o semblante
sombrio de seus companheiros. – O que houve?
- Sente-se, Fiar. – disse o Grande Juiz da época, Lafreth, um velho senhor
de barbas brancas. Fiar obedeceu, e o seu superior começou a falar:
“Fiar, mandamos um arauto consultar o oráculo de Felkash, o Lago
Sagrado, e ele voltou com uma notícia terrível. Segundo o oráculo, os deuses
estão furiosos com Lynzea. Nós os temos ignorado por muito tempo, e essa é a
vingança deles. É o que eles dizem, ao menos.”
- Como assim, ignorado? Seguimos nossa religião fervorosamente, nunca
deixamos os feriados passar em branco... O que falta a eles? – perguntou Fiar,
revoltado. O silêncio pairou por um longo tempo antes de Lafreth responder.
- Sangue, Fiar. Sangue é o que eles querem.
- Como assim? Eles mesmos disseram que abdicavam dos sacrifícios de
sangue, que era algo brutal demais!
31
- Sim, Fiar, nós sabemos. Mas não podemos fazer nada. São deuses, afinal.
Possuem tradições de séculos. E eles, pelo jeito, gostam do gosto de sangue. E
essa é a pauta da reunião de hoje. Eles não querem sangue de camponês.
Segundo eles, o sangue dos que estão num alto escalão é mais saboroso.
- Então eu vou! Eu aceito ser o sacrifício!
- De modo algum, Fiar. Não podemos desperdiçar sua vida desse modo –
negou Sarbrar, líder do LPMC – Você ainda é jovem, é um excelente guerreiro e
é casado com a princesa de Lynzea. Um de seus deveres é gerar um herdeiro
para o reino, como você bem sabe. Não podemos te sacrificar. A princesa
enlouqueceria.
- Não precisam se preocupar com o herdeiro! Amaky está grávida! Eu...
- Amaky está grávida?! – gritou o rei, levantando-se com grande
velocidade, um olhar ensandecido nos olhos.
- Sim, senhor... Grávida. O que o senhor esperava, Majestade? – perguntou
Fiar, surpreso pela reação do sogro.
- Nada... Desculpem, é a alegria de ter um netinho. Prossigam – disse o rei,
sentando-se novamente e olhando para o tampo da mesa.
- Bom, pessoalmente eu acho que devemos prosseguir com o meu plano. –
continuou Lafreth, como se não houvesse tido interrupções.
- Vocês d’O Tribunal gostam de se sacrificar, não é? – perguntou Malrua,
comandante-geral do exército de Lynzea, olhando friamente para Lafreth.
- Na verdade, senhor Estrela da Guerra, nós aceitamos nos sacrificar
porque sabemos que, depois da morte, só há a justiça. Então, não gostamos de
nos sacrificar. Apenas não tememos a morte. – respondeu o Grande Juiz, ácido.
- Esperem um pouco, senhores... Eu entendi corretamente? Lian Lafreth
está querendo ir para o sacrifício? – perguntou Fiar, surpreso.
- Exatamente, meu jovem. Por isso que insisto em lhe chamar para todas as
reuniões, apesar de ninguém mais fazer isso. Eu sei que, se eu viver mais dez
anos, terei vivido muito. Não tenho tanto tempo de vida me restando, e devo
preparar meu sucessor, que no caso é você, para assumir este posto.
- Eu, seu sucessor? Não... E os outros Juízes? Deve haver uma hierarquia,
não há? O Juiz mais velho será o próximo Grande Juiz, ou algo do gênero.
- Não. Todos os dez Juízes têm poderes, direitos e influências iguais. Todos
têm a mesma chance de ser eleitos como Grande Juiz. E eu escolhi você.
- Mas por quê?
32
- Não interessa agora. Devemos nos preocupar em pensar na pessoa que
mandaremos para o sacrifício. Quanto mais cedo sacrificarmos, melhor ficará
Lynzea. – disse Malrua.
- Bom... Eu também não temo morrer... Posso muito bem ir para sacrifício.
Se não se incomodarem, é claro. – disse Sarbrar.
- Eu me incomodo, e muito. Sarbrar, você é um gênio da magia e da
tecnologia. Você é um dos grandes responsáveis pelo poderio militar de
Lynzea, e sabe muito bem disso. Ainda é um homem relativamente jovem, e
tem muito tempo pela frente. Use-o para suas pesquisas. – retrucou Lafreth, de
modo brilhante. Mesmo sendo muito velho, suas habilidades com a mente e
com as palavras continuavam em ordem.
- Se você insiste, velho teimoso, não sou eu que vou me opor. Só acho uma
pena Lynzea perder uma mente tão brilhante quanto a sua.
- Obrigado. Agora que o assunto está decidido, me dêem licença. Hoje o
dia foi longo, e não é porque meu sacrifício está marcado que eu vou me privar
do descanso. Senhores. – disse Lafreth, levantando-se e saindo da sala
rapidamente.
- Então... Creio que não temos muito mais o que fazer aqui, não é? Com os
problemas resolvidos, suponho que podemos voltar para nossas casas mais
cedo, hoje. Se não se importam... – disse Malrua, levantando-se da mesa.
Sarbrar o seguiu de perto, dando um cordial toque no ombro de Fiar, que
estava estacado perto da porta. Eles matavam com essa facilidade?
O Ministro da População, que se mantivera quieto até agora, recolheu suas
coisas e foi embora, após se despedir com um aceno de cabeça do rei e de Fiar.
O monarca, por sua vez, levantou-se e, antes de sair, murmurou para o genro:
- Acostume-se, meu jovem. Como Grande Juiz, você verá coisas muito
piores que isso.
Chegara o fatídico dia. O dia do sacrifício de Lafreth.
O céu de Lynzea, nesse dia, estava pesado e plúmbeo, indicando a
possibilidade de uma tempestade, com direito a raios e trovões. A temperatura
era baixa, e as pessoas se agasalhavam bem, se protegendo do cortante vento
que soprava pelas ruas da capital Orxh. Apesar do frio, todas as pessoas de
Orxh se dirigiram à praça central da cidade para assistir ao sacrifício do Grande
Juiz e à sagração da nova cabeça d’O Tribunal.
33
- Então, Fiar, como se sente? – perguntou Sarbrar, olhando para o próximo
Grande Juiz com certa apreensão. Eles estavam em um canto da praça,
afastados de todos os outros figurões do reino de Lynzea, esperando o toque do
sino que os chamaria para o palanque no centro da praça. Esperando pelo sino
que indicaria o início do fim de Lafreth.
- Não muito bem, Sarbrar. Lian Lafreth foi mais do que um simples
mentor, para mim. Ele foi um verdadeiro pai. E saber que hoje eu terei que
assistir seu sacrifício sem poder fazer nada para ajudá-lo me deixa mal. Além
disso, ele mesmo disse que me sagraria como Grande Juiz. Parece até que eu
estou roubando o posto que é dele por direito...
- Fiar... Sabe, meu menino, eu tenho alguns anos a mais de vida que você.
E sei, por conhecê-lo e ter conhecido muito bem o seu pai, que vocês, Lam, têm
um senso muito aguçado de honra e justiça, essenciais para um Grande Juiz.
Não se esqueça, por favor, que Lafreth chega a ser odioso: ele parece que prevê
o futuro. Sua sabedoria é algo fora de série. Decerto que Lafreth jamais faria
qualquer coisa sem antes refletir muito sobre suas ações.
- Aonde você quer chegar?
- Lafreth precisa de você no topo. Cá entre nós, esses Juízes que o
acompanham são ótimos em seguir a lei. Mas eles só fazem isso. Ser um Juiz é
muito mais que isso, Fiar, você sabe. Um bom Juiz segue a lei. Um ótimo Juiz
dobra a lei, para que ela sirva às suas necessidades. Um Grande Juiz faz a
justiça, ainda que isso o obrigue a passar por cima de leis, mesmo que essas
venham de tempos imemoriais. Para fazer isso, porém, eles devem ser sábios o
suficiente para conseguir prever o resultado de suas ações. Lafreth sabe que,
apesar de jovem, você é uma pessoa muito sensata. Em vinte anos, decerto que
você será um dos homens mais sábios de todo o reino. E ainda será jovem.
“Lafreth não está lhe passando o cargo de Grande Juiz porque você é mais
bonito que os outros Juízes. Ele está lhe passando porque você é o Juiz mais
promissor de todos: você é jovem, inteligente, sábio e muito justo. O povo lhe
ama, e sabe que pode contar com você. Pessoalmente, eu acho que a
responsabilidade que Lafreth está te passando é muito maior que você pensa.
Você não será apenas o Grande Juiz. Você será o herói de Lynzea. Você será
aquele que trará justiça a todos. Você é aquele que terá o poder das massas,
Fiar. Lafreth está, enfim, lhe passando a responsabilidade de ‘seguro’ do reino.
E esse é o ato que mais demonstra a confiança dele em você.”
Fiar não respondeu. Ele não queria.
Ele não podia.
34
O sino da praça central de Orxh tocou três vezes, chamando os figurões da
política de Lynzea para o centro da praça, no palanque. Quase todos os Juízes,
vestidos de luto em respeito ao seu chefe, já estavam lá. Só faltava Fiar que,
junto de Sarbrar, se dirigiu funebremente ao palanque. Um gordo sacerdote,
vestindo uma enorme roupa branca e roxa, os ajudou a subir, dando um abraço
forte em cada um. Bem no meio do palanque, o rei estava acompanhado de
Malrua e do Ministro da População, com um de cada lado.
- Fiar. Sarbrar. Vocês estão prontos? – perguntou o rei.
- Infelizmente sim, Majestade. Eu estou, ao menos – respondeu Sarbrar,
sentando-se ao lado do Ministro da População.
- Eu não tenho muitas opções, não é? Vamos terminar com isso logo –
disse Fiar, dirigindo-se para o lado de seus colegas.
- Fiar! Onde pensa que está indo? – questionou Malrua.
- Para meu lugar. Ao lado dos Juízes.
- Seu lugar é conosco.
- Não é. Esse lugar ainda é de Lian Lafreth, e eu não pretendo tomá-lo até a
morte dele. – e, com essa nota ácida e fria, Fiar se dirigiu ao seu lugar, do lado
dos Juízes.
Começou com uma batida grave. Uma batida triste, que penetrou a alma
de cada um daqueles que amavam e conheciam Lafreth. A batida se repetiu, e
de novo, e de novo, até parecer que nunca mais ia parar de bater. Ao fundo, o
repique de tambores convocava os deuses de Lynzea para a cerimônia.
Lafreth estava vestido com uma garbosa roupa rubra. Um capuz, também
rubro, cobria seu rosto. Ele andou até o palanque, onde o gordo sacerdote o
ajudou a subir. Sem abraços. Sem palavras reconfortantes.
- Meus irmãos, estamos aqui hoje para sacrificarmos o Grande Juiz Lafreth,
com o objetivo de apaziguarmos a ira dos deuses que, ao custo de apenas uma
vida, nos darão em troca sua anistia. Louvados sejam!
- Verual! – disseram os fiéis, em uníssono.
Fiar estava abismado. Como aquele... Aquele sujo conseguia pregar a
benevolência divina a partir de atos tão escusos?
- Por favor, meus irmãos, orem pela alma do Grande Juiz Lafreth,
enquanto eu consumo o sacrifício.
- Um momento, caro pastor. Antes de morrer, eu gostaria de dizer algumas
palavras – pediu Lafreth, para a surpresa geral. O pastor, desnorteado, olhou
35
para o rei procurando uma orientação. O monarca assentiu com a cabeça, e o
clérigo disse:
- Muito bem, então... Suponho que não machucará ninguém...
O Grande Juiz olhou nos olhos de cada um daqueles que foram ver seu
sacrifício e começou o seu discurso.
- Antes de qualquer outra coisa, eu gostaria de agradecer a presença de
todos, e de cada um em particular. Pode parecer um pouco mórbido agradecê-
los por vir assistir minha morte, mas deixem-me explicar. Eu sou Grande Juiz
há quase cem anos. Antes mesmo de muitos de vocês nascerem, eu já era velho.
Em minha vida, vi coisas maravilhosas. Ah, sim, eu vi. Me casei com uma
mulher linda, tive dois filhos a quem pude ensinar os conceitos de honra, justiça
e bondade. Tive netos, bisnetos. Todos eles jovens que, ao meu ver, são
encantadores. Sim, eu sou um velho avô coruja e babão. – e, nesse momento, a
tensão palpável no ar da praça de Orxh quebrou com as risadas. Levemente. –
No entanto, eu também vi coisas tenebrosas. Vi magias proibidas serem
lançadas, guerras dizimarem reinos inteiros, pestes e doenças assolarem a terra
em que pisamos. Mesmo assim, eu sobrevivi a tudo. Eu nunca quis morrer.
Sempre soube que eu não poderia, não iria morrer para motivos tão esdrúxulos
como esses. Eu iria morrer por algo maior. No fim, acho que eu sempre quis dar
minha vida por milhares de outras.
“Eu sempre acreditei que faria isso num campo de batalha, com uma
espada em mãos. Nunca, jamais imaginei fazer isso numa praça no meio da
capital de Lynzea, aos cento e cinqüenta anos de idade. Engraçado como o
destino funciona, não é?
“Ah, perdoem a mente deste velho. Estou aqui falando, e acabei me
esquecendo de falar o porquê dos meus agradecimentos. Pois bem. Eu estou
agradecendo a vocês por me darem a chance de morrer como eu quis. Feliz é o
homem que pode escolher sua morte. Estou agradecendo pela consideração que
vocês estão tendo por mim, de sair do conforto de suas casas, nesse dia frio,
ventoso e cinzento. De vir aqui me prestar uma última homenagem.
Obrigado por me deixarem morrer.
Agora, vamos ao que interessa. Lynzea precisa de um Grande Juiz. E agora
eu vou anunciá-lo.”
Na sua cadeira, Fiar aprumou-se. Enfim, chegara a hora.
36
- Então, Lian Lafreth? Quem é seu sucessor? – perguntou o gordo
sacerdote.
- O meu sucessor é o único elfo com competência o suficiente para fazer
isso. E ele ainda é uma criança. De fato, será o Grande Juiz mais jovem da
história de Lynzea.
“Fiar Lam”
O nome reverberou pela praça, enquanto as pessoas absorviam o choque
da notícia. Para o mais alto escalão político, isso não era novidade alguma. Para
todos os outros, isso era uma verdadeira revolução.
E o povo, com lágrimas nos olhos, começou a aclamar o novo Grande Juiz
de Lynzea. Não mais o chamavam de Fiar. O título era outro. Um título que ele
carregaria por toda a vida.
Lian Fiar.
As palavras de Sarbrar reverberavam na mente de Lian Fiar.
“Pessoalmente, eu acho que a responsabilidade que Lafreth está te passando é
muito maior que você pensa. Você não será apenas o Grande Juiz. Você será o herói de
Lynzea. Você será aquele que trará justiça a todos. Você é aquele que terá o poder das
massas, Fiar”
O herói de Lynzea. O herói do povo.
O sacrifício foi consumado. E, nesse dia, os céus de Lynzea choraram a
morte de um dos maiores Grandes Juízes da história do reino.
Lian Fiar, porém, não sabia se o que tinha em seu rosto eram as lágrimas
do céu ou as suas próprias.
37
Parte Dois
Nove meses haviam se passado desde o sacrifício de Lian Lafreth. Como
prometido pelos deuses, a terra de Lynzea voltara a ser fértil, e a paz fora
restabelecida.
Para o povo.
Lian Fiar percebera que, por alguma razão misteriosa, o rei de Lynzea
havia mudado drasticamente. Antes um rei sorridente, amigável, carismático e
alegre, ele agora era uma carranca imutável. Isso acontecera desde que o alto
escalão político de Lynzea recebera a mensagem do oráculo.
- Majestade? Mandou me chamar? – perguntou Lian Fiar, adentrando na
sala do trono e ajoelhando-se perante o monarca.
- Sim, Fiar. Levante-se. Guardas, estão dispensados. – disse o rei. Os
soldados bateram continência e se retiraram. – Fiar, temos um assunto muito
sério a tratar.
- Só nós? E Malrua, Sarbrar e o Ministro da População?
- Eles não podem saber sobre isso.
Não podem saber sobre isso?
- E qual é esse assunto tão misterioso, Majestade?
- Bom, você sabe que o oráculo nos ordenou sacrificar uma vida em troca
da fertilidade das terras de Lynzea. No entanto, havia mais uma mensagem,
direcionada especificamente a mim.
- E qual era essa mensagem, Majestade? – perguntou Lian Fiar,
desconfiado. Algo não parecia certo.
- Leia a profecia, Fiar. Então você entenderá. – disse o monarca,
entregando um pergaminho enrolado e amarelado para o Grande Juiz. Fiar
desenrolou a profecia e começou a ler
Fome, guerra, frio e morte
Assolam o território
Uma vida deve ser entregue,
Como bem compensatório
38
Uma faca de pedra nova,
Sem temor será usada.
Mas não com sangue de plebeu,
E sim de nobre será manchada.
Os Deuses estão furiosos
Por terem sido negligenciados
Mas, com esse sacrifício,
Vocês serão perdoados.
O rei de Lynzea terá um herdeiro
Que do trono o despojará
Filho da Bondade e da Justiça,
Sabiamente ele reinará.
E mesmo contra milhares
Contra milhões de inimigos
Seis sobreviverão
E reinarão como amigos
- Certo, Majestade. E qual o problema dessa profecia?
- Leia a quarta estrofe! Leia! – ordenou o rei, um pouco alterado.
- Eu já a li. E ainda não vejo problemas nela.
- Como não? Eu sou o rei de Lynzea!
- E em momento algum a profecia citou seu nome. Lynzea obviamente terá
outros reis. Para mim, o senhor está ligeiramente paranóico.
- Não seja cínico! Olhe a terceira linha! Filho da Bondade e da Justiça! É
óbvio que você, Fiar, é a “Justiça”, e minha filha Amaky é a “Bondade”!
- Eu não sou a única pessoa justa de Lynzea, e tampouco sua filha é a única
pessoa bondosa. E tem mais, sua herdeira é Amaky, não seu neto. – blefou Fiar.
- Você sabe bem que não, Fiar. Inclusive, sabe melhor que eu. Segundo as
leis de Lynzea, apenas os herdeiros homens do rei podem herdar o trono. Se
não houver descendentes, passa-se o cargo para o próximo homem na linha de
sucessão que, no caso, é você.
- Muito bem, e o que você pretende que eu faça? – perguntou Lian Fiar,
desconfiado. O rei riu.
39
- Você, Fiar, mandará matar o meu neto. – disse o monarca, virando-se e
saindo da sala do trono.
- Meu pai fez o que? – perguntou Amaky, esposa de Fiar, incrédula. Eles
estavam no quarto deles. Amaky estava sentada na cama, enquanto Fiar andava
de um lado para o outro no espaçoso recinto. O bebê dormia tranqüilo no berço.
- Exatamente, Amaky. Terei que matar nosso filho.
- Como, como meu pai ousa falar uma sandice dessas? Não, Fiar, eu não
consigo acreditar.
- Mas é verdade, querida. E eu não consigo ver outra saída.
Amaky olhou para seu filho, desnorteada. Poxa, ela sempre fora tão
bondosa! Nunca fizera nada de mal para ninguém. Por que tinha que passar por
isso? Seus belos olhos castanhos lacrimejaram.
- Fiar... Você é Grande Juiz. Você não pode enfrentar meu pai? Vocês têm o
mesmo poder, não é?
- Não e sim, Amaky. Sim, nós temos o mesmo poder. Mas não, não posso
enfrentá-lo. Mesmo que eu levasse isso para uma reunião só com a nata política
de Lynzea, seria ineficaz. O pulha do Ministro da População é um cachorrinho
de Malrua, que está ao lado do seu pai. Ainda que Sarbrar fique do meu lado,
serão três contra dois.
- Fiar, temos que fazer alguma coisa.
- Eu sei, Amaky, mas o quê? Estamos de mãos atadas!
Amaky pesou as palavras de Lian Fiar em silêncio, até que se levantou
resoluta e se dirigiu à porta.
- Onde vai, querida? – perguntou Lian Fiar, assustado.
- Vou falar com meu pai. Ele deve estar louco, só pode ser isso. Eu vou
tirar essa idéia da cabeça dele, nem que seja a última coisa que eu faça.
- E então, Amaky, conseguiu dissuadi-lo? – perguntou Fiar, ao ver a
esposa entrar no quarto.
