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T E X T O D E J O Ã O M I G U E L S I M Õ E S | F O T O G R A F I A S D E P A U L O B A R A T A
PAIRANDO SOBRE
UM NINHO DE CUCOS
Courchevel 1850. A numerologia não remete para uma data, mas sim
para uma altitude. A quase dois mil metros de altura, a saison está de
novo aberta na mais mundana das estâncias alpinas francesas.
98 Volta ao Mundo dezembro 2012
revisão meteorológica para o dia: céu limpo, sol
radioso e uma temperatura abaixo dos dez graus
negativos.EmCourchevel,aspistasabremàsnove,
mas, muito antes da hora marcada, é já grande o
frenesim de todos aqueles que não querem perder
mais uma (boa) jornada nas montanhas.
A mais mundana, e cara, de todas as estâncias
dos Alpes franceses estruturou-se para agradar a gregos e a troianos. Isso
não quer dizer que o consiga. Quer dizer que possui ingredientes para o
fazer. O que é diferente.
Quem vem pela festa, e pelas compras, e pelos spas, e pelos hotéis-
-chalés ou pelos restaurantes estrelados, tem muito com que se entreter.
Aliás,étantadistraçãoque,senãotivermoscuidado,podemosatéperder
a hora na manhã seguinte...
QuemachaforadecontextoapresençadeChanel,ValentinoouCar-
tier–sóparacitaralgumasdasmarcasdeluxomaisóbviasdeLaCroisette,
a área comercial nobre de Courchevel – terá, porventura, razões de sobra
para concluir que esta não é «a sua praia», ou melhor, «a sua estância».
Mas não confundamos as coisas.
Para lá dos russos novos-ricos que bebem champanhe como quem
bebe água em endereços da moda como Le Mangeoire, das peles ver-
dadeiras que desfilam, dentro e fora de portas, sem peso na consciência,
e das suites e chalés que custam uma pequena fortuna à semana, há,
acreditem no que vos contamos, uma Courchevel com adrenalina e
focada no básico.
ÉquemesmonãosendotãodesportivacomoValThorensouTignes,
Courchevel está longe de ser uma «florzinha de estufa» e integra Les 3
Vallées, que é só, para que conste, o maior domínio esquiável do mundo
com enorme variedade de pistas (do iniciado ao «pro») e uma senhora
dona infraestrutura – École du Ski Français e meios mecânicos de última
geração incluídos no pacote – digna de respeito.
E neve. Muita e boa neve, com uma consistência próxima ao pó de
talco, que é sempre um fator a não subestimar. A temporada de 2011-12
revelou-sebastantegenerosanestequesito.Tomaraqueapresente saison,
que começa agora e se prolonga até abril, alinhe pela mesma fartura.
Não que isso faça muito diferença. Courchevel, como as demais
estâncias, vive de e para o inverno. No resto do ano, apenas permanece
aqui um núcleo duro de duas mil almas, número que ascende vertigi-
nosamente a cerca de quarenta mil durante a época alta. Se contarmos
com os visitantes, a soma final aponta para uma média invejável de um
milhão e meio por temporada. Nada mau.
Porque os pormenores, mesmo os menores, contam
O título «Courchevel 1850» leva, ainda hoje, não pouca gente à certa.
AcontecequeestapopularestânciadosAlpesfrancesesfoiconstruídaem
diferentesníveis,peloquenosencontramosnopontoculminantedeum
P
COMO IR
Para quem voa a partir de
Lisboa, a melhor ligação é
com Genebra, na Suíça. A TAP
(flytap.com) tem voos diretos
desde 178,73 euros, com
todas as taxas incluídas.
A partir do aeroporto, a viagem
por estrada até Courchevel
demora cerca de duas horas
e meia. Dependendo do tipo de
pacote ou de optar ou não pelo
aluguer de uma viatura, tenha
em atenção que, de táxi, um
transfer de ida e volta poderá
ficar em cerca de 350 euros.
Existem ligações regulares de
autocarro entre o aeroporto
de Genebra e as estâncias nos
Alpes franceses (altibus.com).
100
vale, rodeado de pistas, a 1850 metros de altitude. Tão simples quanto
isso para uma primeira explicação.
Como praticamente tudo em Courchevel 1850, La Sivolière, o hotel
eleito, não é barato. Mas, na multidão de hotéis de luxo da estância mais
badalada dos Alpes franceses, ele consegue destacar-se pela discrição,
aconchego, atendimento personalizado, intimismo na medida exata e
localização certeira (perto da movida, mas suficientemente longe para
não ser contagiado por ela). Não é o único, claro, mas há nele qualquer
coisa de familiar que agrada, sobretudo porque essa sensação tem que ver
com uma escala humana (marca registada da sua gerente, a incansável
Florence Carcassonne) e não com a pretensão de se querer passar por
aquilo que não é.
Explicando melhor: o La Sivolière, ainda que pequeno (com apenas
24 quartos, 11 suites e um apartamento), não cria em nós, seus hóspedes,
a ilusão de estarmos a ser recebidos na casa de amigos ricos. Não é um
hotel-casa, é um hotel-hotel, com todos os serviços inerentes, que nos
fazsentirbemporque,precisamente,nãoestamosnanossacasaeporisso
não temos de nos preocupar com rotinas.
