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ISAURA DA CUNHA SEPPI
COREOGRAFIA/ESCRITA DE UMA INVESTIGAÇÃO INTERDISCIPLINAR
SOBRE A FORMAÇÃO DE UMA PROFESSORA DE ARTE
UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2002
ISAURA DA CUNHA SEPPI
COREOGRAFIA/ESCRITA DE UMA INVESTIGAÇÃO INTERDISCIPLINAR
SOBRE A FORMAÇÃO DE UMA PROFESSORA DE ARTE
UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2002
Dissertação apresentada, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre em
Educação junto à Universidade Cidade de São
Paulo - UNICID sob orientação da Profa. Dra. Ana
Gracinda Queluz.
Profa. Dra. Vani Kenski - USP
Profa. Dra. Ivani Fazenda :PUC-SP - UNICID
Profa Dra. Ana Gracinda Queluz - UNICID
COMISSÃO JULGADORA
Seppi, Isaura da Cunha
Coreografia/escrita de uma investigação interdisciplinar sobre a
formação de uma professora de arte / Isaura da Cunha Seppi. – São
Paulo, 2002.
127 f.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Cidade de São Paulo.
Orientação Professora Doutora Ana Gracinda Queluz.
1. Formação de professores. 2. Interdisciplinaridade. 3.
Temporalidade. 4. Arte. 5. Dança. 6. Teatro. I. Título.
CDD 370.71
CDU 371.13
Ao meu filho, razão da minha vida
Minha alegria, meu orgulho...
Aquele por quem eu faria tudo outra vez...
Agradecimentos
Durante todo o tempo em que estive envolvida nesse projeto de
pesquisa, sei que me ausentei do convívio de pessoas a mim muito caras que,
tenho certeza, ressentiram-se com a minha ausência.
Hoje, ao escrever esses agradecimentos percebo que, eles ressoam em
mim como uma despedida desse processo, o final de uma jornada, quando
posso retornar ao convívio das pessoas queridas, com as notícias dos mundos
que visitei e revisitei. Por mais que o encontro com Mnemosine, possa ter me
levado ao aparente esquecimento dos amigos e familiares, quero que saibam
todos que, sempre em todos os momentos estiveram vivos e presentes nas
lembranças e recordações que são a matéria prima desse trabalho. Devo dizer
que trabalhar com a memória de tempos vividos significa também sentir muita
saudade. A todos vocês que fazem parte da minha vida quero expressar a
minha gratidão e também expressar minha saudade.
Meu consolo foi descobrir que este sentimento me liga a todos. Todas as
pessoas queridas, do meu passado e do meu presente, entendo agora, fazem
parte de mim e da pessoa que me tornei.
Obrigada minha mãe, pelo relato de seus sonhos coloridos que me
ensinaram a escolher uma estética para minha vida.
Agradeço ao meu pai (in memorian), eterna saudade, sempre presente
em todas as minhas emoções e ações, por ter me ensinado o que é
compaixão.
Agradeço aos meus irmãos, cúmplices de toda vida.
Agradeço aos mestres, sempre referência, Vicente Di Grado, Yolanda
Amadei, Pedro Lopes Soares e Mieka Fukuda.
Agradeço a preciosa amizade de Cida Giannecchini (in memorian),
Suzana Buchmann, Myrna Nascimento, Nilton Flávio Knabenn, Marcos Moraes.
Agradeço a Brenda Gottlieb, terapeuta com quem descobri, entre outras
coisas importantes, o desejo de escrever.
Agradeço a Célia Rovai, pela leitura sensível e correção do texto.
Agradeço ao Ricardo Pedro e Inara, bibliotecários que ofereceram o
inestimável suporte técnico para edição final da dissertação.
Agradeço o apoio a essa pesquisa dos alunos, Cauê Chianca e Paulo
Pellim Jr. nas questões relativas a informática, Internet e vídeo e, a companhia
de Rodrigo Girardi durante a minha preparação corporal e, nas pesquisas
sobre a prática da dança.
Agradeço a parceria dos companheiros da Escola Nova Lourenço
Castanho, nesses dezesseis anos de trabalho, em especial: Sylvinha Gouvea,
Eda Canepa, Helo Porto Alegre, Alice Rezende Proença, Cecília Perez, Marília
Azevedo Noronha, monitoras do ginásio e principalmente a equipe de
professores de arte.
Agradeço com saudade aos alunos de todos os tempos, por tudo o que
me ensinaram, por trazerem a dimensão do futuro ao meu trabalho.
Agradeço aos meus colegas do Curso de Mestrado.
Agradeço a todos os que cuidaram de mim, principalmente Firdoos Jan
(John) meu guia, protetor, companheiro e cúmplice, na travessia pelas
perigosas estradas que levam ao coração da Índia, onde encontrei a fonte de
inspiração para esse trabalho.
Nessa experiência solitária foi minha partner na coreografia/escrita, Ana
Gracinda Queluz a quem quero, aqui, registrar um agradecimento especial.
Minha orientadora que me presenteou com uma pedra para simbolizar o
seu papel no meu trabalho, como a pedra no meu sapato. Pedra que sempre
tive guardada dentro do sapatinho de cristal, posto que, Ana sempre será a
fada madrinha, que me deu o traje para o grande baile, como no conto de
fadas, mostrou-me como transformar uma abóbora numa carruagem, usando a
magia do tempo criativo, aquela que sempre esteve lá, no lugar certo, ao piano,
executando a música para o meu solo, com seus acordes fortes, impulsionado
os saltos e giros, com variações suaves e lentas apoiando no momento da
queda, com acordes fortes e vibrantes, me oferecendo o braço firme para a
recuperação após os movimentos mais vertiginosos, cuidando para que a
música da interdisciplinaridade fosse sempre audível ao coração. Aquela que
sempre terei no coração com amor, admiração e gratidão.
Ana me faz lembrar de outras madrinhas que tive, aquelas que sempre
estiveram presentes nas horas difíceis.
Tia Maria Ignez, minha Dinda, que me ensinou a conviver com a
distância daqueles que amo, usando o recurso da correspondência e com a
arte da escrita, encheu minha vida de cultura, sabedoria e boa companhia.
Ecleide Furlanetto, a madrinha que me incentivou a fazer o mestrado e
me conduziu carinhosamente nos primeiros passos desse caminho.
Célia Hass, a madrinha que me recebeu no programa de mestrado,
ajudou-me a encontrar o melhor de mim e a fazer as primeiras escolhas, pelas
mãos de quem dei os primeiros passos na escrita desse trabalho.
Ivani Fazenda e Vani Kesnki que formaram a banca e que, me
homenagearam com a leitura sensível do meu texto, ampliando meu olhar
sobre interdisciplinaridade e memória.
A todos, meu amor e meu carinho.
“Se eu pudesse deixar algum presente a vocês, deixaria acesso ao
sentimento de amar a vida dos seres humanos.
A consciência de aprender tudo o que foi ensinado pelo tempo afora...
Lembraria os erros que foram cometidos
para que não mais se repetissem.
A capacidade de escolher novos rumos.
Deixaria para vocês, se pudesse,
o respeito àquilo que é indispensável:
Além do pão, o trabalho.
Além do trabalho, a ação.
E, quando tudo mais faltasse, um segredo:
O de buscar no interior de si mesmo
a resposta e a força para encontrar a saída."
Mahatma Gandhi
Sumário
Resumo...................................................................................................x
Abstract .................................................................................................xi
1 Introdução............................................................................................1
2 Criando um recurso imagético, o sári, como forma referencial .............6
3 Revelando o método da coreografia /escrita......................................22
4 Ato I: infância ....................................................................................35
5 Ato II: adolescência............................................................................44
6 Ato III: vida adulta ..............................................................................69
6.1 Cena1: bacharelado.........................................................................73
6.2 Cena 2: as licenciaturas....................................................................82
7 Ato IV: a prática docente ...................................................................87
8 Cena final: os grupos de pesquisa.....................................................115
9 Considerações finais: apresentação/estréia......................................119
Referências .........................................................................................129
Anexos ................................................................................................135
ANEXO 1..............................................................................................136
ANEXO 2..............................................................................................138
ANEXO 3..............................................................................................139
x
Resumo
Esse trabalho é uma investigação sobre meu processo de ensinar/aprender em
uma perspectiva interdisciplinar de formação.
Conectei-me com meu interior e sua complexidade e com a memória numa
dimensão, até então, para mim desconhecida, em busca de uma nova ordem
para meu universo simbólico e um novo sentido para minha atuação na
Educação.
Como professora/pesquisadora ocupei o lugar de sujeito da pesquisa e
transformei minha trajetória de vida em objeto de estudo.
Ao estabelecer um diálogo entre minha experiência de criação artística com os
princípios da Interdisciplinaridade, criei uma metodologia para um projeto de
investigação interdisciplinar que me permitiu criar uma região de interseção
entre arte e educação.
No desenvolvimento da pesquisa, as linguagens visual e escrita se
entrelaçaram e se complementaram com o intuito de revelar os aspectos
ocultos do ato de aprender. O diálogo entre imagem e texto, tornou-se o
recurso que utilizei para representar a memória, como palco do diálogo entre o
tempo cronológico e o tempo kairótico, que conecta os fatos vividos às teorias
que participam de minha prática e dão forma ao meu fazer.
A dança, como um fio, conduziu e permeou minha trajetória, costurando meus
diferentes fazeres. Por essa razão, constituiu a linguagem escolhida para
expressar minha maneira de capturar meu processo de formação como
professora de arte. Utilizei-me de minha experiência em coreografia para a
escrita da dissertação na forma de uma coreografia/escrita num exercício de
coreografar as palavras ao som da musicalidade dos ecos da memória da
minha própria experiência de formação.
Desvelei minha trajetória, para revelar os saberes e valores que participam de
minha formação, que constituem o alicerce sobre o qual minha prática docente
se estrutura. Nessa coreografia/escrita identifiquei parceiros teóricos que
apoiaram a teorização e interpretação da articulação entre teoria e prática e o
rompimento das fronteiras entre educação, dança, teatro e artes plásticas,
revelando de maneira mais clara e profunda o espaço interdisciplinar criado no
exercício da minha experiência de investigação, ensino e aprendizagem da
arte.
Palavras-chave: Formação de professores; Interdisciplinaridade; Arte; Dança;
Teatro; Temporalidade.
xi
Abstract
This work is an investigation about my teaching/learning process in an
interdisciplinary formation perspective. I connected myself with my interior and
its complexity and, in a memory dimension - up to that time - unknown to me, in
search of a new order for my symbolic universe and a new direction for my
action in Education.
As teacher/researcher I occupied the subject place in this research and
transformed my life path in the study object.
As establishing a dialogue between my artistic creation experiences with the
Interdisciplinary principles, I created a methodology for a project of investigation
that permitted me to create an intersection region between art and education.
In the research development, the written and visual languages intertwined and
complemented themselves with the intention of revealing the occult aspects of
the learning act. The dialogue between image and text, became the resource
that utilized to represent the memory, as dialogue stage between the Khronos
and the Kairos time dimensions, that connect the lived facts to the theories that
take part in my practice and form my doing.
Dance, as a thread, led and permeated my trajectory, sewing my different
doings. By that reason, it constituted the language that I chose to express my
way of capturing my art teacher formation process. I utilized my choreography
experience for writing the dissertation in a written choreography form, as a
choreographic exercise with the words by memory echoes musicality of my own
formation experience.
I unveiled my trajectory, to reveal the knowledge and values that took part in my
formation, that constitute the foundation upon which my educational practice is
structured. In that written/choreography I identified theoretical partners that
supported the theorization and interpretation of theory and practice articulation
and the frontiers rupture between education, dance, theater and plastic arts,
revealing clearly and deeply the interdisciplinary space created in my
experience of investigation, teaching and learning arts.
Keywords: Teacher education; Interdisciplinarity; Art; Dance; Theatre;
Temporality
1
1 Introdução
“É que a dança não é apenas uma arte, mas um modo de viver.”
“A dança é um modo de existir.”
(GARAUDY, 1980, p.13)
Muito cedo me tornei artista e é do lugar da artista que atua em
educação que desejo escrever sobre a dança. Digo isso em primeiro lugar para
mim mesma para, então, poder expor minhas idéias àqueles que se dedicam à
educação e como eu, acreditam em seu poder transformador do ser humano e
da sociedade.
Transformação tratada aqui como o processo natural de crescimento do
ser humano e de sua trajetória de vida.
Transformação que, acrescida da idéia de evolução, se torna projeto de
superação de si mesmo.
Isso se apresenta como um desafio: mergulhar de corpo e alma no
processo de ensino/aprendizagem e decifrar nele os mecanismos que
participam e promovem as transformações no ser humano como recursos para
o aperfeiçoamento de minha prática docente.
Considero que esse movimento, provocado pelo desejo de aprender e
prazer em tornar-me melhor, naquilo que sei fazer, talvez seja a essência do
processo de encontrar, seguir e crescer numa vocação1 durante a vida .
Acredito que o desejo de superação seja fruto de um questionamento
que traz consigo a idéia de mudança que, por sua vez, geralmente implica uma
decisão, que gera um momento de tensão imediatamente anterior ao
movimento de transformação.
... e trata-se também, neste caso, de uma realidade permanente a tensão entre
o espiritual e o material. Muitas vezes, sem sequer se aperceber disso ou sem
ter a capacidade para o exprimir, o mundo tem sede de ideal ou de valores, a
que chamaremos morais, para não ferir ninguém. Cabe à educação a nobre
tarefa de despertar em todos, segundo as tradições e convicções de cada um,
respeitando inteiramente o pluralismo, esta elevação do pensamento e do
espírito para o universal e para uma espécie de superação de si mesmo. Está
1
“ vocação . [Do lat. vocatione.] S. f. 1. Ato de chamar. 2. Escolha, chamamento, predestinação. 3.
Tendência, disposição, pendor. 4. P. ext. Talento, aptidão.” (FERREIRA, 1999, p.2083)
2
em jogo – e aqui a Comissão2
teve o cuidado de ponderar bem os termos
utilizados – a sobrevivência da humanidade”. (DELORS, 1999, p.15)
A dança tem sido a grande paixão... meu principal objeto de estudo,
constituindo-se na linguagem que escolhi para expressar minha maneira de
ver, estar e representar o mundo e conduzir a narrativa nesta dissertação.
A dança, como um fio, conduz e permeia minha trajetória de vida;
costura todos os meus diferentes fazeres, assim como a alma3 humana costura
as diferentes partes do ser...
“A dança é uma das raras atividades humanas em que o homem se encontra
totalmente engajado: corpo, espírito e coração.” (BÉJART, 1980, p.9)
A dança é também um credo, meu “yoga”4, minha meditação, um meio
de conhecimento, a um só tempo prospectivo, do mundo interior e do exterior,
um elo comigo mesma, com os outros e com o ato de aprender.
Quero, neste trabalho, falar sobre o que aprendi com e sobre a dança -
dançar, aprender a dançar e ensinar a dançar. Como a partir dela, me inscrevi
no mundo.
Procurei desvelar para revelar os aspectos ocultos do ato de aprender,
não como um desnudamento mas como forma de compreender o meu
processo de aprendizagem, dos meus alunos e dos meus parceiros teóricos e
aqueles com quem pude compartilhar vivências e experiências.
Busquei traduzir para a escrita o indizível, num exercício de coreografar
as palavras ao som da musicalidade dos ecos da memória da minha própria
experiência de esforço constante de aprender a estar no mundo.
Sendo a dança a arte do movimento (LABAN,1978), foi preciso buscar
na origem dos movimentos os elementos constitutivos desta
coreografia/escrita, que tem sua raiz no significado pessoal/profissional deste
“estar no mundo”. Encontrei em CRITELLI (1996), expresso com clareza o que
intuitivamente percebi e que constitui um dos elementos propulsores deste meu
2
Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI.
3
Alma entendida aqui segundo a concepção de Jung como sinônimo de psique. Psique que por sua vez é
definida por Jung como a totalidade de todos os processos psíquicos conscientes e inconscientes.”
(JUNG, 1991)
4
“A palavra yoga significa união. Esta união você poderá encontrá-la na dança, pois a dança também é
união. Shiva , o Senhor do mundo, o grande yogui, tem igualmente o nome de Nataraja, o rei da
dança...Que sua dança seja o seu yoga, não procure outro.” (BÉJART, 1980, p.9)
3
fazer que apresento neste momento, para me auxiliar a explicitar a fonte de
onde brotam meus movimentos:
Céu e terra pertencem-se mutuamente, e todos os elementos da natureza, à
medida que aparecem revelados e abrigados nessa pertença, também dela
compartilham. No caso do homem, esse modo de pertença em que se cria uma
inexorável integração é impossível; a vida humana está em perpétuo
deslocamento. Viver como homens é jamais alcançar qualquer fixidez.
(CRITELLI, 1996, p.16)
Completando esta reflexão a autora me leva a compreender o
sentimento que me acompanha em relação ao estar no mundo, ao
conhecimento e à identificação do que me move:
Esta experiência da inospitalidade do mundo, do nada em que se desfez ou
ocultou o sentido que ser fazia para nós, e da mais plena liberdade em que
somos lançados independentemente de nosso próprio arbítrio, Heidegger a
nomeia angústia.
Fundado na angústia, regido por este paradoxal modo humano de ser no
mundo, é que se abre para o homem toda sua possibilidade de conhecimento.
A ontológica inospitalidade do mundo e a ontológica liberdade humana são
regentes de toda forma de conhecimento e do método. (CRITELLI, 1996, p.18)
A consciência desta maneira de perceber e sentir o mundo e a vida me
mostra que existe um lugar de onde se manifestam os impulsos internos, a
partir dos quais se origina o movimento, processo a que o bailarino, coreógrafo
e pesquisador Rudolf Laban denominou de “esforço”.
LABAN (1978) desenvolve minuciosamente este conceito, destacando o
fato de que a busca de valores gera no homem esforços conflitantes e não há
quem desconheça o fato de as expressões, gestos e movimentos espelharem
conflitos interiores.
Ao domesticar os animais, o homem aprendeu como lidar com o esforço e
como alterar os hábitos de esforço dos seres vivos, e por fim aprendeu a se
domesticar, treinando e desenvolvendo seus próprios hábitos pessoais de
esforço, tanto engrandecendo-os quantitativamente, quanto dirigindo-os
qualitativamente cada vez mais no sentido de se tornarem esforços
humanitários específicos. É impressionante o modo pelo qual o homem
alcançou esse tipo de educação do esforço, tendo seu paralelo na evolução
dos hábitos de esforço animais. A seleção que o homem faz das suas
seqüências de esforço não é totalmente inconsciente, ele tem a capacidade de
coordenar uma gama de possibilidades de esforço vastamente maior que a de
qualquer outro animal e esta gama ultrapassa as necessidades da mera
sobrevivência. (LABAN, 1978)
4
A minha coreografia/escrita tem o sentido do pertencer, o sentimento de
angústia, o exercício do esforço e o da liberdade.
As principais dinâmicas de minha coreografia/escrita mantém estreita
relação com as da dança, por isso, na minha escrita, procuro articular o sentido
de pertencer o sentimento da angústia frente à inospitalidade do mundo e do
contínuo exercício do esforço, na busca pelo equilíbrio, num movimento de
perpétuo deslocamento.
Encontrei na concepção de pesquisa interdisciplinar a sustentação
teórica para a estruturação de uma outra narrativa que revelasse a minha
maneira de pensar a respeito da formação de um professor de arte, a partir do
resgate da minha história de vida que tem a dança como eixo e fio condutor.