- Não, Fiar. Pior. – respondeu a mulher, abatida.
- O que ele falou?
- Que, se você não fizer isso dentro de uma semana, ele mesmo fará. Em
praça pública.
- Sarbrar, preciso de você. – disse Fiar, adentrando no laboratório do
amigo com ímpeto.
40
- O que foi, Fiar? – perguntou Sarbrar, assustado. O Grande Juiz não
costumava ser assim.
- Prefiro falar com você em particular. – respondeu Fiar, olhando para os
assistentes de Sarbrar com desconfiança.
- Saiam. Depois continuamos nosso trabalho. – ordenou o pesquisador aos
seus assistentes. – O que houve, Fiar?
- Preciso da sua ajuda. O rei quer que eu mate meu filho, por causa de uma
profecia, mas eu não quero fazer isso. Eu não posso, Sarbrar.
- Conte-me tudo, Fiar. Depois achamos um plano de ação. – disse Sarbrar,
indicando uma cadeira com a mão para Fiar, enquanto puxava outra para si.
Fiar contou a história, e Sarbrar ficou em silêncio, ponderando.
- E então, Sarbrar, o que devo fazer?
- Fiar, a política é um negócio sujo. E eu sei como você é honesto. Mas,
desculpe, dessa vez você precisa jogar sujo. Se não por você, pelo seu filho. É
preciso que você cobre alguns favores. Sem medo.
Fiar assobiou. Ele tinha um bocado de favores a cobrar.
- Senhor rei, matarei meu filho na floresta, numa clareira. Depois o senhor
pode checar. – sussurrou Fiar, ao cruzar com o monarca num dos corredores do
castelo.
O aceno de cabeça foi o suficiente.
Todos estavam reunidos na clareira. O açougueiro, com um porco raspado
preso por uma coleira, o escultor, com uma sacola, o pastor e um mago leal aos
Lam. Fiar estava com seu filho nos braços. O bebê dormia inocentemente.
- Estão com o que lhes pedi, senhores? – perguntou Fiar. Todos
murmuraram um “sim”. – Então, comecemos. – disse ele.
O escultor ajoelhou-se, colocando delicadamente no chão pedaços de
argila em formato de ossos élficos de bebês no chão, para depois espalhá-los de
um modo aleatório, como se um animal faminto houvesse passado por lá e feito
um lanche com a criança abandonada. Alguns dos pedaços de argila menores
foram devolvidos à sacola, como se o lobo os houvesse ingerido junto.
Após o escultor se retrair, o mago avançou, com uma magia preparada. Ele
levantou seu cajado e bradou “Argila em osso!”. Imediatamente, os pedaços de
argila se transformaram em verdadeiros ossos.
- Incrível. – sussurrou o pastor.
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- Mais do que o senhor imagina. Prossigamos. – respondeu Fiar, acenando
positivamente com a cabeça para o açougueiro, que se adiantou e cortou o
pescoço do porco. A seguir, cortou alguns pedaços do bicho, pequenos, e
colocou nos ossos recém formados.
Parecia que animais haviam devorado um bebê de colo.
- Senhor pastor, o senhor sabe o que fazer?
- Sim, Lian Fiar. Devo ir até Sparon, na casa dos mercadores Lam, e
entregar o bebê e essa carta a eles.
- Excelente. Faça uma boa viagem. – disse Fiar, com lágrimas nos olhos,
entregando o filho ao pastor.
- Mestre... Só tenho uma dúvida.
- Pois não?
- Qual é o nome da criança? Certamente que não quer que os mercadores
dêem o nome de seu filho, não é?
- O nome?
- Sim, senhor, o nome de seu filho.
- O nome que eu sempre quis para o meu filho. O nome que eu sempre
quis ter. Um nome forte. Um nome que certamente será honrado por esse
menino, senhor pastor. Pois, ainda que eu esteja de coração partido, e minha
mulher ainda mais, por não poder saber da verdade, sei que isso é o melhor a
ser feito. Então, damos um nome de um verdadeiro guerreiro, honrado, fiel,
justo e corajoso. Um nome digno dele.
“O nome é Corash Lam”
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Capitulo Dez
- Seu filho? Como?! “Lam”, na língua antiga, significa “mercador”! – disse
Corash, atordoado.
- De fato. No entanto, uma palavra pode ter mais de um significado. Em
nosso caso, “Lam” significa “justo”.
- Não pode ser verdade, senhor! – disse Mahslia – Eu conheço Corash
desde criança, e sou quase fluente na língua antiga! “Lam” sempre significou
“mercador”!
- Não, minha jovem. Nos primórdios da linguagem, “Lam” significava
“justo”. No entanto, houve certo Lam, creio que o nome dele era Milonna Lam,
que não seguiu o mesmo rumo da família, e virou um mercador. A partir disso,
a família se dividiu entre os “Lam da justiça” e os “Lam do mercado”.
- E como o senhor sabe com certeza que o Corash é seu filho? – perguntou
Avalas, astuto. Lian Fiar olhou para ele, sorrindo.
- Avalas, me lembro de você em minhas aulas. Sempre foi um bom
arqueiro, mas suas melhores notas sempre foram no quesito da estratégia. Pelo
jeito você não perdeu esta característica. Bom, eu preciso de um pouco mais de
tempo para explicar isso.
“Vejam, a família Lam sempre foi uma família de arqueiros. Está no
sangue, não há uma explicação lógica. Os advindos da linhagem direta dos
‘Lam da justiça’ sempre terão uma habilidade inata com o arco e flecha. Sempre
fomos uma família abastada justamente porque nossa arquearia era muito boa.
Os grandes generais arqueiros, invariavelmente, eram Lam. O que nos
destacava dos demais é que tínhamos, em nosso sangue, certo poder mágico.
Não o suficiente para virarmos magos de elite, mas dava para nos defendermos.
Só que nós conseguíamos ‘aplicar’ essa magia em nossas flechas, deixando-as
mais poderosas do que seriam normalmente. Podíamos soltar flechas sonoras,
para atordoarmos nossos inimigos, flechas congelantes, para paralisarmos,
entre outras. Como eu disse, os ‘Lam da justiça’ têm habilidade inata com o arco
e flecha. Oras, o Corash é um arqueiro que conseguiu utilizar uma flecha
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flamejante do nada! A única explicação lógica para isso é ele ser meu filho
perdido.”
- Faz sentido... Por isso que você nos protegeu, no julgamento. Para não
matar de vez seu filho, não é? – perguntou Avalas.
- Em partes. Lembre-se que eu gosto de ser o mais justo possível, enquanto
eu puder. Agora, eu sei que vocês precisam fugir. A Arena só permite um
campeão. Se vocês ganharem, serão obrigados a matar uns aos outros. Assim,
terão que fugir. De preferência imediatamente antes da final, assim o rei terá
dificuldade em armar um esquadrão para recapturá-los.
“A Arena está no exato limite da cidade, e possui duas saídas – uma a leste
e uma a oeste. A saída a leste dá na cidade, então é inútil. Vocês devem sair,
então, pelo oeste. O maior problema, no entanto, é que a saída a oeste
‘desemboca’ diretamente nas Dunas Congeladas. Caso vocês não saibam, as
Dunas Congeladas não formam um deserto tão grande assim. Ele é, na verdade,
pequeno. O grande problema é que ele é um lugar muito mágico, e ilude os
viajantes, para o bem e para o mal.”
- Hm... Então teremos que inevitavelmente cruzar as Dunas Congeladas? –
perguntou Corash, olhando de soslaio para Mahslia e Avalas, que
enrubesceram.
- Sim. As Dunas Congeladas também têm uma propriedade estranha, pois
ela sempre vai deixar os viajantes na Montanha Selque. É o único caminho para
lá, inclusive. De qualquer maneira, vocês estarão na Montanha Selque. De lá,
vocês devem seguir sempre rumo oeste. Assim, sairão perto de Sparon. Algo
mais?
- Acho que não. Mas... Como saberemos como sair da prisão? – perguntou
Mahslia, finalmente.
- Ah, isso vocês saberão no momento certo. Direi apenas que seu novo
amigo sabe. – respondeu Lian Fiar, sorrindo. E, com essas palavras enigmáticas,
ele rodopiou em seus calcanhares, destrancou a cela e saiu, com seu manto
vermelho e dourado esvoaçando atrás dele. Mas ele não se esqueceu de fechar
novamente as grades do cubículo de pedra que atrasava os amigos.
44
Capitulo Onze
Dois dias haviam se passado desde a visita de Lian Fiar. Dois dias
silenciosos e longos, nos quais os únicos barulhos ouvidos foram a abertura da
cela para a entrada de comida e a pedra de amolar improvisada de Avalas indo
de encontro à espada tosca.
- Chega! Eu não agüento mais! – explodiu Corash, subitamente.
- Paciência, Corash. Eu entendo sua ânsia de sair daqui, mas não adianta
explodir. Espere. Temos que esperar nosso companheiro.
- Não vamos mudar para a cela dele?
- Ah, claro. É realmente muito mais fácil mudar três pessoas de cela do que
mudar uma. – respondeu Avalas, sarcástico. Mahslia começou a gargalhar.
- Qual a graça, Mahslia? – perguntou Corash, emburrado.
- Vocês! – disse ela, tentando respirar.
- O que temos nós? – questionou Corash, ficando nervoso.
- Olhem para vocês! Parecem duas crianças brigando!
Avalas esboçou um sorriso, e até Corash riu. Mahslia continuou rindo,
mesmo quando o guarda pediu silêncio.
- A que ponto chegamos, não? – perguntou Avalas, depois de uma hora,
parecendo um pouco triste. – Estamos rindo de brigas entre nós mesmos. Isso é
tão...
- Macabro? – sugeriu uma nova voz na cela. Uma voz rouca. Os três
amigos se viraram para a voz com as mãos nas armas. A porta da cela estava
aberta, e o guarda escoltava uma pessoa grande e forte, com as mãos algemadas
para trás. Sua pele era marrom, em contraste com a típica pele de orc, mas era
um marrom bonito. O rosto era até bonito, para um orc, sem ser muito rústico
nem muito delicado. Os olhos, que em orcs eram cruéis, tinham um brilho sábio
e bondoso, e seu sorriso branco era bonito de se ver.
- Entre, seu vagabundo – disse o guarda, rudemente empurrando o recém-
chegado para a cela. Quando o prisioneiro caiu de joelhos, o guarda
45
rapidamente retirou suas algemas, deixou cair um machado no chão e saiu,
trancando a porta.
- Desculpem-me entrar de modo tão brusco. Eu sou Krummel, seu novo
companheiro de cela, e, como podem ver, sou um meio-orc.
- É um prazer, Krummel. Meu nome é Avalas, e esses são Corash e
Mahslia. Somos um grupo, agora, de modo que é melhor se acostumar com a
sensibilidade da Mahslia e a idiotice aguçada do Corash. – disse o grande
espadachim, estendendo a mão para Krummel, que a apertou. Os dois gigantes
não poderiam ser mais diferentes um do outro. Enquanto Krummel tinha olhos
bondosos, calorosos, pele escura e sorriso fácil, Avalas tinha olhos frios e
calculistas, pele alvíssima e nunca sorria.
- É um prazer. Diga-me uma coisa, qual sua outra metade? – atropelou-se
Corash.
- Eu sou mestiço de humanos, também. – Corash contorceu o rosto. –
Algum problema?
- Não gosto de humanos. Eles são horríveis. Falsos, metidos, ignorantes,
grosseiros...
- E você está sendo quase tudo isso em dobro, além de preconceituoso. Os
seres pensantes são assim, independentemente da raça à qual pertencem. Elfos,
inclusive.
O silêncio pairou no recinto. As palavras de Krummel pesaram.
- E o plano, qual é? De sair da prisão, digo. – perguntou Mahslia.
- Ah, sim. Bom, vamos lá. A partir da cela em que estamos agora,
seguimos para a direita, viramos a segunda esquerda e vamos até a terceira
porta, também à esquerda. É o depósito de armas. Pegaremos nossas armas,
vestiremos armaduras e continuaremos andando, como se não houvéssemos
parado. Viraremos na primeira direita que encontrarmos, e nos separaremos em
dois grupos – Corash e Avalas vão para a direita, Mahslia e eu iremos para a
esquerda. Para abrirmos os portões, duas alavancas precisam ser acionadas.
Cada um dos grupos ativará a sua, e voltaremos correndo para a bifurcação,
seguindo reto até o portão e as Dunas Congeladas? Entenderam?
- Só vejo uma falha: a parada para pegarmos equipamentos. Certamente os
guardas notarão nossa falta. Quando conversamos, eles ouvem apenas ruídos.
Eles acham estranho, porém, que fiquemos quietos. – atestou Avalas, depois de
uma longa reflexão
- Sim. Só temos que ficar quietos por muito tempo, e poderemos disfarçar
bastante a nossa fuga. – respondeu Krummel, sorrindo.
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- Falar é fácil. Além disso, o que faremos quando encontrarmos os
guardas? Certamente eles patrulham os corredores, ou ao menos tem postos
estratégicos por esta masmorra. – perguntou Corash, sensatamente.
- Quando encontrarmos os guardas, se é que vamos encontrá-los, jovem
Corash, teremos que improvisar. E seria bom que suas flechas sejam precisas e
velozes. Eu garanto o sangue no meu machado, e pelo físico de Avalas, ele
também se garante. – retrucou o meio-orc, sorrindo.
Mas, apesar do sorriso gentil, seus olhos brilhavam, clamando por sangue.
Três dias depois, um guarda os chamou para a próxima luta.
47
Capitulo Doze
A Arena estava do mesmo jeito que eles a tinham deixado. Do outro lado,
um humano, um anão, um elfo e um halfling os observavam, desconfiados. O
humano tinha cabelos negros como a noite, e um rosto razoavelmente bonito,
apesar de um pouco sofrido. O anão era corpulento, forte e parecia perigoso. O
elfo os olhava com desprezo, e o pequeno halfling parecia analisá-los. Seus
olhos espertos pulavam de um para o outro.
- Avalas, deixo o anão para você. Minha armadura é mais leve que a sua, e
esse desgraçado parece forte. Eu vou lutar com o humano. – disse Krummel,
pensando rápido
- Parece justo. Mahslia, esse elfo tem jeito de ser mago. Você consegue
rebater as magias dele? – continuou Avalas.
- Posso tentar, Avalas, mas não posso garantir. Tudo bem?
- Vai ter que servir. Corash, você nos dê cobertura! – ordenou Avalas.
- Certo, mas vocês não estão se esquecendo do halfling, não? – perguntou
Corash.
Krummel trincou os dentes com força. Era verdade, eles haviam mesmo
esquecido do halfling.
- Certo. Alguma idéia do que ele é, Avalas? – perguntou o meio-orc.
- Pequenino e rápido? Um batedor, acho eu. Ou então um ladino.
- E qual o uso de um ladino em campo de batalha? – questionou Corash.
- Idiota. – suspirou Avalas. – Ladinos são mestres do disfarce, do roubo, da
furtividade. São guerreiros perfeitos para flanquear o inimigo, distraí-los... E
cuide bem de suas flechas. Ele pode afaná-las, e não queremos isso. – disse o
espadachim, puxando sua enorme espada. Krummel sacou seu machado, e
Mahslia preparou seu cajado.
Sem muitas opções, Corash preparou uma flecha e retesou seu arco.
E a luta começou.
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Enquanto Krummel e Avalas corriam contra os inimigos, Corash lançou
suas flechas certeiras. Uma pegou na coxa do humano, e a outra acertaria
perfeitamente a cabeça do anão, se ele não houvesse erguido o escudo. O
halfling saiu correndo pela Arena, enquanto o elfo começou a fazer gestos
esquisitos. Mahslia começou a sussurrar, conjurando uma magia.
Corash manteve os olhos no halfling, preparando uma flecha. O pequeno
ladino corria pela Arena, sem um padrão de direção. Ele tinha uma espada
curta nas mãos, e não usava escudo. Uma flechada poderia matá-lo.
Aquele maldito anão estava irritando Avalas. Profundamente.
Primeiro, era difícil de acertá-lo. Por ser muito alto, Avalas teria que
abaixar bastante para atacar o inimigo. Por conseqüência, Avalas só podia
atacar a cabeça e os ombros do outro, que defendia com o escudo. A sorte do
grande espadachim era que seus golpes eram tão poderosos que atordoavam o
inimigo, e ele não revidava os ataques.
A flecha de Corash tirara toda a graça da batalha, para Krummel. O
humano estava com a mobilidade comprometida, a armadura enfraquecida e
sua maça-estrela tinha espinhos em falta. Algumas machadadas do meio-orc
foram suficientes para eliminá-lo. Ridículo.
“Vamos, seu halfling maldito, fique parado!” pensou Corash, raivoso.
O elfo abriu os olhos, luzidios de poder.
- Bola de fogo maior! – conjurou ele. De suas mãos saiu um fogo que se
juntava numa bola enorme. E a bola começou a ir rapidamente na direção de
Corash. O mago voltou a seu transe, preparando mais uma magia.
E a técnica de Mahslia ainda não estava pronta.
Krummel olhou a situação dos companheiros, e decidiu que deveria atacar
o elfo. Ou seus companheiros morreriam. Aquele maldito elfo era perigoso. Mas
antes ele tinha que fazer uma coisa.
Corash atirou sua flecha na direção do halfling, e por pouco não o acertou.
Aquele maldito era rápido. Por que ele não se decidia para onde ia?
Foi então que Corash notou a enorme bola de fogo vindo em sua direção.
49
- Que inferno, Corash, será que você não consegue cuidar de si mesmo? –
urrou Krummel, pulando na frente do elfo e estendendo as mãos, segurando a
bola de fogo. O machado fora guardado novamente na cintura.
- Krummel! O que você está fazendo?
- Deixando o arqueiro estúpido vivo, não é óbvio? – respondeu ele, com
sarcasmo. Sua voz tinha uma nota de dor. – Mahslia, a magia está pronta? –
urrou ele para a maga.
- Só falta mais um pouco! – respondeu ela, cada vez mais concentrada.
Subitamente, Corash teve uma idéia.
- Mahslia! Alterne a magia para ajudar o Avalas! Deixe que eu cuido da
bola de fogo! – gritou o arqueiro para a amiga.
- O quê? Ficou louco? Você não é mago, Corash! – gritou Krummel.
- Confie em mim! – retrucou o elfo, armando uma flecha no seu arco. –
Diga-me onde está o mago deles, Krummel!
- Corash...
- Confie em mim!
- De onde você está, basta mirar no meio da bola de fogo.
- Excelente! Quando eu falar, você sai do caminho, entendido? – perguntou
Corash, pulando para trás e apontando a flecha para o meio da bola de fogo. E,
por conseqüência, para a cabeça de Krummel.
- Vamos logo! – gritou Krummel.
- Saia, Krummel! Eldr Or! – ordenou Corash, lançando a flecha no meio da
bola de fogo. A flecha flamejante atravessou o golpe do mago adversário, mas
algo de extraordinário aconteceu: as chamas que os atacavam se incorporaram
ao fogo de Corash, e as labaredas tomaram a forma de um dragão, voando na
direção do mago inimigo.
Avalas estava ficando realmente irritado com aquele anão. Já era para ele
ter morrido! No entanto, ele continuava firme em sua posição. E Avalas insistia
em seus brutais golpes.
- Vamos, maldito, abaixe esse escudo!
- Muito bem! – sorriu o anão perigosamente. Seus olhos brilhavam de um
modo maroto. Um modo que devia ter avisado Avalas.
Mas a raiva havia o cegado.
Com uma súbita e lancinante dor na perna esquerda, Avalas caiu de
joelhos. A parte posterior de sua coxa doía absurdamente, como se houvesse
tomado um golpe de espada. A enorme montante do elfo caiu no chão.
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Então, de canto de olho, Avalas viu. O halfling já saía de seu alcance, mas
seu sorriso brilhava. E sua espada também, com o sangue do enorme elfo.
- Morra, seu idiota! – berrou o anão, erguendo um machado enferrujado
para brandi-lo na direção da cabeça de Avalas.
- Metal em Pedra! – gritou Mahslia, abrindo os olhos, que brilhavam
vermelhos.
O anão tombou para trás com a súbita mudança de peso. Não foi o
suficiente para machucá-lo. Não em um primeiro momento.