Chamem-lhe mundana e até superficial, mas Courchevel está longe de ser uma «
101Volta ao Mundo dezembro 2012
E foi isso, mais do que tudo o resto, que nos conquistou nos
quase quatro dias e três noites que passámos ali. Não que as outras
coisas sejam pormenores de somenos importância. Longe disso. Por
exemplo: pais com crianças de tenra idade, cada vez mais «excluídos»
em pequenos hotéis, vão gostar de saber que o La Sivolière cultiva
a noção de família, o que, traduzido por miúdos, equivale a dizer
que estendem o serviço cinco estrelas aos mais novos e que todo o
pessoal do hotel foi treinado para ser child-friendly e estar à altura da
situação. Poderia ser um direito adquirido, mas não é, pelo que o La
Sivolière pretende ir além de um simples Kids Club, onde os pais
«depositam» os filhos.
Do mesmo modo, as taças com água e biscoitos, na receção,
não deixam margem para dúvidas: este é também um hotel onde
os hóspedes podem fazer-se acompanhar dos seus cães. Os bi-
chos não estão autorizados a circular pelas áreas comuns, mas
par­tilham, em regime de meia-pensão, os aposentos dos donos
e têm à sua disposição os serviços de «babás» e até de um osteo­
pata canino.
ma «florzinha de estufa» e possui toda uma infraestrutura de ponta para a prática de desportos de inverno.
COISA SÉRIA
Quem leva o esqui muito
a sério talvez não eleja
Courchevel como a sua
primeira escolha, mas
não é por falta de neve
ou de boa infraestrutura.
A estância integra o
maior domínio esquiável
do mundo (vulgo Les 3
Vallées).
102
HOTEL-CHALET
Construído no mais
puro estilo alpino,
à boa maneira da Alta
Saboia, La Sivolière
soube renovar-se e
converteu-se num dos
cinco estrelas mais
discretos e confortáveis
da estância. À direita,
a cozinha estrelada
do Chabichou.
103Volta ao Mundo dezembro 2012
Equemnãotemcriançasnemcãesseráqueestarápelosajustes?Étudo
umaquestãodebomsenso.Crianças(bem)educadassabemcomportar-se
em qualquer lugar. Donos civilizados sabem educar os seus animais. Pelo
menosemteoriaéassim.Detodasasformas,criançasnãovimosdurante
a curta estada, mas havia cachorros no hotel e não demos praticamente
por eles. E quando perguntámos se o hotel está preparado para apagar os
vestígiosdasuapassagem(«percalços»acontecemnasmelhoresfamílias),
a resposta foi firme: «Claro que sim. Temos um sistema de limpeza que
não deixa o menor vestígio, inclusive de odor, se for o caso.»
Ufa!Afinal,ninguém(mesmoquemadorabichos)querchegar,abrir
a porta do seu quarto e sentir a «presença» do seu antecessor. Mais ainda
se for um antecessor de quatro patas, não é mesmo?
Reconstruído em estilo alpino, o La Sivolière, que já existia antes,
ganhou a sua quinta estrela em 2010 e passou por uma remodelação
recente que, mais do que sacudir o pó e mudar as colchas e cortinas,
mudou a sua filosofia.
Em2009,ofrancêsPascalChatron-Michaud,especializadoemarquite-
turademontanha,foichamadoaintervirnaestrutura,deformaatorná-la
mais conforme à tradição dos chalés da Saboia. Tristan Auer, designer de
interiores com provas dadas em outros hotéis como o Jules de Paris ou o
Almyra de Chipre, foi o senhor que se seguiu, sendo responsável por uma
decoração que, nas áreas públicas, combina elementos regionais como a
madeira ou a pedra com toques mais contemporâneos por conta de peças
como os tapetes da Diesel e Moroso, as luminárias de Frédérique Morrel
ouosofáemformademontanhaecataratadesenhadoporGaetanoPesce.
Nosquartosesuites,efazsentidoqueassimseja,atónicaémaisalpina,
com muita madeira e materiais quentes como o veludo e a lã. Tivemos a
sorte de nos calhar uma suite enorme, a número 40, que juntava a tudo
issoumasalacomlareira, jacuzzinumadascasasdebanhoeumavaranda
com vista primorosa para o bosque nevado.
E ainda assim, mesmo com uma cama king size e lençóis de algo-
dão egípcio, é provável que a primeira noite seja passado em claro...
Acontece a muito boa gente e nós não fomos exceção. Causas mais
prováveis? A adaptação à alta atitude, a incapacidade (mea culpa) para
regular o aquecimento central e... ahã... um jantar tardio com raclette,
fondue e tartiflette (o que é de gosto regala a vida e, pode, acrescentamos,
minimizar danos colaterais).
Comida é, aliás, um pormenor que não passa despercebido no La
Sivolière. Ótima seleção de pães, charcutaria (os salpicões e os salames
são uma perdição) e queijos ao pequeno-almoço. Para começar bem o
dia, antes de ir para as pistas, nada como uma primeira refeição robusta.
Já no regresso ao hotel, ao final tarde, boa ideia a dos crepes (servidos
como cortesia a quem está hospedado) e das várias opções para «picar»
no cocktail lounge (substituem perfeitamente um jantar).
Mais do que da cozinha à la carte de Bilal Amrani, que não nos sur-
preendeu,gostámosfoimesmodassuaspropostasmaissimples,combase
nosprodutosdemercado,edotoquepessoalemreceitasbemconhecidas
comoaCaesarsalad(adoLaSivolièreémaisforte,porcontadamostarda
de Dijon), que servem de contraponto à cozinha tradicional da Saboia,
por regra bem mais pesada. Ao melhor estilo cozinha de mercado, com
Numa montanha de hotéis de luxo, La Sivolièredistingue-se pela
elegância, pelo serviço atento e por estar preparado até para receber hóspedes de quatro
patas. O hotel foi totalmente remodelado em 2009 e recebeu a sua quinta estrela em 2010.