A trilha interdisciplinar caminha do ator ao autor de uma história vivida, e uma
ação conscientemente exercida e uma elaboração teórica arduamente
construída. Tão importante quanto o produto de uma ação exercida é o
processo e, mais que o processo, é necessário pesquisar o movimento
desenhado pela ação exercida – somente com a pesquisa dos movimentos das
ações exercidas poderemos delinear seus contornos e seus perfis. Explicitar o
movimento das ações educacionais exercidas é sobretudo intuir-lhes o sentido
da vida que as contempla, o símbolo que as nutre e conduz – para tanto torna-
se indispensável cuidar dos registros das ações a ser pesquisadas.
(FAZENDA, 2001, p. 15)
Ao coreografar a escrita, procuro dar movimento ao texto apresentado
ao leitor pelas pranchas de cor que marcam o início da cada capítulo,
construídas à luz da temporalidade que representam. Pela narrativa das cenas
que contextualizam para o leitor, o espaço onde os atores se movem.
O interior de cada capítulo é palco da narrativa do diálogo entre Cronos
e Kairós. Cronos, representado pela linha do tempo que ancora os fatos
vividos, e Kairós, pelos parceiros teóricos que contextualizam os referidos
fatos, e cujo encontro se deu por insight, pela memória e pela sintonia.
Essa coreografia/escrita ao desvelar os encontros entre Cronos e Kairós
dá sentido e rigor à narrativa, na medida em que Kairós, ao contextualizar e
explicar na voz dos fatos apresentados pelos atores/parceiros ressignifica,
explica, amplia e abre a possibilidade de teorização sobre o vivido/narrado.
Tal qual na dança, a temporalidade é apresentada em planos, em flash
backs porque as marcas positivas e as negativas da minha trajetória são
revisitadas e delas se extraem os fios que tecerão a narrativa do gran finale.
5
Nesta coreografia /escrita os capítulos são denominados atos.
Na coreografia dos atos, a explicitação da partitura de movimentos.
No traçado coreográfico há a indicação das marcas e eixos que
estabelecem referenciais que orientam os movimentos e definem direções no
tempo e no espaço.
No interior dos capítulos/atos as indicações das marcas e eixos são
explicitadas pela utilização de recursos como destaques, metáforas, símbolos,
imagens especialmente criadas a partir do sári, uma veste típica da Índia que
sem nenhuma costura, recobre o corpo humano, assim como a minha narrativa
veste a minha trajetória.
6
2 Criando um recurso imagético, o sári, como forma referencial
de uma estética.
Minha trajetória de vida constitui a matéria prima deste processo de
investigação.
Conheci a dança em várias dimensões e foi esta arte que me ligou à
educação, quando passei da condição de aprendiz para a de ensinante.
A docência acrescentou mais dúvidas em relação aos meus saberes em
dança, questão essa que se tornou presença constante em minhas reflexões
de educadora e artista.
Certa feita entrei em contato com Ivani Fazenda numa palestra sobre
interdisciplinaridade que proferiu na escola onde trabalho. Nessa ocasião teve
origem um enorme interesse em conhecer mais sobre o tema principalmente
pelos pontos que despertaram em mim uma forte afinidade.
Os “cinco princípios que subsidiam uma prática docente interdisciplinar:
a humildade, a coerência, a espera, o respeito e o desapego” (FAZENDA,
2001, p.11) despertaram o desejo de compreender melhor essa área de
conhecimento e pesquisa.
Interessei-me também pela lógica que a interdisciplinaridade imprime à
investigação que privilegia a descoberta, a pesquisa, a produção científica,
porém gestada num ato de vontade, num desejo planejado e construído em
liberdade.
Encantei-me com o processo interdisclipinar porque este “desempenha
um papel decisivo no sentido de dar corpo ao sonho e de fundar uma obra de
educação à luz da sabedoria, da coragem e da humanidade. (FAZENDA, 2001,
p.18)
A perspectiva de desenvolver um trabalho acadêmico baseado nestes
princípios, me encorajou e estimulou a ingressar no Programa de Mestrado em
Educação da Universidade Cidade de São Paulo (UNICID) para construir um
conhecimento sobre um tema, a partir da minha questão básica, que é o papel,
a função e lugar da dança na formação do professor.
Iniciei, então, meu trabalho, disposta a desenvolver um projeto de
pesquisa interdisciplinar nos moldes propostos por Ivani Fazenda e seu grupo
de pesquisa, acreditando na possibilidade de estruturação de uma outra
7
maneira de pensar a respeito dessa questão que, para mim, é um grande
desafio - esse estudo vai me auxiliar a integrar o meu fazer, a minha arte e a
minha prática pedagógica.
Ao retomar minha trajetória com um olhar investigativo, vi-me diante de
uma nova perspectiva, em muitos ângulos desconhecida e, para torná-la
inteligível, senti a necessidade de encontrar nela algum tipo de ordem que,
para mim naquele momento estava oculta.
Havia já elaborado alguns trabalhos escritos, no mestrado, que tinham
como tema a minha trajetória como professora. Tudo corria bem, até que
chegou o momento de estabelecer uma ligação entre os referidos textos.
Se Cronos permitia uma ordenação linear dos textos, Kairós não se
submetia a tal ordem.
Sempre que tenho dificuldade de compreender mentalmente o que
minha percepção captou num nível muito profundo e para compreender o
porquê de determinada coisa me causar uma impressão tão contundente, mas
que o pensamento não traduz de forma imediata, recorro ao desenho ou à
pintura, uma forma de pensar por imagens para, visualizando, alcançar o
sentido e o significado que se estruturou internamente. Fazer um trabalho
plástico foi uma maneira que encontrei de trazer à luz imagens mentais,
sensações e emoções, de natureza fugidia para o consciente, para que, dessa
forma eu possa capturar as imagens e observá-las mais longamente e
interpretar-lhes o significado de modo global.
A idéia inicial foi a de construir uma linha de tempo.Para isso recorri a
uma técnica que aprendi no antigo ginásio, nas aulas de história da arte e elegi
a pintura como linguagem visual para a referida construção.
A primeira visualização que tive foi a de uma linha, literalmente, uma
longa e larga linha onde pudessem caber muitos detalhes, textos e imagens.
Por tratar-se de um estudo, resolvi usar o material que tinha em casa,
muito papel canson A2 e tintas para cenário, aquarelas, pastel oleoso.
Usei meu curriculum vitae como referência para calcular o comprimento.
Conclui que se atribuísse um espaço para cada ano, o tamanho ficaria
impraticável para o manuseio. Decidi, então, resumir a infância e a
adolescência em apenas um espaço, mas ainda assim, precisava de uma linha
muito longa.
8
O primeiro problema foi adaptar o formato do papel aos meus objetivos e
necessidades.
Dificilmente a trajetória poderia ser pintada toda aberta, dada a
dificuldade de espaço e, por isso, recortei, colei e montei uma estrutura de
papel articulada, formada por 38 quadrados de 24 cm de lado, para que
pudesse ser pintada dobrada, por partes, ao mesmo tempo em que eu pudesse
desdobrar e visualizar as partes anteriores, sempre que necessário, para não
perder o todo do trabalho.
Em seguida, recortei o currículo ano a ano, distribui sobre a linha e colei.
Para cada ano atribui uma tira vertical de 24 cm x 48 cm. Agrupei os temas ao
longo da página imaginando manter a seqüência dos fatos quadro a quadro
preservando a simultaneidade em que ocorreram em determinado período de
tempo.
Resumi em apenas uma tira o período da infância à adolescência que
tive necessidade de revisitar, pois trata-se do tempo/espaço onde tudo
começou e também faz parte da bagagem que acumulei nesta aventura que é
ser professora. E também o período de 1974 a 1983 que resume o período em
que mudei para São Paulo e cursei a graduação e as licenciaturas.
Assim que acabei de organizar o currículo nos espaços e vi o tamanho
final do trabalho, comecei a pensar nas cores para aquela história.
Olhava para aquilo tudo e me perguntava: que critério deveria usar para
escolher as cores?
Pensei comigo - primeiro o fundo - que fundo terá esta pintura?
O plano de fundo representa o tempo cronológico, o ritmo da dança da
minha vida no período de 1956 a 1999. O tempo kairótico foi representado nas
linhas que correm sobre o tempo cronológico.
É um tempo em movimento que se alterna entre Cronos e Kairós.
Fui mergulhando nos anos ali abertos à minha frente e perguntava a eles
qual a lição que eu havia aprendido em cada um deles ou em períodos mais
extensos, já que os tempos entre eles são variáveis e as variações têm uma
constância não muito precisa, se observar que há regiões de fronteira, as
regiões de transição entre umas e outras fases da minha vida.
As respostas alternavam-se sucessivamente, predominando três
movimentos básicos, o da paixão, o da espera e o da ação.
9
Minha idéia foi a de expressar essas energias como se fossem
irradiações luminosas, numa tentativa de expressar sensações e emoções
vividas durante as experiências.
Em sendo um trabalho de arte, me senti confortável para usar uma
licença poética para as cores.
Refletindo sobre os significados das cores, encontrei a resposta para o
que buscava. Recorrendo aos meus conhecimentos sobre terapias corporais
orientais e esoterismo, relacionei essas energias às cores dos chakras 5 (fig. 1)
que vieram em resposta ao que procurava.
FIGURA 1 – CHAKRAS
Há no peito, na altura do coração, um chakra onde está guardada a
nossa natureza divina, a centelha divina da luz inicial do Universo, que é
formada por três raios de luz, um rosa que representa o amor universal, a
5
http://www.esoterismo.sorocaba.com.br/chakra/
http://www.mistico.com/p/chakras/
10
criatividade; outro azul, que representa a força da vontade, o domínio sobre a
matéria e amarelo, a inteligência, o discernimento a clareza, a sabedoria.
Escolhi trabalhar com a idéia das cores desse chakra. Para os períodos
de espera escolhi a cor azul; para os da gestação do conhecimento e da paixão
o rosa, e amarelo, para a ação.
Para o período final, escolhi o laranja para representar, a energia vital, o
autoconhecimento, a alegria, o desapego, a confiança e a entrega, significando
o fluir pela vida.
Passei a expressar dessa forma as qualidades que eu tive que
desenvolver para ser professora.
E o fundo ficou assim:
TABELA 1 – ESTRUTURA PARA FUNDO DA COMPOSIÇÃO
Essa visualização me sugeriu um gráfico e comecei então a ligar os
pontos. Com um pincel fui traçando uma linha, ligando os pedaços do currículo
que estavam colados no papel, como se fossem pontos.
Organizei a composição, estabelecendo, portanto um eixo central
horizontal em verde limão, que representa inicialmente, os primeiros anos da
minha formação escolar. Acima dele, um eixo carmim, que representa o início
da formação em dança, e outro em azul marinho, o eixo da formação em artes
plásticas. Mais adiante, o eixo verde limão corresponde à minha formação
regular e se soma a outro em dourado marrom e salmão que representa a
minha vida profissional.
As linhas adjacentes que acompanham esse eixo central representam
todas as experiências de formação nas artes, sendo a dança em carmim; o
teatro, em verde-escuro, as artes plásticas, em azul-marinho; terapias e
Desde
que eu
consigo
1974 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99
Lembrar-
me até
1974
A
1981
11
técnicas corporais em laranja, que procurei e aprendi para completar minha
formação e subsidiar minha prática pedagógica.
A cada pincelada ia rememorando todos os passos do meu caminho e
as emoções que sentia iam se imprimindo no papel em diferentes tipos de
traços e pinceladas.
Conforme ia pintando, as linhas iam se entrelaçando, revelando formas e
relevos na superfície do papel, criando a sensação de movimento, de fluidez:
Era realmente um gráfico, mas um gráfico orgânico fora dos padrões
geométricos usuais, porque provoca também sensações visuais (fig. 2), quase
táteis, e sensações cinestésicas, sugerindo uma partitura com movimento.
FIGURA 2 – LINHAS DA FIGURA
Somente ao término da pintura (fig. 3), pude visualizar o resultado final
com a distância adequada, quando utilizei um painel que existe na faculdade
como suporte para ela, pois não houve espaço em casa.
FIGURA 3 – PINTURA EM TAMANHO REAL
12
Olhava para aquele trabalho e pensava comigo mesma - aí está a minha
vida diante de mim.
Perplexa, constatei que o resultado final lembrava um sári aberto.
Entrei numa crise muito grande pois todo o tempo em que eu deveria
estar escrevendo eu havia passado pintando.
Era chegada a hora de apresentar um trabalho final no grupo de estudos
e pesquisa e eu tinha apenas uma pintura articulada em formato de folder com
19 lâminas de 24 cm x 48 cm que, quando aberta, mede 4,56 m de
comprimento e se parece com um mapa topográfico.
Como eu iria explicar para as pessoas o que era aquilo, se nem sequer
para mim estava claro? Tinha apenas uma intuição.
Mais ainda dizer a elas que aquilo era um sári!
Tentei escrever um texto estabelecendo uma metáfora da pintura como
um rio, o rio da vida, mas minha orientadora Ana Gracinda Queluz, perguntou
onde estavam as margens daquele rio. Essa questão levou-me a revisitar
minha pintura e entrar em contato com seu significado.
Mais tarde em nossa primeira entrevista de orientação Ana Gracinda
Queluz, como que lendo nitidamente aquele segredo, manifestou o que o
desenho representava para ela. Disse-me desta forma:
“ Esta pintura é um sári, como se a sua trajetória de vida fosse um tecido
sem costuras que recobre seu corpo como se fosse uma pele.”
Foi como um presente de “fada madrinha” pois me deu o vestido para o
baile. Senti-me acolhida, compreendida e isso me encorajou a prosseguir nesta
trilha.
FIGURA 4 – PINTURA DIGITALIZADA
13
Passaram-se alguns meses antes que eu pudesse me apropriar dessa
imagem como elemento que ligasse, que desse unidade ao meu trabalho.
Nunca havia operado com a minha memória de forma consciente e sistemática
e tive que parar para entender o que estava ocorrendo dessa vez. Evocando
um ontem e projetando-me sobre o amanhã, percebi que em minha memória
dispunha de um instrumental para, a tempos vários, integrar experiências já
feitas com novas experiências que pretendia fazer. O processo de criar
incorpora um princípio dialético, e por isso, considero muito significativo o fato
de que neste processo tenham se entrecruzado essas duas questões, falar
sobre uma cultura diferente da minha (sári) e falar de uma forma diferente
sobre a minha própria cultura (formação de professora).
Me dei conta de que, através deste exercício com a memória, estava me
tornando apta a reformular as intenções do meu fazer e a adotar certos critérios
para futuros comportamentos. E mais, as intenções se estruturam junto com a
memória, nem sempre de forma consciente, tornando-se claras apenas no
curso das ações.
A reconstrução e a interpretação do passado é um fazer valer o passado para
o presente, o converter o passado num acontecimento do presente. Só assim é
verdadeira a experiência. A experiência do passado, portanto, não é um
passatempo, um mecanismo de evasão do mundo real ou do eu real. E não se
reduz, tampouco, a um meio para adquirir conhecimentos sobre o que
aconteceu (...) a interpretação do passado só é experiência quando tomamos o
passado como algo ao qual devemos atribuir um sentido em relação a nós
mesmos. (LAROSSA, 2001)
Percebi, nesta forma de trabalhar, que memória, imaginação se
interpenetram nas linguagens artísticas.
A memória não é factual, é memória de vida vivida, tem um aspecto
dinâmico e não estático, possibilitando sempre novas interligações e
configurações, e aberta a associações. Daí vem a dificuldade que tive
inicialmente de ordenar a memória em forma de texto. Mas, através do trabalho
plástico, pude então perceber que há uma seletividade que organiza o
processo em que a própria memória vai se estruturando. A dificuldade estava
em lidar com o dado de que os fatos lembrados se apresentavam a mim como
configurações complexas.
14
“Para que essa experiência do passado seja possível, o sujeito da
experiência - o historiador ou o leitor - deve ser um sujeito desconforme e
inquieto. Esse sujeito é o que vai do presente ao passado, mas arrastando
consigo sua desconformidade, ou seja, evitando toda relação de continuação.
E é, também, o que vem do passado ao presente, mas para interrompê-lo e
colocá-lo em questão, para desestabilizá-lo e dividi-lo no interior de si mesmo.
Foucault diz isso de uma maneira magistral.(...). Saber, mesmo na ordem
histórica, não significa reencontrar e sobretudo não significa reencontrar-nos. A
história “será efetiva” na medida em que ela reintroduza o descontínuo em
nosso próprio ser (...). Ela não deixará nada abaixo de si que teria a
tranquilidade asseguradora da vida ou da natureza; ela não se deixará levar
por nenhuma obstinação muda em direção a um fim milenar. Ela aprofundará
aquilo sobre o que se gosta de fazê-la repousar e se obstinará contra sua
pretensa continuidade. É que o saber não é feito para compreender, ele é feito
para cortar.” (LAROSSA, 2001, p. 136)
A maneira que encontrei para decodificar estas configurações foi
utilizando cores e linhas para representar sensações, sons, emoções que
também fazem parte dos fatos em si, assim manifestados. Pude, por meio da
linguagem visual estabelecer os limites entre o que lembrava, pensava e
imaginava, elaborando uma ordenação.
Raciocinando a esse respeito, pensei que a imagem que criei resultava
de um processo de associações do meu mundo imagético em que estabeleci
correspondências evocadas à base de semelhanças, ressonâncias íntimas de
experiências anteriores com os sentimentos de minha experiência de vida.
Tudo aconteceu numa velocidade extraordinária que num primeiro
momento, não pude fazer um controle consciente das associações que iam
gerando as imagens, mas podia ver claramente que apesar de formas
espontâneas havia uma coerência interna.
Na verdade, reconheço que neste movimento estava, a meu modo,
selecionando e ordenando todo o conteúdo significativo da trajetória sem deixar
que se perdessem as diferentes dimensões que a constituem.
Agora me sinto capaz de abraçar esse desafio e descobrir o que ele tem
a nos dizer.
Elucidadas estas questões, é possível iniciar uma leitura sensível
daquilo que criei para representar minha trajetória.
Neste caso, especificamente, é necessário esclarecer que como meu
objetivo não era apenas fazer um trabalho artístico, mas sim usá-lo como
recurso para estruturar minha escrita, esta forma/ordenação torna-se
significativa para mim apenas no momento em que projeto um sentido a ela e,
15
a partir dela, construo minha fala. Dessa forma, nesse momento, entrelaçam-se
as linguagens plástica e escrita e tornam-se complementares entre si.
Como todo artista, após o término da obra, me distancio dela e observo
o resultado.
Nesta busca de um significado pessoal para o sári, somaram-se às
impressões visuais, informações e vivências que fui coletando durante e depois
das minhas viagens à Índia
O sári é um tipo de vestimenta feminina bastante incomum para os
padrões ocidentais, ainda que muito popular entre as mulheres na Índia.
Consiste em um tecido de mais ou menos seis metros de comprimento
por uma largura que varia entre 80 e 90 centímetros, dependendo da metragem
em que é fabricado.
É um tipo de vestimenta que remonta a tempos imemoriais da história
indiana, sendo citado em vários textos clássicos como o Mahabharata6, por
exemplo, e que evoluiu ao longo do tempo em função das transformações por
que passou aquele país.
Por toda a Índia existe uma infinidade de tipos de drapejamento
diferentes de acordo com cada região. O modelo com que entrei em contato
tem sua origem no século XIX e é conhecido como Nivi Modern Style e adotado
pela maioria das mulheres atualmente.