O tombo deu chance para a recuperação de Avalas. Agarrando o pé do
anão, ele o ergueu com ódio no olhar. Era hora da vingança. O grande
espadachim levantou-se com dificuldade e jogou longe o elmo do inimigo. Em
seguida, girou-o como um laço, para lançá-lo de cabeça na parede de pedra da
arena. Um horrível som de ossos quebrando se fez ouvir por todo o recinto,
fazendo com que um arrepio passasse frio pelas costas dos presentes.
Pegando seu montante, Avalas virou-se com ódio para os inimigos
restantes.
Mas a luta já havia acabado.
O halfling havia atacado Avalas e saído de costas, para ver o parceiro
matar o enorme inimigo. O problema, para ele, é que ele havia entrado
diretamente na linha de fogo da flecha flamejante de Corash que, apesar de
estar muito alta para atingi-lo, deslocava uma imensa quantidade de energia e
vento. O suficiente para fazê-lo voar.
Aproveitando-se da situação, Krummel lançou seu machado na direção do
halfling certeiramente. A morte do pequeno adversário foi instantânea.
O mago só teve tempo de abrir os olhos antes de ser atingido pelo dragão
flamejante. O fogo o consumiu instantaneamente.
Corash abaixou o arco. Sua fronte estava suada, mas seus olhos brilhavam
determinados. Ele olhou para os companheiros e sorriu.
- Conseguimos.
51
Capitulo Treze
De volta à cela, os amigos resolveram descansar. A luta, apesar de rápida,
havia sido extremamente cansativa, principalmente para Corash, graças à
técnica, e o ferimento de Avalas era mais profundo do que parecera em um
primeiro momento.
- Como você conseguiu se ferir aí, Avalas? – perguntou Corash, recostado
na parede.
- Eu não “me feri”. Eu fui ferido. Aliás, eu fui ferido pelo halfling que você
deveria ter matado.
- Ei, pare de me culpar! O mago jogou a bola de fogo em mim! Se a
Mahslia tivesse conjurado a contra-magia antes, não teria tido esse problema! –
reclamou Corash, olhando para a amiga.
- O quê?! Seu idiota, você não atacou o mago por quê?! Ele estava em
transe, inferno! – reagiu Mahslia, ofendida.
- Que eu me lembre, eu estava te protegendo de um halfling maluco que
corria por aí com uma espada na mão tentando nos cortar.
- E eu por um acaso pedi sua proteção, seu arqueiro de meia-tigela?
- Calem a boca! – urrou Krummel, levantando-se. – Ninguém aqui tem
culpa de nada, entenderam? Não vamos conseguir nada se continuarmos
brigando, exceto nos matar. Se qualquer um de vocês deseja morrer, basta me
avisar, e eu terei o maior prazer em realizar seus desejos. Mas eu ainda quero
viver.
Ambos Corash e Mahslia silenciaram, com o rosto um pouco vermelho de
vergonha. Krummel olhou para eles com um pouco de reprovação, e em
seguida continuou:
- Avalas, deixe-me ver sua perna. Deite de bruços no chão. – ordenou o
orc. O grande elfo o obedeceu. Krummel ajoelhou-se ao lado do colega e olhou
o corte.
52
O ferimento estava feio. Eles haviam limpado como podiam, mas aquela
cela era extremamente carente de materiais. O corte havia coagulado, mas
estava um pouco inchado e extremamente sensível.
- E então, doutor Krummel, o que acha? – perguntou Avalas, com um
pouco de sarcasmo na voz.
- Está bem ruim. Eu posso mexer um pouco? – perguntou o orc, ignorando
o veneno que o grande elfo cuspira em sua direção.
- Faça como quiser, mas resolva isso, por favor. – permitiu Avalas.
Krummel se levantou e se dirigiu à porta da cela.
- Guarda! Guarda! – urrou ele, batendo na porta com toda sua força,
fazendo bastante barulho.
- O que você quer, orc maldito? – perguntou o guarda, cuspindo um pouco
no rosto de Krummel. O bárbaro não fez questão de corrigir o guarda.
- Senhor, um dos nossos colegas de cela foi ferido. Sei que não pode nos
chamar um médico, mas queremos cuidar dele. O senhor pode me arranjar
lenços limpos? – perguntou o meio-orc, contendo-se para não se limpar. Ele
precisava parecer obediente.
- Verei o que posso fazer. – disse o guarda, saindo.
- Agora, nós esperamos. – disse Krummel, limpando o rosto e abaixando-
se para examinar a perna do amigo.
- Ei, vocês! – disse uma nova voz por detrás da porta.
Corash levantou a cabeça, assustado. Outra luta agora? Não estava na
programação! Ele estava cansado demais para isso.
- O que o senhor deseja? – perguntou Krummel, indo em direção à voz.
- Vim cuidar de seus ferimentos! O rei os quer prontos para a batalha
amanhã.
“Amanhã”? Os quatro se entreolharam. O rei aparentemente soubera da
tentativa de fuga, e adiantara a batalha.
- Deixem-no entrar logo. Se temos mesmo que batalhar, ao menos eu
poderei batalhar com a perna um pouco melhor do que esta. – sibilou Avalas,
deitado com dificuldade na cama.
- Pode vir! Estamos desarmados! – gritou Krummel, afastando-se da porta
da cela, que logo após se abriu. Um elfo baixo e gordo entrou, com uma maleta
em mãos.
- Eu sou o doutor Merkus. Quem é que está ferido?
53
- Quem é o único com um sangramento óbvio? – perguntou Avalas,
irascível. A dor o tornava verdadeiramente insuportável.
O médico acenou com a cabeça, e andou na direção do grande elfo.
- Os senhores que estão bem, podem segurá-lo? Isso vai ser difícil, e acho
que é fácil ver que eu não conseguirei contê-lo sozinho.
Krummel acenou afirmativamente com a cabeça.
- Mahslia, você pode conjurar um feitiço paralisante em Avalas? Será meio
caminho andado.
- Mas então não precisamos contê-lo, não é? – perguntou a elfa,
preparando a magia.
- Mahslia, você é linda, simpática e inteligente, mas não entende nada de
magias na prática e no cotidiano – sorriu Krummel. – Por favor, confie em mim.
Cinco minutos depois, Avalas estava imobilizado, de bruços, no chão.
Corash e Mahslia sentavam em suas costas, enquanto Krummel, que pesava
aproximadamente a mesma coisa que os dois juntos, estava deitado nos
calcanhares do grande elfo, que já estava afetado pela magia de Mahslia.
- Isso tudo é mesmo necessário? Porque eu estou bem desconfortável aqui!
– reclamou Avalas.
- Calado! Doutor, pode começar. – disse Krummel, pesando mais nos
calcanhares do amigo.
O rotundo elfo se ajoelhou ao lado da perna machucada de Avalas e pegou
um bisturi de sua maleta. Com um corte preciso, ele lancetou o inchaço, que
escorreu um fétido e amarelado pus. Avalas gemeu de dor.
Com muito cuidado, o médico pegou um pano reservado e começou a
limpar o ferimento do enorme elfo, que tentava se contorcer de dor. A magia de
Mahslia estava funcionando... ainda.
- Doutor, está doendo! – reclamou Avalas, por entre os dentes.
- Eu sei, Avalas. Por favor, agüente mais um pouco. – respondeu o médico,
sem sequer erguer os olhos. De sua maleta, também tirou um frasco lacrado
com uma rolha, que ele puxou com os dentes e derramou lentamente no
ferimento. Avalas urrou.
E começou subitamente a se contorcer.
- Segurem-no firmemente! – disse o médico.
- Mas... E minha magia?! – perguntou Mahslia, jogando seu corpo em cima
de Avalas.
54
- Eu avisei que seríamos necessários. Mahslia, a força bruta muito grande
pode anular os efeitos da magia de paralisação. Ou melhor, sobrepujá-los. A
força de Avalas já é grande, sabem os deuses. Como a dor é reflexa, a força que
os músculos empregam é desmedida. Por isso estamos aqui! – explicou
Krummel, pressionando ainda mais as pernas de Avalas no chão. O médico
aproveitou e derramou um pouco mais do líquido na perna.
- Calma, Avalas, estamos fazendo isso para seu próprio bem! – resmungou
Corash. A única resposta que obteve foram os urros de dor do grande elfo.
Com paciência, o médico pegou um outro pano em sua maleta, limpando
o excesso de líquido que havia na perna de Avalas. Surpreendentemente, não
sangrava mais. No entanto, devido à dor, o enorme elfo desmaiara.
- Que é isso, senhor? – perguntou Mahslia.
- É um tipo de ácido, menina. Ele cauteriza o ferimento, impedindo-o de
sangrar. Só que dói. Bastante. – respondeu Merkus, buscando outro frasco,
menor, também lacrado com uma rolha. Destampando-o, ele derramou todo o
seu conteúdo na ferida, passou novamente o pano com que limpara o ácido e,
enfim, puxou um rolo de bandagens da maleta, fazendo um bem cuidado
curativo. Logo em seguida, recolheu suas bagunças, exceto o rolo de curativo, e
dirigiu-se para a porta.
“Aqui, meninos e menina, deixarei com vocês este rolo de bandagens.
Troquem o curativo todos os dias, sim? Se possível, lavem o ferimento todas as
vezes antes que forem trocar.”
- Mas como... – começou Corash, que logo foi silenciado por uma
cotovelada de Krummel.
- Entendemos, doutor. Muitíssimo obrigado. – agradeceu ele, fazendo uma
mesura. Mahslia e Corash o imitaram, e até Avalas fez um grunhido e acenou
com a cabeça, logo perdendo a consciência novamente.
- Então, se me dão licença... – despediu-se o médico, virando-se e saindo.
Um pedaço de papel acidentalmente caíra de um de seus bolsos. Antes que
qualquer um pudesse falar alguma coisa, Krummel sinalizou um pedido de
silêncio, abaixou-se e mostrou o papel para Corash e Mahslia. Nele, em letras
elegantes, estava escrito um recado claríssimo.
“Amanhã de manhã. Haverá amigos. Cuidem-se bem.
Fiar Lam”
55
Capitulo Catorze
Os companheiros se entreolharam, nervosos. Lian Fiar os dera apenas
algumas horas. No entanto, eles encontravam-se feridos e exaustos. Como
conseguiriam?
- O que faremos agora? – murmurou Corash, olhando para os
companheiros, desolado, após uma hora de silêncio.
Avalas dormia a sono solto. A dor e o esforço excessivo, combinados com
o cansaço, fizeram com que seu cérebro decidisse que era hora de descansar – e
simplesmente desligou assim que o médico saiu.
Mahslia estava encolhida num canto, com os cabelos ruivos um tanto
quanto embaraçados caídos na frente do rosto. Ela abraçava os joelhos, e
parecia nervosa.
Krummel, por sua vez, estava sentado em posição de lótus, meditando.
Era o único realmente calmo, à exceção de Avalas, que sequer tinha consciência
do que ocorria à sua volta. Foi ele que respondeu, sem sequer abrir os olhos,
com uma voz que indicava, talvez, um pouco de sono.
- Acredito que tenhamos cinco horas até a hora final. Nesse tempo,
deveremos nos preparar na medida do possível. Em primeiro lugar, você e
Mahslia devem se acalmar. Se vocês ficarem nervosos, apenas farão com que
nossas possibilidades de falhas cresçam. Em segundo lugar, nossas mortes são
certas – seja se considerarmos o tempo como implacável, seja se considerarmos
que nossas chances de sobrevivermos à arena estão diminuindo – e, mesmo que
sobrevivamos, pode ser que sejamos executados. Ou seja, se vamos morrer, ao
menos que seja de forma a tentarmos viver.
Mahslia levantou os olhos para Krummel. Ela chorava.
Olhando para a amiga, Corash sentiu um aperto no coração. Ela sempre
fora mais forte do que ele... e lá estava ela, chorando desesperada.
56
“Não posso deixa-la assim”, decidiu Corash. O arqueiro se levantou e
sentou ao lado da amiga, puxando-a para seu ombro enquanto afagava a cabeça
da amiga com a outra mão. Mahslia começou a soluçar de modo forte, enquanto
suas lágrimas molhavam levemente o ombro do amigo.
- Você está certo, Krummel. Como podemos nos preparar para nossa fuga?
– perguntou o arqueiro, olhando firmemente para o bárbaro.
- Descansem. Precisaremos de toda força que pudermos reunir, e garanto a
vocês que não será pouca.
- E como saberemos quando chegar a hora?
Pela primeira vez desde que sentara, Krummel abriu os olhos, olhando
ferozmente para Corash.
- Não se preocupe. Eu os avisarei.
Corash assentiu, fechando os olhos. Sua mão continuava a afagar a cabeça
de Mahslia, que parara de chorar e agora ressonava levemente no ombro de
Corash.
Krummel olhou para os dois elfos e sorriu de leve. Eles eram ótimos
companheiros, pensou ele.
E voltou ao seu estado meditativo.
O deserto vermelho estava escaldante. O vento que soprava ciscos nos
olhos de Corash tampouco ajudava a dissipar o calor, uma vez que também
estava muito quente. O céu azul não tinha nuvens e, à toda a volta, só se via
areia e mais areia, vermelha e ameaçadora.
“Onde estou?” perguntou-se Corash, de modo vagaroso, olhando para o
céu, deitado. Logo depois, arrependeu-se da pergunta. Era óbvio que estava em
um deserto. O calor não estava permitindo que pensasse direito.
Tentou mover o braço direito. Ele se movia, com um pouco de lentidão, é
verdade, mas se movia. Isso era bom. Fez o mesmo com o outro braço e as
pernas. Todos os membros se moviam. Ótimo. No geral, parecia apenas que ele
acabara de acordar.
Corash espreguiçou-se, espantando o vagar dos músculos. Uma sensação
prazerosa percorreu seu corpo, o arrepiando. Em seguida, o jovem arqueiro
sentou-se na areia, sacudindo a cabeça para espanar do cabelo a sujeira.
“Bom, isso é estranho. Até agora há pouco eu estava em uma cela fedida
com a Mahslia, o Krummel e o Avalas. E agora, estou no deserto, sozinho. O
que houve?” perguntou-se, olhando fixamente para o oeste. Sabia que olhava
para o oeste porque o sol nascente queimava sua nuca violentamente.
57
Algumas teorias passaram por sua cabeça, mas nenhuma era plausível.
Não fora o rei que o enviara lá, uma vez que seu time era a mais nova sensação
da arena; tampouco fora Lian Fiar – sendo seu pai e desejando que os amigos
fugissem, teria no mínimo a decência de dar a eles suprimentos e de os deixar
juntos, e não espalhados por um deserto desconhecido.
Pensar em seu pai o lembrou de uma coisa de extrema importância: seu
arco. Levando a mão às costas, notou que estava desarmado.
“Excelente. Sozinho, desarmado e sem água ou comida no meio de um
deserto. Tem como ficar pior?”, perguntou-se ele, emburrado.
Naturalmente, tinha.
Os ouvidos de Corash captaram um som baixo e gutural, meio rasgado e
meio animalesco. Podia não ser nada.
“Nada é nada”, pensou o jovem arqueiro, repetindo a máxima que seu
mestre ensinara na vila de Sparon. Um pouco nervoso, Corash olhou para trás.
A areia se movia um pouco, como se borbulhasse. O som aumentava a
cada segundo, até que o chão pareceu explodir em som e vermelhidão
pulverizada. Um corpo cilíndrico, segmentado e comprido saíra do chão,
rugindo e mostrando a boca redonda, cheia de dentes e sem mandíbula. Dois
pequenos olhos malvados focavam no magro elfo, cheios de fome.
“Uma minhoca do deserto? Não é possível.”, pensou Corash, desesperado
com sua própria sorte; ou melhor, com sua falta de sorte. Entre todos os
predadores, a minhoca do deserto era conhecida como a mais cruel e voraz. Seu
cérebro minúsculo fora programado de modo binário, ou seja, ela alternava sua
vida entre a caça e o sono. Eram as duas únicas coisas que conseguia
compreender. Todo o resto estava fora de sua alçada cognitiva. Dor, tristeza,
felicidade, isso nunca afetara as minhocas do deserto.
A minhoca olhou Corash maldosamente e farejou o ar. Além do cheiro de
sua nova presa, só conseguia sentir o cheiro de outras de sua espécie, mas ela
estava cansada de caçar outras minhocas. Elas eram duras demais, molengas
demais, pouco nutritivas demais. Não, ela queria algo novo. Algo com um
cheiro mais doce, mais vivo, mais desesperado.
Exatamente como esse elfo que se apresentava a ela.
Seu cérebro binário ordenou que caçasse logo. A minhoca obedeceu. Ela
não tinha muita opção, é claro, mas se tivesse, teria feito o mesmo.
58
Com sede de sangue, a minhoca mergulhou no chão, engolindo diversos
quilos de areia por segundo e se dirigindo rapidamente a Corash. Logo mais,
ela teria um banquete.
Corash viu a minhoca mergulhar e a areia começar a se mover
ligeiramente em sua direção.
“Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. O que faço?”
Corash deu um pulo para frente e saiu correndo desabalado.
Quinze minutos depois, Corash não aguentava mais correr. Seu lado dava
pontadas dolorosas, seu corpo gritava por água e seu pulmão pedia por ar
fresco.
Apoiando-se nos joelhos, Corash tentou recuperar o fôlego. Durara quinze
minutos; era um feito notável. No entanto, não sabia quanto mais poderia
durar, já que estava desarmado e extremamente cansado. Seus lábios estavam
grudentos, e seu corpo estava coberto por suor seco – quando notaram que a
água não viria, suas glândulas sudoríparas pararam de trabalhar.
O rugido voltou a se aproximar, dessa vez mais violento. A minhoca
parecia brava porque sua presa durara tanto.
Corash riu, aquele riso louco que precede a morte. Parecia engraçado que
correra tanto para nada; que lutara tanto na arena para nada; que finalmente
conhecera seu pai para nada.
Ele se virou para a minhoca. Se fosse para morrer, morreria encarando-a
de frente.
O chão novamente explodiu, e a minhoca se ergueu contra o céu, cinco
metros mais alta do que Corash, e apontou para ele sua boca.
Era agora. Corash olhou para o céu, desejando ter conhecido também sua
mãe. Era um sonho impossível, a essa altura do campeonato.
A minhoca avançou.
E sua cabeça segmentada explodiu, espirrando sangue verde e carne de
minhoca para todos os lados.
Limpando o rosto, Corash olhou para os lados, procurando a pessoa
responsável por esse ato.
Ao olhar para trás, foi quando viu. Uma mulher magra e razoavelmente
alta, com bonitas curvas e um lindo rosto, estava com a mão enluvada apontada
para onde estivera a minhoca. Ela vestia roupas extremamente elegantes, que
estavam absolutamente deslocadas do lugar em que estavam. Seus cabelos
59
castanhos eram bem cuidados, com duas pequenas tranças saindo de suas
têmporas para a parte de trás da cabeça. O resto do cabelo caía às suas costas,
numa cascata de lindos cachos. Sua cabeça era circundada por um delicado
diadema dourado, que era ornado por um brilhante rubi bem no centro de sua
testa. Sua pele morena era lisa e bem cuidada.
- Olá, meu filho. – cumprimentou Amaky, sorrindo para Corash
calorosamente.
Capitulo Quinze
- Corash... Corash... Acorde, elfo! – dizia a mulher, com uma voz muito
grossa. Muito mais grossa do que deveria, considerando seu tamanho. Aquela
voz era metálica, quase uma voz de orc.
Orc. Corash subitamente lembrou-se de Krummel.
Sobressaltado, o jovem arqueiro abriu os olhos, com o corpo se sacudindo
um pouco. Krummel encontrava-se acocorado à sua frente, com um pouco de
preocupação no rosto.
- Você está bem, Corash? – perguntou ele, levantando-se e estendendo a
mão para ajudar o amigo. Mahslia não mais estava dormindo em seu ombro.
- Sim, estou. Apenas tive um sonho estranho, mas não foi nada demais. Já
é hora? – perguntou ele, olhando pela cela.
Mahslia estava de pé, se alongando. Seu cabelo ruivo fora preso num rabo
de cavalo, e seus olhos pareciam pegar fogo. Ela olhou para Corash e sorriu
calorosamente para ele, acenando positivamente com a cabeça em resposta.
Essa, sim, era a Mahslia que ele conhecia.
Avalas, por sua vez, estava recostado na parede, com uma perna cruzada à
frente da outra. Sua espada descansava ao seu lado, e não às suas costas, como
de praxe. Apesar de toda a pose, ainda parecia um pouco pálido.
- Você está bem, Avalas? – perguntou Corash, olhando para o
companheiro.