104 Volta ao Mundo dezembro 2012
conquilhasdeSaint-Jacquesmuitofrescasevárioslegumesefrutadodia,
Bilal serviu-nos um almoço que, exceção feita ao pão, irresistível de tão
guloso, e à boa manteiga Echiré (produzida diariamente por uma coope-
rativa afamada), não comprometeu o nobre propósito de comer de forma
mais ligeira e saudável – e até mesmo o vinho eleito, um rosé Château
Margüi 2010, proveniente da Provença, era de produção biológica.
O melhor de tudo, porém, é que, após repasto tão ecologicamente
correto, nem foi preciso fazer vista grossa ao que se passava lá fora. Pelas
janelasdorestaurante,emolduradasporbucólicospinheirossaraivadosde
umbrancoglacial,aspistasdeesquinãopesavamnabarrigaechamavam
por nós. Atendemos ao chamado, claro.
Da oferta do hotel fazem ainda parte um pequeno centro de bem-
estar (pode não impressionar em instalações, mas a equipa, comandada
pelo osteopata Christopher Pirel, sabe o que faz) e, pormenor muito
importante,umalojadeesqui.Comacessodiretoàspistas(ounãotivesse
sido «Jeannot» Cattelin, antigo proprietário do La Sivolière, um dos
mentores de Courchevel 1850), o hotel está equipado para não deixar
faltar nada a quem vem, efetivamente, para tirar o máximo partido do
Detalhe curioso: «Jeannot» Cattelin, antigo proprietário de La Sivolière, foi u
105Volta ao Mundo dezembro 2012
domínio esquiável de Les 3 Vallées. E são todas estas coisas, somadas
ainda ao facto de haver alguns empregados de origem portuguesa e uma
cada vez mais significativa clientela brasileira (os mais presentes são os
franceses, seguidos dos russos, dos belgas e dos britânicos), que fazem a
diferença do La Sivolière.
Banhos de sol e visão de águia
Entre as várias opções de lazer disponíveis, gostámos particularmente
dos restaurantes de montanha. Instalados nos píncaros, são uma espécie
de porto seguro, no meio de quase nada, ideais para uma pausa num
dia de intensa atividade nas pistas e/ou para fazer a festa quando as
mesmas encerram.
Existem outros como Le Cap Horn, mas Le Panoramic, de Eric
Durandard,éumareferênciaincontornávelpelalocalização,a2732metros
de altitude, em La Saulire. Acessível por teleférico, mesmo para quem
não esquia ou faz snowboard (ou faz, mas não é suficientemente afoito
para se aventurar a tanto), Le Panoramic proporciona dos seus terraços
e janelas uma visão de águia sobre vales e montanhas.
AFTER-PARTY
Os restaurantes e
bares de montanha são
presença obrigatória
em qualquer estância
que se preze. Entre os
mais concorridos de
Courchevel conta-se
Le Panoramic..
ère, foi um dos mentores e grandes entusiastas da estância alpina de Courchevel 1850.
Por fora e, sobretudo, por dentro, Le Panoramic recria em diferentes
ambientes aquilo que se espera encontrar num refúgio alpino de charme:
madeira, peles fofas, lareiras acesas e velharias, nalguns casos utilitárias,
noutrossóparaopuroprazerdequemolhaequerrecordaroquenãoviveu.
A par da restauração, Le Panoramic possui agora um outro atrativo
de peso: a mais alta suite da Europa, disponível para quem se dispuser a
pagar o preço de tamanho privilégio. Mas, como quem avisa amigo é,
valeapenaacrescentaraseguintenotaderodapé:emcasodetempestade
muitoforte(comoaconteceunocomeçodesteanode2012),sãograndes
as chances de se ficar isolado...
A suite não experimentámos, mas fizemos ali um almoço muito
agradável. A cozinha, seja nos menus do dia (€ 28) ou à la carte, é
honesta e privilegia as especialidades locais. Não é alta-gastronomia,
mas é gastronomia nas alturas, o que acaba por justificar os preços  algo
inflacionados. 
Ao fim e ao cabo, há toda uma logística complicada para estar ali e
isso,paraquemusufruidavistaedoambiente,temdeserlevadoemconta.
Com quantas estrelas se arma uma estância gourmet?
Pelabocamorreopeixe.Háquemfaledemaiseseapressenojulgamento,
apenasbaseadonoquesaltaàvistaenodiz-que-diz.Nãoqueasaparências
sejam totalmente enganadoras neste caso. Courchevel não faz a linha
estâncialowprofile. Asuaassociaçãoexcessiva,emanosanteriores,auma
emergente, e quase sempre obscura, clientela milionária russa trouxe-lhe
proveito, mas não a fama que almejava.
Os russos continuam firmes em Courchevel 1850, e não passam des-
percebidos na forma como se comportam, como se vestem e, sobretudo,
como gastam (muito) dinheiro; mas os franceses voltaram em força e os
brasileiros ganham, a cada nova temporada, um maior protagonismo – e
começam, também eles, a contribuir para o «colorido» local, que nos dá
conta de famílias que chegam de avião fretado para passar o réveillon ou
que arrendam o chalé mais caro de Courchevel para o Carnaval.
Courchevelnãoéumaestânciaparaquemcontatostões.Melhor,não
é uma estância para quem se incomoda com a ideia de pagar caro pelos
prazeres da vida. Até os mais simples. Também não é a estância ideal para
quemsemelindracomousodepelesverdadeiras–sãoexibidas,semamenor
culpa, por homens e mulheres –, se altera com egos inflados – sobretudo
nos restaurantes e clubes noturnos da moda, como Le Mangeoire, onde as
mesascompetementresiparaverquemencomendamaischampanhe–ou
acha que já basta uma La Croisette da vida airada em Cannes.