Veste-se, enrolando-o no corpo de uma forma muito especial (fig. 5)
formando uma saia que se estende como um véu sobre o tronco, formando um
tipo de xale que pode ser usado, inclusive, para cobrir a cabeça (SARI, WEAR,
2002).
6
“The Mahabharata (pronounced approximately as Ma-haa-BHAAR-a-ta) is an ancient religious epic of
India. It has existed in many forms, the fundamental one being a text in ancient Sanskrit which may well
be the world's largest book. I, James L. Fitzgerald (Ph.D. in Sanskrit, Chicago, 1980) of the Department
of Religious Studies at the University of Tennessee, Knoxville, am currently translating about one fourth
of the Mahabharata for a complete translation of the Sanskrit text being published by the University of
Chicago Press, and I am also editing the remainder of the translation of the text by other Sanskrit
16
FIGURA 5 – Modelos de sári (Capitol Hotel Bangalore – 1998)
Ao retomar a visão da pintura, vejo que para transformar-se realmente
num sári, falta ainda mais um movimento de criação, ou seja, a parte do xale, e
a estampa da pintura sobre um tecido, ou o projeto de sári não estará acabado.
Esperando uma outra imagem que me ajude a terminar a composição
deste sári, mergulho o olhar sobre a pintura novamente e observando-a
longamente, revejo todos os passos do projeto novamente e vou rearticulando
as partes em diferentes estudos pesquisando a melhor solução para a
composição. Minha imaginação se desprende do tema e se solta pelo espaço,
criando formas e, lentamente, vão se configurando na mente imagens novas,
novas idéias para o mesmo trabalho.
Tenho ainda que desembrulhar por completo este sári que trouxe na
bagagem.
Sabendo que faz parte do fazer artístico, fazer e refazer o mesmo
trabalho, escolho como tecido a mais fina seda, com um barrado dourado, onde
scholars. This work follows and completes the translation of the Mahabharata begun by the late Professor
J. A. B. van Buitenen of the University of Chicago” (FITZGERALD, 2002)
17
está bordado um mantra de proteção, sobre a qual estamparei a pintura de
minha jornada para que, assim, a idéia original se complete finalmente.
Resta ainda compor o xale do meu sári. O espaço reservado para uma
única imagem, um ícone que represente o tema que governa essa história.
Estive olhando para deuses e altares por muito tempo, como não falar sobre
isso? Escolhi Shiva Nataraj, o deus hindu da dança (fig. 6) , para ocupar esse
espaço.
FIGURA 6 – ESTUDOS PARA O XALE DO SÁRI
Feito isto elaborei alguns estudos com a finalidade de visualizar o sári
acabado (fig. 7), estampado sobre a seda, entre os quais selecionei estes
quatro (fig. 8 a 11) que considerei os melhores resultados em relação ao que
havia imaginado inicialmente.
18
FIGURA 7 – ESTAMPA CENTRAL DO SÁRI
FIGURA 8 – ESTUDO 1
FIGURA 9 – ESTUDO 2
FIGURA 10 – ESTUDO 3
FIGURA 11 – ESTUDO 4
19
Pude perceber que o sári, aberto desta forma, oferece uma possibilidade
de leitura bidimensional do trabalho que, numa visão geral, sugere a idéia de
percurso.
Porém, dessa feita, ligando-o à idéia de um tecido que recobre, como
uma pele que, por sua vez, representa uma vida vivida, é como se eu tivesse
deixado impresso no tecido tudo que vivi e, em contrapartida como se minha
trajetória estivesse impressa na minha pele como uma tatuagem, numa relação
semelhante à da estampa com o tecido, em que pigmentos e fibras se fundem
de modo indissolúvel, tornando-se uma unidade.
Quanto à imagem linear propriamente dita, posso perceber que há um
caminho impresso na área central.
Sobre o fundo destaca-se, uma convergência de linhas e cores e
energias para uma figura que inicialmente está em formação: Uma bolsa, como
se tivesse um movimento interno e que depois se projeta adiante,
horizontalmente, numa linha larga e reta, onde todos os elementos tendem a se
alinhar numa ordem mais definida.
Esta linha central define-se e percorre assim um longo trecho da
imagem, sofre uma ruptura, e retoma sua caminhada no final do tecido, quando
sugere duas pernas, descolando-se da linha original como que saltando em
direção à representação imagética do deus Shiva o deus da dança e nela
mergulha no final do tecido.
Este é o mapa da jornada, que passa a me orientar quanto à maneira de
entrar, de abordar meu objeto de estudo.
“O tempo da formação, portanto, não é um tempo linear cumulativo. Tampouco
é um movimento pendular de ida e volta, de saída ao estranho e de posterior
retorno ao mesmo. O tempo da formação, como o tempo da novela, é um
movimento que conduz à confluência de um ponto mágico (situado assim fora
do tempo) de uma sucessão de círculos excêntricos.” (LAROSSA, 200, p.78 e
79)
Desta forma a pintura se torna partitura da coreografia/escrita.
Mesmo assim, ainda sinto este trabalho incompleto, sem uma
visualização deste objeto em sua função, ou seja, vestindo um corpo, sua
forma tridimensional, por que o sári é um objeto tridimensional em sua função
de vestimenta e é nesta forma que também é preciso observá-lo.
20
Para isso fiz um exercício de modelagem tridimensional em argila que
posteriormente scaneei e usando o programa Photoshop revesti a imagem com
a pintura para que pudesse ver o meu sári de modo tridimensional (fig. 12).
FIGURA 12 – MODELO EM ARGILA COM SÁRI TRIDIMENSIONAL
Antes que pudesse começar a escrever novamente, mais um desafio se
mostra, o de fazer uma análise dessa forma tridimensional, pois desejo
compreender minha trajetória nesta dimensão, ou seja seu movimento no
tempo e no espaço.
FAZENDA (2001) relaciona a investigação interdisciplinar ao ato de
desvendar em espiral, uma vez que os pontos da espiral se articulam de forma
gradual, não de uma única vez, mas todos os pontos que aparecem têm a ver
com os que os antecederam. Como também já disse esta afirmação sugere a
idéia de profundidade, pela sucessão de camadas da espiral e sua evolução,
em curvas, sugere a idéia de movimento.
Se pensarmos na estrutura tridimensional do drapejamento, em como o
tecido vai se enrolando no corpo, podemos perceber que este vai formando
uma espiral ascendente pelo corpo e que as camadas inferiores vão formando
21
uma base para as que sucedem, de tal forma que todas estão em contato em
determinado ponto. Se se pensar que este tecido está representando a minha
trajetória, cada ponto da pintura sendo uma fase de minha formação, se se
observar dessa maneira posso, então, transportar essa idéia para o texto. Vejo
que os fatos aconteceram cronologicamente, mas posso estabelecer relações
não cronológicas entre as várias fases da minha vida e estudar como cada uma
influi na outra, no momento em que as camadas do tecido se sobrepõem umas
às outras, colocando as fases da vida em contato, onde se criam as influências
e relações.
“Mas para que o primeiro círculo, o da infância, possa ser conservado, não
basta que seja meramente recordado. O primeiro círculo tem que ser
transmutado poeticamente desde o último, num movimento que é tanto de
conservação quanto de renovação. E, para isso, é preciso que o círculo inicial
se torne aberto em espiral, num tipo de via excêntrica que o leve para além de
si mesmo, para depois voltar e trazê-lo ao local de partida.” (LAROSSA, 2001,
p. 78)
22
3 Revelando o método da coreografia /escrita.
Numa coreografia há um trabalho que o espectador não vê. No processo
de criação coreográfica que utilizo, os movimentos que resultam de
improvisações são selecionados, fixados. Reunidos, irão compor a coreografia
que é uma seqüência expressiva de movimentos.
Por tratar-se de um trabalho científico é necessário aqui explicitar os
caminhos que utilizei nesta pesquisa.
Não posso deixar ocultado do leitor o caminho que percorri, as decisões
que tomei para a elaboração da pesquisa, objeto desta dissertação.
Em face do desafio de fazer uma coisa que não sei, enfrentar o “não
saber” para poder produzir um conhecimento, eu aprendiz-pesquisadora, tive
assim meu encontro com o princípio da humildade, recorri inicialmente às
ferramentas de que dispunha, entre elas o método que uso para pintar, somado
a um novo olhar.
Adotei a pintura do sári como a partitura para estruturar um roteiro para
a coreografia/escrita, um fio condutor para os textos/movimentos desta
coreografia/escrita.
Iniciei minha pesquisa, escrevendo textos como num desenho de
observação, esboços para uma composição, pouco a pouco interpretando o
que via em minha trajetória de vida , traduzindo em imagens que distribui
cuidadosamente sobre o sári /partitura.
Entendo que a improvisação está para a dança, assim como o esboço
está para a pintura, e utilizo essa analogia para revelar meu processo de
elaboração desta pesquisa, como ilustro com as imagens a seguir:
Usando o carvão, esbocei os primeiros textos como se fossem as
primeiras formas, fragmentos de memória, sobre a tela (fig. 13) e sobre as
áreas definidas, escrevi e reescrevi, descrevendo as imagens resgatadas,
tentando encontrar os tons os meios tons, na tentativa de trazer a nitidez, focar
da visão.
23
FIGURA 13 – ESBOÇO EM BICO DE PENA
Em seguida distribuí em aguadas as áreas de cor às primeiras cores,
para representar as sensações que me causavam cada uma das lembranças.
As imagens foram ficando cada vez mais nítidas e, com isso, dúvidas e
inquietações surgiram como os primeiros contrastes.
Numa camada de tinta mais grossa, fui fundindo as fronteiras entre os
matizes, controlando os tons, as cores, trazendo devagar as formas, as idéias e
teorias para fora, compondo-as entre si, estabelecendo as áreas de
predomínio, compondo com a variedade, definindo o que é figura e o que é
fundo, para que formassem um todo, para que eu pudesse representar uma
unidade (fig. 14) o todo em que se unem os detalhes, o meu retrato de artista
educadora.
24
FIGURA 14 – ESBOÇO EM PASTEL SECO
A expressão que buscava para o quadro vinha carregada de uma
intenção que nasceu lá na imagem inicial nas minhas dúvidas em relação aos
meus saberes.
Há sempre uma intenção7 no trabalho do artista, o desejo de transmitir
uma mensagem. No pulsar do processo de criação há o movimento de
introspecção durante a feitura da obra e o da extroversão, o momento de
7
“Daí podemos falar da “intencionalidade” da ação humana. Mais do que um simples ato proposital, o ato
intencional pressupõe existir uma mobilização interior, não necessariamente consciente, que é orientada
para determinada finalidade antes mesmo de existir a situação concreta para a qual a ação seja solicitada.
É uma mobilização latente seletiva. Assim as circunstâncias em tudo hipotéticas podem repentinamente
ser percebidas interligando-se na imaginação e propondo a solução para um problema concebido.
Representariam modos de ação mental a dirigir o agir físico.
O ato criador não nos parece existir antes ou fora do ato intencional, nem haveria condições, fora da
intencionalidade, de se avaliar situações novas ou buscar novas coerências. Em toda criação humana, no
entanto revelam-se certos critérios que foram elaborados pelo indivíduo através de escolhas e
alternativas.” (OSTROWER, 1977, p. 10-11)
25
comunicar-se com o outro. O momento da pesquisa em que devia situar o lugar
de onde falo e também definir a quem dirijo a minha fala.
Durante essa fase, encontrei um eco muito importante no verbete sobre
o olhar de Roberta Galasso NARDI (2001, p. 219), que me incentivou a seguir
em frente e que justificou a idéia de elaborar essa metáfora inicial com o
objetivo de revelar os movimentos do meu trabalho que se situa numa região
fronteiriça, na intersecção entre a arte e a ciência, em que meu eu encontra
outros “eus” no elemento comum do ato de criar8:
O que move um artista expressar-se por meio da arte é um desejo? Como se
dá o movimento dialético na relação da obra, pintor, público, partindo do
pressuposto de que a transformação do olhar releva quem olha e também
quem é olhado. Por analogia, se pudéssemos olhar a trajetória da mente do
pintor na concretude de seus sonhos. É interessante perceber que poucas
transformações ocorrem, que a imagem inicial mantém-se quase intacta,
apesar das aparências. Segundo Picasso, um quadro não é idealizado e fixado;
pelo contrário, segue a mobilidade do pensamento. Ao ser terminado pode
mudar, de acordo com o estado daquele que o observa; ele vive sua vida da
mesma forma que um ser humano e sofre mudanças que o cotidiano nos
impõe(...). Isso é natural, visto que um quadro vive somente para aquele que
observa. No início de um quadro encontram-se freqüentemente coisas belas.
Devemos nos defender delas, destruir o quadro, refazê-lo diversas vezes. A
cada destruição de uma bela descoberta, o artista não suprime
verdadeiramente, mas transforma, condensa, deixando-a mais substancial.
(NARDI, 2001, p. 220-221)
Desta forma, assim como faço num trabalho plástico, fui elaborando
minha pesquisa minuciosamente, fazendo e refazendo, até que saltasse a
imagem pronta no olho (fig. 15) revelando, na configuração final, em primeiro
plano a artista/educadora, em segundo plano minha trajetória e, no plano de
fundo, o contexto em que existo e construo meu fazer. Meu ser e meu universo
existencial congelados numa imagem preliminar, para serem observados em
seu aspecto estático e global num primeiro momento, para depois, iniciar um
8
“As potencialidades e os processos criativos não se restringem, porém, à arte. Em nossa época, as artes
são vistas como área privilegiada do fazer humano, onde ao indivíduo parece facultada uma liberdade de
ação em amplitude emocional e intelectual inexistente nos outros campos de atividade humana, e
unicamente o trabalho artístico é qualificado de criativo. Não nos parece correta essa visão de
criatividade. O criar só pode ser visto num sentido global, como um agir integrado em um viver humano.
De fato criar e viver se interligam.
Criar é, basicamente, formar. É poder dar forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade,
trata-se, esse “ novo”, de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos
relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a
capacidade de compreender; e esta por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar.”
(OSTROWER, 1978).
26
percurso do olhar pelos detalhes e seus dinamismos.
FIGURA 15 – COMPOSIÇÃO FINAL
Aos poucos fui resgatando9 os fatos desta trajetória para que pudesse
observar e analisar os detalhes da minha formação e da minha prática em sala
de aula, desocultando dados que me ajudassem a entender como integrei a
dança aos meus outros aspectos na composição do todo, do conjunto dos
meus saberes e fazeres e como isso tem participado do meu movimento pela
vida; como isso influi no meu destino, nos meus atos e suas conseqüências e
para onde isto me projeta, no exercício da minha profissão.
Os textos/movimento seguem a ordem da linha de tempo representada
pelo sári e nesta ordem, portanto, se definem os temas e títulos de cada
ato/capítulo.
9
“O termo resgate é um substantivo derivado, regressivo do verbo resgatar, que significa livrar de cativeiro, de
seqüestro, etc., a troco de dinheiro ou de outro valor e também retomar e recuperar. (QUELUZ, 2001,
pg.127)
27
Os temas que dão origem aos movimentos são os primeiros desafios
que o coreógrafo enfrenta na criação coreográfica.
A escolha da música para a coreografia/escrita
“A música em relação à criatividade, tem características próprias, decorrentes
de sua peculiar localização dentro da Arte, pois esta se divide em duas tríades
principais e independentes: a tríade das artes do espaço ou da beleza imóvel, e
a tríade das artes do tempo, ou da beleza em movimento; a primeira
compreende a arquitetura, a pintura, a plástica; a segunda compreende as
artes que os gregos denominavam de “musicais”, isto é, a música propriamente
dita (vocal e instrumental), a poesia, a esta escultura viva, intermediária entre
os dois grupos:a dança.” (COMBARIEU, 1953)
Feitas as escolhas formais e estéticas para o trabalho, a música era a
dimensão que faltava para completar a composição da minha
coreografia/escrita.
Nesta coreografia/escrita retomo o primeiro tema gerador deste trabalho
que é a interdisciplinaridade, que considero o tema musical que escolhi para
esta dança. Como a música numa dança, a interdisciplinaridade permeia todo o
trabalho.
Desde a infância a dança faz parte da minha vida, seja pela liberdade de
brincar, seja por uma cultura familiar, ou pelo encantamento que me desperta o
seu fazer. Dança que entendo como celebração e linguagem.
Linguagem para aquém da palavra: as danças dos pássaros demonstram.
Linguagem para além da palavra: porque onde as palavras já não bastam, o
homem apela para a dança.
O que é essa febre, capaz de apoderar-se de uma criatura e de agitá-la até o
frenesi, senão a manifestação, muitas vezes explosiva, do Instinto da Vida, que
só aspira rejeitar toda a dualidade do temporal pra reencontrar, de um salto, a
unidade primeira, em que corpos e almas, criador e criação, visível e invisível
se encontram e se soldam, fora do tempo, num só êxtase. A dança clama pela
identificação com o imperecível; celebra-o .
Tais são as danças principiativas, todas as danças qualificadas como sagradas.
Mas tais são, ainda, na vida dita profana, todas as danças, populares ou
eruditas, elaboradas ou de improvisação, individuais ou coletivas, as quais, em
maior ou menos grau, buscam a libertação no êxtase, quer ela se limite ao
corpo, quer seja mais sublimada – na medida em que se admita que haja
graus, modos e medidas no êxtase. (CHEVALIER, 2001)
Muito cedo conheci a dança nas reuniões familiares na casa de minha
avó materna, onde as tradições culturais portuguesas eram cultuadas nas
28
cantorias e nas danças populares. Aprendi nessas reuniões, com meus tios e
primos, a dançar o “vira”10 e a fazer pequenas apresentações e encenações
teatrais, improvisadas ali na hora mesmo.
Minha mãe, por sua vez, continuou com estas tradições na nossa casa,
promovendo sempre reuniões alegres e barulhentas, com muita música e
danças, em que os amigos iam se agregando quando, então, podíamos
compartilhar as diferentes tradições nessa mistura que caracteriza a
diversidade cultural do povo brasileiro.
Não raro podíamos também flagrar meus pais dançando habilmente o
foxtrot11 na sala de estar; “pés-de-valsa” confessos, generosamente nos
ensinavam também a rodopiar pela sala como Fred Astaire e Ginger Rogers,
como nos musicais do cinema. Assim sendo, a dança tornou-se para mim
sinônimo de alegria e comunhão.
Sempre muito atentos a nossa formação, meus pais estimularam o
desenvolvimento de nossas aptidões artísticas, nos proporcionando cursos de
pintura, desenho, dança, teatro e tudo o mais que pudesse nos interessar.
Foi assim que, aos oito anos, tive meu encontro com o balé que
deflagrou um processo que por muito tempo entendi como de experiências
muito fragmentadas, isoladas entre si; concepção esta que sempre me fez
muito insegura em relação à validade deste saber sobre a dança, que se fez na
maior parte fora do ensino formal, fora da escola ou da universidade.
Dedico este momento de meu trabalho a explicitar minha aproximação
com a interdisciplinaridade, com o intuito de mostrar os movimentos que fiz
para me apropriar dela, para aprender com ela a trabalhar e, dessa forma,
compreender o ensino/aprendizagem em arte.
Revisito minha jornada, exercitando um novo olhar um olhar
interdisciplinar.
10
“O Vira é uma das danças mais antigas de Portugal, e é particularmente popular no noroeste. O nome da dança
deriva do verbo virar, uma referência a um dos seus movimentos mais característicos. Em 6/8, o vira é normalmente
acompanhado por um repertório vocal em forma estrófica, com ou sem refrão. Existem inúmeras variantes do vira.