- Sim. Obrigado por cuidarem de mim, a propósito. Se não fossem vocês,
provavelmente eu estaria num caminho sem volta para a morte. – disse ele,
tentando esboçar um sorriso.
Corash sorriu. Apesar de ser um humor um tanto quanto negro, já era um
começo, ele tinha que admitir.
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  • 2. 2 Todos os mundos têm uma história, e todas as histórias merecem ser contadas, vistas e vividas. Dedico, então, esse livro aos milhares de mundos que existem. Aos que ainda estão invisíveis, e esperam as palavras de um autor para que venham a nós. Aos que já estão entre nós, e nos encantam e maravilham. E aos que ainda virão a existir.
  • 3. 3 Agradecimentos A todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para meu crescimento moral, intelectual e espiritual; A meus pais, verdadeiros guerreiros, por me darem meus maiores tesouros; A Flaubert, por ler antes de todos e me dar suas valiosas opiniões, que tanto contribuíram e ajudaram na evolução do livro; E ao leitor, pelo voto de confiança; Muito obrigado.
  • 4. 4 Sumário Agradecimentos............................................................................................................... 3 Sumário ........................................................................................................................... 4 Prologo ............................................................................................................................ 5 Capitulo Um .................................................................................................................... 8 Capitulo Dois ................................................................................................................ 10 Capitulo Três............................................................................................................... 12 Capitulo Quatro........................................................................................................... 14 Capitulo Cinco............................................................................................................... 16 Capitulo Seis ................................................................................................................. 20 Capitulo Sete ................................................................................................................ 23 Capitulo Oito ................................................................................................................ 27 Capitulo Nove ............................................................................................................... 30 Capitulo Dez................................................................................................................. 42 Capitulo Onze ............................................................................................................... 44 Capitulo Doze............................................................................................................... 47 Capitulo Treze............................................................................................................. 51 Capitulo Catorze ......................................................................................................... 55 Capitulo Quinze ............................................................................................................ 59 Capitulo Dezesseis........................................................................................................ 65 Capitulo Dezessete....................................................................................................... 69 Capitulo Dezoito.......................................................................................................... 78 Capitulo Dezenove........................................................................................................ 86 Capitulo Vinte.............................................................................................................. 91 Capitulo Vinte e Um ..................................................................................................... 96 Capitulo Vinte e Dois................................................................................................. 103 Capitulo Vinte e Tres................................................................................................ 107 Capitulo Vinte e Quatro............................................................................................ 117 Epilogo......................................................................................................................... 137
  • 5. 5 Prologo O homem olhou para frente fixamente, com o capuz de seu negro manto encobrindo completamente seu rosto. Seus olhos, com grandes írises vermelhas, brilhavam maliciosos e frios. A escuridão predominava no recinto, com apenas uma fonte de luz dissipando-a. O homem começou a caminhar na direção da luz, lenta e firmemente. - Como está o ritual? – perguntou ele, com sua voz fria ecoando alta pela sala. - Pronto, meu amigo. Apenas precisamos de você para fechar o círculo - respondeu um vulto alto e magro à sua direita. - Então, completemos a cerimônia – decidiu ele, dando as mãos para o segundo homem que falara e para um ser baixo e atarracado à sua esquerda. O homem fechou seus olhos vermelhos e concentrou-se. Quando falou novamente, sua voz estava diferente. Mais grave e poderosa. – Aqui selamos esta poderosa arma para que apenas a pessoa mais digna de possuí-la consiga retira-la de seu túmulo. Nós, representantes de todas as raças, nos reunimos para realizar a Jura de Vida que selará o objeto. - Eu sou Ja-Fis, dos anões – disse o vulto atarracado à esquerda do homem. - Sou Aelry, dos orcs – gritou um vulto grande e fedorento, a esquerda do anão. - Meu nome é Kethel, dos halflings. – sussurrou um vulto baixo a esquerda do orc. - Rial Ruil, dos elfos – disse o vulto alto e magro à direita do homem que falara primeiro. - Cael Kash, dos humanos – falou o homem. Ao som de seu nome, uma luz dourada nasceu no centro do círculo e se expandiu, englobando toda a sala. A inconsciência de quase todos foi imediata. - Então, a última arma foi selada – sussurrou Cael Kash, caindo de bruços no chão e morrendo.
  • 6. 6
  • 7. 7
  • 8. 8 Capitulo Um Corash acordou sobressaltado. Ele tivera um sonho muito estranho. Algumas pessoas meio macabras estavam fazendo um ritual estranho. E havia uma arma envolvida... Talvez uma apresentação seja útil a essa altura. Corash Lam era um típico elfo, alto e esguio. Sua pele era pálida, e seu cabelo castanho curto era arrepiado. Vindo de uma tradicional família de mercadores, Corash foi o primeiro Lam a treinar para se tornar um guerreiro da vila. Mesmo enfrentando muito preconceito por parte de seus pais e irmãos, ele conseguiu, por mérito próprio, entrar no Esquadrão de Arquearia do exército. Mas ele ainda era apenas um aprendiz, o que significava que ele não poderia combater junto aos formados, sob pena de morte. Só que a vila precisava, agora mais que nunca, de guerreiros qualificados, pois uma guerra contra orcs ameaçava todo o Reino de Lynzea, e a vila de Sparon era o primeiro obstáculo do exército seguinte. E o exército de Sparon necessitava urgentemente de combatentes para a guerra. Caso contrario, todo o reino de Lynzea poderia ser esmagado. Enquanto pensava nisso, Corash ouviu uma batida na porta. - Entre! – disse ele – Ah!, olá, Mahslia. Como vai? - Oi, Corash. Eu estou bem, e você? – disse a elfa, inclinando-se para beijar Corash no rosto. Mahslia era uma bonita elfa, com cabelos ruivos presos em um rabo de cavalo comprido. Ela parecia ser delicada e meiga. Coisa que, realmente, ela era. O que não significava que ela era fraca. Pois Mahslia era uma das melhores aprendizes de maga de toda a vila. - Eu estou bem, Ma, mas eu tive um sonho realmente estranho. - Como foi? – perguntou a amiga, solícita. Os sonhos de Corash eram realmente incríveis. Eram quase que um oráculo para ela. - Ah, um círculo de pessoas estava selando uma arma dourada. Mas não pode ser de verdade, não é? - Pode sim, Co, pode sim. Mas não se preocupe com eles. Preocupe-se em treinar para se formar rapidamente. Corash não respondeu. Ele queria, mas não tinha respostas para a amiga. Afinal, alguma vozinha insistente no fundo de sua cabeça dizia
  • 9. 9 incessantemente que a arma seria vital para a sobrevivência da vila, e que a mesma arma vital estava na Montanha Selque, gigante e impenetrável.
  • 10. 10 Capitulo Dois Era meio-dia quando o sino da vila tocou, chamando todos os cidadãos para uma reunião. - Como todos devem saber, nossa vila está em mortal perigo. – O autor desta frase foi o líder da vila, Nisual – E estou convocando a todos, pois creio que ninguém deve ficar calado. Alguém tem algum plano? - Líder, eu bolei um, que acho que deverá servir. Por que não plantamos armadilhas pelo campo de batalha? Poderemos, assim, dizimar parte do exército inimigo sem que eles ao menos possam revidar. – disse um elfo de voz fria e estatura grande. - Excelente, mesmo. Todos os melhores alquimistas e magos, já podem começar. Mais alguém? - Líder – disse Corash – eu tive um sonho hoje, sobre uma arma muitíssimo poderosa. Talvez algum de nós possa sair numa missão para recuperá-la? - Corash, todos sabemos que seus sonhos são proféticos, – riu Nisual – mas você quer mesmo que nós acreditemos que uma arma, apenas uma, poderá salvar nossa vila? Pelo amor dos deuses! Corash silenciou, e ele sentiu o olhar de Mahslia em sua nuca. Mas havia mais alguém o olhando com interesse. Ele só não sabia quem. Corash estava terminando de desenhar algo em um pergaminho, quando Mahslia entrou em seu quarto. - Corash! Eu te disse para esquecer esta arma! - Desculpe-me, Mahslia, mas esta arma vai nos ajudar, eu tenho certeza. E eu vou em busca dela, querendo você ou não! - Onde você está pretendendo ir, posso saber? - À Montanha Selque, e você não vai junto comigo – acrescentou ele, captando o olhar da amiga. - Ah, eu vou sim. E, mesmo eu não acreditando nessa missão, você precisa de mim. Afinal, quem irá te proteger? - Engraçadinha. Você não vai, não. Você está muito perto de se formar, eu não posso deixá-la ir e perder a formatura.
  • 11. 11 - Formatura? Isso só serve para participar do exército! Eu vou com você, “querendo você ou não”. Assunto encerrado. - Que seja, Mahslia, mas qualquer coisa que acontecer com você é de inteira responsabilidade sua. Entendido? - Tudo bem, Co. Quando nós partimos? - Assim que você arrumar a sua mochila com cordas, comida, cantis com água e um pouco de dinheiro. E não esqueça seu cajado! - Muito bem, eu não me esquecerei. Dê-me meia hora e nós nos encontramos no portal sul da cidade. Pode ser? - Feito. Agora, apresse-se, pois eu quero começar esta jornada o quanto antes. Mal sabiam os dois amigos que havia uma terceira pessoa escutando sua conversa pela janela. Corash olhava para a sombra do relógio de sol da cidade, impaciente. Mahslia estava atrasada. - Co! Cheguei! – disse uma Mahslia ofegante. - Aleluia, garota! Você demorou duas horas a mais que o previsto! - Desculpe. Eu tive que me livrar dos meus pais. E você, como chegou aqui no horário? – disse a garota, na defensiva. - Você conhece meus pais. Eles me acham um fracassado, não ligam se eu ficar fora até tarde. – respondeu o garoto, irritado. - Co, desculpe! Eu... – começou a garota - Deixa pra lá, ok? Vamos logo começar, quanto antes nós começarmos, antes acabaremos. - E onde vocês pensam que estão indo? – perguntou uma voz fria
  • 12. 12 Capitulo Três Corash se virou violentamente, e viu o elfo grande e frio que sugerira o primeiro plano de batalha. - O que você quer? – perguntou ele ao outro elfo, rudemente. - Eu? Eu quero acompanhá-los. Eu não agüento mais essa vidinha pacata do vilarejo. - Nós nem sabemos quem é você! Como quer que confiemos em você? – perguntou Mahslia. - Meu nome é Avalas, ao seu dispor. E não, vocês não podem confiar em mim. E a maior prova disso é que, se vocês não me deixarem acompanhá-los, eu poderia “deixar escapar” para o Nisual que vocês saíram da vila sem a permissão dele. E acho que ele não vai ficar muito feliz. Em compensação, se vocês me deixarem ir com vocês, o Nisual irá achar que vocês foram até a capital do reino buscar uma caravana de guerreiros, graças a um bilhetinho que eu plantei para despistá-lo. Vocês decidem. Corash pensou seriamente nisso. Talvez ter outra cabeça no time fosse bom, mas eles não conheciam o tal Avalas. Corash já o havia visto com várias garotas diferentes, mas era apenas isso que ele conhecia. - Qual é a sua arma? – perguntou o aprendiz de arqueiro, desconfiado. - Eu uso espadas. Mas sou apenas um aprendiz. - E como você quer acompanhar-nos sem conhecer a fundo os segredos da sua arma? – blefou Mahslia. Para a surpresa da elfa, o estranho sorriu. - Do mesmo jeito que vocês, aprendizes, eu também tenho o direito de não conhecer minha arma tão bem quanto os mestres. Ou não? Mahslia enrubesceu e se calou. Corash ainda avaliava Avalas abertamente. - Venha conosco então, Avalas. Mas você está desarmado. Como pretende se defender de monstros? Apenas com os punhos? - Quem disse que eu estou desarmado? – perguntou o gigante, virando-se de costas. Ali, presa pelo cinto do elfo, havia uma bainha, que continha uma espada grande, escondida por suas enormes costas. – Eu nunca ando desarmado... qual é mesmo seu nome? - Corash.
  • 13. 13 - Eu nunca ando desarmado, Corash. – repetiu ele, virando-se para os companheiros. – Ao contrário de vocês, eu sou precavido – disse ele, mostrando uma mochila que até agora passara despercebida pelos amigos. - Ótimo. Estamos prontos, então. Vamos. – decidiu Corash. Ele virou-se para o portão e saiu da vila, com seus companheiros às suas costas.
  • 14. 14 Capitulo Quatro Avalas não era um companheiro alegre, nem mesmo sorridente ou animador. Parecia apenas um gigante emudecido, perdido em seus pensamentos. Enquanto Mahslia e Corash aproveitavam a liberdade recém conquistada com piadas, palavras e sorrisos, Avalas apenas olhava os novos companheiros. A história de vida do grande elfo parecia um livro. Nascera, para logo ser abandonado por sua mãe. Seu pai, um elfo beberrão e despreocupado, entregou o bebê para um orfanato assim que soube. Não queria a criança. Com mais idade, Avalas percebera que não era igual as crianças do orfanato. Ele era maior e mais forte. Até seu físico robusto destoava do físico normal dos elfos. Por causa disso, aos treze anos ele se candidatou a aprendiz do Exército de Lynzea. Quando o recrutador do exército viu sua altura impressionante e seus ombros largos, aceitou-o imediatamente no esquadrão dos espadachins. O recrutador nunca se arrependeu de sua escolha. Com quinze anos, Avalas entrou no grupo dos formandos espadachins, três anos mais cedo que o normal para quem começava com treze anos. Conhecia centenas de técnicas, era o mais alto e mais forte entre os elfos e tinha uma grande inteligência, fruto de muitas noites perdidas em nome do estudo. Seus treinadores estavam orgulhosos: Avalas era o garoto modelo da academia! O que eles não esperavam era que o grande elfo, um gigante aparentemente manso, fosse capaz de se rebelar. Ele estava cansado da sujeira política que era essa história do Exército de Lynzea. Seus esforços solitários, em busca de técnicas de guerra e conhecimentos estratégicos de nada valiam? Foram os professores que ensinaram isso? Não! Assim, na calada da noite, enquanto seus instrutores e mentores dormiam, ele pegou sua espada e, silencioso como um sussurro, matou todos os altos generais, limpou o sangue da espada e voltou a dormir, com a consciência mais leve. O único porém é alguém havia visto ele levantar. Este alguém avisou um professor, que avisou o novo general. Este, por sua vez, avisou o rei de Lynzea que resolveu expulsar Avalas da capital do reino e mandá-lo para Sparon, sob o pretexto de “colocá-lo em posição estratégica, em um lugar que o clima seja
  • 15. 15 bom para seu temperamento e que ele possa esvaziar sua ira sem matar pessoas.”. Essa, claro, era a versão oficial da história. A vida calma na pequena vila de Sparon irritava Avalas. Ele nascera para a grandiosidade, e não para uma pequena vila de aldeões simplórios. Assim que a primeira oportunidade de sair do marasmo que era Sparon e ir a alguma aventura apareceu, o grande elfo agarrou-a com unhas e dentes. Seria perfeito, não fosse Corash e Mahslia. Que haviam parado e estavam discutindo alguma coisa. - ...temos que ir para a direita, Mahslia! – exclamava Corash. – Só assim chegaremos rapidamente à Montanha Selque! - Não, Co! Temos que dar a volta, indo pela esquerda! Se formos pela direita, inevitavelmente passaremos pelas Dunas Congeladas! Certo, Avalas? – retrucou Mahslia, surpreendendo o grande elfo com sua pergunta. - Acho que sim. É melhor evitarmos as Dunas Congeladas, pois não viemos preparados para encará-las. Além disso, elas são imensas, o que significa que poderemos nos perder nelas facilmente. Melhor não arriscarmos e irmos pela esquerda. – ponderou Avalas, sensatamente. - Ótimo. Demoraremos mais um dia para chegar na montanha Selque. Um dia em que Sparon pode ser destruída – respondeu Corash, amargamente. - Não seja tolo, Corash. Nenhuma vila é destruída em um único dia, ainda mais uma vila com tantos guerreiros como Sparon. Um dia não fará diferença. – sentenciou Avalas. Corash resmungou alguma coisa ininteligível e calou-se, seguindo os companheiros pelo caminho da esquerda.
  • 16. 16 Capitulo Cinco Corash e seus companheiros já estavam caminhando há cinco horas. Os sorrisos e brincadeiras entre ele e Mahslia haviam cessado, e só o que havia entre os três era um silêncio cansado. Apesar disso, eles prosseguiam. - Que som é esse? - perguntou Avalas, quebrando o silêncio e apurando os ouvidos. Realmente, um som abafado e ritmado chegava às orelhas pontudas dos companheiros. - Parece... – começou Corash - Cavalos!!! Para a mata, rápido! – gritou Avalas, descontrolado, empurrando os companheiros para dentro da mata fechada e pulando atrás deles. - Você ficou louco?! – berrou Corash, assustado. – Por que você...- tentou continuar ele, antes que a manzorra de Avalas tapasse sua boca. - Fale baixo, idiota! Esse som é de cavalo. Apenas o rei e sua comitiva real possuem cavalos. - E por que não podemos falar com o rei sobre nossa missão?! – perguntou Mahslia – Tenho certeza que ele nos apoiará. Talvez ele até nos mande reforços! - Apenas nos seus sonhos delirantes, Mahslia – respondeu Corash, desvencilhando-se de Avalas. – É mais provável que o rei nos capture e nos torture até falarmos tudo o que sabemos. - Além disso, o rei não gosta muito de mim. – ajuntou Avalas, concordando com Corash. - E alguém gosta, Avalas? – perguntou uma voz cruel e cortante, colocando uma espada no pescoço do grande elfo. Corash e Mahslia, subitamente, foram dominados por dois elfos surgidos do meio da mata. – Vocês vêm comigo. Com o que vocês sabem, minha vida está garantida. Os três companheiros foram vendados e amarrados antes de começarem a andar. Suas armas e mochilas foram entregues para o rei, que, ao invés de torturá-los, colocou-os presos a cavalos, que por sua vez estavam amarrados a outros cavalos. Onde a comitiva fosse, eles iriam atrás.
  • 17. 17 - Ora, Avalas, há quanto tempo!!! Você aparenta ter dobrado de tamanho! – disse o rei, pomposo - E você parece ter dobrado seu vocabulário almofadinhas ridículo. – cuspiu Avalas, com desprezo. - Avalas, seja razoável! Nós não podemos esquecer os erros do passado e nos concentrarmos no futuro? Sabe, uma guerra eclodirá logo, e eu não gostaria de correr o risco de morrer sabendo que alguém não perdoou os meus erros. – disse o rei, eloquentemente, sendo aplaudido pela comitiva. - Se a sua preocupação se estendesse a qualquer pessoa do reino que não pode te dar qualquer vantagem, ela seria tocante. Acontece que eu não sou burro para acreditar que você se preocupe com qualquer um que não você. – retrucou o grande elfo, astuto. - Avalas, você está passando dos limites! – sibilou Mahslia. - Silêncio, sua tola. Não meta seu nariz onde não foi convidada. – repreendeu o rei, encarando o grande elfo abertamente. – Sabe, Avalas, você merece a morte. Mas... - Mas você sabe que você não conseguiria me matar se eu estivesse com minha espada e não estivesse preso! – gritou o espadachim, corando de raiva. - Não, meu pequeno súdito. – disse o rei, com um traço de irritação na voz – Mas vocês três darão excelentes gladiadores. A Arena precisa de pessoas como vocês. Uma espada, um cajado, um arco e uma aljava com flechas foi tudo que deram aos companheiros. Todas as armas eram toscas e vagabundas. Estava claro que o rei não queria ver os três amigos vivos. Eles estavam em uma cela minúscula de pedra, com uma porta de ferro maciço que só tinha uma portinhola para a comida. - E agora? – perguntou Mahslia, desesperada. Ela nunca estivera presa antes. - Não adianta tentarmos fugir – respondeu Avalas, calmo. – Essas grades são, provavelmente, reforçadas com alquimia, e não magia. Reparem que eles deram um cajado para Mahslia, sem medo de suas magias. E também nos deram armas, o que significa que brutalidade não adiantará aqui. Os argumentos de Avalas eram coerentes, então não foram contestados. Os três ficaram em silêncio, até que um guarda os chamou.