Mas é um prato cheio para quem gosta de juntar o útil ao agradá-
vel. Quilómetros e quilómetros de excelentes pistas, no maior domínio
esquiáveldomundo–alémdenevecomfarturaeumapaisagemenfeitada
por pinheiros que quebram a monotonia monocromática do branco –,
somam-se à boa vida proporcionada por hotéis, spas, lojas, restaurantes e
uma programação intensa.
E se o excesso de dinheiro é o responsável por uma certa ostentação
– e até mau gosto, puro e duro –, sem ele, por outro lado, jamais seria
possívelqueCourchevelfosse,toutcourt,aestânciacommaisrestaurantes
distinguidos  pelo guia vermelho da Michelin.
ONDE FICAR
La Sivolière
Rue des Chenus, Courche-
vel 1850, França, Telefone:
+33 (0)479 080-833, diárias
desde cerca de 600 euros em
quarto superior para duas
pessoas (consulte com o hotel
a possibilidade de pacotes).
Pequeno-almoço não incluído
(estime cerca de € 35). Mais
em hotel-la-sivoliere.com
Vale a pena contactar os
serviços, em português,
da CM Inspired Selection
(cminspiredselection.com) para
o ajudar a criar um pacote à
sua medida não só neste hotel,
mas em Courchevel 1850.
106 Volta ao Mundo dezembro 2012
A par da clientela de novos-ricos russos, que dão proveito mas nem sempre
a fama certa a Courchevel, a estância atraiu de novo os franceses e está, a cada
temporada, a cair no goto dos brasileiros abastados, que lhe emprestam outro colorido.
107Volta ao Mundo setembro 2012
AGRADECIMENTOS
CM INSPIRED SELECTION
cminspiredselection.com
Na edição de 2012, foram sete os contemplados: Le Bateau Ivre,
Chabichou, Pierre Gagnaire, 1947, todos com duas estrelas, e ainda La
Table du Kilimanjaro, Il Vino d’Enrico Bernardo e L’Azimut, com uma
estrela cada um. À exceção de L’Azimut, que se encontra em Le Praz
(Courchevel 1300), os outros seis estão concentrados em Courchevel
1850, o que não deixa de ser extraordinário. Mais ainda porque Pierre
Gagnaire, no hotel Les Airelles, e 1947, comandado pelo chef Yannick
Alléno no hotel Cheval Blanc, conseguiram as suas duas estrelas de uma
assentada com um único ano de atividade. Já o Il Vino, filial da casa pari-
siense, é notável por juntar o talento de Enrico Bernardo, o mais jovem
sommelier a ser eleito o melhor do mundo em 2004, ao do chef Michele
Biassoni, de apenas 23 anos.
De todos eles, para pena nossa, apenas conhecemos o Chabichou.
Projeto familiar do chef Michel Rochedy, o restaurante é o principal
chamariz de um endereço que atende ainda como hotel, spa e um outro
restaurante mais informal, Le Chabotté (estes dois últimos inaugurados
na temporada de 2011-12).
Rochedy divide, há vinte anos, a cozinha com o chef Stéphane Buron,
cabendo às respetivas mulheres de um e outro a tarefa de receber e guiar os
comensais.Éumacozinharegionalsofisticadaerevisitada,comdoismenus
porano(umterceiropoderáviraserpensadoseorestaurantepassartambém
a abrir no outono) e preços a partir de 55 (almoço) e 90 (jantar) euros.
Pormenor interessante, na tarde em que ali estivemos, à espera de
Michel Rochedy que não havia meio de chegar, foi o sous-chef David
Ferreira, de pais portugueses, quem acabou por nos explicar os pratos que
fotografámos e degustámos. Antes que nos acusem de estrelismo agudo,
adiantamos desde logo que nem só de estrelas Michelin (ou macarons,
comotambémlheschamam)seencheopapoemCourchevel1850.Nem
que seja por uma única vez – mais do que isso não recomendamos, mas
cadaumsabedoseufígado–,sugerimosumalmoçooujantartipicamente
saboiano, com raclette (o nome do queijo, mas também da técnica que
consiste em raspá-lo para o prato depois de aquecido), fondue de queijo
(sãotrêsosqueijosusados:oComté,oBeauforteoGruyièreouEmmental
daSaboia)eaindaatartiflette(batatasgratinadascomqueijoReblochon).
Para tornar a experiência menos «pesada», seguimos um conselho
que viria a revelar-se precioso: não beber água e acompanhar apenas o
repasto com um bom vinho branco local.
Mais difícil é resistir aos queijos e à belíssima charcutaria da região,
presente quase sempre à mesa desde o pequeno-almoço... Os salpicões
secos, e não tanto os salsichões frescos, velhos conhecidos, são uma per-
dição mais do que consentida. O mesmo vale para os queijos, estando o
Beaufort e o Reblochon entre os eleitos.
Nocapítulogulodice,descobrimosnumadasgaleriascomerciaisdeLa
Croisette, o Forum, o Au Pain d’Antan. Gerida pela família Gandy, esta
cadeia é originária da Saboia e mantém um registo artesanal no fabrico
próprio de pães, doces, gelados e chocolate.
Passámos por ali numa tarde particularmente fria e fomos atraídos,
qual íman, à vitrina ataviada de brioches, croissants, pains au chocolat,
aux raisins e um sem-fim de tartelettes. E dá-lhe pista para derreter tanta
caloria. Felizmente, o que é de gosto regala a vida. n
Volta ao Mundo dezembro 2012
Outro trunfo de que Courchevel muito se orgulha é das suas estrelasMichelin.