Em algumas execuções, o cantor solo "manda" os dançarinos virar gritando a palavra "virou", entre algumas das
quadras. Os textos das modas que acompanham o vira focam aspectos da vida rural, incluindo o amor, o namoro, o
casamento e a emigração.” (CASTELO-BRANCO, 2002)
11
Dança americana de salão de par, em compasso binário e ritmo sincopado, ou em compasso quaternário, com
passos vagarosos e corridos, e que pode ter andamento rápido ou lento.
Criado em 1913, em Nova York (EUA), pelo ator Harry Fox, um apaixonado pela dança, teve seu auge, no entanto,
nos anos 30 e 40, com os musicais da Broadway, em que se destacaram os célebres dançarinos Fred Astaire e Ginger
Rogers”. (NUNES, 2002)
29
Encontrei no verbete sobre o olhar, no Dicionário em construção,
subsídios importantes que muito ajudaram a compreender melhor essa
metáfora e apurar meu olhar.
Dessas leituras quero enfatizar aqui um trecho que configura o olhar que
utilizarei a partir de então:
“Esse é o olhar interdisciplinar. Um olhar de dentro para fora e de fora para
dentro, para os lados, para os outros. Um olhar desvenda os olhos e vigilante,
deseja mais do que lhe é dado ver. Um olhar que transcende as regras e as
disciplinas, olhar que acredita que só existe o mundo da ordem para quem
nunca se dispôs a olhar! Um olhar inflado de desejo de querer mais, de querer
melhor, um olhar que recusa a cegueira da consciência.” (GAETA, 2001, p.
223)
Olhar o que não se mostra e alcançar o que ainda não se consegue
exigiu de mim uma nova atitude como aprendiz; aprender com minha própria
experiência, pesquisando e, conforme Ivani FAZENDA (2001), muito mais que
acreditar que a interdisciplinaridade se aprende praticando ou vivendo, os
estudos mostram que uma sólida formação para a interdisciplinaridade
encontra-se acoplada às dimensões advindas de sua prática em situação real e
contextualizada.
Na condição de “eterna estudante de arte” atingi um estágio no processo
em que preciso parar, olhar para a imagem composta e enxergar o todo de
uma coisa que fiz por partes.
Mesmo sabendo que, assim como na arte, na interdisciplinaridade é
possível planejar e imaginar, porém é impossível prever o que será produzido e
em que quantidade ou intensidade, preciso arriscar-me a me envolver neste
imenso emaranhado de fios a fim de desvendar os aspectos que, para mim,
permanecem ocultos.
Quero correr o risco de abrir, diante de mim, um panorama novo de
possibilidades para um novo trabalho, um novo processo de criação, uma nova
prática pedagógica, mesmo que isso signifique rever posições sedimentadas.
Trabalho com os ecos da minha memória numa escuta sensível de uma
música não audível aos ouvidos mas do coração, por que é a música com a
30
qual eu dancei uma vida e que ao capturá-la na sua interdisciplinaridade,
escrevo dançando.
Iniciei este resgate12, retomando minha formação em dança sob esta
nova escuta.
Minha formação inicial de bailarina deu-se numa escola livre de ballet
clássico no interior de São Paulo, que interrompi quando entrei em contato com
a dança moderna e a contemporânea e, mais tarde, juntei a isso inúmeros
cursos e oficinas que escolhi para compor minha formação, já que considerei
que a escola clássica privilegiava a técnica, excluía as contribuições de outras
formas de dança e do teatro, considerando-as prejudiciais à técnica clássica.
Isso me fez compreender que se orientasse minha pesquisa numa visão
disciplinar, com certeza minha formação pareceria um conjunto de fragmentos
desconexos que não corresponderiam àquilo que, tradicionalmente, se entende
como o perfil convencional de uma bailarina; não encontraria o eixo do meu
trabalho, uma vez que minha formação não seguiu o curso normal concebido
para a formação do profissional de dança13.
Ao inverter o foco para dentro, para o meu interior, o que antes via como
fragmentos, reconheci como partes de um tecido. Com isso vislumbrei a
possibilidade de, afinal, enxergar este todo e reconhecer nele um outro perfil de
bailarina que se forma.
Encontrei em GARAUDY (1980) um parceiro para compreender este
novo perfil de bailarino, pois ele concebe a dança como pedagogia do
entusiasmo que tem uma contribuição importante na construção de uma
sociedade que privilegie uma forma de existência que traga um sentido mais
amplo à vida humana. Uma existência que não pode ser apenas, comer, beber,
trabalhar, comprar, dormir. Uma existência em que haja lugar para o sentir,
para o ser, para o pensar, para o imaginar, para o sonhar, para o amar, para a
paixão, para a compaixão, para a igualdade, para a diferença, para a liberdade,
para a justiça e para a felicidade.
Tenho nestas constatações as primeiras pistas que indicam o sentido do
caminho que percorri e o que devo seguir.
12
“O termo resgate é um substantivo derivado, regressivo do verbo resgatar, que significa livrar de cativeiro, de
seqüestro, etc, a troco de dinheiro ou de outro valor e também retomar, recuperar.” (QUELUZ, 2000, p. 127)
13
Numa escola de ballet um curso tem a duração de oito anos e, mais recentemente a formação do profissional de
dança se faz em cursos universitários de quatro anos, numa seqüência de conteúdos cumulativos e progressivos.
31
Pistas que Ivani FAZENDA (2001) chama de vestígios, que se apresentam
não como verdades acabadas, mas como lampejos de verdade. Cabendo a mim,
como aluna/pesquisadora interdisciplinar, decifrar e reordenar esses lampejos de
verdade para intuir o que seria a verdade.
Refletindo a respeito dos motivos que me levaram a essa postura de
isolamento, no que toca meu aprendizado em dança e também em relação a
minha formação como professora, vejo que eles residem na minha relação com
o ensino formal.
Nesse momento é oportuno aceitar o convite de Regina BOCHNIAK
(1998) em seu livro Questionar o conhecimento, para desenhar cenas para
ilustrar reflexões e a questionar tudo o que vivi dentro e fora da instituição de
ensino.
Em minhas cenas, o tema central são as dicotomias, o cenário é a
maneira como as escolas são organizadas, em séries e graus de acordo com
as fases do desenvolvimento da criança, seu sistema de avaliação por
resultados.
Como protagonista, eu estudante, vivendo um conflito em que, apesar
de ser uma “aluna nota dez”, considerada brilhante, precoce, vive com uma
sensação de desajustamento, a sensação de que “não aprendo direito” as
disciplinas que são consideradas as mais importantes (matemática, física,
química, biologia, gramática) por que concentro minha energia em meus
interesses que são outros (arte, filosofia, música, história, literatura, religião).
Tomando como referência os critérios de avaliação aos quais fui
submetida na escola e nos cursos de dança e comparando-me à maioria dos
colegas, muitas coisas no meu processo não aconteceram na "hora certa".
Etapas foram puladas, outras levaram muito mais tempo que o previsto para
acontecerem, levando-me a me descobrir diferente dos outros. Uma diferença
que a escola como é, onde o critério predominante é o da homogeneidade
(BOCHNIAK, 1998), não me ajudou a elaborar criativamente, gerando, no meu
caso, um solitário xamã14 sem tribo.
14
“ xamã . [Do tungue2
, pelo russo, pelo ingl. shaman e/ou pelo fr. chaman, poss.] S. 2 g. Antrop. Etnol. 1. Entre
certos povos asiáticos (Sibéria), espécie de sacerdote ou médico feiticeiro (q. v.), que atua como curandeiro e
adivinho. 2. P. ext. Em diversos povos e sociedades, especialista a que se atribui a função e o poder, de natureza ritual
mágico-religiosa, de recorrer a forças ou entidades sobrenaturais para realizar curas, adivinhação, exorcismo,
encantamentos, etc., e cuja atuação pode ou não envolver um estado de transe. [Não há, na antropologia, consenso
geral quanto à diferenciação precisa entre xamã, feiticeiro e sacerdote. Costuma-se empregar o termo xamã (assim
32
Esta imagem resultante do ato de desenhar uma cena me coloca diante
de uma das questões da interdisciplinaridade, a da ambigüidade, mais
especificamente, solidão/desejo de parceria.
Por que esta solidão me levou a uma longa peregrinação em busca de
uma tribo onde pudesse me estabelecer, com a qual me identificasse, em que
minha linguagem fosse compreendida, encontrando assim meus iguais. No
entanto, para poder reconhecê-los deveria primeiro reconhecer-me.
Compreendo agora por que, sem explicação, ou memória tangível, a
identidade15 tem sido o mote de minha busca na existência.
Neste processo de transformação de ator para autor, usando o recurso
do resgate da memória retida, ativando-a, relembrando fatos, histórias
particulares, épocas, posso proceder a análise e a projeção dos fatos,
podendo, assim, recuperar a origem de meu projeto de vida. Fortalecendo,
assim, a busca de minha identidade pessoal e profissional, minha atitude
primeira, minha marca registrada.
Porém, meu maior equívoco foi pensar que isso podia se fazer
independentemente de um grupo. Esta constatação me leva a um exercício de
me defrontar com uma outra ambigüidade, a do desapego/entrega dessa
atitude prepotente.
Agora sei que parceria é categoria maior da interdisciplinaridade e que,
sem a parceria, o conceito de identidade fica incompleto.
Aprofundando um pouco mais essas idéias, o que a interdisciplinaridade
me mostrou é que, como sempre suspeitei, identidade não “nasce” pronta e
acabada. Ela é construída passo a passo, configurando-se num projeto
individual de trabalho e de vida que nunca pode ser dissociado de um projeto
maior, o do grupo.
“Identidade como categoria da interdisciplinaridade que pode ser classificada
como xamanismo [q. v.]) no contexto dos povos asiáticos setentrionais (inclusive os esquimós) e ameríndios, em que
esse tipo de especialista tem papel social de destaque.] “ (FERREIRA, 1999, p. 2094)
15
“identidade . [Do lat. tard. identitate.] S. f. 1. Qualidade de idêntico: Há entre as concepções dos dois perfeita
identidade. 2. Conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo,
defeitos físicos, impressões digitais, etc. 3. O aspecto coletivo de um conjunto de características pelas quais algo é
definitivamente reconhecível, ou conhecido: estabelecer a identidade de peças tombadas. 4. Cédula de identidade. 5.
Álg. Mod. Elemento identidade. 6. Filos. Qualidade do que é o mesmo (q. v.). [Cf., nesta acepç., alteridade.] 7. Mat.
Relação de igualdade válida para todos os valores das variáveis envolvidas. Identidade visual. 1. Personalidade visual
de empresa, resultante do efeito iterativo das características comuns de suas imagens visuais. 2. Conjunto de
elementos gráfico-visuais padronizados (logotipo, uniformes, embalagens, papéis de correspondência, etc.) que
estabelece essa personalidade” (FERREIRA, 1999, p. 1071)
33
como individual ou coletiva, real ou virtual ou todas ao mesmo tempo
convivendo, colaborando, competindo, se consumindo ou se multiplicando.
Tratar sobre identidade é buscar dentro e fora da gente; é desvelar, desnudar;
é deixar cair o véu que nos cobre para nos conhecermos em nós mesmos e
nos conhecermos nos outros. Saber onde eu começo e onde termino, onde
interajo, onde me separo, onde acredito ou nego. (...)
Para me identificar com alguma coisa ou com alguém, não preciso
necessariamente estar junto desta pessoa, a identidade também é criada ao
redor de idéias e objetivos comuns.” (GUIOTI, 2001, p. 50)
Ao identificar-me estabeleço parcerias, que levadas ao nível da
intersubjetividade passam a ser muito mais que uma questão de troca, pois o
segredo está na intenção da troca, na busca comum da transcendência.”
(FAZENDA, 2001, p. 22)
Assim sendo, descobri que, na verdade, nunca estive sozinha, pois
tenho comigo parceiros que trago para este trabalho para reunirem-se aos
novos que agora encontro.
Com essa descoberta foi deflagrado um processo transformador, onde
vivo, na interdisciplinaridade, a experiência da morte de uma identidade
fundada essencialmente num individualismo egocêntrico, para renascer
pesquisadora interdisciplinar, formada por várias consciências, um ser habitado
por muitos e diferentes aspectos, em comunhão com outros tantos múltiplos e
diversos, parceiros desta vida, mestres, professores, alunos.
O trecho abaixo retirado do livro Shiva e Dionísio: a religião da natureza
e do Eros, de Alain DANIÉLOU (1989, p. 157), me ajuda a expressar como me
sinto :
“A individualidade humana como a de todo ser é formada por um nó, um ponto
onde estão ligados diversos elementos tomados da matéria universal, da
consciência universal, do intelecto universal, que cercam um fragmento da
alma universal indivisível, como o espaço fechado na urna que não é distinto
do espaço universal. Na morte o vaso rompe-se, o nó desfaz-se e cada um dos
elementos que constituem o ser humano retorna ao fundo comum, para
novamente ser utilizado em outros seres.(...)
À sua fonte retornam os quinze constituintes do corpo e aos seus respectivos
deuses todas as divindades dos sentidos. As ações, assim como a alma feita
de inteligência, tudo se unifica com o Imortal supremo. Como os rios que
correm perdem-se no mar, abandonando nomes e formas, do mesmo modo a
alma iluminada, livre de seu nome e de sua forma, funde-se ao Homem
universal feito de luz, que é mais alto que o mais alto. (Mundaka Upanishad, III,
2, 7-8).
Concluo esta reflexão com esta imagem do Gayatri (fig 16), que
fotografei na minha primeira viagem à Índia, no Museu de História das
Religiões de Prashanti Nilayan (O templo da paz celestial).
34
FIGURA 16 – GAYATRI (ÍNDIA 1998)
Uma metáfora visual que uso como recurso para melhor explicar e
compreender interdisciplinaridade, metáfora esta resultante do encontro da
minha identidade de artista/professora com a da pesquisadora.
O Gayatri é uma representação da Grande Mãe Universal onde se
reúnem todas as deusas femininas do panteão hindu (Lakshimi, Sarasvati,
Durga, Kali) e todos os seus atributos. É interessante notar em seus detalhes
que, ao contrário do que poderia se esperar de uma síntese visual, onde
geralmente as particularidades e individualidades são anuladas numa imagem
única, esta escultura reúne as individualidades, compondo uma unidade. Tanto
no significado como na estruturação da forma visual, encontro uma síntese
para todos os itens que explorei até aqui sobre interdisciplinaridade.
Encerro este movimento de minha pesquisa fazendo minhas as palavras
de Ednilson Aparecido Guioti :
Ao ler estas linhas espero que meu leitor lance sobre elas um olhar profundo
tentando buscar a essência, um significado maior. Poderá ou não identificar-se
com o que está escrito. Se esta identidade acontecer, posso começar a fazer
parte de você, e assim como para escrevê-lo passei a ser muitos outros que li.
(GUIOTI, 2001, p. 51) :
Convidando a todos para dançarem comigo os atos desta coreografia/escrita.
35
4 Ato I: infância
FIGURA 17 – MENINA DANÇANDO
(Capa National Geographic Magazine , v.155, n. 6, june 1979)
Protagoniza o tema deste ato uma imagem de uma menina dançando
(fig. 17) que um dia encontrei na capa de uma revista. Meu apego a esta
imagem se explica pela sensação que senti na época , de estar me olhando
num espelho.
Emoldurando essa imagem o trecho do sári que representa este período
da minha vida, que pintei sobre um fundo cor-de-rosa, que é a cor que tinge as
memórias da minha infância com amorosidade, alegria e ingenuidade. Sobre
este fundo, a origem das linhas que vão percorrer toda minha vida, a dança em
carmim, a formação escolar em verde limão e as artes plásticas em azul
marinho. Nestas linhas localizo o ponto onde começou a germinar a dançarina
e a professora de arte.
Para poder falar da minha formação de artista e professora e da dança,
como eixo dessa formação, resgato como aprendi a dançar, ou de como não
36
aprendi a dançar, iniciando a minha investigação pelo resgate de como se deu
a origem deste desejo de aprender a dançar. Identifico esse momento com o
ofício de brincar, característica base da infância.
Acredito que as crianças, independentemente do nível de consciência que
tenham, aprendem a desenvolver, selecionar e organizar suas qualidades de
esforço16
por meio das brincadeiras. Ao brincarem, simulam todos os tipos de
ações que lembram, de maneira muito marcante,as ações reais (ataque,
defesa, tocaia, ardil, vôo, medo, coragem) que terão necessidade de praticar,
quando tiverem que se manter autonomamente no futuro.” (LABAN, 1978)
Concordo com Laban quando diz que nas crianças denominamos tal
atitude de brinquedo, nos indivíduos adultos, dança e representação.
Esclarecendo que, também conforme Laban, nada nos impediria de
rotular essas brincadeiras de atuação dramática, não estivessem as palavras
atuação e drama reservadas para a exibição consciente do homem, no palco,
de situações da vida. Há também uma diferença aí, no sentido de que a
representação no palco exige um expectador a quem possa o ator se dirigir, ao
passo que, ao brincarem, as crianças não têm qualquer preocupação com a
presença ou não de platéia. O brinquedo da criança, desta maneira, aproxima-
se mais da dança que da representação posto que a dança nem sempre exige
público. Se as crianças e os adultos dançam, quer dizer, se executam certas
seqüências de combinações de esforço para seu próprio prazer, não é
necessário audiência.
Na memória das minhas brincadeiras, encontro as raízes da minha
dança na descoberta da capacidade de domínio do movimento, das
possibilidades de mudar de atitudes em função das necessidades
experimentadas.
Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva e esse
ponto de vista muda conforme o lugar que aqui ocupo; e esse mesmo lugar
também muda, segundo as relações que mantenho com outros meios. A
sucessão de lembranças, mesmo daquelas que são mais pessoais, explica-se
sempre pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os
diversos meios coletivos, isto é, em definitivo, pelas transformações desses
meios, cada um tomado à parte em seu conjunto.” (HALBWACHS, 1990, p. 51)
37
Por uma questão de sobrevivência, a memória se encarrega de ativar e
desativar conexões automaticamente. A informação que se mantém é a que
consegue realizar o maior número de interações com o já aprendido,o que já foi
estruturalmente assimilado e faz parte do acervo de conhecimentos da
pessoa.” (Kenski, 1998, (Atrator Estranho), 30, p.40)
Lembrando dos quintais, das ruas, dos pátios, das quadras, dos campos,
das praias, das casas da minha infância, percebo o imenso exercício de
exploração e domínio do espaço, da discriminação entre o meu espaço pessoal
e o espaço global e o compartilhamento destes espaços com o outro.
Brincando e adequando meus movimentos aos espaços em que as
brincadeiras ocorriam, fui percebendo a minha dimensão corporal em relação
às dimensões circundantes e a seleção dos movimentos realizáveis nas
diferentes situações espaciais.
Vivendo nos quintais a aventura do contato com as árvores o exercício
de subir nelas, conhecer sua estrutura, a força de seus galhos em relação ao
meu peso, a força necessária para agarrar-me ao tronco para não cair, fui
adquirindo a percepção da força da gravidade. Por ter que encontrar a
reentrância onde apoiar os pés, moldando o corpo à arvore fui desenvolvendo
a flexibilidade. Pude descobrir o prazer de encontrar, nos galhos mais altos, os
frutos mais doces e, lá do alto apreciar a paisagem saboreando a fruta madura
do sol, assim, experimentei o sentimento de vitória.