  • 18. 18 - Venham cá, cães sarnentos! – gritou o guarda, prendendo os pulsos dos amigos e tirando-os da cela. – Andem por este corredor até o final! Vocês estão sendo convocados para lutar! E não tentem nada! Eu tenho uma lança, e até hoje eu nunca errei um alvo! Os companheiros se entreolharam. Se estivessem com as mãos livres, eles certamente poderiam dominar o guarda, mas... Era melhor não arriscar a vida algemados. - E agora, Avalas? – sussurrou Corash, por entre os dentes. - Lutamos por nossas vidas, o que você esperava? Não temos outra opção: ou lutamos ou morremos. E eu prefiro lutar. – retrucou o grande elfo. Eles continuaram por um grande túnel escuro e saíram para a arena. O chão redondo da arena era de terra batida. Uma grande multidão urrava, olhando para os novos gladiadores com sede de sangue. Do ponto mais privilegiado dos assentos, um camarote dourado era ostentado. O rei e seus compinchas. As pedras que foram usadas na construção da arena eram negras e lisas. Impossíveis de escalar. Do outro lado de onde os companheiros estavam, um portão de ferro fechado escondia o inimigo deles. Enquanto esperavam o inimigo, Avalas começou a passar a mão nas pedras e pisar mais forte que de costume. - O que... – começou Mahslia. - Testando terreno. Calculando probabilidades e possibilidades. Tentando sobreviver. – respondeu Avalas, sem olhar para a companheira. - Senhoras e senhores! Bem-vindos à Arena Querua! E hoje a luta será de intensas emoções! – gritava o mestre de cerimônias, com a voz magicamente ampliada. “As regras são simples! Seis gladiadores lutarão entre si! Podem fazer parcerias ou lutar por si próprios, com duas condições: três gladiadores lutarão algemados, enquanto os outros três não!” disse o homem, para delírio do público. - Adivinhem só quem lutará algemado? – perguntou Avalas, por entre os dentes. Sua voz pingava ódio. - A segunda condição é que apenas três gladiadores serão classificados! Os outros três morrerão! – continuou o Mestre de Cerimônias. – Agora, o rei vai falar algumas palavras. Altivo e imponente, o rei caminhou para a frente de seu pomposo camarote, onde todos pudessem vê-lo. Posição de poder.
  • 19. 19 - Gladiadores! – gritou ele. – Lutem como se suas vidas dependessem disso! O público riu e aplaudiu seu engraçado governante, que voltou para seu assento, satisfeito. “Que abram os portões!”, berrou o Mestre de Cerimônias. Como mágica, os pesados portões se abriram e, de dentro de um corredor mal-iluminado, saíram três figuras grandes, de pele negra como piche, implacáveis, musculosas e feias, com machados enormes nas mãos e armaduras completas de batalha. Orcs sedentos de sangue. Isso nunca era uma visão bonita.
  • 20. 20 Capitulo Seis Avalas pegou sua espada presa às costas e falou para os companheiros estenderem a mão. Quando obedeceram, o grande elfo quebrou as algemas como se fossem feitas de manteiga. - Quebre as minhas! Eu não luto com duas mãos! – pediu Avalas a Corash, que também golpeou as algemas uma, duas, três vezes até quebrar, enquanto Mahslia desferia esferas mágicas contra os orcs, mantendo-os afastados. Avalas recuperou sua grande espada e a segurou na mão direita. O mais impressionante, ele era o único elfo capaz de fazer isso. Os outros precisavam das duas mãos. - Corash, ataque o feio do meio. Mahslia, você cuida do feio da direita. O da esquerda é meu! – disse ele, correndo para seu inimigo enquanto flechas e esferas de magia passavam ao seu lado. - Você acha mesmo que é páreo para mim, elfo desgraçado? Por esse atrevimento, você vai morrer! – gritou o orc, levantando e abaixando o machado na direção da cabeça de Avalas, que, por sua vez, aparou o golpe com a espada e socou o inimigo no peito. Foi quase tão efetivo quanto tentar apagar fogo com marshmallows, mas serviu para assustar o orc. Avalas era um oponente a ser respeitado e temido, justamente porque ele era louco de socar um orc quando tinha uma espada em mãos. O orc do meio sabia que Corash não iria durar muito. Era impossível ele ganhar: suas flechas eram limitadas. Quando acabassem suas flechas, acabaria sua vida. A não ser que os amigos o ajudassem... As flechas estavam vindo rápidas e em grande quantidade. Várias atingiam em pontos não vitais, ou seja... era só esperar que ele veria sangue em seu machado. Mahslia, apesar de frágil, era destemida. Não temia chegar perto do inimigo para usar uma magia. Um erro, talvez, mas o inimigo não sabia o que fazer, vendo uma maga assim tão perto dele. E isso o machucava. Seriamente.
  • 21. 21 - Pare com isso, elfa maldita! - berrou o orc, irritado, quando um relâmpago queimou seu braço. - Venha me parar, então! - respondeu a elfa, provocando o inimigo a meros dois metros de distância. O orc saltou na direção dela numa velocidade que ela julgava impossível e preparou o machado para bater na cabeça dela. A morte dela era certa. Corash viu que a amiga estava em perigo. Ele não podia deixar que ela morresse. Então, ele fez a única coisa que poderia. Atirou na cabeça do orc que atacava Mahslia. E acertou. Pena que o orc com quem ele estava lutando também viu a dúvida dele. E partiu para cima do arqueiro. Avalas estava com dificuldade de achar uma brecha na defesa do inimigo, pois ele atacava rápido demais. O grande elfo nada podia fazer, a não ser se defender e observar os companheiros. O orc de Corash avançava sem freios, o machado pronto para cortar qualquer parte élfica que cruzasse com ele. Avalas não podia deixar isso acontecer. Ele aparou um outro golpe de machado com sua espada e empurrou o inimigo, que caiu com o traseiro no chão, bufando, e correu para salvar Corash. - Morra, elfo! – berrou o orc, brandindo o machado contra o tronco desprotegido de Corash. - Não! – berrou Avalas, parando o golpe com sua espada e fazendo uma acrobacia para passar por cima do machado do inimigo e girando, fazendo com que a lâmina fizesse um arco luminoso que decepou a cabeça do adversário. Dois já estavam mortos. Faltava um, que tentava estupidamente escalar as pedras para fugir. - Obrigado, Avalas. Você me salvou. Não é típico de você fazer isso. -Não se acostume, também. Eu apenas não quero ser forçado a deixar um orc vivo. – disse Avalas, para a surpresa de Corash. Como ele era frio! - Ei, vocês dois... Temos um orc a solta. Deveríamos derrotá-lo, não? - Verdade. Posso fazer as honras? – perguntou Corash, pegando sua última flecha e preparando-a no arco.
  • 22. 22 - Ele é seu – disseram os outros dois, se afastando. Corash mirou, mas antes de consegui atirar, o orc se virou e saiu correndo em sua direção. Imparável. Apenas cem metros de corrida. Avalas e Mahslia não conseguiriam ajudá-lo agora, de tão rápido que estava o orc. O fundo da garganta de Corash começou a coçar, como se algo quisesse sair de lá. Ele abriu a boca e disse, enquanto soltava a flecha do arco: - Eldr Or! – aquela com certeza não era sua voz. Era muito mais grave, rouca e retumbante. Algo ancestral, antigo. Algo que fez com que a flecha pegasse fogo. A flecha flamejante viajou até chegar ao orc, que sentiu seu crânio se esmigalhando e seu corpo queimando. A magia do elfo era forte. O suficiente para pará-lo.
  • 23. 23 Capitulo Sete O rei levantou-se furioso. Como aqueles moleques não haviam morrido?! Era inaceitável. Ele precisava fazer alguma coisa. - Esse golpe não foi válido! – gritou o monarca, sorrindo consigo mesmo. Sua palavra, em grande parte do tempo, era lei. - Como assim? – berrou Avalas, alterado. Uma veia pulsava em sua testa. – Como não valeu? Corash nunca infringiu uma única regra dessa arena estúpida! - Esse golpe foi, claramente, mágico. E Corash se disse arqueiro, não mago. A não ser que a senhorita Mahslia o tenha ajudado, mas ela não moveu um músculo sequer. Então, o golpe foi inválido. E eu condeno vocês a... - Nada. Quem condena sou eu, e não Vossa Majestade – disse uma voz de trovão. Um elfo alto e magro ergueu-se do seu trono no camarote do rei. – Por favor, não se esqueça de quem é o Grande Juiz aqui. O rei hesitou, mas cedeu a palavra ao outro elfo, com a cabeça baixa. Ele parecia... - ... derrotado. Humilhado. Não é o que parece? – perguntou Mahslia, surpresa com a súbita mudança de postura do monarca. - Sim. Lian Fiar sempre foi imponente. De fato, por sua imponência e sabedoria, conquistou merecidamente o posto de Grande Juiz. – respondeu Avalas. - Lian Fiar? Que nome estranho. Como você o conhece? – questionou Corash. - Deixe de ser ignorante, Corash. “Lian” significa “Mestre”. – retrucou Avalas, impaciente. - Eu fiz a Escola Militar antes de ser enviado para Sparon. Ele era o professor de Arquearia e de Estratégias. As aulas dele eram excelentes. - Calem a boca! – sussurrou Mahslia, mortificada – Lian Fiar quer falar! Ambos Corash e Avalas coraram e silenciaram. - Muito bem. Agora que temos silêncio, podemos começar o julgamento. – sentenciou o elfo, magnânimo.
  • 24. 24 A esta altura, talvez seja apropriada uma breve descrição da política de Lynzea. Existiam cinco Poderes do governo, cada qual com vantagens e prejuízos em relação aos outros, mas com igual influência. O primeiro deles era a Aliança Real, formada pelos nobres e membros da Família Real, ou simplesmente Família. A Aliança Real cuidava das questões administrativas de Lynzea. Tinha muito poder, aparentemente, mas, na verdade, era o governo mais fraco do continente, apesar de ser, de longe, o mais luxuoso. Como exemplo de sua luxuosidade, só o rei e sua comitiva podiam andar a cavalo no reino quando não fosse treinamento militar ou guerra. O segundo Poder governamental era chamada de “O Tribunal”, ou simplesmente “Tribunal”. Responsável por fazer cumprir as leis de Lynzea, O Tribunal era composto por vários juízes, espalhados pelo território de Lynzea. Em sua máxima instância, o Tribunal era composto por dez Juízes, que não poderiam conversar com os outros para não serem influenciados em seu julgamento. A sentença de cada Juiz tinha de ser explicada, ou o julgamento seria refeito, até que a justiça fosse feita. Em caso de empate, o Grande Juiz decidiria o que seria feito. O poder d’O Tribunal era, provavelmente, o maior. Os outros poderes, invariavelmente, acabavam se curvando perante O Tribunal. O terceiro Poder era conhecido como LPMC, Laboratório de Pesquisas Mágicas e Cientificas, responsável pela promoção de novas tecnologias bélicas (espadas mais resistentes, arcos que alcançassem mais longe, etc.) e desenvolvimento de magias, tanto de cura quanto de luta. O chefe do LPMC, conhecido apenas como Sarbrar, era um homem magro e pequeno, apesar de ser inteligentíssimo e ter uma aura que dava medo. O LPMC era tratado como um órgão a parte, livre para fazer o que quisesse, desde que fosse legalizado. O quarto Poder se chamava Ministério da População. Oficialmente, claro. Para o povo, o Ministério da População se chamava Bem-Estar. Na verdade, esse deveria ser o objetivo final do Ministério. Zelar pelo interesse da população, propondo novas leis, projetos sociais, construindo escolas e hospitais... O Ministro, invariavelmente, era um elfo amado pelo povo. O quinto e último Poder era o militar. O Eixo da Guerra era um dos Poderes mais importantes, por ser o poder que defendia o reino de Lynzea nos tempos de guerra. O Eixo da Guerra possuía um dos mais poderosos exércitos da época, graças ao Comandante-Geral Malrua, também conhecido como Estrela da Guerra, que era um gênio estratégico.
  • 25. 25 Todos os meses os chefes de governo se reuniam oficialmente para discutir a política do reino e assistir algumas lutas na Arena. Nunca havia acontecido do Grande Juiz em pessoa assumir um julgamento. O rei estava abismado com o que havia acontecido. - Qual o nome do arqueiro? – perguntou Lian Fiar - Corash, senhor. Corash Lam. – respondeu Corash. Ele falaria antes do rei? - Muito bem, Corash. Conte-nos o que aconteceu. - Bom... Meus companheiros e eu estávamos viajando. Para dar passagem ao rei, que ouvimos à distância, nos embrenhamos na mata, onde não o incomodaríamos. Porém, quando estávamos conversando, fomos capturados por batedores do rei. Fomos trazidos para cá e... – hesitou Corash, pensando no que acontecera. De fato, agora parecia surreal. - Prossiga. E não se preocupe, o que for justo será feito. – encorajou Lian Fiar, acenando positivamente com a cabeça. - Bom, nós lutamos, como todos viram. E a flecha flamejante simplesmente... - Saiu. Veio do fundo de sua garganta, como algo ancestral despertado em você. – completou o Juiz, acenando compreensivamente com a cabeça. - Exato! Como o senhor... - Não importa como sei, o que importa é que sei. – respondeu, magnânimo, Lian Fiar. – Terminou, Corash? - Sim... – respondeu o arqueiro, hesitante - Então, é a vez de nosso queridíssimo monarca falar. – replicou Lian Fiar, com certa ironia na voz. Era claro que existia uma rixa entre o rei e Lian Fiar. Algo na relação deles não tinha ocorrido nada bem. - Perfeito. – respondeu o rei, levantando-se. – Caro senhor Juiz, este moleque disse a nós que era um arqueiro. - Ele falou por vontade própria? - perguntou o Juiz, com sagacidade. - É... Não. Nós os capturamos como reféns, após um de nossos batedores ouvir coisas deles. Nós não fizemos interrogatórios, apenas perguntamos suas classes e os amarramos. Eles foram trazidos como gladiadores. - Certo, e qual o seu argumento? – tornou Lian Fiar, com tédio. - Como ele se disse arqueiro, não pode usar magias! – respondeu o rei, sorrindo maliciosamente. - Entendo... Você lembra do que ele disse, especificamente? – questionou o Juiz, com um brilho nos olhos. Um brilho que deveria ter alertado o monarca.
  • 26. 26 - Sim. Ao perguntarmos: “Você, garoto que usa um arco, é um arqueiro?”, ele respondeu: “Sim, sou da vila de Sparon, arqueiro em treino”. Para começar, como arqueiro em treino, nem poderia estar viajando sozinho. - Discordo. Para começar, meu caríssimo monarca, os garotos nem deveriam ter sido trazidos para a Arena. Apenas os guerreiros formados e maiores de idade podem lutar aqui. Então, o senhor é tão ou mais culpado que ele. Corash Lam omitiu informações, mas o senhor infringiu as leis. – disse Lian Fiar, ferozmente. – Portanto, caro monarca, eu digo que Corash Lam é inocente, em relação à sua acusação. Avalas, Mahslia e Corash respiraram, aliviados. Livres, finalmente? - Porém... – hesitou o Juiz, como que lutando contra si mesmo – Corash Lam e seus colegas atuaram, respectivamente, como mentiroso e cúmplices. A mentira é passível de punição, quando sua magnitude é grande. Uma morte é grande coisa. E, segundo as leis de Lynzea, um participante só pode ser retirado de um torneio que começou a participar de um modo: sendo impossibilitado de lutar. Assim, condeno Corash Lam e seus amigos, Avalas e Mahslia, à prisão e à luta na Arena.
  • 27. 27 Capitulo Oito Eles estavam de volta à cela. Avalas havia achado uma pedra meio quadrada, perfeita para amolar sua espada, e as flechas de Corash haviam sido repostas. - Estou inconformada com o Juiz! – disse Mahslia, subitamente. - Não adianta preocupar sua cabeça com isso, Mahslia. Ele apenas seguiu a lei. E, verdade seja dita, foi o mais justo possível, dentro dos limites legais de Lynzea. – disse Avalas, friamente, enquanto afiava sua enorme lâmina. - Então, se ele queria ser tão justo assim, por que não nos libertou? – perguntou Corash. - Ele é um juiz, Corash. A obrigação dele é fazer cumprir a lei, não fazer a justiça. Não se esqueça que essas leis são muito mais velhas que ele. - Oras, não tem desculpas! Ele é um... - Cuidado com suas próximas palavras, seu verme! Ele está aqui para ver vocês. Portanto, comportem-se decentemente! – disse o guarda, enquanto abria a porta da cela. Lian Fiar entrou no minúsculo cubo de pedra e concreto e ordenou que todos os seus guardas pessoais e os guardas da prisão fossem embora. - Mas, mestre... Não é adequado... – começou o guarda - Por favor. É um pedido pessoal meu a todos vocês. – pediu Lian Fiar, charmoso. - Já estou indo, senhor. Tenha uma boa conversa com os prisioneiros. – disse o guarda, saindo humildemente da cela e guiando todos os outros guardas para longe. O Juiz tirou uma flecha de uma aljava em seu cinto e atirou-a, com o arco que sacou das costas, na porta. - Pronto. Agora podemos conversar com privacidade. Encantei essa porta, de modo que os guardas só possam ouvir gritos. É bom vê-los com saúde. Meu nome é Fiar. Suponho que vocês não sabiam, não é? – disse ele, dirigindo-se a Corash e Mahslia. - O que o senhor veio fazer aqui? – perguntou Corash, seco. - Eu? Vim explicar algumas coisas. Tentar ajudá-los.
  • 28. 28 - Podia ter nos ajudado julgando corretamente. Poderíamos estar em nosso caminho, sem fazer mal a ninguém, nesse exato momento. Agora, por sua culpa, estamos aqui, esperando para morrer. – respondeu Corash, enraivecido. - Bem que eu queria. No entanto, eu fiz isso para salvá-los. Se eu libertasse vocês naquela hora, o rei iria ficar furioso e mandaria os guardas matá-los. Desse modo, eu satisfiz os desejos do rei e consegui preservar suas vidas. Como ele é um rei, qualquer processo judicial ou julgamento será negado. Mesmo as minhas sentenças não serviriam de nada. Tive que fazer isso, pelo bem de vocês. - Certo. E como, exatamente, você pretende nos ajudar? – perguntou Avalas, frio. - Explicando como vão ser as coisas na Arena, para vocês conseguirem sobreviver. “Eram trinta e dois participantes, trinta e dois presos, em chaves individuais. Como vocês três foram capturados juntos, também lutaram juntos. Cada um daqueles orcs tinha um de vocês como objetivo. Por sorte, vocês escaparam ilesos. Agora há dezesseis participantes – os sobreviventes das batalhas. Esses dezesseis serão divididos em quatro grupos de quatro. Como vocês, novamente, foram capturados juntos, ficarão juntos também. Um dos outros participantes ingressará em seu grupo. Por sorte, tenho um companheiro perfeito para vocês. Quando apenas sobrar um grupo, os participantes deverão digladiar entre si, depois de dois dias de descanso. O último de pé será considerado vencedor. Simples, mas brutal. Meu plano é que vocês cheguem na final. Depois disso, vocês descansarão por um dia. No segundo dia de descanso vocês fugirão. Infiltrarei um fiel servo aqui nas masmorras, para que ele lhes dê suas armas. Não se preocupem com o mapa das masmorras, esse seu companheiro já o tem, pois já conversei com ele.” - Certo. É só isso? – perguntou Corash. Ele ainda não havia perdoado Lian Fiar. - Quanto ao plano de fuga, sim. Agora, vocês precisam saber de uma coisa. Os três, sem exceção, lutam muito bem. Seriam excelentes soldados. No entanto, vocês não estão se entendendo bem dentro do campo de batalha. Essa última luta vocês ganharam por pura sorte. “Para começar, vocês resolveram ir um contra um. Sem problemas se fossem três espadachins, ou três bárbaros. Mas só um de vocês é espadachim. Corash e Mahslia, vocês não têm condições de enfrentar bárbaros e espadachins sozinhos, pois não conseguem lutar muito bem de perto. Assim, o papel de
  • 29. 29 vocês em uma batalha é de apoio, não de ataque direto. Mahslia, você é uma excelente maga, diria que é uma formanda. Ajude Avalas alterando o campo de batalha, elevando-o quando ele corre perigo, colocando paredes de pedras entre os ataques... Você é boa o suficiente para isso. Corash, você é um ótimo arqueiro, use suas habilidades para ferir quem ousar chegar perto de Avalas ou Mahslia, ou até mesmo de você! Isso serve também para seu novo companheiro. Lembrem-se disso, e com certeza vocês sobreviverão.” - Lian Fiar, por que você quer nos ajudar? – perguntou Corash, subitamente. Os olhos do Juiz se desfocaram por um momento, e ele começou a contar.