Nenhuma outra estância francesa se lhe compara neste quesito. Nem só de restaurantes
estrelados se vive ali. Porém, é imperdoável não provar a farta cozinha regional da Saboia.

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Courchevel 1850-Volta ao Mundo Dec 2012

  • 1.
  • 2. T E X T O D E J O Ã O M I G U E L S I M Õ E S | F O T O G R A F I A S D E P A U L O B A R A T A PAIRANDO SOBRE UM NINHO DE CUCOS Courchevel 1850. A numerologia não remete para uma data, mas sim para uma altitude. A quase dois mil metros de altura, a saison está de novo aberta na mais mundana das estâncias alpinas francesas.
  • 3. 98 Volta ao Mundo dezembro 2012 revisão meteorológica para o dia: céu limpo, sol radioso e uma temperatura abaixo dos dez graus negativos.EmCourchevel,aspistasabremàsnove, mas, muito antes da hora marcada, é já grande o frenesim de todos aqueles que não querem perder mais uma (boa) jornada nas montanhas. A mais mundana, e cara, de todas as estâncias dos Alpes franceses estruturou-se para agradar a gregos e a troianos. Isso não quer dizer que o consiga. Quer dizer que possui ingredientes para o fazer. O que é diferente. Quem vem pela festa, e pelas compras, e pelos spas, e pelos hotéis- -chalés ou pelos restaurantes estrelados, tem muito com que se entreter. Aliás,étantadistraçãoque,senãotivermoscuidado,podemosatéperder a hora na manhã seguinte... QuemachaforadecontextoapresençadeChanel,ValentinoouCar- tier–sóparacitaralgumasdasmarcasdeluxomaisóbviasdeLaCroisette, a área comercial nobre de Courchevel – terá, porventura, razões de sobra para concluir que esta não é «a sua praia», ou melhor, «a sua estância». Mas não confundamos as coisas. Para lá dos russos novos-ricos que bebem champanhe como quem bebe água em endereços da moda como Le Mangeoire, das peles ver- dadeiras que desfilam, dentro e fora de portas, sem peso na consciência, e das suites e chalés que custam uma pequena fortuna à semana, há, acreditem no que vos contamos, uma Courchevel com adrenalina e focada no básico. ÉquemesmonãosendotãodesportivacomoValThorensouTignes, Courchevel está longe de ser uma «florzinha de estufa» e integra Les 3 Vallées, que é só, para que conste, o maior domínio esquiável do mundo com enorme variedade de pistas (do iniciado ao «pro») e uma senhora dona infraestrutura – École du Ski Français e meios mecânicos de última geração incluídos no pacote – digna de respeito. E neve. Muita e boa neve, com uma consistência próxima ao pó de talco, que é sempre um fator a não subestimar. A temporada de 2011-12 revelou-sebastantegenerosanestequesito.Tomaraqueapresente saison, que começa agora e se prolonga até abril, alinhe pela mesma fartura. Não que isso faça muito diferença. Courchevel, como as demais estâncias, vive de e para o inverno. No resto do ano, apenas permanece aqui um núcleo duro de duas mil almas, número que ascende vertigi- nosamente a cerca de quarenta mil durante a época alta. Se contarmos com os visitantes, a soma final aponta para uma média invejável de um milhão e meio por temporada. Nada mau. Porque os pormenores, mesmo os menores, contam O título «Courchevel 1850» leva, ainda hoje, não pouca gente à certa. AcontecequeestapopularestânciadosAlpesfrancesesfoiconstruídaem diferentesníveis,peloquenosencontramosnopontoculminantedeum P COMO IR Para quem voa a partir de Lisboa, a melhor ligação é com Genebra, na Suíça. A TAP (flytap.com) tem voos diretos desde 178,73 euros, com todas as taxas incluídas. A partir do aeroporto, a viagem por estrada até Courchevel demora cerca de duas horas e meia. Dependendo do tipo de pacote ou de optar ou não pelo aluguer de uma viatura, tenha em atenção que, de táxi, um transfer de ida e volta poderá ficar em cerca de 350 euros. Existem ligações regulares de autocarro entre o aeroporto de Genebra e as estâncias nos Alpes franceses (altibus.com).
  • 4.