Aprendendo a compartilhar o espaço com outros habitantes da natureza,
os insetos, e, descobrindo como vivem outras formas de vida, perseguindo as
formigas até a sua toca, disputando a fruta com as abelhas, escapando das
queimaduras das taturanas, observando os brotos, as flores, as raízes
penetrando a terra, e, aprendendo com meu pai que é preciso regá-las com a
água nos dias quentes de verão e nos períodos de seca, aprendi a acompanhar
e conhecer o ciclo vital das plantas. Descobri um mundo fantástico em que me
sentia integrada, participante, esticando-me, encolhendo, saltando, arrastando,
rolando acompanhando as formas orgânicas da natureza circundante; fui
adquirindo agilidade, flexibilidade, precisão e destreza.
16
Impulsos internos a partir dos quais se origina o movimento. O componente constituinte das diferenças
nas qualidades de esforço resulta de uma atitude interior (consciente ou inconsciente) relativas aos
seguintes fatores de movimento: Peso, Espaço, Tempo, Fluência.
38
Nos amplos espaços descobri que a locomoção pode ser mais que
apenas andar, pode-se correr, pular, saltar, girar. A experiência da força do
vigor, do fôlego, da respiração, da liberdade, das conquistas em relação ao
desafio do equilíbrio, a polaridade da queda e a recuperação, podem sintetizar
a idéia da aprendizagem de sentir-se vivo.
É muito importante a liberdade para brincar em diferentes espaços, pois
a percepção das dimensões do espaço, adicionada aos diferentes níveis de
movimento que estes proporcionam são fundamentais para a estruturação da
postura ereta e do equilíbrio.
Brincando com/em superfícies regulares, irregulares, íngremes, planas,
duras, macias, no contato da pele com os elementos, desenvolvi a percepção
do quente, do frio, do áspero, do liso, do escorregadio.
Por fim, vivendo a sensação da imersão na água, sentindo o corpo
flutuando nas ondas do mar, mergulhando e experimentando a sensação de
equilibrar-se sem a referência de uma superfície de apoio, aprendi a respeitar
uma coisa que é infinitamente mais forte que nós, o sentimento da pequenez
da dimensão humana em relação à dimensão do mundo.
A princípio fui percebendo o corpo como um todo, em sua força,
agilidade flexibilidade e equilíbrio e, depois, conforme os machucados foram
aparecendo, os joelhos ralados, os hematomas, os arranhões, as dores nas
articulações aos poucos comecei a entender como funciona o esquema
corporal, sua estrutura e seus limites. Aprendi que se engolir muita água, a
gente pode se afogar que, se correr demais, há uma dor muito forte do lado;
que não existe vida sem respiração, que a cabeça deve ser sempre protegida,
senão pode-se perder os sentidos numa batida.
Meu corpo foi, durante toda a minha infância, meu brinquedo favorito,
aquele que mais prazer proporcionou. Durante o dia, explorava suas
possibilidades ao máximo e, à noitinha, depois do banho, gostava de observar
as marcas que havia adquirido naquele dia, cuidando dos ferimentos eu
mesma, pois sabia como me tocar para não sentir dor e o ardor do merthiolate.
O mais interessante foi descobrir a capacidade de regeneração que o corpo
tem, observando os ferimentos, desde o momento em que estão sangrando,
até a formação de uma casca e, por fim, quando a casca começa a se
39
desprender e revelar a pele reconstituída por baixo, ou então, a evolução dos
hematomas e suas várias colorações, desde o roxo até o amarelo claro.
Saber identificar os diferentes tipos de dores, dos ossos, dos músculos,
da pele, dos órgãos, me trazia segurança por entender o que estava
acontecendo comigo. Da mesma forma, o conhecimento da duração da dor e o
tempo necessário para regeneração daquela parte machucada ensinaram-me o
que eu poderia fazer, ou não, enquanto estivesse em recuperação; aprendi a
mover-me com cuidado.
Percebi que quanto mais concentração e domínio das ações conseguia,
desenvolvia mais liberdade e segurança para brincar e satisfazer minha
imaginação, sem me machucar.
O pior castigo era não poder brincar e por isso, devia me cuidar para não
me machucar demais. Devia respeitar os limites, na medida do possível, e
enfrentar com resignação os períodos de repouso impostos pelas doenças da
infância, como o sarampo, a catapora, que eram situações sobre as quais eu
não tinha o menor controle e que me faziam perceber o quanto ainda dependia
dos adultos para me cuidar.
Enfim, nas brincadeiras, pude experimentar experiências de uma riqueza
de movimentos e sensações que por serem vividas intensamente, ficaram
impregnadas em mim e formaram um alicerce para minha maneira de ser e
estar no mundo.
As brincadeiras de rua, de roda, de casinha, de boneca, aquelas em que
fazia parte a "massinha", o desenho, as brincadeiras de subir em árvores, as
de misturar barro no quintal, patinar, andar de bicicleta, pular corda,
amarelinha, despertaram em mim a essência do meu dançar.
Nessas brincadeiras também aprendi a me relacionar e a entrar em
contato com as minhas emoções.
Sentia um desejo constante de aprender, de experimentar novas
emoções, novos desafios pelo prazer da superação.
Na infância ainda não existe o medo do impulso de sair correndo e
perder-se, porque o aprendizado de se perder-se é achar-se. Quem nunca se
perdeu num bosque quando era criança nunca vai saber o que se passa para
se achar o caminho de volta. Imagino que quase todo mundo tem uma história
de perder-se na infância, para contar. Uma grande aventura! Aprendi a arriscar-
40
me, a ousar e, aos poucos fui aprendendo, também, a dosar meus impulsos,
quase a ponto de não reprimi-los.
Enquanto estava brincando sozinha, tudo era muito fácil; eu no meu
mundo particular, criava minhas próprias regras, seguindo meus desejos,
inquietações, curiosidades e fantasias, exercitando o outro aspecto de me
aventurar, a aventura da imaginação.
Nas brincadeiras sociais, experimentei novos desafios, nas brincadeiras
de roda as meninas mais velhas ensinavam as cantigas e coreografias que,
depois de aprendidas após várias repetições e erros, proporcionavam o
enorme prazer de pertencer e estar em sintonia com um grupo, num processo
que envolve também uma identificação cultural.
As rodas, as amarelinhas e as cordas abriram para mim um universo de
movimentos mais sofisticados, como o saltar numa perna só, saltar e girar ao
mesmo tempo, controlar a distância dos saltos, o equilíbrio numa perna só, o
skip (saltitar), o galope, o agachar, o congelamento da ação. Crianças
ensinando crianças.
Há um tipo muito especial de brincadeira, que chamo de brincadeiras
dramatizadas, em que faz parte também a representação, nos momentos em
que se tem que ir ao centro da roda recitar versos ou pagar uma prenda.
Outras exigiam também variações de ritmos e velocidades conforme a história;
com essas brincadeiras aprendi a conquistar meu espaço no grupo.
E havia as brincadeiras de rua em que participavam as meninas e os
meninos, em que se percebia, em primeiro lugar, a supremacia física dos
meninos sobre as meninas; os meninos sempre mais fortes e velozes eram um
constante desafio; com eles aprendi a força, o impulso e a explosão no
movimento. Além dessas, uma das coisas mais importantes das brincadeiras
de pegar foi aprender a “dar bailinho” no pegador, o que significa driblar o
oponente com jogos do corpo, como forma de superar a falta de velocidade, de
desenvolver os reflexos e liberar os instintos. Aprendi com isso a observar a
perceber o outro pelos movimentos e reações.
Brincar era também um exercício intenso de decorar, entender e
dominar regras, regras e mais regras, sem contar as novas que eram criadas
durante a brincadeira, cada uma com seu conjunto próprio de condições e que,
ao mesmo tempo, variavam de grupo para grupo, de acordo com a cultura
41
local e cuja compreensão dependia a possibilidade de participar das atividades
de que tanto gostava.
Nessas brincadeiras sociais, além dos movimentos, tantas coisas foram
aprendidas, como o convívio com as diferenças, a lealdade, a derrota e a
vitória, os confrontos, as comemorações, o espaço do outro e o meu espaço no
espaço do grupo, quantas amizades nasceram e quantas foram desfeitas... o
amor e o desamor pelo meu semelhante... quantas descobertas...
O desafio do movimento e suas diversas modalidades, a habilidade de
improvisar diante do inesperado, o contato com os sentimentos, abriu novas
possibilidades de expressão para meu espírito inquieto, num corpo em
crescimento, cheio de vida e temperamento.
Por fim as brincadeiras dramatizadas, mais calmas... as casinhas, as
bonecas, as comidinhas, a escolinha, as artes permitiram-me a descoberta e o
exercício da capacidade de criar.
O momento de aquietar-se para pensar na vida, para exercitar o
aprendizado e simbolizar as experiências vividas constitui-se num momento
solitário de profunda introspecção e luta interior em busca da tradução perfeita
das imagens que emergiam do meu interior, na tentativa de materializar uma
idéia que surge como resposta a um problema existencial.
A expressão de uma verdade interior como resposta a uma pergunta
levou-me aos primeiros contatos com o não saber.
Era um momento de estar comigo mesma, de pensar na vida, de me
acalmar dos aborrecimentos e tristezas, de elaborar meus projetos, de fazer
planos, de estar com meus irmãos e meus amigos mais queridos numa
situação menos agitada.
Mais uma vez, crianças ensinando crianças.
Momentos em que nos ensinávamos uns aos outros uma série de
“novidades” que havíamos aprendido. Cada um ensinava as suas melhores
habilidades aos outros, como desenhar, modelar, pintar, rodar pião, jogar
bolinha de gude, bater figurinhas, jogar saquinhos, contar e representar
estórias e, assim aprendendo a trabalhar em grupo, aprendíamos a
cumplicidade e o companheirismo.
42
Nessas brincadeiras exercitava-se a possibilidade de refletir sobre a vida
e as relações da família, da escola, enfim as relações humanas aconteciam,
através do jogo teatral.
O jogo teatral permitia a elaboração simbólica dos papéis da mãe, do
pai, da professora, assim como a aprender a lidar melhor com as questões que
me eram difíceis de compreender, como o medo do escuro o medo da bruxa, o
medo dos pesadelos, enfim, o medo do desconhecido! Aprendi que esse tipo
de medo estava relacionado com a percepção de uma coisa que apenas se
sente, que está presente mas a gente não consegue ver.
Brincar, jogar, dramatizar, enfim, poder, numa situação de tensão,
escolher o final da história e ainda que se soubesse que o perigo naquela
situação era passageiro, podia-se contar com uma frase salvadora:  Não
quero mais brincar disso! Esse é o exercício de arriscar-se e salvar-se, da
coragem e do recuo.
Descobri também que um desenho sempre pode ser refeito, até que se
consiga uma versão satisfatória. Com isso pude aprender com o erro, sem ficar
paralisada. Essa descoberta foi fundamental para que o repetir, o refazer, o
recontar, o errar e o recomeçar em busca do acerto fizessem parte da minha
vida, até hoje.
Lembro que era capaz de passar dias inteiros brincando no espaço
fantástico que havia criado, no mundo do faz-de-conta onde tudo é possível,
representando personagens, construindo espaços com panos e brinquedos e o
que mais pudesse conseguir na casa para os empreendimentos arquitetônicos
das casas, castelos e cabanas em que os objetos mudavam de função e eram
ressignificados em razão do tema da brincadeira. Não posso esquecer os
figurinos, as roupas da mamãe retiradas às escondidas do guarda roupa para
vestir os mais variados personagens, as bonecas e seu teatro e os brinquedos
todos.
Creio que, por conta de tantas brincadeiras de casinha, por conta dos
quintais que me trazem a lembrança de momentos de muita felicidade, vivi os
simples divertimentos de criança, com a intensidade de grandes projetos de
vida e me projetei mãe, bailarina, nadadora, artista plástica, e tantos
personagens mais. E com isso pensei, precisei elaborar sentimentos, viver
sensações, imaginar, criar, me expressar. Aprendi a extravasar todo um
43
universo que inundava o meu interior. Lidei com um sentimento de não caber
em mim que a felicidade provocava, com uma necessidade de dizer, de trocar,
de comunicar, de sensibilizar o outro, de conhecer o igual e o diferente de
entender o trânsito entre eles no binômio guerra e paz... presente nas relações
humanas desde a mais tenra infância...
Desde quando posso lembrar-me tenho o hábito de olhar para dentro e
procurar quem sou, como sou e, a cada etapa da vida, encontro sempre um ser
que mudou, um ser sempre mutante.
Também, por uma razão inexplicável, sei que meu ser mudou porque
aprendeu.
Se há um lado tangível nesta busca é a consciência e a concretude das
coisas aprendidas na escola e na vida, ou na escola da vida.
Revisitando essa minha escrita da minha infância posso concluir que as
brincadeiras me ensinaram que a vida é mais que comer, dormir, tomar banho,
escovar os dentes, limpar as unhas e as orelhas, ir à escola.
Identifico nos grandes quintais com pomar, que trazem a lembrança de
saltos, giros, gritos de prazer sob o sol da manhã, do repouso no alto da
pitangueira, das tardes encolhidas numa cabana de cobertores na cama
beliche brincando de navio, esperando a chuva passar, o espaço onde
começou a nascer a bailarina.
Ainda vive em mim uma criança apaixonada pela vida por seu esplendor,
pela paixão pelo movimento e que adora ser feliz e dançar!
Que sabe que os melhores momentos da vida são aqueles usados para
conhecer-se, que a vida é um eterno descobrir-se, e que é preciso aprender a
ser independente para poder ter suas próprias idéias.
Aos poucos, ao apossar-me das minhas lembranças da infância e ao
cristalizá-las na minha escrita, pude entender que realizei o contínuo exercício
de descobrir o caminho do meio para conectar-me ao meu centro, meu núcleo,
meu interior e que ganhei, com o relato, a consciência de um tempo vivido.
É esta infância sempre viva aqui dentro que me faz bailarina pois,
quando dos brinquedos a vida se despiu, restaram todos os movimentos
impressos no corpo. A herança deste momento de vida então se torna
repertório, experiência de coisa vivida, um saber.
44
Sinto hoje que é, neste trânsito, que ocorre a interdisciplinaridade, sobre
a corda bamba da alteridade um eco dos anos 70. Afinal, identifiquei no meu
jeito de ser criança um dos aspectos importantes da interdisciplinaridade – as
fronteiras. Pelo teatro, saí do real e fui para a fantasia, treinando um olhar e um
ouvido sensíveis aos personagens e pela dança, refinei gestos e movimentos
até ficar em dúvida, danço eu ou a vida baila comigo?
Quem sabe encontro outras pistas na adolescência?
5 Ato II: adolescência
FIGURA 18 - NATALIA MAKAROVA
Para dançar este ato trago o primeiro modelo de bailarina que conheci, a
bailarina clássica 17 (fig. 18) com suas sapatilhas de ponta. A sua imagem
diáfana, mágica, que me abriu as portas para o mundo da dança, sobrepõe
duas lâminas da pintura, na linha divisória entre a infância/adolescência e
projeta-se sobre o início a vida adulta, tentando retratar, desta forma, o período
em que foi primeiramente modelo a ser atingido, depois como um modelo a ser
17
Natalia Makarova, bailarina clássica russa , em O lago dos Cisnes (coreografia de Petipa e música de Tchaikovsky)
que utilizo aqui para ilustrar o modelo de bailarina que tinha em mente ao iniciar as aulas de balé clássico.
45
negado e, por fim, como um modelo que se tornou referência nas minhas
reflexões. Identifica o momento em que aprendi que para ser uma dançarina e
que para poder ensinar é preciso pensar a dança, não apenas dançar.
Lembro-me que, na adolescência, os brinquedos foram desaparecendo
e o ensino formal tomando esse lugar. A escola consumia metade do dia, e a
outra metade, as aulas de natação, inglês, balé, pintura, desenho, datilografia,
enfim, as aulas daquilo que a escola não ensinava e que os valores familiares
consideravam importantes para minha formação.
O ensinamento desta estratégia de meus pais foi o de que a escola não
dá conta de ensinar tudo o que é preciso saber.
Outro dia, conversando com minha mãe sobre isso, perguntei o porquê
deste procedimento e ela na sua maneira simples, objetiva e autêntica,
serenamente foi me explicando seus motivos:
“ Oras, por que eu e seu pai nos preocupávamos em estimular as aptidões
artísticas que percebemos em você e seus irmãos, vocês viviam sempre desenhando,
sempre envolvidos nas modelagens com massinha que achamos importante
proporcionar essa formação a vocês. Também porque, apesar de sabermos que
Educação Artística fazia parte do currículo escolar, consideramos que, numa sala de
aula havia muita gente para o professor atender e num curso de artes, vocês poderiam
ter um atendimento melhor. Assim foi com todas as coisas que os estimulamos a
fazer, já que consideramos nos terem sido muito úteis na vida e quisemos que vocês
também tivessem as mesmas oportunidades que nós, como a natação, a datilografia,
o inglês, corte e costura, etc...”
Esta fala de minha mãe me fez recordar certos princípios sobre
educação que faziam parte de nossa família.
Educação, para meus pais, tinha a função de nos preparar para a vida,
para a imprevisibilidade nela contida. Acreditavam numa educação voltada
para o ser, não para o ter.
Sempre ouvi de meus pais que o importante era ser reconhecido e
admirado pelo que se é e não pelo que se tem.
Sendo assim concluo que essa preparação para a vida segundo a
interpretação deles, “ser alguém” não significava, ser bem sucedido numa
profissão ou bem sucedido financeiramente, significava antes, de qualquer
coisa, ser feliz e realizado enquanto pessoa, enquanto ser humano. Concluo
estar implícita aí a idéia de totalidade, no momento em que havia neles a
preocupação com o desenvolvimento de todas as nossas potencialidades.
Estavam sempre lendo, atualizando-se sobre psicologia e educação e,
às vezes, até nos irritavam com certos psicologismos e análises, que
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Coreografia / escrita de uma investigação interdisciplinar sobre a formação de uma professora de arte

  • 1. ISAURA DA CUNHA SEPPI COREOGRAFIA/ESCRITA DE UMA INVESTIGAÇÃO INTERDISCIPLINAR SOBRE A FORMAÇÃO DE UMA PROFESSORA DE ARTE UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2002
  • 2. ISAURA DA CUNHA SEPPI COREOGRAFIA/ESCRITA DE UMA INVESTIGAÇÃO INTERDISCIPLINAR SOBRE A FORMAÇÃO DE UMA PROFESSORA DE ARTE UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2002 Dissertação apresentada, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação junto à Universidade Cidade de São Paulo - UNICID sob orientação da Profa. Dra. Ana Gracinda Queluz.
  • 3. Profa. Dra. Vani Kenski - USP Profa. Dra. Ivani Fazenda :PUC-SP - UNICID Profa Dra. Ana Gracinda Queluz - UNICID COMISSÃO JULGADORA
  • 4. Seppi, Isaura da Cunha Coreografia/escrita de uma investigação interdisciplinar sobre a formação de uma professora de arte / Isaura da Cunha Seppi. – São Paulo, 2002. 127 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Cidade de São Paulo. Orientação Professora Doutora Ana Gracinda Queluz. 1. Formação de professores. 2. Interdisciplinaridade. 3. Temporalidade. 4. Arte. 5. Dança. 6. Teatro. I. Título. CDD 370.71 CDU 371.13
  • 5. Ao meu filho, razão da minha vida Minha alegria, meu orgulho... Aquele por quem eu faria tudo outra vez...