  • 30. 30 Capitulo Nove Parte Um Quinze anos antes do desenrolar dessa história, Lian Fiar era conhecido apenas como Fiar Lam. Ele havia recém-casado com a linda princesa de Lynzea, Amaky, e recentemente fora promovido a um dos dez Juízes. Ele fora bem aceito na Família Real, principalmente pelo sogro, que o recebera literalmente de braços abertos, sorrindo de orelha a orelha. Apesar de sua vida parecer uma maravilha, não estava tudo tão bem assim. Como Juiz, ele estava tendo muito trabalho – Lynzea passava por uma crise de fome e pobreza, e os surtos de roubo e assassinatos aumentaram absurdamente. Em todos os casos em que havia apelação, e eram muitos, Fiar tinha que trabalhar. Por diversas vezes ele ficara até tarde no trabalho, para depois se reunir com o Conselho de Lynzea tentando achar um jeito de resolver a situação do reino. Mal tinha tempo para dar atenção à sua esposa. E foi numa noite de reunião que tudo começou. - Desculpem-me o atraso, senhores, eu estava até agora a pouco em julgamento. Era o caso de um caçador que, para comer, assassinou um padeiro e sua mulher. Terrível... – começou Fiar, para logo depois notar o semblante sombrio de seus companheiros. – O que houve? - Sente-se, Fiar. – disse o Grande Juiz da época, Lafreth, um velho senhor de barbas brancas. Fiar obedeceu, e o seu superior começou a falar: “Fiar, mandamos um arauto consultar o oráculo de Felkash, o Lago Sagrado, e ele voltou com uma notícia terrível. Segundo o oráculo, os deuses estão furiosos com Lynzea. Nós os temos ignorado por muito tempo, e essa é a vingança deles. É o que eles dizem, ao menos.” - Como assim, ignorado? Seguimos nossa religião fervorosamente, nunca deixamos os feriados passar em branco... O que falta a eles? – perguntou Fiar, revoltado. O silêncio pairou por um longo tempo antes de Lafreth responder. - Sangue, Fiar. Sangue é o que eles querem. - Como assim? Eles mesmos disseram que abdicavam dos sacrifícios de sangue, que era algo brutal demais!
  • 31. 31 - Sim, Fiar, nós sabemos. Mas não podemos fazer nada. São deuses, afinal. Possuem tradições de séculos. E eles, pelo jeito, gostam do gosto de sangue. E essa é a pauta da reunião de hoje. Eles não querem sangue de camponês. Segundo eles, o sangue dos que estão num alto escalão é mais saboroso. - Então eu vou! Eu aceito ser o sacrifício! - De modo algum, Fiar. Não podemos desperdiçar sua vida desse modo – negou Sarbrar, líder do LPMC – Você ainda é jovem, é um excelente guerreiro e é casado com a princesa de Lynzea. Um de seus deveres é gerar um herdeiro para o reino, como você bem sabe. Não podemos te sacrificar. A princesa enlouqueceria. - Não precisam se preocupar com o herdeiro! Amaky está grávida! Eu... - Amaky está grávida?! – gritou o rei, levantando-se com grande velocidade, um olhar ensandecido nos olhos. - Sim, senhor... Grávida. O que o senhor esperava, Majestade? – perguntou Fiar, surpreso pela reação do sogro. - Nada... Desculpem, é a alegria de ter um netinho. Prossigam – disse o rei, sentando-se novamente e olhando para o tampo da mesa. - Bom, pessoalmente eu acho que devemos prosseguir com o meu plano. – continuou Lafreth, como se não houvesse tido interrupções. - Vocês d’O Tribunal gostam de se sacrificar, não é? – perguntou Malrua, comandante-geral do exército de Lynzea, olhando friamente para Lafreth. - Na verdade, senhor Estrela da Guerra, nós aceitamos nos sacrificar porque sabemos que, depois da morte, só há a justiça. Então, não gostamos de nos sacrificar. Apenas não tememos a morte. – respondeu o Grande Juiz, ácido. - Esperem um pouco, senhores... Eu entendi corretamente? Lian Lafreth está querendo ir para o sacrifício? – perguntou Fiar, surpreso. - Exatamente, meu jovem. Por isso que insisto em lhe chamar para todas as reuniões, apesar de ninguém mais fazer isso. Eu sei que, se eu viver mais dez anos, terei vivido muito. Não tenho tanto tempo de vida me restando, e devo preparar meu sucessor, que no caso é você, para assumir este posto. - Eu, seu sucessor? Não... E os outros Juízes? Deve haver uma hierarquia, não há? O Juiz mais velho será o próximo Grande Juiz, ou algo do gênero. - Não. Todos os dez Juízes têm poderes, direitos e influências iguais. Todos têm a mesma chance de ser eleitos como Grande Juiz. E eu escolhi você. - Mas por quê?
  • 32. 32 - Não interessa agora. Devemos nos preocupar em pensar na pessoa que mandaremos para o sacrifício. Quanto mais cedo sacrificarmos, melhor ficará Lynzea. – disse Malrua. - Bom... Eu também não temo morrer... Posso muito bem ir para sacrifício. Se não se incomodarem, é claro. – disse Sarbrar. - Eu me incomodo, e muito. Sarbrar, você é um gênio da magia e da tecnologia. Você é um dos grandes responsáveis pelo poderio militar de Lynzea, e sabe muito bem disso. Ainda é um homem relativamente jovem, e tem muito tempo pela frente. Use-o para suas pesquisas. – retrucou Lafreth, de modo brilhante. Mesmo sendo muito velho, suas habilidades com a mente e com as palavras continuavam em ordem. - Se você insiste, velho teimoso, não sou eu que vou me opor. Só acho uma pena Lynzea perder uma mente tão brilhante quanto a sua. - Obrigado. Agora que o assunto está decidido, me dêem licença. Hoje o dia foi longo, e não é porque meu sacrifício está marcado que eu vou me privar do descanso. Senhores. – disse Lafreth, levantando-se e saindo da sala rapidamente. - Então... Creio que não temos muito mais o que fazer aqui, não é? Com os problemas resolvidos, suponho que podemos voltar para nossas casas mais cedo, hoje. Se não se importam... – disse Malrua, levantando-se da mesa. Sarbrar o seguiu de perto, dando um cordial toque no ombro de Fiar, que estava estacado perto da porta. Eles matavam com essa facilidade? O Ministro da População, que se mantivera quieto até agora, recolheu suas coisas e foi embora, após se despedir com um aceno de cabeça do rei e de Fiar. O monarca, por sua vez, levantou-se e, antes de sair, murmurou para o genro: - Acostume-se, meu jovem. Como Grande Juiz, você verá coisas muito piores que isso. Chegara o fatídico dia. O dia do sacrifício de Lafreth. O céu de Lynzea, nesse dia, estava pesado e plúmbeo, indicando a possibilidade de uma tempestade, com direito a raios e trovões. A temperatura era baixa, e as pessoas se agasalhavam bem, se protegendo do cortante vento que soprava pelas ruas da capital Orxh. Apesar do frio, todas as pessoas de Orxh se dirigiram à praça central da cidade para assistir ao sacrifício do Grande Juiz e à sagração da nova cabeça d’O Tribunal.
  • 33. 33 - Então, Fiar, como se sente? – perguntou Sarbrar, olhando para o próximo Grande Juiz com certa apreensão. Eles estavam em um canto da praça, afastados de todos os outros figurões do reino de Lynzea, esperando o toque do sino que os chamaria para o palanque no centro da praça. Esperando pelo sino que indicaria o início do fim de Lafreth. - Não muito bem, Sarbrar. Lian Lafreth foi mais do que um simples mentor, para mim. Ele foi um verdadeiro pai. E saber que hoje eu terei que assistir seu sacrifício sem poder fazer nada para ajudá-lo me deixa mal. Além disso, ele mesmo disse que me sagraria como Grande Juiz. Parece até que eu estou roubando o posto que é dele por direito... - Fiar... Sabe, meu menino, eu tenho alguns anos a mais de vida que você. E sei, por conhecê-lo e ter conhecido muito bem o seu pai, que vocês, Lam, têm um senso muito aguçado de honra e justiça, essenciais para um Grande Juiz. Não se esqueça, por favor, que Lafreth chega a ser odioso: ele parece que prevê o futuro. Sua sabedoria é algo fora de série. Decerto que Lafreth jamais faria qualquer coisa sem antes refletir muito sobre suas ações. - Aonde você quer chegar? - Lafreth precisa de você no topo. Cá entre nós, esses Juízes que o acompanham são ótimos em seguir a lei. Mas eles só fazem isso. Ser um Juiz é muito mais que isso, Fiar, você sabe. Um bom Juiz segue a lei. Um ótimo Juiz dobra a lei, para que ela sirva às suas necessidades. Um Grande Juiz faz a justiça, ainda que isso o obrigue a passar por cima de leis, mesmo que essas venham de tempos imemoriais. Para fazer isso, porém, eles devem ser sábios o suficiente para conseguir prever o resultado de suas ações. Lafreth sabe que, apesar de jovem, você é uma pessoa muito sensata. Em vinte anos, decerto que você será um dos homens mais sábios de todo o reino. E ainda será jovem. “Lafreth não está lhe passando o cargo de Grande Juiz porque você é mais bonito que os outros Juízes. Ele está lhe passando porque você é o Juiz mais promissor de todos: você é jovem, inteligente, sábio e muito justo. O povo lhe ama, e sabe que pode contar com você. Pessoalmente, eu acho que a responsabilidade que Lafreth está te passando é muito maior que você pensa. Você não será apenas o Grande Juiz. Você será o herói de Lynzea. Você será aquele que trará justiça a todos. Você é aquele que terá o poder das massas, Fiar. Lafreth está, enfim, lhe passando a responsabilidade de ‘seguro’ do reino. E esse é o ato que mais demonstra a confiança dele em você.” Fiar não respondeu. Ele não queria. Ele não podia.
  • 34. 34 O sino da praça central de Orxh tocou três vezes, chamando os figurões da política de Lynzea para o centro da praça, no palanque. Quase todos os Juízes, vestidos de luto em respeito ao seu chefe, já estavam lá. Só faltava Fiar que, junto de Sarbrar, se dirigiu funebremente ao palanque. Um gordo sacerdote, vestindo uma enorme roupa branca e roxa, os ajudou a subir, dando um abraço forte em cada um. Bem no meio do palanque, o rei estava acompanhado de Malrua e do Ministro da População, com um de cada lado. - Fiar. Sarbrar. Vocês estão prontos? – perguntou o rei. - Infelizmente sim, Majestade. Eu estou, ao menos – respondeu Sarbrar, sentando-se ao lado do Ministro da População. - Eu não tenho muitas opções, não é? Vamos terminar com isso logo – disse Fiar, dirigindo-se para o lado de seus colegas. - Fiar! Onde pensa que está indo? – questionou Malrua. - Para meu lugar. Ao lado dos Juízes. - Seu lugar é conosco. - Não é. Esse lugar ainda é de Lian Lafreth, e eu não pretendo tomá-lo até a morte dele. – e, com essa nota ácida e fria, Fiar se dirigiu ao seu lugar, do lado dos Juízes. Começou com uma batida grave. Uma batida triste, que penetrou a alma de cada um daqueles que amavam e conheciam Lafreth. A batida se repetiu, e de novo, e de novo, até parecer que nunca mais ia parar de bater. Ao fundo, o repique de tambores convocava os deuses de Lynzea para a cerimônia. Lafreth estava vestido com uma garbosa roupa rubra. Um capuz, também rubro, cobria seu rosto. Ele andou até o palanque, onde o gordo sacerdote o ajudou a subir. Sem abraços. Sem palavras reconfortantes. - Meus irmãos, estamos aqui hoje para sacrificarmos o Grande Juiz Lafreth, com o objetivo de apaziguarmos a ira dos deuses que, ao custo de apenas uma vida, nos darão em troca sua anistia. Louvados sejam! - Verual! – disseram os fiéis, em uníssono. Fiar estava abismado. Como aquele... Aquele sujo conseguia pregar a benevolência divina a partir de atos tão escusos? - Por favor, meus irmãos, orem pela alma do Grande Juiz Lafreth, enquanto eu consumo o sacrifício. - Um momento, caro pastor. Antes de morrer, eu gostaria de dizer algumas palavras – pediu Lafreth, para a surpresa geral. O pastor, desnorteado, olhou
  • 35. 35 para o rei procurando uma orientação. O monarca assentiu com a cabeça, e o clérigo disse: - Muito bem, então... Suponho que não machucará ninguém... O Grande Juiz olhou nos olhos de cada um daqueles que foram ver seu sacrifício e começou o seu discurso. - Antes de qualquer outra coisa, eu gostaria de agradecer a presença de todos, e de cada um em particular. Pode parecer um pouco mórbido agradecê- los por vir assistir minha morte, mas deixem-me explicar. Eu sou Grande Juiz há quase cem anos. Antes mesmo de muitos de vocês nascerem, eu já era velho. Em minha vida, vi coisas maravilhosas. Ah, sim, eu vi. Me casei com uma mulher linda, tive dois filhos a quem pude ensinar os conceitos de honra, justiça e bondade. Tive netos, bisnetos. Todos eles jovens que, ao meu ver, são encantadores. Sim, eu sou um velho avô coruja e babão. – e, nesse momento, a tensão palpável no ar da praça de Orxh quebrou com as risadas. Levemente. – No entanto, eu também vi coisas tenebrosas. Vi magias proibidas serem lançadas, guerras dizimarem reinos inteiros, pestes e doenças assolarem a terra em que pisamos. Mesmo assim, eu sobrevivi a tudo. Eu nunca quis morrer. Sempre soube que eu não poderia, não iria morrer para motivos tão esdrúxulos como esses. Eu iria morrer por algo maior. No fim, acho que eu sempre quis dar minha vida por milhares de outras. “Eu sempre acreditei que faria isso num campo de batalha, com uma espada em mãos. Nunca, jamais imaginei fazer isso numa praça no meio da capital de Lynzea, aos cento e cinqüenta anos de idade. Engraçado como o destino funciona, não é? “Ah, perdoem a mente deste velho. Estou aqui falando, e acabei me esquecendo de falar o porquê dos meus agradecimentos. Pois bem. Eu estou agradecendo a vocês por me darem a chance de morrer como eu quis. Feliz é o homem que pode escolher sua morte. Estou agradecendo pela consideração que vocês estão tendo por mim, de sair do conforto de suas casas, nesse dia frio, ventoso e cinzento. De vir aqui me prestar uma última homenagem. Obrigado por me deixarem morrer. Agora, vamos ao que interessa. Lynzea precisa de um Grande Juiz. E agora eu vou anunciá-lo.” Na sua cadeira, Fiar aprumou-se. Enfim, chegara a hora.
  • 36. 36 - Então, Lian Lafreth? Quem é seu sucessor? – perguntou o gordo sacerdote. - O meu sucessor é o único elfo com competência o suficiente para fazer isso. E ele ainda é uma criança. De fato, será o Grande Juiz mais jovem da história de Lynzea. “Fiar Lam” O nome reverberou pela praça, enquanto as pessoas absorviam o choque da notícia. Para o mais alto escalão político, isso não era novidade alguma. Para todos os outros, isso era uma verdadeira revolução. E o povo, com lágrimas nos olhos, começou a aclamar o novo Grande Juiz de Lynzea. Não mais o chamavam de Fiar. O título era outro. Um título que ele carregaria por toda a vida. Lian Fiar. As palavras de Sarbrar reverberavam na mente de Lian Fiar. “Pessoalmente, eu acho que a responsabilidade que Lafreth está te passando é muito maior que você pensa. Você não será apenas o Grande Juiz. Você será o herói de Lynzea. Você será aquele que trará justiça a todos. Você é aquele que terá o poder das massas, Fiar” O herói de Lynzea. O herói do povo. O sacrifício foi consumado. E, nesse dia, os céus de Lynzea choraram a morte de um dos maiores Grandes Juízes da história do reino. Lian Fiar, porém, não sabia se o que tinha em seu rosto eram as lágrimas do céu ou as suas próprias.
  • 37. 37 Parte Dois Nove meses haviam se passado desde o sacrifício de Lian Lafreth. Como prometido pelos deuses, a terra de Lynzea voltara a ser fértil, e a paz fora restabelecida. Para o povo. Lian Fiar percebera que, por alguma razão misteriosa, o rei de Lynzea havia mudado drasticamente. Antes um rei sorridente, amigável, carismático e alegre, ele agora era uma carranca imutável. Isso acontecera desde que o alto escalão político de Lynzea recebera a mensagem do oráculo. - Majestade? Mandou me chamar? – perguntou Lian Fiar, adentrando na sala do trono e ajoelhando-se perante o monarca. - Sim, Fiar. Levante-se. Guardas, estão dispensados. – disse o rei. Os soldados bateram continência e se retiraram. – Fiar, temos um assunto muito sério a tratar. - Só nós? E Malrua, Sarbrar e o Ministro da População? - Eles não podem saber sobre isso. Não podem saber sobre isso? - E qual é esse assunto tão misterioso, Majestade? - Bom, você sabe que o oráculo nos ordenou sacrificar uma vida em troca da fertilidade das terras de Lynzea. No entanto, havia mais uma mensagem, direcionada especificamente a mim. - E qual era essa mensagem, Majestade? – perguntou Lian Fiar, desconfiado. Algo não parecia certo. - Leia a profecia, Fiar. Então você entenderá. – disse o monarca, entregando um pergaminho enrolado e amarelado para o Grande Juiz. Fiar desenrolou a profecia e começou a ler Fome, guerra, frio e morte Assolam o território Uma vida deve ser entregue, Como bem compensatório
  • 38. 38 Uma faca de pedra nova, Sem temor será usada. Mas não com sangue de plebeu, E sim de nobre será manchada. Os Deuses estão furiosos Por terem sido negligenciados Mas, com esse sacrifício, Vocês serão perdoados. O rei de Lynzea terá um herdeiro Que do trono o despojará Filho da Bondade e da Justiça, Sabiamente ele reinará. E mesmo contra milhares Contra milhões de inimigos Seis sobreviverão E reinarão como amigos - Certo, Majestade. E qual o problema dessa profecia? - Leia a quarta estrofe! Leia! – ordenou o rei, um pouco alterado. - Eu já a li. E ainda não vejo problemas nela. - Como não? Eu sou o rei de Lynzea! - E em momento algum a profecia citou seu nome. Lynzea obviamente terá outros reis. Para mim, o senhor está ligeiramente paranóico. - Não seja cínico! Olhe a terceira linha! Filho da Bondade e da Justiça! É óbvio que você, Fiar, é a “Justiça”, e minha filha Amaky é a “Bondade”! - Eu não sou a única pessoa justa de Lynzea, e tampouco sua filha é a única pessoa bondosa. E tem mais, sua herdeira é Amaky, não seu neto. – blefou Fiar. - Você sabe bem que não, Fiar. Inclusive, sabe melhor que eu. Segundo as leis de Lynzea, apenas os herdeiros homens do rei podem herdar o trono. Se não houver descendentes, passa-se o cargo para o próximo homem na linha de sucessão que, no caso, é você. - Muito bem, e o que você pretende que eu faça? – perguntou Lian Fiar, desconfiado. O rei riu.