  • 5. 100 vale, rodeado de pistas, a 1850 metros de altitude. Tão simples quanto isso para uma primeira explicação. Como praticamente tudo em Courchevel 1850, La Sivolière, o hotel eleito, não é barato. Mas, na multidão de hotéis de luxo da estância mais badalada dos Alpes franceses, ele consegue destacar-se pela discrição, aconchego, atendimento personalizado, intimismo na medida exata e localização certeira (perto da movida, mas suficientemente longe para não ser contagiado por ela). Não é o único, claro, mas há nele qualquer coisa de familiar que agrada, sobretudo porque essa sensação tem que ver com uma escala humana (marca registada da sua gerente, a incansável Florence Carcassonne) e não com a pretensão de se querer passar por aquilo que não é. Explicando melhor: o La Sivolière, ainda que pequeno (com apenas 24 quartos, 11 suites e um apartamento), não cria em nós, seus hóspedes, a ilusão de estarmos a ser recebidos na casa de amigos ricos. Não é um hotel-casa, é um hotel-hotel, com todos os serviços inerentes, que nos fazsentirbemporque,precisamente,nãoestamosnanossacasaeporisso não temos de nos preocupar com rotinas. Chamem-lhe mundana e até superficial, mas Courchevel está longe de ser uma «
  • 6. 101Volta ao Mundo dezembro 2012 E foi isso, mais do que tudo o resto, que nos conquistou nos quase quatro dias e três noites que passámos ali. Não que as outras coisas sejam pormenores de somenos importância. Longe disso. Por exemplo: pais com crianças de tenra idade, cada vez mais «excluídos» em pequenos hotéis, vão gostar de saber que o La Sivolière cultiva a noção de família, o que, traduzido por miúdos, equivale a dizer que estendem o serviço cinco estrelas aos mais novos e que todo o pessoal do hotel foi treinado para ser child-friendly e estar à altura da situação. Poderia ser um direito adquirido, mas não é, pelo que o La Sivolière pretende ir além de um simples Kids Club, onde os pais «depositam» os filhos. Do mesmo modo, as taças com água e biscoitos, na receção, não deixam margem para dúvidas: este é também um hotel onde os hóspedes podem fazer-se acompanhar dos seus cães. Os bi- chos não estão autorizados a circular pelas áreas comuns, mas par­tilham, em regime de meia-pensão, os aposentos dos donos e têm à sua disposição os serviços de «babás» e até de um osteo­ pata canino. ma «florzinha de estufa» e possui toda uma infraestrutura de ponta para a prática de desportos de inverno. COISA SÉRIA Quem leva o esqui muito a sério talvez não eleja Courchevel como a sua primeira escolha, mas não é por falta de neve ou de boa infraestrutura. A estância integra o maior domínio esquiável do mundo (vulgo Les 3 Vallées).
  • 7. 102 HOTEL-CHALET Construído no mais puro estilo alpino, à boa maneira da Alta Saboia, La Sivolière soube renovar-se e converteu-se num dos cinco estrelas mais discretos e confortáveis da estância. À direita, a cozinha estrelada do Chabichou.
  • 8. 103Volta ao Mundo dezembro 2012 Equemnãotemcriançasnemcãesseráqueestarápelosajustes?Étudo umaquestãodebomsenso.Crianças(bem)educadassabemcomportar-se em qualquer lugar. Donos civilizados sabem educar os seus animais. Pelo menosemteoriaéassim.Detodasasformas,criançasnãovimosdurante a curta estada, mas havia cachorros no hotel e não demos praticamente por eles. E quando perguntámos se o hotel está preparado para apagar os vestígiosdasuapassagem(«percalços»acontecemnasmelhoresfamílias), a resposta foi firme: «Claro que sim. Temos um sistema de limpeza que não deixa o menor vestígio, inclusive de odor, se for o caso.» Ufa!Afinal,ninguém(mesmoquemadorabichos)querchegar,abrir a porta do seu quarto e sentir a «presença» do seu antecessor. Mais ainda se for um antecessor de quatro patas, não é mesmo? Reconstruído em estilo alpino, o La Sivolière, que já existia antes, ganhou a sua quinta estrela em 2010 e passou por uma remodelação recente que, mais do que sacudir o pó e mudar as colchas e cortinas, mudou a sua filosofia. Em2009,ofrancêsPascalChatron-Michaud,especializadoemarquite- turademontanha,foichamadoaintervirnaestrutura,deformaatorná-la mais conforme à tradição dos chalés da Saboia. Tristan Auer, designer de interiores com provas dadas em outros hotéis como o Jules de Paris ou o Almyra de Chipre, foi o senhor que se seguiu, sendo responsável por uma decoração que, nas áreas públicas, combina elementos regionais como a madeira ou a pedra com toques mais contemporâneos por conta de peças como os tapetes da Diesel e Moroso, as luminárias de Frédérique Morrel ouosofáemformademontanhaecataratadesenhadoporGaetanoPesce. Nosquartosesuites,efazsentidoqueassimseja,atónicaémaisalpina, com muita madeira e materiais quentes como o veludo e a lã. Tivemos a sorte de nos calhar uma suite enorme, a número 40, que juntava a tudo issoumasalacomlareira, jacuzzinumadascasasdebanhoeumavaranda com vista primorosa para o bosque nevado. E ainda assim, mesmo com uma cama king size e lençóis de algo- dão egípcio, é provável que a primeira noite seja passado em claro... Acontece a muito boa gente e nós não fomos exceção. Causas mais prováveis? A adaptação à alta atitude, a incapacidade (mea culpa) para regular o aquecimento central e... ahã... um jantar tardio com raclette, fondue e tartiflette (o que é de gosto regala a vida e, pode, acrescentamos, minimizar danos colaterais). Comida é, aliás, um pormenor que não passa despercebido no La Sivolière. Ótima seleção de pães, charcutaria (os salpicões e os salames são uma perdição) e queijos ao pequeno-almoço. Para começar bem o dia, antes de ir para as pistas, nada como uma primeira refeição robusta. Já no regresso ao hotel, ao final tarde, boa ideia a dos crepes (servidos como cortesia a quem está hospedado) e das várias opções para «picar» no cocktail lounge (substituem perfeitamente um jantar). Mais do que da cozinha à la carte de Bilal Amrani, que não nos sur- preendeu,gostámosfoimesmodassuaspropostasmaissimples,combase nosprodutosdemercado,edotoquepessoalemreceitasbemconhecidas comoaCaesarsalad(adoLaSivolièreémaisforte,porcontadamostarda de Dijon), que servem de contraponto à cozinha tradicional da Saboia, por regra bem mais pesada. Ao melhor estilo cozinha de mercado, com Numa montanha de hotéis de luxo, La Sivolièredistingue-se pela elegância, pelo serviço atento e por estar preparado até para receber hóspedes de quatro patas. O hotel foi totalmente remodelado em 2009 e recebeu a sua quinta estrela em 2010.