  • 6. Agradecimentos Durante todo o tempo em que estive envolvida nesse projeto de pesquisa, sei que me ausentei do convívio de pessoas a mim muito caras que, tenho certeza, ressentiram-se com a minha ausência. Hoje, ao escrever esses agradecimentos percebo que, eles ressoam em mim como uma despedida desse processo, o final de uma jornada, quando posso retornar ao convívio das pessoas queridas, com as notícias dos mundos que visitei e revisitei. Por mais que o encontro com Mnemosine, possa ter me levado ao aparente esquecimento dos amigos e familiares, quero que saibam todos que, sempre em todos os momentos estiveram vivos e presentes nas lembranças e recordações que são a matéria prima desse trabalho. Devo dizer que trabalhar com a memória de tempos vividos significa também sentir muita saudade. A todos vocês que fazem parte da minha vida quero expressar a minha gratidão e também expressar minha saudade. Meu consolo foi descobrir que este sentimento me liga a todos. Todas as pessoas queridas, do meu passado e do meu presente, entendo agora, fazem parte de mim e da pessoa que me tornei. Obrigada minha mãe, pelo relato de seus sonhos coloridos que me ensinaram a escolher uma estética para minha vida. Agradeço ao meu pai (in memorian), eterna saudade, sempre presente em todas as minhas emoções e ações, por ter me ensinado o que é compaixão. Agradeço aos meus irmãos, cúmplices de toda vida. Agradeço aos mestres, sempre referência, Vicente Di Grado, Yolanda Amadei, Pedro Lopes Soares e Mieka Fukuda. Agradeço a preciosa amizade de Cida Giannecchini (in memorian), Suzana Buchmann, Myrna Nascimento, Nilton Flávio Knabenn, Marcos Moraes. Agradeço a Brenda Gottlieb, terapeuta com quem descobri, entre outras coisas importantes, o desejo de escrever. Agradeço a Célia Rovai, pela leitura sensível e correção do texto. Agradeço ao Ricardo Pedro e Inara, bibliotecários que ofereceram o inestimável suporte técnico para edição final da dissertação. Agradeço o apoio a essa pesquisa dos alunos, Cauê Chianca e Paulo Pellim Jr. nas questões relativas a informática, Internet e vídeo e, a companhia de Rodrigo Girardi durante a minha preparação corporal e, nas pesquisas sobre a prática da dança. Agradeço a parceria dos companheiros da Escola Nova Lourenço Castanho, nesses dezesseis anos de trabalho, em especial: Sylvinha Gouvea, Eda Canepa, Helo Porto Alegre, Alice Rezende Proença, Cecília Perez, Marília Azevedo Noronha, monitoras do ginásio e principalmente a equipe de professores de arte. Agradeço com saudade aos alunos de todos os tempos, por tudo o que me ensinaram, por trazerem a dimensão do futuro ao meu trabalho. Agradeço aos meus colegas do Curso de Mestrado. Agradeço a todos os que cuidaram de mim, principalmente Firdoos Jan (John) meu guia, protetor, companheiro e cúmplice, na travessia pelas perigosas estradas que levam ao coração da Índia, onde encontrei a fonte de inspiração para esse trabalho.
  • 7. Nessa experiência solitária foi minha partner na coreografia/escrita, Ana Gracinda Queluz a quem quero, aqui, registrar um agradecimento especial. Minha orientadora que me presenteou com uma pedra para simbolizar o seu papel no meu trabalho, como a pedra no meu sapato. Pedra que sempre tive guardada dentro do sapatinho de cristal, posto que, Ana sempre será a fada madrinha, que me deu o traje para o grande baile, como no conto de fadas, mostrou-me como transformar uma abóbora numa carruagem, usando a magia do tempo criativo, aquela que sempre esteve lá, no lugar certo, ao piano, executando a música para o meu solo, com seus acordes fortes, impulsionado os saltos e giros, com variações suaves e lentas apoiando no momento da queda, com acordes fortes e vibrantes, me oferecendo o braço firme para a recuperação após os movimentos mais vertiginosos, cuidando para que a música da interdisciplinaridade fosse sempre audível ao coração. Aquela que sempre terei no coração com amor, admiração e gratidão. Ana me faz lembrar de outras madrinhas que tive, aquelas que sempre estiveram presentes nas horas difíceis. Tia Maria Ignez, minha Dinda, que me ensinou a conviver com a distância daqueles que amo, usando o recurso da correspondência e com a arte da escrita, encheu minha vida de cultura, sabedoria e boa companhia. Ecleide Furlanetto, a madrinha que me incentivou a fazer o mestrado e me conduziu carinhosamente nos primeiros passos desse caminho. Célia Hass, a madrinha que me recebeu no programa de mestrado, ajudou-me a encontrar o melhor de mim e a fazer as primeiras escolhas, pelas mãos de quem dei os primeiros passos na escrita desse trabalho. Ivani Fazenda e Vani Kesnki que formaram a banca e que, me homenagearam com a leitura sensível do meu texto, ampliando meu olhar sobre interdisciplinaridade e memória. A todos, meu amor e meu carinho.
  • 8. “Se eu pudesse deixar algum presente a vocês, deixaria acesso ao sentimento de amar a vida dos seres humanos. A consciência de aprender tudo o que foi ensinado pelo tempo afora... Lembraria os erros que foram cometidos para que não mais se repetissem. A capacidade de escolher novos rumos. Deixaria para vocês, se pudesse, o respeito àquilo que é indispensável: Além do pão, o trabalho. Além do trabalho, a ação. E, quando tudo mais faltasse, um segredo: O de buscar no interior de si mesmo a resposta e a força para encontrar a saída." Mahatma Gandhi
  • 9. Sumário Resumo...................................................................................................x Abstract .................................................................................................xi 1 Introdução............................................................................................1 2 Criando um recurso imagético, o sári, como forma referencial .............6 3 Revelando o método da coreografia /escrita......................................22 4 Ato I: infância ....................................................................................35 5 Ato II: adolescência............................................................................44 6 Ato III: vida adulta ..............................................................................69 6.1 Cena1: bacharelado.........................................................................73 6.2 Cena 2: as licenciaturas....................................................................82 7 Ato IV: a prática docente ...................................................................87 8 Cena final: os grupos de pesquisa.....................................................115 9 Considerações finais: apresentação/estréia......................................119 Referências .........................................................................................129 Anexos ................................................................................................135 ANEXO 1..............................................................................................136 ANEXO 2..............................................................................................138 ANEXO 3..............................................................................................139
  • 10. x Resumo Esse trabalho é uma investigação sobre meu processo de ensinar/aprender em uma perspectiva interdisciplinar de formação. Conectei-me com meu interior e sua complexidade e com a memória numa dimensão, até então, para mim desconhecida, em busca de uma nova ordem para meu universo simbólico e um novo sentido para minha atuação na Educação. Como professora/pesquisadora ocupei o lugar de sujeito da pesquisa e transformei minha trajetória de vida em objeto de estudo. Ao estabelecer um diálogo entre minha experiência de criação artística com os princípios da Interdisciplinaridade, criei uma metodologia para um projeto de investigação interdisciplinar que me permitiu criar uma região de interseção entre arte e educação. No desenvolvimento da pesquisa, as linguagens visual e escrita se entrelaçaram e se complementaram com o intuito de revelar os aspectos ocultos do ato de aprender. O diálogo entre imagem e texto, tornou-se o recurso que utilizei para representar a memória, como palco do diálogo entre o tempo cronológico e o tempo kairótico, que conecta os fatos vividos às teorias que participam de minha prática e dão forma ao meu fazer. A dança, como um fio, conduziu e permeou minha trajetória, costurando meus diferentes fazeres. Por essa razão, constituiu a linguagem escolhida para expressar minha maneira de capturar meu processo de formação como professora de arte. Utilizei-me de minha experiência em coreografia para a escrita da dissertação na forma de uma coreografia/escrita num exercício de coreografar as palavras ao som da musicalidade dos ecos da memória da minha própria experiência de formação. Desvelei minha trajetória, para revelar os saberes e valores que participam de minha formação, que constituem o alicerce sobre o qual minha prática docente se estrutura. Nessa coreografia/escrita identifiquei parceiros teóricos que apoiaram a teorização e interpretação da articulação entre teoria e prática e o rompimento das fronteiras entre educação, dança, teatro e artes plásticas, revelando de maneira mais clara e profunda o espaço interdisciplinar criado no exercício da minha experiência de investigação, ensino e aprendizagem da arte. Palavras-chave: Formação de professores; Interdisciplinaridade; Arte; Dança; Teatro; Temporalidade.
  • 11. xi Abstract This work is an investigation about my teaching/learning process in an interdisciplinary formation perspective. I connected myself with my interior and its complexity and, in a memory dimension - up to that time - unknown to me, in search of a new order for my symbolic universe and a new direction for my action in Education. As teacher/researcher I occupied the subject place in this research and transformed my life path in the study object. As establishing a dialogue between my artistic creation experiences with the Interdisciplinary principles, I created a methodology for a project of investigation that permitted me to create an intersection region between art and education. In the research development, the written and visual languages intertwined and complemented themselves with the intention of revealing the occult aspects of the learning act. The dialogue between image and text, became the resource that utilized to represent the memory, as dialogue stage between the Khronos and the Kairos time dimensions, that connect the lived facts to the theories that take part in my practice and form my doing. Dance, as a thread, led and permeated my trajectory, sewing my different doings. By that reason, it constituted the language that I chose to express my way of capturing my art teacher formation process. I utilized my choreography experience for writing the dissertation in a written choreography form, as a choreographic exercise with the words by memory echoes musicality of my own formation experience. I unveiled my trajectory, to reveal the knowledge and values that took part in my formation, that constitute the foundation upon which my educational practice is structured. In that written/choreography I identified theoretical partners that supported the theorization and interpretation of theory and practice articulation and the frontiers rupture between education, dance, theater and plastic arts, revealing clearly and deeply the interdisciplinary space created in my experience of investigation, teaching and learning arts. Keywords: Teacher education; Interdisciplinarity; Art; Dance; Theatre; Temporality
  • 12. 1 1 Introdução “É que a dança não é apenas uma arte, mas um modo de viver.” “A dança é um modo de existir.” (GARAUDY, 1980, p.13) Muito cedo me tornei artista e é do lugar da artista que atua em educação que desejo escrever sobre a dança. Digo isso em primeiro lugar para mim mesma para, então, poder expor minhas idéias àqueles que se dedicam à educação e como eu, acreditam em seu poder transformador do ser humano e da sociedade. Transformação tratada aqui como o processo natural de crescimento do ser humano e de sua trajetória de vida. Transformação que, acrescida da idéia de evolução, se torna projeto de superação de si mesmo. Isso se apresenta como um desafio: mergulhar de corpo e alma no processo de ensino/aprendizagem e decifrar nele os mecanismos que participam e promovem as transformações no ser humano como recursos para o aperfeiçoamento de minha prática docente. Considero que esse movimento, provocado pelo desejo de aprender e prazer em tornar-me melhor, naquilo que sei fazer, talvez seja a essência do processo de encontrar, seguir e crescer numa vocação1 durante a vida . Acredito que o desejo de superação seja fruto de um questionamento que traz consigo a idéia de mudança que, por sua vez, geralmente implica uma decisão, que gera um momento de tensão imediatamente anterior ao movimento de transformação. ... e trata-se também, neste caso, de uma realidade permanente a tensão entre o espiritual e o material. Muitas vezes, sem sequer se aperceber disso ou sem ter a capacidade para o exprimir, o mundo tem sede de ideal ou de valores, a que chamaremos morais, para não ferir ninguém. Cabe à educação a nobre tarefa de despertar em todos, segundo as tradições e convicções de cada um, respeitando inteiramente o pluralismo, esta elevação do pensamento e do espírito para o universal e para uma espécie de superação de si mesmo. Está 1 “ vocação . [Do lat. vocatione.] S. f. 1. Ato de chamar. 2. Escolha, chamamento, predestinação. 3. Tendência, disposição, pendor. 4. P. ext. Talento, aptidão.” (FERREIRA, 1999, p.2083)
  • 13. 2 em jogo – e aqui a Comissão2 teve o cuidado de ponderar bem os termos utilizados – a sobrevivência da humanidade”. (DELORS, 1999, p.15) A dança tem sido a grande paixão... meu principal objeto de estudo, constituindo-se na linguagem que escolhi para expressar minha maneira de ver, estar e representar o mundo e conduzir a narrativa nesta dissertação. A dança, como um fio, conduz e permeia minha trajetória de vida; costura todos os meus diferentes fazeres, assim como a alma3 humana costura as diferentes partes do ser... “A dança é uma das raras atividades humanas em que o homem se encontra totalmente engajado: corpo, espírito e coração.” (BÉJART, 1980, p.9) A dança é também um credo, meu “yoga”4, minha meditação, um meio de conhecimento, a um só tempo prospectivo, do mundo interior e do exterior, um elo comigo mesma, com os outros e com o ato de aprender. Quero, neste trabalho, falar sobre o que aprendi com e sobre a dança - dançar, aprender a dançar e ensinar a dançar. Como a partir dela, me inscrevi no mundo. Procurei desvelar para revelar os aspectos ocultos do ato de aprender, não como um desnudamento mas como forma de compreender o meu processo de aprendizagem, dos meus alunos e dos meus parceiros teóricos e aqueles com quem pude compartilhar vivências e experiências. Busquei traduzir para a escrita o indizível, num exercício de coreografar as palavras ao som da musicalidade dos ecos da memória da minha própria experiência de esforço constante de aprender a estar no mundo. Sendo a dança a arte do movimento (LABAN,1978), foi preciso buscar na origem dos movimentos os elementos constitutivos desta coreografia/escrita, que tem sua raiz no significado pessoal/profissional deste “estar no mundo”. Encontrei em CRITELLI (1996), expresso com clareza o que intuitivamente percebi e que constitui um dos elementos propulsores deste meu 2 Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI. 3 Alma entendida aqui segundo a concepção de Jung como sinônimo de psique. Psique que por sua vez é definida por Jung como a totalidade de todos os processos psíquicos conscientes e inconscientes.” (JUNG, 1991) 4 “A palavra yoga significa união. Esta união você poderá encontrá-la na dança, pois a dança também é união. Shiva , o Senhor do mundo, o grande yogui, tem igualmente o nome de Nataraja, o rei da dança...Que sua dança seja o seu yoga, não procure outro.” (BÉJART, 1980, p.9)
  • 14. 3 fazer que apresento neste momento, para me auxiliar a explicitar a fonte de onde brotam meus movimentos: Céu e terra pertencem-se mutuamente, e todos os elementos da natureza, à medida que aparecem revelados e abrigados nessa pertença, também dela compartilham. No caso do homem, esse modo de pertença em que se cria uma inexorável integração é impossível; a vida humana está em perpétuo deslocamento. Viver como homens é jamais alcançar qualquer fixidez. (CRITELLI, 1996, p.16) Completando esta reflexão a autora me leva a compreender o sentimento que me acompanha em relação ao estar no mundo, ao conhecimento e à identificação do que me move: Esta experiência da inospitalidade do mundo, do nada em que se desfez ou ocultou o sentido que ser fazia para nós, e da mais plena liberdade em que somos lançados independentemente de nosso próprio arbítrio, Heidegger a nomeia angústia. Fundado na angústia, regido por este paradoxal modo humano de ser no mundo, é que se abre para o homem toda sua possibilidade de conhecimento. A ontológica inospitalidade do mundo e a ontológica liberdade humana são regentes de toda forma de conhecimento e do método. (CRITELLI, 1996, p.18) A consciência desta maneira de perceber e sentir o mundo e a vida me mostra que existe um lugar de onde se manifestam os impulsos internos, a partir dos quais se origina o movimento, processo a que o bailarino, coreógrafo e pesquisador Rudolf Laban denominou de “esforço”. LABAN (1978) desenvolve minuciosamente este conceito, destacando o fato de que a busca de valores gera no homem esforços conflitantes e não há quem desconheça o fato de as expressões, gestos e movimentos espelharem conflitos interiores. Ao domesticar os animais, o homem aprendeu como lidar com o esforço e como alterar os hábitos de esforço dos seres vivos, e por fim aprendeu a se domesticar, treinando e desenvolvendo seus próprios hábitos pessoais de esforço, tanto engrandecendo-os quantitativamente, quanto dirigindo-os qualitativamente cada vez mais no sentido de se tornarem esforços humanitários específicos. É impressionante o modo pelo qual o homem alcançou esse tipo de educação do esforço, tendo seu paralelo na evolução dos hábitos de esforço animais. A seleção que o homem faz das suas seqüências de esforço não é totalmente inconsciente, ele tem a capacidade de coordenar uma gama de possibilidades de esforço vastamente maior que a de qualquer outro animal e esta gama ultrapassa as necessidades da mera sobrevivência. (LABAN, 1978)
  • 15. 4 A minha coreografia/escrita tem o sentido do pertencer, o sentimento de angústia, o exercício do esforço e o da liberdade. As principais dinâmicas de minha coreografia/escrita mantém estreita relação com as da dança, por isso, na minha escrita, procuro articular o sentido de pertencer o sentimento da angústia frente à inospitalidade do mundo e do contínuo exercício do esforço, na busca pelo equilíbrio, num movimento de perpétuo deslocamento. Encontrei na concepção de pesquisa interdisciplinar a sustentação teórica para a estruturação de uma outra narrativa que revelasse a minha maneira de pensar a respeito da formação de um professor de arte, a partir do resgate da minha história de vida que tem a dança como eixo e fio condutor. A trilha interdisciplinar caminha do ator ao autor de uma história vivida, e uma ação conscientemente exercida e uma elaboração teórica arduamente construída. Tão importante quanto o produto de uma ação exercida é o processo e, mais que o processo, é necessário pesquisar o movimento desenhado pela ação exercida – somente com a pesquisa dos movimentos das ações exercidas poderemos delinear seus contornos e seus perfis. Explicitar o movimento das ações educacionais exercidas é sobretudo intuir-lhes o sentido da vida que as contempla, o símbolo que as nutre e conduz – para tanto torna- se indispensável cuidar dos registros das ações a ser pesquisadas. (FAZENDA, 2001, p. 15) Ao coreografar a escrita, procuro dar movimento ao texto apresentado ao leitor pelas pranchas de cor que marcam o início da cada capítulo, construídas à luz da temporalidade que representam. Pela narrativa das cenas que contextualizam para o leitor, o espaço onde os atores se movem. O interior de cada capítulo é palco da narrativa do diálogo entre Cronos e Kairós. Cronos, representado pela linha do tempo que ancora os fatos vividos, e Kairós, pelos parceiros teóricos que contextualizam os referidos fatos, e cujo encontro se deu por insight, pela memória e pela sintonia. Essa coreografia/escrita ao desvelar os encontros entre Cronos e Kairós dá sentido e rigor à narrativa, na medida em que Kairós, ao contextualizar e explicar na voz dos fatos apresentados pelos atores/parceiros ressignifica, explica, amplia e abre a possibilidade de teorização sobre o vivido/narrado. Tal qual na dança, a temporalidade é apresentada em planos, em flash backs porque as marcas positivas e as negativas da minha trajetória são revisitadas e delas se extraem os fios que tecerão a narrativa do gran finale.