  • 39. 39 - Você, Fiar, mandará matar o meu neto. – disse o monarca, virando-se e saindo da sala do trono. - Meu pai fez o que? – perguntou Amaky, esposa de Fiar, incrédula. Eles estavam no quarto deles. Amaky estava sentada na cama, enquanto Fiar andava de um lado para o outro no espaçoso recinto. O bebê dormia tranqüilo no berço. - Exatamente, Amaky. Terei que matar nosso filho. - Como, como meu pai ousa falar uma sandice dessas? Não, Fiar, eu não consigo acreditar. - Mas é verdade, querida. E eu não consigo ver outra saída. Amaky olhou para seu filho, desnorteada. Poxa, ela sempre fora tão bondosa! Nunca fizera nada de mal para ninguém. Por que tinha que passar por isso? Seus belos olhos castanhos lacrimejaram. - Fiar... Você é Grande Juiz. Você não pode enfrentar meu pai? Vocês têm o mesmo poder, não é? - Não e sim, Amaky. Sim, nós temos o mesmo poder. Mas não, não posso enfrentá-lo. Mesmo que eu levasse isso para uma reunião só com a nata política de Lynzea, seria ineficaz. O pulha do Ministro da População é um cachorrinho de Malrua, que está ao lado do seu pai. Ainda que Sarbrar fique do meu lado, serão três contra dois. - Fiar, temos que fazer alguma coisa. - Eu sei, Amaky, mas o quê? Estamos de mãos atadas! Amaky pesou as palavras de Lian Fiar em silêncio, até que se levantou resoluta e se dirigiu à porta. - Onde vai, querida? – perguntou Lian Fiar, assustado. - Vou falar com meu pai. Ele deve estar louco, só pode ser isso. Eu vou tirar essa idéia da cabeça dele, nem que seja a última coisa que eu faça. - E então, Amaky, conseguiu dissuadi-lo? – perguntou Fiar, ao ver a esposa entrar no quarto. - Não, Fiar. Pior. – respondeu a mulher, abatida. - O que ele falou? - Que, se você não fizer isso dentro de uma semana, ele mesmo fará. Em praça pública. - Sarbrar, preciso de você. – disse Fiar, adentrando no laboratório do amigo com ímpeto.
  • 40. 40 - O que foi, Fiar? – perguntou Sarbrar, assustado. O Grande Juiz não costumava ser assim. - Prefiro falar com você em particular. – respondeu Fiar, olhando para os assistentes de Sarbrar com desconfiança. - Saiam. Depois continuamos nosso trabalho. – ordenou o pesquisador aos seus assistentes. – O que houve, Fiar? - Preciso da sua ajuda. O rei quer que eu mate meu filho, por causa de uma profecia, mas eu não quero fazer isso. Eu não posso, Sarbrar. - Conte-me tudo, Fiar. Depois achamos um plano de ação. – disse Sarbrar, indicando uma cadeira com a mão para Fiar, enquanto puxava outra para si. Fiar contou a história, e Sarbrar ficou em silêncio, ponderando. - E então, Sarbrar, o que devo fazer? - Fiar, a política é um negócio sujo. E eu sei como você é honesto. Mas, desculpe, dessa vez você precisa jogar sujo. Se não por você, pelo seu filho. É preciso que você cobre alguns favores. Sem medo. Fiar assobiou. Ele tinha um bocado de favores a cobrar. - Senhor rei, matarei meu filho na floresta, numa clareira. Depois o senhor pode checar. – sussurrou Fiar, ao cruzar com o monarca num dos corredores do castelo. O aceno de cabeça foi o suficiente. Todos estavam reunidos na clareira. O açougueiro, com um porco raspado preso por uma coleira, o escultor, com uma sacola, o pastor e um mago leal aos Lam. Fiar estava com seu filho nos braços. O bebê dormia inocentemente. - Estão com o que lhes pedi, senhores? – perguntou Fiar. Todos murmuraram um “sim”. – Então, comecemos. – disse ele. O escultor ajoelhou-se, colocando delicadamente no chão pedaços de argila em formato de ossos élficos de bebês no chão, para depois espalhá-los de um modo aleatório, como se um animal faminto houvesse passado por lá e feito um lanche com a criança abandonada. Alguns dos pedaços de argila menores foram devolvidos à sacola, como se o lobo os houvesse ingerido junto. Após o escultor se retrair, o mago avançou, com uma magia preparada. Ele levantou seu cajado e bradou “Argila em osso!”. Imediatamente, os pedaços de argila se transformaram em verdadeiros ossos. - Incrível. – sussurrou o pastor.
  • 41. 41 - Mais do que o senhor imagina. Prossigamos. – respondeu Fiar, acenando positivamente com a cabeça para o açougueiro, que se adiantou e cortou o pescoço do porco. A seguir, cortou alguns pedaços do bicho, pequenos, e colocou nos ossos recém formados. Parecia que animais haviam devorado um bebê de colo. - Senhor pastor, o senhor sabe o que fazer? - Sim, Lian Fiar. Devo ir até Sparon, na casa dos mercadores Lam, e entregar o bebê e essa carta a eles. - Excelente. Faça uma boa viagem. – disse Fiar, com lágrimas nos olhos, entregando o filho ao pastor. - Mestre... Só tenho uma dúvida. - Pois não? - Qual é o nome da criança? Certamente que não quer que os mercadores dêem o nome de seu filho, não é? - O nome? - Sim, senhor, o nome de seu filho. - O nome que eu sempre quis para o meu filho. O nome que eu sempre quis ter. Um nome forte. Um nome que certamente será honrado por esse menino, senhor pastor. Pois, ainda que eu esteja de coração partido, e minha mulher ainda mais, por não poder saber da verdade, sei que isso é o melhor a ser feito. Então, damos um nome de um verdadeiro guerreiro, honrado, fiel, justo e corajoso. Um nome digno dele. “O nome é Corash Lam”
  • 42. 42 Capitulo Dez - Seu filho? Como?! “Lam”, na língua antiga, significa “mercador”! – disse Corash, atordoado. - De fato. No entanto, uma palavra pode ter mais de um significado. Em nosso caso, “Lam” significa “justo”. - Não pode ser verdade, senhor! – disse Mahslia – Eu conheço Corash desde criança, e sou quase fluente na língua antiga! “Lam” sempre significou “mercador”! - Não, minha jovem. Nos primórdios da linguagem, “Lam” significava “justo”. No entanto, houve certo Lam, creio que o nome dele era Milonna Lam, que não seguiu o mesmo rumo da família, e virou um mercador. A partir disso, a família se dividiu entre os “Lam da justiça” e os “Lam do mercado”. - E como o senhor sabe com certeza que o Corash é seu filho? – perguntou Avalas, astuto. Lian Fiar olhou para ele, sorrindo. - Avalas, me lembro de você em minhas aulas. Sempre foi um bom arqueiro, mas suas melhores notas sempre foram no quesito da estratégia. Pelo jeito você não perdeu esta característica. Bom, eu preciso de um pouco mais de tempo para explicar isso. “Vejam, a família Lam sempre foi uma família de arqueiros. Está no sangue, não há uma explicação lógica. Os advindos da linhagem direta dos ‘Lam da justiça’ sempre terão uma habilidade inata com o arco e flecha. Sempre fomos uma família abastada justamente porque nossa arquearia era muito boa. Os grandes generais arqueiros, invariavelmente, eram Lam. O que nos destacava dos demais é que tínhamos, em nosso sangue, certo poder mágico. Não o suficiente para virarmos magos de elite, mas dava para nos defendermos. Só que nós conseguíamos ‘aplicar’ essa magia em nossas flechas, deixando-as mais poderosas do que seriam normalmente. Podíamos soltar flechas sonoras, para atordoarmos nossos inimigos, flechas congelantes, para paralisarmos, entre outras. Como eu disse, os ‘Lam da justiça’ têm habilidade inata com o arco e flecha. Oras, o Corash é um arqueiro que conseguiu utilizar uma flecha
  • 43. 43 flamejante do nada! A única explicação lógica para isso é ele ser meu filho perdido.” - Faz sentido... Por isso que você nos protegeu, no julgamento. Para não matar de vez seu filho, não é? – perguntou Avalas. - Em partes. Lembre-se que eu gosto de ser o mais justo possível, enquanto eu puder. Agora, eu sei que vocês precisam fugir. A Arena só permite um campeão. Se vocês ganharem, serão obrigados a matar uns aos outros. Assim, terão que fugir. De preferência imediatamente antes da final, assim o rei terá dificuldade em armar um esquadrão para recapturá-los. “A Arena está no exato limite da cidade, e possui duas saídas – uma a leste e uma a oeste. A saída a leste dá na cidade, então é inútil. Vocês devem sair, então, pelo oeste. O maior problema, no entanto, é que a saída a oeste ‘desemboca’ diretamente nas Dunas Congeladas. Caso vocês não saibam, as Dunas Congeladas não formam um deserto tão grande assim. Ele é, na verdade, pequeno. O grande problema é que ele é um lugar muito mágico, e ilude os viajantes, para o bem e para o mal.” - Hm... Então teremos que inevitavelmente cruzar as Dunas Congeladas? – perguntou Corash, olhando de soslaio para Mahslia e Avalas, que enrubesceram. - Sim. As Dunas Congeladas também têm uma propriedade estranha, pois ela sempre vai deixar os viajantes na Montanha Selque. É o único caminho para lá, inclusive. De qualquer maneira, vocês estarão na Montanha Selque. De lá, vocês devem seguir sempre rumo oeste. Assim, sairão perto de Sparon. Algo mais? - Acho que não. Mas... Como saberemos como sair da prisão? – perguntou Mahslia, finalmente. - Ah, isso vocês saberão no momento certo. Direi apenas que seu novo amigo sabe. – respondeu Lian Fiar, sorrindo. E, com essas palavras enigmáticas, ele rodopiou em seus calcanhares, destrancou a cela e saiu, com seu manto vermelho e dourado esvoaçando atrás dele. Mas ele não se esqueceu de fechar novamente as grades do cubículo de pedra que atrasava os amigos.
  • 44. 44 Capitulo Onze Dois dias haviam se passado desde a visita de Lian Fiar. Dois dias silenciosos e longos, nos quais os únicos barulhos ouvidos foram a abertura da cela para a entrada de comida e a pedra de amolar improvisada de Avalas indo de encontro à espada tosca. - Chega! Eu não agüento mais! – explodiu Corash, subitamente. - Paciência, Corash. Eu entendo sua ânsia de sair daqui, mas não adianta explodir. Espere. Temos que esperar nosso companheiro. - Não vamos mudar para a cela dele? - Ah, claro. É realmente muito mais fácil mudar três pessoas de cela do que mudar uma. – respondeu Avalas, sarcástico. Mahslia começou a gargalhar. - Qual a graça, Mahslia? – perguntou Corash, emburrado. - Vocês! – disse ela, tentando respirar. - O que temos nós? – questionou Corash, ficando nervoso. - Olhem para vocês! Parecem duas crianças brigando! Avalas esboçou um sorriso, e até Corash riu. Mahslia continuou rindo, mesmo quando o guarda pediu silêncio. - A que ponto chegamos, não? – perguntou Avalas, depois de uma hora, parecendo um pouco triste. – Estamos rindo de brigas entre nós mesmos. Isso é tão... - Macabro? – sugeriu uma nova voz na cela. Uma voz rouca. Os três amigos se viraram para a voz com as mãos nas armas. A porta da cela estava aberta, e o guarda escoltava uma pessoa grande e forte, com as mãos algemadas para trás. Sua pele era marrom, em contraste com a típica pele de orc, mas era um marrom bonito. O rosto era até bonito, para um orc, sem ser muito rústico nem muito delicado. Os olhos, que em orcs eram cruéis, tinham um brilho sábio e bondoso, e seu sorriso branco era bonito de se ver. - Entre, seu vagabundo – disse o guarda, rudemente empurrando o recém- chegado para a cela. Quando o prisioneiro caiu de joelhos, o guarda
  • 45. 45 rapidamente retirou suas algemas, deixou cair um machado no chão e saiu, trancando a porta. - Desculpem-me entrar de modo tão brusco. Eu sou Krummel, seu novo companheiro de cela, e, como podem ver, sou um meio-orc. - É um prazer, Krummel. Meu nome é Avalas, e esses são Corash e Mahslia. Somos um grupo, agora, de modo que é melhor se acostumar com a sensibilidade da Mahslia e a idiotice aguçada do Corash. – disse o grande espadachim, estendendo a mão para Krummel, que a apertou. Os dois gigantes não poderiam ser mais diferentes um do outro. Enquanto Krummel tinha olhos bondosos, calorosos, pele escura e sorriso fácil, Avalas tinha olhos frios e calculistas, pele alvíssima e nunca sorria. - É um prazer. Diga-me uma coisa, qual sua outra metade? – atropelou-se Corash. - Eu sou mestiço de humanos, também. – Corash contorceu o rosto. – Algum problema? - Não gosto de humanos. Eles são horríveis. Falsos, metidos, ignorantes, grosseiros... - E você está sendo quase tudo isso em dobro, além de preconceituoso. Os seres pensantes são assim, independentemente da raça à qual pertencem. Elfos, inclusive. O silêncio pairou no recinto. As palavras de Krummel pesaram. - E o plano, qual é? De sair da prisão, digo. – perguntou Mahslia. - Ah, sim. Bom, vamos lá. A partir da cela em que estamos agora, seguimos para a direita, viramos a segunda esquerda e vamos até a terceira porta, também à esquerda. É o depósito de armas. Pegaremos nossas armas, vestiremos armaduras e continuaremos andando, como se não houvéssemos parado. Viraremos na primeira direita que encontrarmos, e nos separaremos em dois grupos – Corash e Avalas vão para a direita, Mahslia e eu iremos para a esquerda. Para abrirmos os portões, duas alavancas precisam ser acionadas. Cada um dos grupos ativará a sua, e voltaremos correndo para a bifurcação, seguindo reto até o portão e as Dunas Congeladas? Entenderam? - Só vejo uma falha: a parada para pegarmos equipamentos. Certamente os guardas notarão nossa falta. Quando conversamos, eles ouvem apenas ruídos. Eles acham estranho, porém, que fiquemos quietos. – atestou Avalas, depois de uma longa reflexão - Sim. Só temos que ficar quietos por muito tempo, e poderemos disfarçar bastante a nossa fuga. – respondeu Krummel, sorrindo.
  • 46. 46 - Falar é fácil. Além disso, o que faremos quando encontrarmos os guardas? Certamente eles patrulham os corredores, ou ao menos tem postos estratégicos por esta masmorra. – perguntou Corash, sensatamente. - Quando encontrarmos os guardas, se é que vamos encontrá-los, jovem Corash, teremos que improvisar. E seria bom que suas flechas sejam precisas e velozes. Eu garanto o sangue no meu machado, e pelo físico de Avalas, ele também se garante. – retrucou o meio-orc, sorrindo. Mas, apesar do sorriso gentil, seus olhos brilhavam, clamando por sangue. Três dias depois, um guarda os chamou para a próxima luta.
  • 47. 47 Capitulo Doze A Arena estava do mesmo jeito que eles a tinham deixado. Do outro lado, um humano, um anão, um elfo e um halfling os observavam, desconfiados. O humano tinha cabelos negros como a noite, e um rosto razoavelmente bonito, apesar de um pouco sofrido. O anão era corpulento, forte e parecia perigoso. O elfo os olhava com desprezo, e o pequeno halfling parecia analisá-los. Seus olhos espertos pulavam de um para o outro. - Avalas, deixo o anão para você. Minha armadura é mais leve que a sua, e esse desgraçado parece forte. Eu vou lutar com o humano. – disse Krummel, pensando rápido - Parece justo. Mahslia, esse elfo tem jeito de ser mago. Você consegue rebater as magias dele? – continuou Avalas. - Posso tentar, Avalas, mas não posso garantir. Tudo bem? - Vai ter que servir. Corash, você nos dê cobertura! – ordenou Avalas. - Certo, mas vocês não estão se esquecendo do halfling, não? – perguntou Corash. Krummel trincou os dentes com força. Era verdade, eles haviam mesmo esquecido do halfling. - Certo. Alguma idéia do que ele é, Avalas? – perguntou o meio-orc. - Pequenino e rápido? Um batedor, acho eu. Ou então um ladino. - E qual o uso de um ladino em campo de batalha? – questionou Corash. - Idiota. – suspirou Avalas. – Ladinos são mestres do disfarce, do roubo, da furtividade. São guerreiros perfeitos para flanquear o inimigo, distraí-los... E cuide bem de suas flechas. Ele pode afaná-las, e não queremos isso. – disse o espadachim, puxando sua enorme espada. Krummel sacou seu machado, e Mahslia preparou seu cajado. Sem muitas opções, Corash preparou uma flecha e retesou seu arco. E a luta começou.
  • 48. 48 Enquanto Krummel e Avalas corriam contra os inimigos, Corash lançou suas flechas certeiras. Uma pegou na coxa do humano, e a outra acertaria perfeitamente a cabeça do anão, se ele não houvesse erguido o escudo. O halfling saiu correndo pela Arena, enquanto o elfo começou a fazer gestos esquisitos. Mahslia começou a sussurrar, conjurando uma magia. Corash manteve os olhos no halfling, preparando uma flecha. O pequeno ladino corria pela Arena, sem um padrão de direção. Ele tinha uma espada curta nas mãos, e não usava escudo. Uma flechada poderia matá-lo. Aquele maldito anão estava irritando Avalas. Profundamente. Primeiro, era difícil de acertá-lo. Por ser muito alto, Avalas teria que abaixar bastante para atacar o inimigo. Por conseqüência, Avalas só podia atacar a cabeça e os ombros do outro, que defendia com o escudo. A sorte do grande espadachim era que seus golpes eram tão poderosos que atordoavam o inimigo, e ele não revidava os ataques. A flecha de Corash tirara toda a graça da batalha, para Krummel. O humano estava com a mobilidade comprometida, a armadura enfraquecida e sua maça-estrela tinha espinhos em falta. Algumas machadadas do meio-orc foram suficientes para eliminá-lo. Ridículo. “Vamos, seu halfling maldito, fique parado!” pensou Corash, raivoso. O elfo abriu os olhos, luzidios de poder. - Bola de fogo maior! – conjurou ele. De suas mãos saiu um fogo que se juntava numa bola enorme. E a bola começou a ir rapidamente na direção de Corash. O mago voltou a seu transe, preparando mais uma magia. E a técnica de Mahslia ainda não estava pronta. Krummel olhou a situação dos companheiros, e decidiu que deveria atacar o elfo. Ou seus companheiros morreriam. Aquele maldito elfo era perigoso. Mas antes ele tinha que fazer uma coisa. Corash atirou sua flecha na direção do halfling, e por pouco não o acertou. Aquele maldito era rápido. Por que ele não se decidia para onde ia? Foi então que Corash notou a enorme bola de fogo vindo em sua direção.
  • 49. 49 - Que inferno, Corash, será que você não consegue cuidar de si mesmo? – urrou Krummel, pulando na frente do elfo e estendendo as mãos, segurando a bola de fogo. O machado fora guardado novamente na cintura. - Krummel! O que você está fazendo? - Deixando o arqueiro estúpido vivo, não é óbvio? – respondeu ele, com sarcasmo. Sua voz tinha uma nota de dor. – Mahslia, a magia está pronta? – urrou ele para a maga. - Só falta mais um pouco! – respondeu ela, cada vez mais concentrada. Subitamente, Corash teve uma idéia. - Mahslia! Alterne a magia para ajudar o Avalas! Deixe que eu cuido da bola de fogo! – gritou o arqueiro para a amiga. - O quê? Ficou louco? Você não é mago, Corash! – gritou Krummel. - Confie em mim! – retrucou o elfo, armando uma flecha no seu arco. – Diga-me onde está o mago deles, Krummel! - Corash... - Confie em mim! - De onde você está, basta mirar no meio da bola de fogo. - Excelente! Quando eu falar, você sai do caminho, entendido? – perguntou Corash, pulando para trás e apontando a flecha para o meio da bola de fogo. E, por conseqüência, para a cabeça de Krummel. - Vamos logo! – gritou Krummel. - Saia, Krummel! Eldr Or! – ordenou Corash, lançando a flecha no meio da bola de fogo. A flecha flamejante atravessou o golpe do mago adversário, mas algo de extraordinário aconteceu: as chamas que os atacavam se incorporaram ao fogo de Corash, e as labaredas tomaram a forma de um dragão, voando na direção do mago inimigo. Avalas estava ficando realmente irritado com aquele anão. Já era para ele ter morrido! No entanto, ele continuava firme em sua posição. E Avalas insistia em seus brutais golpes. - Vamos, maldito, abaixe esse escudo! - Muito bem! – sorriu o anão perigosamente. Seus olhos brilhavam de um modo maroto. Um modo que devia ter avisado Avalas. Mas a raiva havia o cegado. Com uma súbita e lancinante dor na perna esquerda, Avalas caiu de joelhos. A parte posterior de sua coxa doía absurdamente, como se houvesse tomado um golpe de espada. A enorme montante do elfo caiu no chão.