  • 9. 104 Volta ao Mundo dezembro 2012 conquilhasdeSaint-Jacquesmuitofrescasevárioslegumesefrutadodia, Bilal serviu-nos um almoço que, exceção feita ao pão, irresistível de tão guloso, e à boa manteiga Echiré (produzida diariamente por uma coope- rativa afamada), não comprometeu o nobre propósito de comer de forma mais ligeira e saudável – e até mesmo o vinho eleito, um rosé Château Margüi 2010, proveniente da Provença, era de produção biológica. O melhor de tudo, porém, é que, após repasto tão ecologicamente correto, nem foi preciso fazer vista grossa ao que se passava lá fora. Pelas janelasdorestaurante,emolduradasporbucólicospinheirossaraivadosde umbrancoglacial,aspistasdeesquinãopesavamnabarrigaechamavam por nós. Atendemos ao chamado, claro. Da oferta do hotel fazem ainda parte um pequeno centro de bem- estar (pode não impressionar em instalações, mas a equipa, comandada pelo osteopata Christopher Pirel, sabe o que faz) e, pormenor muito importante,umalojadeesqui.Comacessodiretoàspistas(ounãotivesse sido «Jeannot» Cattelin, antigo proprietário do La Sivolière, um dos mentores de Courchevel 1850), o hotel está equipado para não deixar faltar nada a quem vem, efetivamente, para tirar o máximo partido do Detalhe curioso: «Jeannot» Cattelin, antigo proprietário de La Sivolière, foi u
  • 10. 105Volta ao Mundo dezembro 2012 domínio esquiável de Les 3 Vallées. E são todas estas coisas, somadas ainda ao facto de haver alguns empregados de origem portuguesa e uma cada vez mais significativa clientela brasileira (os mais presentes são os franceses, seguidos dos russos, dos belgas e dos britânicos), que fazem a diferença do La Sivolière. Banhos de sol e visão de águia Entre as várias opções de lazer disponíveis, gostámos particularmente dos restaurantes de montanha. Instalados nos píncaros, são uma espécie de porto seguro, no meio de quase nada, ideais para uma pausa num dia de intensa atividade nas pistas e/ou para fazer a festa quando as mesmas encerram. Existem outros como Le Cap Horn, mas Le Panoramic, de Eric Durandard,éumareferênciaincontornávelpelalocalização,a2732metros de altitude, em La Saulire. Acessível por teleférico, mesmo para quem não esquia ou faz snowboard (ou faz, mas não é suficientemente afoito para se aventurar a tanto), Le Panoramic proporciona dos seus terraços e janelas uma visão de águia sobre vales e montanhas. AFTER-PARTY Os restaurantes e bares de montanha são presença obrigatória em qualquer estância que se preze. Entre os mais concorridos de Courchevel conta-se Le Panoramic.. ère, foi um dos mentores e grandes entusiastas da estância alpina de Courchevel 1850.
  • 11. Por fora e, sobretudo, por dentro, Le Panoramic recria em diferentes ambientes aquilo que se espera encontrar num refúgio alpino de charme: madeira, peles fofas, lareiras acesas e velharias, nalguns casos utilitárias, noutrossóparaopuroprazerdequemolhaequerrecordaroquenãoviveu. A par da restauração, Le Panoramic possui agora um outro atrativo de peso: a mais alta suite da Europa, disponível para quem se dispuser a pagar o preço de tamanho privilégio. Mas, como quem avisa amigo é, valeapenaacrescentaraseguintenotaderodapé:emcasodetempestade muitoforte(comoaconteceunocomeçodesteanode2012),sãograndes as chances de se ficar isolado... A suite não experimentámos, mas fizemos ali um almoço muito agradável. A cozinha, seja nos menus do dia (€ 28) ou à la carte, é honesta e privilegia as especialidades locais. Não é alta-gastronomia, mas é gastronomia nas alturas, o que acaba por justificar os preços  algo inflacionados.  Ao fim e ao cabo, há toda uma logística complicada para estar ali e isso,paraquemusufruidavistaedoambiente,temdeserlevadoemconta. Com quantas estrelas se arma uma estância gourmet? Pelabocamorreopeixe.Háquemfaledemaiseseapressenojulgamento, apenasbaseadonoquesaltaàvistaenodiz-que-diz.Nãoqueasaparências sejam totalmente enganadoras neste caso. Courchevel não faz a linha estâncialowprofile. Asuaassociaçãoexcessiva,emanosanteriores,auma emergente, e quase sempre obscura, clientela milionária russa trouxe-lhe proveito, mas não a fama que almejava. Os russos continuam firmes em Courchevel 1850, e não passam des- percebidos na forma como se comportam, como se vestem e, sobretudo, como gastam (muito) dinheiro; mas os franceses voltaram em força e os brasileiros ganham, a cada nova temporada, um maior protagonismo – e começam, também eles, a contribuir para o «colorido» local, que nos dá conta de famílias que chegam de avião fretado para passar o réveillon ou que arrendam o chalé mais caro de Courchevel para o Carnaval. Courchevelnãoéumaestânciaparaquemcontatostões.Melhor,não é uma estância para quem se incomoda com a ideia de pagar caro pelos prazeres da vida. Até os mais simples. Também não é a estância ideal para quemsemelindracomousodepelesverdadeiras–sãoexibidas,semamenor culpa, por homens e mulheres –, se altera com egos inflados – sobretudo nos restaurantes e clubes noturnos da moda, como Le Mangeoire, onde as mesascompetementresiparaverquemencomendamaischampanhe–ou acha que já basta uma La Croisette da vida airada em Cannes. Mas é um prato cheio para quem gosta de juntar o útil ao agradá- vel. Quilómetros e quilómetros de excelentes pistas, no maior domínio esquiáveldomundo–alémdenevecomfarturaeumapaisagemenfeitada por pinheiros que quebram a monotonia monocromática do branco –, somam-se à boa vida proporcionada por hotéis, spas, lojas, restaurantes e uma programação intensa. E se o excesso de dinheiro é o responsável por uma certa ostentação – e até mau gosto, puro e duro –, sem ele, por outro lado, jamais seria possívelqueCourchevelfosse,toutcourt,aestânciacommaisrestaurantes distinguidos  pelo guia vermelho da Michelin. ONDE FICAR La Sivolière Rue des Chenus, Courche- vel 1850, França, Telefone: +33 (0)479 080-833, diárias desde cerca de 600 euros em quarto superior para duas pessoas (consulte com o hotel a possibilidade de pacotes). Pequeno-almoço não incluído (estime cerca de € 35). Mais em hotel-la-sivoliere.com Vale a pena contactar os serviços, em português, da CM Inspired Selection (cminspiredselection.com) para o ajudar a criar um pacote à sua medida não só neste hotel, mas em Courchevel 1850. 106 Volta ao Mundo dezembro 2012 A par da clientela de novos-ricos russos, que dão proveito mas nem sempre a fama certa a Courchevel, a estância atraiu de novo os franceses e está, a cada temporada, a cair no goto dos brasileiros abastados, que lhe emprestam outro colorido.