  • 16. 5 Nesta coreografia /escrita os capítulos são denominados atos. Na coreografia dos atos, a explicitação da partitura de movimentos. No traçado coreográfico há a indicação das marcas e eixos que estabelecem referenciais que orientam os movimentos e definem direções no tempo e no espaço. No interior dos capítulos/atos as indicações das marcas e eixos são explicitadas pela utilização de recursos como destaques, metáforas, símbolos, imagens especialmente criadas a partir do sári, uma veste típica da Índia que sem nenhuma costura, recobre o corpo humano, assim como a minha narrativa veste a minha trajetória.
  • 17. 6 2 Criando um recurso imagético, o sári, como forma referencial de uma estética. Minha trajetória de vida constitui a matéria prima deste processo de investigação. Conheci a dança em várias dimensões e foi esta arte que me ligou à educação, quando passei da condição de aprendiz para a de ensinante. A docência acrescentou mais dúvidas em relação aos meus saberes em dança, questão essa que se tornou presença constante em minhas reflexões de educadora e artista. Certa feita entrei em contato com Ivani Fazenda numa palestra sobre interdisciplinaridade que proferiu na escola onde trabalho. Nessa ocasião teve origem um enorme interesse em conhecer mais sobre o tema principalmente pelos pontos que despertaram em mim uma forte afinidade. Os “cinco princípios que subsidiam uma prática docente interdisciplinar: a humildade, a coerência, a espera, o respeito e o desapego” (FAZENDA, 2001, p.11) despertaram o desejo de compreender melhor essa área de conhecimento e pesquisa. Interessei-me também pela lógica que a interdisciplinaridade imprime à investigação que privilegia a descoberta, a pesquisa, a produção científica, porém gestada num ato de vontade, num desejo planejado e construído em liberdade. Encantei-me com o processo interdisclipinar porque este “desempenha um papel decisivo no sentido de dar corpo ao sonho e de fundar uma obra de educação à luz da sabedoria, da coragem e da humanidade. (FAZENDA, 2001, p.18) A perspectiva de desenvolver um trabalho acadêmico baseado nestes princípios, me encorajou e estimulou a ingressar no Programa de Mestrado em Educação da Universidade Cidade de São Paulo (UNICID) para construir um conhecimento sobre um tema, a partir da minha questão básica, que é o papel, a função e lugar da dança na formação do professor. Iniciei, então, meu trabalho, disposta a desenvolver um projeto de pesquisa interdisciplinar nos moldes propostos por Ivani Fazenda e seu grupo de pesquisa, acreditando na possibilidade de estruturação de uma outra
  • 18. 7 maneira de pensar a respeito dessa questão que, para mim, é um grande desafio - esse estudo vai me auxiliar a integrar o meu fazer, a minha arte e a minha prática pedagógica. Ao retomar minha trajetória com um olhar investigativo, vi-me diante de uma nova perspectiva, em muitos ângulos desconhecida e, para torná-la inteligível, senti a necessidade de encontrar nela algum tipo de ordem que, para mim naquele momento estava oculta. Havia já elaborado alguns trabalhos escritos, no mestrado, que tinham como tema a minha trajetória como professora. Tudo corria bem, até que chegou o momento de estabelecer uma ligação entre os referidos textos. Se Cronos permitia uma ordenação linear dos textos, Kairós não se submetia a tal ordem. Sempre que tenho dificuldade de compreender mentalmente o que minha percepção captou num nível muito profundo e para compreender o porquê de determinada coisa me causar uma impressão tão contundente, mas que o pensamento não traduz de forma imediata, recorro ao desenho ou à pintura, uma forma de pensar por imagens para, visualizando, alcançar o sentido e o significado que se estruturou internamente. Fazer um trabalho plástico foi uma maneira que encontrei de trazer à luz imagens mentais, sensações e emoções, de natureza fugidia para o consciente, para que, dessa forma eu possa capturar as imagens e observá-las mais longamente e interpretar-lhes o significado de modo global. A idéia inicial foi a de construir uma linha de tempo.Para isso recorri a uma técnica que aprendi no antigo ginásio, nas aulas de história da arte e elegi a pintura como linguagem visual para a referida construção. A primeira visualização que tive foi a de uma linha, literalmente, uma longa e larga linha onde pudessem caber muitos detalhes, textos e imagens. Por tratar-se de um estudo, resolvi usar o material que tinha em casa, muito papel canson A2 e tintas para cenário, aquarelas, pastel oleoso. Usei meu curriculum vitae como referência para calcular o comprimento. Conclui que se atribuísse um espaço para cada ano, o tamanho ficaria impraticável para o manuseio. Decidi, então, resumir a infância e a adolescência em apenas um espaço, mas ainda assim, precisava de uma linha muito longa.
  • 19. 8 O primeiro problema foi adaptar o formato do papel aos meus objetivos e necessidades. Dificilmente a trajetória poderia ser pintada toda aberta, dada a dificuldade de espaço e, por isso, recortei, colei e montei uma estrutura de papel articulada, formada por 38 quadrados de 24 cm de lado, para que pudesse ser pintada dobrada, por partes, ao mesmo tempo em que eu pudesse desdobrar e visualizar as partes anteriores, sempre que necessário, para não perder o todo do trabalho. Em seguida, recortei o currículo ano a ano, distribui sobre a linha e colei. Para cada ano atribui uma tira vertical de 24 cm x 48 cm. Agrupei os temas ao longo da página imaginando manter a seqüência dos fatos quadro a quadro preservando a simultaneidade em que ocorreram em determinado período de tempo. Resumi em apenas uma tira o período da infância à adolescência que tive necessidade de revisitar, pois trata-se do tempo/espaço onde tudo começou e também faz parte da bagagem que acumulei nesta aventura que é ser professora. E também o período de 1974 a 1983 que resume o período em que mudei para São Paulo e cursei a graduação e as licenciaturas. Assim que acabei de organizar o currículo nos espaços e vi o tamanho final do trabalho, comecei a pensar nas cores para aquela história. Olhava para aquilo tudo e me perguntava: que critério deveria usar para escolher as cores? Pensei comigo - primeiro o fundo - que fundo terá esta pintura? O plano de fundo representa o tempo cronológico, o ritmo da dança da minha vida no período de 1956 a 1999. O tempo kairótico foi representado nas linhas que correm sobre o tempo cronológico. É um tempo em movimento que se alterna entre Cronos e Kairós. Fui mergulhando nos anos ali abertos à minha frente e perguntava a eles qual a lição que eu havia aprendido em cada um deles ou em períodos mais extensos, já que os tempos entre eles são variáveis e as variações têm uma constância não muito precisa, se observar que há regiões de fronteira, as regiões de transição entre umas e outras fases da minha vida. As respostas alternavam-se sucessivamente, predominando três movimentos básicos, o da paixão, o da espera e o da ação.
  • 20. 9 Minha idéia foi a de expressar essas energias como se fossem irradiações luminosas, numa tentativa de expressar sensações e emoções vividas durante as experiências. Em sendo um trabalho de arte, me senti confortável para usar uma licença poética para as cores. Refletindo sobre os significados das cores, encontrei a resposta para o que buscava. Recorrendo aos meus conhecimentos sobre terapias corporais orientais e esoterismo, relacionei essas energias às cores dos chakras 5 (fig. 1) que vieram em resposta ao que procurava. FIGURA 1 – CHAKRAS Há no peito, na altura do coração, um chakra onde está guardada a nossa natureza divina, a centelha divina da luz inicial do Universo, que é formada por três raios de luz, um rosa que representa o amor universal, a 5 http://www.esoterismo.sorocaba.com.br/chakra/ http://www.mistico.com/p/chakras/
  • 21. 10 criatividade; outro azul, que representa a força da vontade, o domínio sobre a matéria e amarelo, a inteligência, o discernimento a clareza, a sabedoria. Escolhi trabalhar com a idéia das cores desse chakra. Para os períodos de espera escolhi a cor azul; para os da gestação do conhecimento e da paixão o rosa, e amarelo, para a ação. Para o período final, escolhi o laranja para representar, a energia vital, o autoconhecimento, a alegria, o desapego, a confiança e a entrega, significando o fluir pela vida. Passei a expressar dessa forma as qualidades que eu tive que desenvolver para ser professora. E o fundo ficou assim: TABELA 1 – ESTRUTURA PARA FUNDO DA COMPOSIÇÃO Essa visualização me sugeriu um gráfico e comecei então a ligar os pontos. Com um pincel fui traçando uma linha, ligando os pedaços do currículo que estavam colados no papel, como se fossem pontos. Organizei a composição, estabelecendo, portanto um eixo central horizontal em verde limão, que representa inicialmente, os primeiros anos da minha formação escolar. Acima dele, um eixo carmim, que representa o início da formação em dança, e outro em azul marinho, o eixo da formação em artes plásticas. Mais adiante, o eixo verde limão corresponde à minha formação regular e se soma a outro em dourado marrom e salmão que representa a minha vida profissional. As linhas adjacentes que acompanham esse eixo central representam todas as experiências de formação nas artes, sendo a dança em carmim; o teatro, em verde-escuro, as artes plásticas, em azul-marinho; terapias e Desde que eu consigo 1974 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99 Lembrar- me até 1974 A 1981
  • 22. 11 técnicas corporais em laranja, que procurei e aprendi para completar minha formação e subsidiar minha prática pedagógica. A cada pincelada ia rememorando todos os passos do meu caminho e as emoções que sentia iam se imprimindo no papel em diferentes tipos de traços e pinceladas. Conforme ia pintando, as linhas iam se entrelaçando, revelando formas e relevos na superfície do papel, criando a sensação de movimento, de fluidez: Era realmente um gráfico, mas um gráfico orgânico fora dos padrões geométricos usuais, porque provoca também sensações visuais (fig. 2), quase táteis, e sensações cinestésicas, sugerindo uma partitura com movimento. FIGURA 2 – LINHAS DA FIGURA Somente ao término da pintura (fig. 3), pude visualizar o resultado final com a distância adequada, quando utilizei um painel que existe na faculdade como suporte para ela, pois não houve espaço em casa. FIGURA 3 – PINTURA EM TAMANHO REAL
  • 23. 12 Olhava para aquele trabalho e pensava comigo mesma - aí está a minha vida diante de mim. Perplexa, constatei que o resultado final lembrava um sári aberto. Entrei numa crise muito grande pois todo o tempo em que eu deveria estar escrevendo eu havia passado pintando. Era chegada a hora de apresentar um trabalho final no grupo de estudos e pesquisa e eu tinha apenas uma pintura articulada em formato de folder com 19 lâminas de 24 cm x 48 cm que, quando aberta, mede 4,56 m de comprimento e se parece com um mapa topográfico. Como eu iria explicar para as pessoas o que era aquilo, se nem sequer para mim estava claro? Tinha apenas uma intuição. Mais ainda dizer a elas que aquilo era um sári! Tentei escrever um texto estabelecendo uma metáfora da pintura como um rio, o rio da vida, mas minha orientadora Ana Gracinda Queluz, perguntou onde estavam as margens daquele rio. Essa questão levou-me a revisitar minha pintura e entrar em contato com seu significado. Mais tarde em nossa primeira entrevista de orientação Ana Gracinda Queluz, como que lendo nitidamente aquele segredo, manifestou o que o desenho representava para ela. Disse-me desta forma: “ Esta pintura é um sári, como se a sua trajetória de vida fosse um tecido sem costuras que recobre seu corpo como se fosse uma pele.” Foi como um presente de “fada madrinha” pois me deu o vestido para o baile. Senti-me acolhida, compreendida e isso me encorajou a prosseguir nesta trilha. FIGURA 4 – PINTURA DIGITALIZADA
  • 24. 13 Passaram-se alguns meses antes que eu pudesse me apropriar dessa imagem como elemento que ligasse, que desse unidade ao meu trabalho. Nunca havia operado com a minha memória de forma consciente e sistemática e tive que parar para entender o que estava ocorrendo dessa vez. Evocando um ontem e projetando-me sobre o amanhã, percebi que em minha memória dispunha de um instrumental para, a tempos vários, integrar experiências já feitas com novas experiências que pretendia fazer. O processo de criar incorpora um princípio dialético, e por isso, considero muito significativo o fato de que neste processo tenham se entrecruzado essas duas questões, falar sobre uma cultura diferente da minha (sári) e falar de uma forma diferente sobre a minha própria cultura (formação de professora). Me dei conta de que, através deste exercício com a memória, estava me tornando apta a reformular as intenções do meu fazer e a adotar certos critérios para futuros comportamentos. E mais, as intenções se estruturam junto com a memória, nem sempre de forma consciente, tornando-se claras apenas no curso das ações. A reconstrução e a interpretação do passado é um fazer valer o passado para o presente, o converter o passado num acontecimento do presente. Só assim é verdadeira a experiência. A experiência do passado, portanto, não é um passatempo, um mecanismo de evasão do mundo real ou do eu real. E não se reduz, tampouco, a um meio para adquirir conhecimentos sobre o que aconteceu (...) a interpretação do passado só é experiência quando tomamos o passado como algo ao qual devemos atribuir um sentido em relação a nós mesmos. (LAROSSA, 2001) Percebi, nesta forma de trabalhar, que memória, imaginação se interpenetram nas linguagens artísticas. A memória não é factual, é memória de vida vivida, tem um aspecto dinâmico e não estático, possibilitando sempre novas interligações e configurações, e aberta a associações. Daí vem a dificuldade que tive inicialmente de ordenar a memória em forma de texto. Mas, através do trabalho plástico, pude então perceber que há uma seletividade que organiza o processo em que a própria memória vai se estruturando. A dificuldade estava em lidar com o dado de que os fatos lembrados se apresentavam a mim como configurações complexas.
  • 25. 14 “Para que essa experiência do passado seja possível, o sujeito da experiência - o historiador ou o leitor - deve ser um sujeito desconforme e inquieto. Esse sujeito é o que vai do presente ao passado, mas arrastando consigo sua desconformidade, ou seja, evitando toda relação de continuação. E é, também, o que vem do passado ao presente, mas para interrompê-lo e colocá-lo em questão, para desestabilizá-lo e dividi-lo no interior de si mesmo. Foucault diz isso de uma maneira magistral.(...). Saber, mesmo na ordem histórica, não significa reencontrar e sobretudo não significa reencontrar-nos. A história “será efetiva” na medida em que ela reintroduza o descontínuo em nosso próprio ser (...). Ela não deixará nada abaixo de si que teria a tranquilidade asseguradora da vida ou da natureza; ela não se deixará levar por nenhuma obstinação muda em direção a um fim milenar. Ela aprofundará aquilo sobre o que se gosta de fazê-la repousar e se obstinará contra sua pretensa continuidade. É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar.” (LAROSSA, 2001, p. 136) A maneira que encontrei para decodificar estas configurações foi utilizando cores e linhas para representar sensações, sons, emoções que também fazem parte dos fatos em si, assim manifestados. Pude, por meio da linguagem visual estabelecer os limites entre o que lembrava, pensava e imaginava, elaborando uma ordenação. Raciocinando a esse respeito, pensei que a imagem que criei resultava de um processo de associações do meu mundo imagético em que estabeleci correspondências evocadas à base de semelhanças, ressonâncias íntimas de experiências anteriores com os sentimentos de minha experiência de vida. Tudo aconteceu numa velocidade extraordinária que num primeiro momento, não pude fazer um controle consciente das associações que iam gerando as imagens, mas podia ver claramente que apesar de formas espontâneas havia uma coerência interna. Na verdade, reconheço que neste movimento estava, a meu modo, selecionando e ordenando todo o conteúdo significativo da trajetória sem deixar que se perdessem as diferentes dimensões que a constituem. Agora me sinto capaz de abraçar esse desafio e descobrir o que ele tem a nos dizer. Elucidadas estas questões, é possível iniciar uma leitura sensível daquilo que criei para representar minha trajetória. Neste caso, especificamente, é necessário esclarecer que como meu objetivo não era apenas fazer um trabalho artístico, mas sim usá-lo como recurso para estruturar minha escrita, esta forma/ordenação torna-se significativa para mim apenas no momento em que projeto um sentido a ela e,
  • 26. 15 a partir dela, construo minha fala. Dessa forma, nesse momento, entrelaçam-se as linguagens plástica e escrita e tornam-se complementares entre si. Como todo artista, após o término da obra, me distancio dela e observo o resultado. Nesta busca de um significado pessoal para o sári, somaram-se às impressões visuais, informações e vivências que fui coletando durante e depois das minhas viagens à Índia O sári é um tipo de vestimenta feminina bastante incomum para os padrões ocidentais, ainda que muito popular entre as mulheres na Índia. Consiste em um tecido de mais ou menos seis metros de comprimento por uma largura que varia entre 80 e 90 centímetros, dependendo da metragem em que é fabricado. É um tipo de vestimenta que remonta a tempos imemoriais da história indiana, sendo citado em vários textos clássicos como o Mahabharata6, por exemplo, e que evoluiu ao longo do tempo em função das transformações por que passou aquele país. Por toda a Índia existe uma infinidade de tipos de drapejamento diferentes de acordo com cada região. O modelo com que entrei em contato tem sua origem no século XIX e é conhecido como Nivi Modern Style e adotado pela maioria das mulheres atualmente. Veste-se, enrolando-o no corpo de uma forma muito especial (fig. 5) formando uma saia que se estende como um véu sobre o tronco, formando um tipo de xale que pode ser usado, inclusive, para cobrir a cabeça (SARI, WEAR, 2002). 6 “The Mahabharata (pronounced approximately as Ma-haa-BHAAR-a-ta) is an ancient religious epic of India. It has existed in many forms, the fundamental one being a text in ancient Sanskrit which may well be the world's largest book. I, James L. Fitzgerald (Ph.D. in Sanskrit, Chicago, 1980) of the Department of Religious Studies at the University of Tennessee, Knoxville, am currently translating about one fourth of the Mahabharata for a complete translation of the Sanskrit text being published by the University of Chicago Press, and I am also editing the remainder of the translation of the text by other Sanskrit
  • 27. 16 FIGURA 5 – Modelos de sári (Capitol Hotel Bangalore – 1998) Ao retomar a visão da pintura, vejo que para transformar-se realmente num sári, falta ainda mais um movimento de criação, ou seja, a parte do xale, e a estampa da pintura sobre um tecido, ou o projeto de sári não estará acabado. Esperando uma outra imagem que me ajude a terminar a composição deste sári, mergulho o olhar sobre a pintura novamente e observando-a longamente, revejo todos os passos do projeto novamente e vou rearticulando as partes em diferentes estudos pesquisando a melhor solução para a composição. Minha imaginação se desprende do tema e se solta pelo espaço, criando formas e, lentamente, vão se configurando na mente imagens novas, novas idéias para o mesmo trabalho. Tenho ainda que desembrulhar por completo este sári que trouxe na bagagem. Sabendo que faz parte do fazer artístico, fazer e refazer o mesmo trabalho, escolho como tecido a mais fina seda, com um barrado dourado, onde scholars. This work follows and completes the translation of the Mahabharata begun by the late Professor J. A. B. van Buitenen of the University of Chicago” (FITZGERALD, 2002)
  • 28. 17 está bordado um mantra de proteção, sobre a qual estamparei a pintura de minha jornada para que, assim, a idéia original se complete finalmente. Resta ainda compor o xale do meu sári. O espaço reservado para uma única imagem, um ícone que represente o tema que governa essa história. Estive olhando para deuses e altares por muito tempo, como não falar sobre isso? Escolhi Shiva Nataraj, o deus hindu da dança (fig. 6) , para ocupar esse espaço. FIGURA 6 – ESTUDOS PARA O XALE DO SÁRI Feito isto elaborei alguns estudos com a finalidade de visualizar o sári acabado (fig. 7), estampado sobre a seda, entre os quais selecionei estes quatro (fig. 8 a 11) que considerei os melhores resultados em relação ao que havia imaginado inicialmente.