  • 50. 50 Então, de canto de olho, Avalas viu. O halfling já saía de seu alcance, mas seu sorriso brilhava. E sua espada também, com o sangue do enorme elfo. - Morra, seu idiota! – berrou o anão, erguendo um machado enferrujado para brandi-lo na direção da cabeça de Avalas. - Metal em Pedra! – gritou Mahslia, abrindo os olhos, que brilhavam vermelhos. O anão tombou para trás com a súbita mudança de peso. Não foi o suficiente para machucá-lo. Não em um primeiro momento. O tombo deu chance para a recuperação de Avalas. Agarrando o pé do anão, ele o ergueu com ódio no olhar. Era hora da vingança. O grande espadachim levantou-se com dificuldade e jogou longe o elmo do inimigo. Em seguida, girou-o como um laço, para lançá-lo de cabeça na parede de pedra da arena. Um horrível som de ossos quebrando se fez ouvir por todo o recinto, fazendo com que um arrepio passasse frio pelas costas dos presentes. Pegando seu montante, Avalas virou-se com ódio para os inimigos restantes. Mas a luta já havia acabado. O halfling havia atacado Avalas e saído de costas, para ver o parceiro matar o enorme inimigo. O problema, para ele, é que ele havia entrado diretamente na linha de fogo da flecha flamejante de Corash que, apesar de estar muito alta para atingi-lo, deslocava uma imensa quantidade de energia e vento. O suficiente para fazê-lo voar. Aproveitando-se da situação, Krummel lançou seu machado na direção do halfling certeiramente. A morte do pequeno adversário foi instantânea. O mago só teve tempo de abrir os olhos antes de ser atingido pelo dragão flamejante. O fogo o consumiu instantaneamente. Corash abaixou o arco. Sua fronte estava suada, mas seus olhos brilhavam determinados. Ele olhou para os companheiros e sorriu. - Conseguimos.
  • 51. 51 Capitulo Treze De volta à cela, os amigos resolveram descansar. A luta, apesar de rápida, havia sido extremamente cansativa, principalmente para Corash, graças à técnica, e o ferimento de Avalas era mais profundo do que parecera em um primeiro momento. - Como você conseguiu se ferir aí, Avalas? – perguntou Corash, recostado na parede. - Eu não “me feri”. Eu fui ferido. Aliás, eu fui ferido pelo halfling que você deveria ter matado. - Ei, pare de me culpar! O mago jogou a bola de fogo em mim! Se a Mahslia tivesse conjurado a contra-magia antes, não teria tido esse problema! – reclamou Corash, olhando para a amiga. - O quê?! Seu idiota, você não atacou o mago por quê?! Ele estava em transe, inferno! – reagiu Mahslia, ofendida. - Que eu me lembre, eu estava te protegendo de um halfling maluco que corria por aí com uma espada na mão tentando nos cortar. - E eu por um acaso pedi sua proteção, seu arqueiro de meia-tigela? - Calem a boca! – urrou Krummel, levantando-se. – Ninguém aqui tem culpa de nada, entenderam? Não vamos conseguir nada se continuarmos brigando, exceto nos matar. Se qualquer um de vocês deseja morrer, basta me avisar, e eu terei o maior prazer em realizar seus desejos. Mas eu ainda quero viver. Ambos Corash e Mahslia silenciaram, com o rosto um pouco vermelho de vergonha. Krummel olhou para eles com um pouco de reprovação, e em seguida continuou: - Avalas, deixe-me ver sua perna. Deite de bruços no chão. – ordenou o orc. O grande elfo o obedeceu. Krummel ajoelhou-se ao lado do colega e olhou o corte.
  • 52. 52 O ferimento estava feio. Eles haviam limpado como podiam, mas aquela cela era extremamente carente de materiais. O corte havia coagulado, mas estava um pouco inchado e extremamente sensível. - E então, doutor Krummel, o que acha? – perguntou Avalas, com um pouco de sarcasmo na voz. - Está bem ruim. Eu posso mexer um pouco? – perguntou o orc, ignorando o veneno que o grande elfo cuspira em sua direção. - Faça como quiser, mas resolva isso, por favor. – permitiu Avalas. Krummel se levantou e se dirigiu à porta da cela. - Guarda! Guarda! – urrou ele, batendo na porta com toda sua força, fazendo bastante barulho. - O que você quer, orc maldito? – perguntou o guarda, cuspindo um pouco no rosto de Krummel. O bárbaro não fez questão de corrigir o guarda. - Senhor, um dos nossos colegas de cela foi ferido. Sei que não pode nos chamar um médico, mas queremos cuidar dele. O senhor pode me arranjar lenços limpos? – perguntou o meio-orc, contendo-se para não se limpar. Ele precisava parecer obediente. - Verei o que posso fazer. – disse o guarda, saindo. - Agora, nós esperamos. – disse Krummel, limpando o rosto e abaixando- se para examinar a perna do amigo. - Ei, vocês! – disse uma nova voz por detrás da porta. Corash levantou a cabeça, assustado. Outra luta agora? Não estava na programação! Ele estava cansado demais para isso. - O que o senhor deseja? – perguntou Krummel, indo em direção à voz. - Vim cuidar de seus ferimentos! O rei os quer prontos para a batalha amanhã. “Amanhã”? Os quatro se entreolharam. O rei aparentemente soubera da tentativa de fuga, e adiantara a batalha. - Deixem-no entrar logo. Se temos mesmo que batalhar, ao menos eu poderei batalhar com a perna um pouco melhor do que esta. – sibilou Avalas, deitado com dificuldade na cama. - Pode vir! Estamos desarmados! – gritou Krummel, afastando-se da porta da cela, que logo após se abriu. Um elfo baixo e gordo entrou, com uma maleta em mãos. - Eu sou o doutor Merkus. Quem é que está ferido?
  • 53. 53 - Quem é o único com um sangramento óbvio? – perguntou Avalas, irascível. A dor o tornava verdadeiramente insuportável. O médico acenou com a cabeça, e andou na direção do grande elfo. - Os senhores que estão bem, podem segurá-lo? Isso vai ser difícil, e acho que é fácil ver que eu não conseguirei contê-lo sozinho. Krummel acenou afirmativamente com a cabeça. - Mahslia, você pode conjurar um feitiço paralisante em Avalas? Será meio caminho andado. - Mas então não precisamos contê-lo, não é? – perguntou a elfa, preparando a magia. - Mahslia, você é linda, simpática e inteligente, mas não entende nada de magias na prática e no cotidiano – sorriu Krummel. – Por favor, confie em mim. Cinco minutos depois, Avalas estava imobilizado, de bruços, no chão. Corash e Mahslia sentavam em suas costas, enquanto Krummel, que pesava aproximadamente a mesma coisa que os dois juntos, estava deitado nos calcanhares do grande elfo, que já estava afetado pela magia de Mahslia. - Isso tudo é mesmo necessário? Porque eu estou bem desconfortável aqui! – reclamou Avalas. - Calado! Doutor, pode começar. – disse Krummel, pesando mais nos calcanhares do amigo. O rotundo elfo se ajoelhou ao lado da perna machucada de Avalas e pegou um bisturi de sua maleta. Com um corte preciso, ele lancetou o inchaço, que escorreu um fétido e amarelado pus. Avalas gemeu de dor. Com muito cuidado, o médico pegou um pano reservado e começou a limpar o ferimento do enorme elfo, que tentava se contorcer de dor. A magia de Mahslia estava funcionando... ainda. - Doutor, está doendo! – reclamou Avalas, por entre os dentes. - Eu sei, Avalas. Por favor, agüente mais um pouco. – respondeu o médico, sem sequer erguer os olhos. De sua maleta, também tirou um frasco lacrado com uma rolha, que ele puxou com os dentes e derramou lentamente no ferimento. Avalas urrou. E começou subitamente a se contorcer. - Segurem-no firmemente! – disse o médico. - Mas... E minha magia?! – perguntou Mahslia, jogando seu corpo em cima de Avalas.
  • 54. 54 - Eu avisei que seríamos necessários. Mahslia, a força bruta muito grande pode anular os efeitos da magia de paralisação. Ou melhor, sobrepujá-los. A força de Avalas já é grande, sabem os deuses. Como a dor é reflexa, a força que os músculos empregam é desmedida. Por isso estamos aqui! – explicou Krummel, pressionando ainda mais as pernas de Avalas no chão. O médico aproveitou e derramou um pouco mais do líquido na perna. - Calma, Avalas, estamos fazendo isso para seu próprio bem! – resmungou Corash. A única resposta que obteve foram os urros de dor do grande elfo. Com paciência, o médico pegou um outro pano em sua maleta, limpando o excesso de líquido que havia na perna de Avalas. Surpreendentemente, não sangrava mais. No entanto, devido à dor, o enorme elfo desmaiara. - Que é isso, senhor? – perguntou Mahslia. - É um tipo de ácido, menina. Ele cauteriza o ferimento, impedindo-o de sangrar. Só que dói. Bastante. – respondeu Merkus, buscando outro frasco, menor, também lacrado com uma rolha. Destampando-o, ele derramou todo o seu conteúdo na ferida, passou novamente o pano com que limpara o ácido e, enfim, puxou um rolo de bandagens da maleta, fazendo um bem cuidado curativo. Logo em seguida, recolheu suas bagunças, exceto o rolo de curativo, e dirigiu-se para a porta. “Aqui, meninos e menina, deixarei com vocês este rolo de bandagens. Troquem o curativo todos os dias, sim? Se possível, lavem o ferimento todas as vezes antes que forem trocar.” - Mas como... – começou Corash, que logo foi silenciado por uma cotovelada de Krummel. - Entendemos, doutor. Muitíssimo obrigado. – agradeceu ele, fazendo uma mesura. Mahslia e Corash o imitaram, e até Avalas fez um grunhido e acenou com a cabeça, logo perdendo a consciência novamente. - Então, se me dão licença... – despediu-se o médico, virando-se e saindo. Um pedaço de papel acidentalmente caíra de um de seus bolsos. Antes que qualquer um pudesse falar alguma coisa, Krummel sinalizou um pedido de silêncio, abaixou-se e mostrou o papel para Corash e Mahslia. Nele, em letras elegantes, estava escrito um recado claríssimo. “Amanhã de manhã. Haverá amigos. Cuidem-se bem. Fiar Lam”
  • 55. 55 Capitulo Catorze Os companheiros se entreolharam, nervosos. Lian Fiar os dera apenas algumas horas. No entanto, eles encontravam-se feridos e exaustos. Como conseguiriam? - O que faremos agora? – murmurou Corash, olhando para os companheiros, desolado, após uma hora de silêncio. Avalas dormia a sono solto. A dor e o esforço excessivo, combinados com o cansaço, fizeram com que seu cérebro decidisse que era hora de descansar – e simplesmente desligou assim que o médico saiu. Mahslia estava encolhida num canto, com os cabelos ruivos um tanto quanto embaraçados caídos na frente do rosto. Ela abraçava os joelhos, e parecia nervosa. Krummel, por sua vez, estava sentado em posição de lótus, meditando. Era o único realmente calmo, à exceção de Avalas, que sequer tinha consciência do que ocorria à sua volta. Foi ele que respondeu, sem sequer abrir os olhos, com uma voz que indicava, talvez, um pouco de sono. - Acredito que tenhamos cinco horas até a hora final. Nesse tempo, deveremos nos preparar na medida do possível. Em primeiro lugar, você e Mahslia devem se acalmar. Se vocês ficarem nervosos, apenas farão com que nossas possibilidades de falhas cresçam. Em segundo lugar, nossas mortes são certas – seja se considerarmos o tempo como implacável, seja se considerarmos que nossas chances de sobrevivermos à arena estão diminuindo – e, mesmo que sobrevivamos, pode ser que sejamos executados. Ou seja, se vamos morrer, ao menos que seja de forma a tentarmos viver. Mahslia levantou os olhos para Krummel. Ela chorava. Olhando para a amiga, Corash sentiu um aperto no coração. Ela sempre fora mais forte do que ele... e lá estava ela, chorando desesperada.
  • 56. 56 “Não posso deixa-la assim”, decidiu Corash. O arqueiro se levantou e sentou ao lado da amiga, puxando-a para seu ombro enquanto afagava a cabeça da amiga com a outra mão. Mahslia começou a soluçar de modo forte, enquanto suas lágrimas molhavam levemente o ombro do amigo. - Você está certo, Krummel. Como podemos nos preparar para nossa fuga? – perguntou o arqueiro, olhando firmemente para o bárbaro. - Descansem. Precisaremos de toda força que pudermos reunir, e garanto a vocês que não será pouca. - E como saberemos quando chegar a hora? Pela primeira vez desde que sentara, Krummel abriu os olhos, olhando ferozmente para Corash. - Não se preocupe. Eu os avisarei. Corash assentiu, fechando os olhos. Sua mão continuava a afagar a cabeça de Mahslia, que parara de chorar e agora ressonava levemente no ombro de Corash. Krummel olhou para os dois elfos e sorriu de leve. Eles eram ótimos companheiros, pensou ele. E voltou ao seu estado meditativo. O deserto vermelho estava escaldante. O vento que soprava ciscos nos olhos de Corash tampouco ajudava a dissipar o calor, uma vez que também estava muito quente. O céu azul não tinha nuvens e, à toda a volta, só se via areia e mais areia, vermelha e ameaçadora. “Onde estou?” perguntou-se Corash, de modo vagaroso, olhando para o céu, deitado. Logo depois, arrependeu-se da pergunta. Era óbvio que estava em um deserto. O calor não estava permitindo que pensasse direito. Tentou mover o braço direito. Ele se movia, com um pouco de lentidão, é verdade, mas se movia. Isso era bom. Fez o mesmo com o outro braço e as pernas. Todos os membros se moviam. Ótimo. No geral, parecia apenas que ele acabara de acordar. Corash espreguiçou-se, espantando o vagar dos músculos. Uma sensação prazerosa percorreu seu corpo, o arrepiando. Em seguida, o jovem arqueiro sentou-se na areia, sacudindo a cabeça para espanar do cabelo a sujeira. “Bom, isso é estranho. Até agora há pouco eu estava em uma cela fedida com a Mahslia, o Krummel e o Avalas. E agora, estou no deserto, sozinho. O que houve?” perguntou-se, olhando fixamente para o oeste. Sabia que olhava para o oeste porque o sol nascente queimava sua nuca violentamente.
  • 57. 57 Algumas teorias passaram por sua cabeça, mas nenhuma era plausível. Não fora o rei que o enviara lá, uma vez que seu time era a mais nova sensação da arena; tampouco fora Lian Fiar – sendo seu pai e desejando que os amigos fugissem, teria no mínimo a decência de dar a eles suprimentos e de os deixar juntos, e não espalhados por um deserto desconhecido. Pensar em seu pai o lembrou de uma coisa de extrema importância: seu arco. Levando a mão às costas, notou que estava desarmado. “Excelente. Sozinho, desarmado e sem água ou comida no meio de um deserto. Tem como ficar pior?”, perguntou-se ele, emburrado. Naturalmente, tinha. Os ouvidos de Corash captaram um som baixo e gutural, meio rasgado e meio animalesco. Podia não ser nada. “Nada é nada”, pensou o jovem arqueiro, repetindo a máxima que seu mestre ensinara na vila de Sparon. Um pouco nervoso, Corash olhou para trás. A areia se movia um pouco, como se borbulhasse. O som aumentava a cada segundo, até que o chão pareceu explodir em som e vermelhidão pulverizada. Um corpo cilíndrico, segmentado e comprido saíra do chão, rugindo e mostrando a boca redonda, cheia de dentes e sem mandíbula. Dois pequenos olhos malvados focavam no magro elfo, cheios de fome. “Uma minhoca do deserto? Não é possível.”, pensou Corash, desesperado com sua própria sorte; ou melhor, com sua falta de sorte. Entre todos os predadores, a minhoca do deserto era conhecida como a mais cruel e voraz. Seu cérebro minúsculo fora programado de modo binário, ou seja, ela alternava sua vida entre a caça e o sono. Eram as duas únicas coisas que conseguia compreender. Todo o resto estava fora de sua alçada cognitiva. Dor, tristeza, felicidade, isso nunca afetara as minhocas do deserto. A minhoca olhou Corash maldosamente e farejou o ar. Além do cheiro de sua nova presa, só conseguia sentir o cheiro de outras de sua espécie, mas ela estava cansada de caçar outras minhocas. Elas eram duras demais, molengas demais, pouco nutritivas demais. Não, ela queria algo novo. Algo com um cheiro mais doce, mais vivo, mais desesperado. Exatamente como esse elfo que se apresentava a ela. Seu cérebro binário ordenou que caçasse logo. A minhoca obedeceu. Ela não tinha muita opção, é claro, mas se tivesse, teria feito o mesmo.
  • 58. 58 Com sede de sangue, a minhoca mergulhou no chão, engolindo diversos quilos de areia por segundo e se dirigindo rapidamente a Corash. Logo mais, ela teria um banquete. Corash viu a minhoca mergulhar e a areia começar a se mover ligeiramente em sua direção. “Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. O que faço?” Corash deu um pulo para frente e saiu correndo desabalado. Quinze minutos depois, Corash não aguentava mais correr. Seu lado dava pontadas dolorosas, seu corpo gritava por água e seu pulmão pedia por ar fresco. Apoiando-se nos joelhos, Corash tentou recuperar o fôlego. Durara quinze minutos; era um feito notável. No entanto, não sabia quanto mais poderia durar, já que estava desarmado e extremamente cansado. Seus lábios estavam grudentos, e seu corpo estava coberto por suor seco – quando notaram que a água não viria, suas glândulas sudoríparas pararam de trabalhar. O rugido voltou a se aproximar, dessa vez mais violento. A minhoca parecia brava porque sua presa durara tanto. Corash riu, aquele riso louco que precede a morte. Parecia engraçado que correra tanto para nada; que lutara tanto na arena para nada; que finalmente conhecera seu pai para nada. Ele se virou para a minhoca. Se fosse para morrer, morreria encarando-a de frente. O chão novamente explodiu, e a minhoca se ergueu contra o céu, cinco metros mais alta do que Corash, e apontou para ele sua boca. Era agora. Corash olhou para o céu, desejando ter conhecido também sua mãe. Era um sonho impossível, a essa altura do campeonato. A minhoca avançou. E sua cabeça segmentada explodiu, espirrando sangue verde e carne de minhoca para todos os lados. Limpando o rosto, Corash olhou para os lados, procurando a pessoa responsável por esse ato. Ao olhar para trás, foi quando viu. Uma mulher magra e razoavelmente alta, com bonitas curvas e um lindo rosto, estava com a mão enluvada apontada para onde estivera a minhoca. Ela vestia roupas extremamente elegantes, que estavam absolutamente deslocadas do lugar em que estavam. Seus cabelos
  • 59. 59 castanhos eram bem cuidados, com duas pequenas tranças saindo de suas têmporas para a parte de trás da cabeça. O resto do cabelo caía às suas costas, numa cascata de lindos cachos. Sua cabeça era circundada por um delicado diadema dourado, que era ornado por um brilhante rubi bem no centro de sua testa. Sua pele morena era lisa e bem cuidada. - Olá, meu filho. – cumprimentou Amaky, sorrindo para Corash calorosamente. Capitulo Quinze - Corash... Corash... Acorde, elfo! – dizia a mulher, com uma voz muito grossa. Muito mais grossa do que deveria, considerando seu tamanho. Aquela voz era metálica, quase uma voz de orc. Orc. Corash subitamente lembrou-se de Krummel. Sobressaltado, o jovem arqueiro abriu os olhos, com o corpo se sacudindo um pouco. Krummel encontrava-se acocorado à sua frente, com um pouco de preocupação no rosto. - Você está bem, Corash? – perguntou ele, levantando-se e estendendo a mão para ajudar o amigo. Mahslia não mais estava dormindo em seu ombro. - Sim, estou. Apenas tive um sonho estranho, mas não foi nada demais. Já é hora? – perguntou ele, olhando pela cela. Mahslia estava de pé, se alongando. Seu cabelo ruivo fora preso num rabo de cavalo, e seus olhos pareciam pegar fogo. Ela olhou para Corash e sorriu calorosamente para ele, acenando positivamente com a cabeça em resposta. Essa, sim, era a Mahslia que ele conhecia. Avalas, por sua vez, estava recostado na parede, com uma perna cruzada à frente da outra. Sua espada descansava ao seu lado, e não às suas costas, como de praxe. Apesar de toda a pose, ainda parecia um pouco pálido. - Você está bem, Avalas? – perguntou Corash, olhando para o companheiro. - Sim. Obrigado por cuidarem de mim, a propósito. Se não fossem vocês, provavelmente eu estaria num caminho sem volta para a morte. – disse ele, tentando esboçar um sorriso. Corash sorriu. Apesar de ser um humor um tanto quanto negro, já era um começo, ele tinha que admitir.