  • 12. 107Volta ao Mundo setembro 2012
  • 14. Na edição de 2012, foram sete os contemplados: Le Bateau Ivre, Chabichou, Pierre Gagnaire, 1947, todos com duas estrelas, e ainda La Table du Kilimanjaro, Il Vino d’Enrico Bernardo e L’Azimut, com uma estrela cada um. À exceção de L’Azimut, que se encontra em Le Praz (Courchevel 1300), os outros seis estão concentrados em Courchevel 1850, o que não deixa de ser extraordinário. Mais ainda porque Pierre Gagnaire, no hotel Les Airelles, e 1947, comandado pelo chef Yannick Alléno no hotel Cheval Blanc, conseguiram as suas duas estrelas de uma assentada com um único ano de atividade. Já o Il Vino, filial da casa pari- siense, é notável por juntar o talento de Enrico Bernardo, o mais jovem sommelier a ser eleito o melhor do mundo em 2004, ao do chef Michele Biassoni, de apenas 23 anos. De todos eles, para pena nossa, apenas conhecemos o Chabichou. Projeto familiar do chef Michel Rochedy, o restaurante é o principal chamariz de um endereço que atende ainda como hotel, spa e um outro restaurante mais informal, Le Chabotté (estes dois últimos inaugurados na temporada de 2011-12). Rochedy divide, há vinte anos, a cozinha com o chef Stéphane Buron, cabendo às respetivas mulheres de um e outro a tarefa de receber e guiar os comensais.Éumacozinharegionalsofisticadaerevisitada,comdoismenus porano(umterceiropoderáviraserpensadoseorestaurantepassartambém a abrir no outono) e preços a partir de 55 (almoço) e 90 (jantar) euros. Pormenor interessante, na tarde em que ali estivemos, à espera de Michel Rochedy que não havia meio de chegar, foi o sous-chef David Ferreira, de pais portugueses, quem acabou por nos explicar os pratos que fotografámos e degustámos. Antes que nos acusem de estrelismo agudo, adiantamos desde logo que nem só de estrelas Michelin (ou macarons, comotambémlheschamam)seencheopapoemCourchevel1850.Nem que seja por uma única vez – mais do que isso não recomendamos, mas cadaumsabedoseufígado–,sugerimosumalmoçooujantartipicamente saboiano, com raclette (o nome do queijo, mas também da técnica que consiste em raspá-lo para o prato depois de aquecido), fondue de queijo (sãotrêsosqueijosusados:oComté,oBeauforteoGruyièreouEmmental daSaboia)eaindaatartiflette(batatasgratinadascomqueijoReblochon). Para tornar a experiência menos «pesada», seguimos um conselho que viria a revelar-se precioso: não beber água e acompanhar apenas o repasto com um bom vinho branco local. Mais difícil é resistir aos queijos e à belíssima charcutaria da região, presente quase sempre à mesa desde o pequeno-almoço... Os salpicões secos, e não tanto os salsichões frescos, velhos conhecidos, são uma per- dição mais do que consentida. O mesmo vale para os queijos, estando o Beaufort e o Reblochon entre os eleitos. Nocapítulogulodice,descobrimosnumadasgaleriascomerciaisdeLa Croisette, o Forum, o Au Pain d’Antan. Gerida pela família Gandy, esta cadeia é originária da Saboia e mantém um registo artesanal no fabrico próprio de pães, doces, gelados e chocolate. Passámos por ali numa tarde particularmente fria e fomos atraídos, qual íman, à vitrina ataviada de brioches, croissants, pains au chocolat, aux raisins e um sem-fim de tartelettes. E dá-lhe pista para derreter tanta caloria. Felizmente, o que é de gosto regala a vida. n Volta ao Mundo dezembro 2012 Outro trunfo de que Courchevel muito se orgulha é das suas estrelasMichelin. Nenhuma outra estância francesa se lhe compara neste quesito. Nem só de restaurantes estrelados se vive ali. Porém, é imperdoável não provar a farta cozinha regional da Saboia.