  • 29. 18 FIGURA 7 – ESTAMPA CENTRAL DO SÁRI FIGURA 8 – ESTUDO 1 FIGURA 9 – ESTUDO 2 FIGURA 10 – ESTUDO 3 FIGURA 11 – ESTUDO 4
  • 30. 19 Pude perceber que o sári, aberto desta forma, oferece uma possibilidade de leitura bidimensional do trabalho que, numa visão geral, sugere a idéia de percurso. Porém, dessa feita, ligando-o à idéia de um tecido que recobre, como uma pele que, por sua vez, representa uma vida vivida, é como se eu tivesse deixado impresso no tecido tudo que vivi e, em contrapartida como se minha trajetória estivesse impressa na minha pele como uma tatuagem, numa relação semelhante à da estampa com o tecido, em que pigmentos e fibras se fundem de modo indissolúvel, tornando-se uma unidade. Quanto à imagem linear propriamente dita, posso perceber que há um caminho impresso na área central. Sobre o fundo destaca-se, uma convergência de linhas e cores e energias para uma figura que inicialmente está em formação: Uma bolsa, como se tivesse um movimento interno e que depois se projeta adiante, horizontalmente, numa linha larga e reta, onde todos os elementos tendem a se alinhar numa ordem mais definida. Esta linha central define-se e percorre assim um longo trecho da imagem, sofre uma ruptura, e retoma sua caminhada no final do tecido, quando sugere duas pernas, descolando-se da linha original como que saltando em direção à representação imagética do deus Shiva o deus da dança e nela mergulha no final do tecido. Este é o mapa da jornada, que passa a me orientar quanto à maneira de entrar, de abordar meu objeto de estudo. “O tempo da formação, portanto, não é um tempo linear cumulativo. Tampouco é um movimento pendular de ida e volta, de saída ao estranho e de posterior retorno ao mesmo. O tempo da formação, como o tempo da novela, é um movimento que conduz à confluência de um ponto mágico (situado assim fora do tempo) de uma sucessão de círculos excêntricos.” (LAROSSA, 200, p.78 e 79) Desta forma a pintura se torna partitura da coreografia/escrita. Mesmo assim, ainda sinto este trabalho incompleto, sem uma visualização deste objeto em sua função, ou seja, vestindo um corpo, sua forma tridimensional, por que o sári é um objeto tridimensional em sua função de vestimenta e é nesta forma que também é preciso observá-lo.
  • 31. 20 Para isso fiz um exercício de modelagem tridimensional em argila que posteriormente scaneei e usando o programa Photoshop revesti a imagem com a pintura para que pudesse ver o meu sári de modo tridimensional (fig. 12). FIGURA 12 – MODELO EM ARGILA COM SÁRI TRIDIMENSIONAL Antes que pudesse começar a escrever novamente, mais um desafio se mostra, o de fazer uma análise dessa forma tridimensional, pois desejo compreender minha trajetória nesta dimensão, ou seja seu movimento no tempo e no espaço. FAZENDA (2001) relaciona a investigação interdisciplinar ao ato de desvendar em espiral, uma vez que os pontos da espiral se articulam de forma gradual, não de uma única vez, mas todos os pontos que aparecem têm a ver com os que os antecederam. Como também já disse esta afirmação sugere a idéia de profundidade, pela sucessão de camadas da espiral e sua evolução, em curvas, sugere a idéia de movimento. Se pensarmos na estrutura tridimensional do drapejamento, em como o tecido vai se enrolando no corpo, podemos perceber que este vai formando uma espiral ascendente pelo corpo e que as camadas inferiores vão formando
  • 32. 21 uma base para as que sucedem, de tal forma que todas estão em contato em determinado ponto. Se se pensar que este tecido está representando a minha trajetória, cada ponto da pintura sendo uma fase de minha formação, se se observar dessa maneira posso, então, transportar essa idéia para o texto. Vejo que os fatos aconteceram cronologicamente, mas posso estabelecer relações não cronológicas entre as várias fases da minha vida e estudar como cada uma influi na outra, no momento em que as camadas do tecido se sobrepõem umas às outras, colocando as fases da vida em contato, onde se criam as influências e relações. “Mas para que o primeiro círculo, o da infância, possa ser conservado, não basta que seja meramente recordado. O primeiro círculo tem que ser transmutado poeticamente desde o último, num movimento que é tanto de conservação quanto de renovação. E, para isso, é preciso que o círculo inicial se torne aberto em espiral, num tipo de via excêntrica que o leve para além de si mesmo, para depois voltar e trazê-lo ao local de partida.” (LAROSSA, 2001, p. 78)
  • 33. 22 3 Revelando o método da coreografia /escrita. Numa coreografia há um trabalho que o espectador não vê. No processo de criação coreográfica que utilizo, os movimentos que resultam de improvisações são selecionados, fixados. Reunidos, irão compor a coreografia que é uma seqüência expressiva de movimentos. Por tratar-se de um trabalho científico é necessário aqui explicitar os caminhos que utilizei nesta pesquisa. Não posso deixar ocultado do leitor o caminho que percorri, as decisões que tomei para a elaboração da pesquisa, objeto desta dissertação. Em face do desafio de fazer uma coisa que não sei, enfrentar o “não saber” para poder produzir um conhecimento, eu aprendiz-pesquisadora, tive assim meu encontro com o princípio da humildade, recorri inicialmente às ferramentas de que dispunha, entre elas o método que uso para pintar, somado a um novo olhar. Adotei a pintura do sári como a partitura para estruturar um roteiro para a coreografia/escrita, um fio condutor para os textos/movimentos desta coreografia/escrita. Iniciei minha pesquisa, escrevendo textos como num desenho de observação, esboços para uma composição, pouco a pouco interpretando o que via em minha trajetória de vida , traduzindo em imagens que distribui cuidadosamente sobre o sári /partitura. Entendo que a improvisação está para a dança, assim como o esboço está para a pintura, e utilizo essa analogia para revelar meu processo de elaboração desta pesquisa, como ilustro com as imagens a seguir: Usando o carvão, esbocei os primeiros textos como se fossem as primeiras formas, fragmentos de memória, sobre a tela (fig. 13) e sobre as áreas definidas, escrevi e reescrevi, descrevendo as imagens resgatadas, tentando encontrar os tons os meios tons, na tentativa de trazer a nitidez, focar da visão.
  • 34. 23 FIGURA 13 – ESBOÇO EM BICO DE PENA Em seguida distribuí em aguadas as áreas de cor às primeiras cores, para representar as sensações que me causavam cada uma das lembranças. As imagens foram ficando cada vez mais nítidas e, com isso, dúvidas e inquietações surgiram como os primeiros contrastes. Numa camada de tinta mais grossa, fui fundindo as fronteiras entre os matizes, controlando os tons, as cores, trazendo devagar as formas, as idéias e teorias para fora, compondo-as entre si, estabelecendo as áreas de predomínio, compondo com a variedade, definindo o que é figura e o que é fundo, para que formassem um todo, para que eu pudesse representar uma unidade (fig. 14) o todo em que se unem os detalhes, o meu retrato de artista educadora.
  • 35. 24 FIGURA 14 – ESBOÇO EM PASTEL SECO A expressão que buscava para o quadro vinha carregada de uma intenção que nasceu lá na imagem inicial nas minhas dúvidas em relação aos meus saberes. Há sempre uma intenção7 no trabalho do artista, o desejo de transmitir uma mensagem. No pulsar do processo de criação há o movimento de introspecção durante a feitura da obra e o da extroversão, o momento de 7 “Daí podemos falar da “intencionalidade” da ação humana. Mais do que um simples ato proposital, o ato intencional pressupõe existir uma mobilização interior, não necessariamente consciente, que é orientada para determinada finalidade antes mesmo de existir a situação concreta para a qual a ação seja solicitada. É uma mobilização latente seletiva. Assim as circunstâncias em tudo hipotéticas podem repentinamente ser percebidas interligando-se na imaginação e propondo a solução para um problema concebido. Representariam modos de ação mental a dirigir o agir físico. O ato criador não nos parece existir antes ou fora do ato intencional, nem haveria condições, fora da intencionalidade, de se avaliar situações novas ou buscar novas coerências. Em toda criação humana, no entanto revelam-se certos critérios que foram elaborados pelo indivíduo através de escolhas e alternativas.” (OSTROWER, 1977, p. 10-11)
  • 36. 25 comunicar-se com o outro. O momento da pesquisa em que devia situar o lugar de onde falo e também definir a quem dirijo a minha fala. Durante essa fase, encontrei um eco muito importante no verbete sobre o olhar de Roberta Galasso NARDI (2001, p. 219), que me incentivou a seguir em frente e que justificou a idéia de elaborar essa metáfora inicial com o objetivo de revelar os movimentos do meu trabalho que se situa numa região fronteiriça, na intersecção entre a arte e a ciência, em que meu eu encontra outros “eus” no elemento comum do ato de criar8: O que move um artista expressar-se por meio da arte é um desejo? Como se dá o movimento dialético na relação da obra, pintor, público, partindo do pressuposto de que a transformação do olhar releva quem olha e também quem é olhado. Por analogia, se pudéssemos olhar a trajetória da mente do pintor na concretude de seus sonhos. É interessante perceber que poucas transformações ocorrem, que a imagem inicial mantém-se quase intacta, apesar das aparências. Segundo Picasso, um quadro não é idealizado e fixado; pelo contrário, segue a mobilidade do pensamento. Ao ser terminado pode mudar, de acordo com o estado daquele que o observa; ele vive sua vida da mesma forma que um ser humano e sofre mudanças que o cotidiano nos impõe(...). Isso é natural, visto que um quadro vive somente para aquele que observa. No início de um quadro encontram-se freqüentemente coisas belas. Devemos nos defender delas, destruir o quadro, refazê-lo diversas vezes. A cada destruição de uma bela descoberta, o artista não suprime verdadeiramente, mas transforma, condensa, deixando-a mais substancial. (NARDI, 2001, p. 220-221) Desta forma, assim como faço num trabalho plástico, fui elaborando minha pesquisa minuciosamente, fazendo e refazendo, até que saltasse a imagem pronta no olho (fig. 15) revelando, na configuração final, em primeiro plano a artista/educadora, em segundo plano minha trajetória e, no plano de fundo, o contexto em que existo e construo meu fazer. Meu ser e meu universo existencial congelados numa imagem preliminar, para serem observados em seu aspecto estático e global num primeiro momento, para depois, iniciar um 8 “As potencialidades e os processos criativos não se restringem, porém, à arte. Em nossa época, as artes são vistas como área privilegiada do fazer humano, onde ao indivíduo parece facultada uma liberdade de ação em amplitude emocional e intelectual inexistente nos outros campos de atividade humana, e unicamente o trabalho artístico é qualificado de criativo. Não nos parece correta essa visão de criatividade. O criar só pode ser visto num sentido global, como um agir integrado em um viver humano. De fato criar e viver se interligam. Criar é, basicamente, formar. É poder dar forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, esse “ novo”, de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar.” (OSTROWER, 1978).
  • 37. 26 percurso do olhar pelos detalhes e seus dinamismos. FIGURA 15 – COMPOSIÇÃO FINAL Aos poucos fui resgatando9 os fatos desta trajetória para que pudesse observar e analisar os detalhes da minha formação e da minha prática em sala de aula, desocultando dados que me ajudassem a entender como integrei a dança aos meus outros aspectos na composição do todo, do conjunto dos meus saberes e fazeres e como isso tem participado do meu movimento pela vida; como isso influi no meu destino, nos meus atos e suas conseqüências e para onde isto me projeta, no exercício da minha profissão. Os textos/movimento seguem a ordem da linha de tempo representada pelo sári e nesta ordem, portanto, se definem os temas e títulos de cada ato/capítulo. 9 “O termo resgate é um substantivo derivado, regressivo do verbo resgatar, que significa livrar de cativeiro, de seqüestro, etc., a troco de dinheiro ou de outro valor e também retomar e recuperar. (QUELUZ, 2001, pg.127)
  • 38. 27 Os temas que dão origem aos movimentos são os primeiros desafios que o coreógrafo enfrenta na criação coreográfica. A escolha da música para a coreografia/escrita “A música em relação à criatividade, tem características próprias, decorrentes de sua peculiar localização dentro da Arte, pois esta se divide em duas tríades principais e independentes: a tríade das artes do espaço ou da beleza imóvel, e a tríade das artes do tempo, ou da beleza em movimento; a primeira compreende a arquitetura, a pintura, a plástica; a segunda compreende as artes que os gregos denominavam de “musicais”, isto é, a música propriamente dita (vocal e instrumental), a poesia, a esta escultura viva, intermediária entre os dois grupos:a dança.” (COMBARIEU, 1953) Feitas as escolhas formais e estéticas para o trabalho, a música era a dimensão que faltava para completar a composição da minha coreografia/escrita. Nesta coreografia/escrita retomo o primeiro tema gerador deste trabalho que é a interdisciplinaridade, que considero o tema musical que escolhi para esta dança. Como a música numa dança, a interdisciplinaridade permeia todo o trabalho. Desde a infância a dança faz parte da minha vida, seja pela liberdade de brincar, seja por uma cultura familiar, ou pelo encantamento que me desperta o seu fazer. Dança que entendo como celebração e linguagem. Linguagem para aquém da palavra: as danças dos pássaros demonstram. Linguagem para além da palavra: porque onde as palavras já não bastam, o homem apela para a dança. O que é essa febre, capaz de apoderar-se de uma criatura e de agitá-la até o frenesi, senão a manifestação, muitas vezes explosiva, do Instinto da Vida, que só aspira rejeitar toda a dualidade do temporal pra reencontrar, de um salto, a unidade primeira, em que corpos e almas, criador e criação, visível e invisível se encontram e se soldam, fora do tempo, num só êxtase. A dança clama pela identificação com o imperecível; celebra-o . Tais são as danças principiativas, todas as danças qualificadas como sagradas. Mas tais são, ainda, na vida dita profana, todas as danças, populares ou eruditas, elaboradas ou de improvisação, individuais ou coletivas, as quais, em maior ou menos grau, buscam a libertação no êxtase, quer ela se limite ao corpo, quer seja mais sublimada – na medida em que se admita que haja graus, modos e medidas no êxtase. (CHEVALIER, 2001) Muito cedo conheci a dança nas reuniões familiares na casa de minha avó materna, onde as tradições culturais portuguesas eram cultuadas nas
  • 39. 28 cantorias e nas danças populares. Aprendi nessas reuniões, com meus tios e primos, a dançar o “vira”10 e a fazer pequenas apresentações e encenações teatrais, improvisadas ali na hora mesmo. Minha mãe, por sua vez, continuou com estas tradições na nossa casa, promovendo sempre reuniões alegres e barulhentas, com muita música e danças, em que os amigos iam se agregando quando, então, podíamos compartilhar as diferentes tradições nessa mistura que caracteriza a diversidade cultural do povo brasileiro. Não raro podíamos também flagrar meus pais dançando habilmente o foxtrot11 na sala de estar; “pés-de-valsa” confessos, generosamente nos ensinavam também a rodopiar pela sala como Fred Astaire e Ginger Rogers, como nos musicais do cinema. Assim sendo, a dança tornou-se para mim sinônimo de alegria e comunhão. Sempre muito atentos a nossa formação, meus pais estimularam o desenvolvimento de nossas aptidões artísticas, nos proporcionando cursos de pintura, desenho, dança, teatro e tudo o mais que pudesse nos interessar. Foi assim que, aos oito anos, tive meu encontro com o balé que deflagrou um processo que por muito tempo entendi como de experiências muito fragmentadas, isoladas entre si; concepção esta que sempre me fez muito insegura em relação à validade deste saber sobre a dança, que se fez na maior parte fora do ensino formal, fora da escola ou da universidade. Dedico este momento de meu trabalho a explicitar minha aproximação com a interdisciplinaridade, com o intuito de mostrar os movimentos que fiz para me apropriar dela, para aprender com ela a trabalhar e, dessa forma, compreender o ensino/aprendizagem em arte. Revisito minha jornada, exercitando um novo olhar um olhar interdisciplinar. 10 “O Vira é uma das danças mais antigas de Portugal, e é particularmente popular no noroeste. O nome da dança deriva do verbo virar, uma referência a um dos seus movimentos mais característicos. Em 6/8, o vira é normalmente acompanhado por um repertório vocal em forma estrófica, com ou sem refrão. Existem inúmeras variantes do vira. Em algumas execuções, o cantor solo "manda" os dançarinos virar gritando a palavra "virou", entre algumas das quadras. Os textos das modas que acompanham o vira focam aspectos da vida rural, incluindo o amor, o namoro, o casamento e a emigração.” (CASTELO-BRANCO, 2002) 11 Dança americana de salão de par, em compasso binário e ritmo sincopado, ou em compasso quaternário, com passos vagarosos e corridos, e que pode ter andamento rápido ou lento. Criado em 1913, em Nova York (EUA), pelo ator Harry Fox, um apaixonado pela dança, teve seu auge, no entanto, nos anos 30 e 40, com os musicais da Broadway, em que se destacaram os célebres dançarinos Fred Astaire e Ginger Rogers”. (NUNES, 2002)
  • 40. 29 Encontrei no verbete sobre o olhar, no Dicionário em construção, subsídios importantes que muito ajudaram a compreender melhor essa metáfora e apurar meu olhar. Dessas leituras quero enfatizar aqui um trecho que configura o olhar que utilizarei a partir de então: “Esse é o olhar interdisciplinar. Um olhar de dentro para fora e de fora para dentro, para os lados, para os outros. Um olhar desvenda os olhos e vigilante, deseja mais do que lhe é dado ver. Um olhar que transcende as regras e as disciplinas, olhar que acredita que só existe o mundo da ordem para quem nunca se dispôs a olhar! Um olhar inflado de desejo de querer mais, de querer melhor, um olhar que recusa a cegueira da consciência.” (GAETA, 2001, p. 223) Olhar o que não se mostra e alcançar o que ainda não se consegue exigiu de mim uma nova atitude como aprendiz; aprender com minha própria experiência, pesquisando e, conforme Ivani FAZENDA (2001), muito mais que acreditar que a interdisciplinaridade se aprende praticando ou vivendo, os estudos mostram que uma sólida formação para a interdisciplinaridade encontra-se acoplada às dimensões advindas de sua prática em situação real e contextualizada. Na condição de “eterna estudante de arte” atingi um estágio no processo em que preciso parar, olhar para a imagem composta e enxergar o todo de uma coisa que fiz por partes. Mesmo sabendo que, assim como na arte, na interdisciplinaridade é possível planejar e imaginar, porém é impossível prever o que será produzido e em que quantidade ou intensidade, preciso arriscar-me a me envolver neste imenso emaranhado de fios a fim de desvendar os aspectos que, para mim, permanecem ocultos. Quero correr o risco de abrir, diante de mim, um panorama novo de possibilidades para um novo trabalho, um novo processo de criação, uma nova prática pedagógica, mesmo que isso signifique rever posições sedimentadas. Trabalho com os ecos da minha memória numa escuta sensível de uma música não audível aos ouvidos mas do coração, por que é a música com a
  • 41. 30 qual eu dancei uma vida e que ao capturá-la na sua interdisciplinaridade, escrevo dançando. Iniciei este resgate12, retomando minha formação em dança sob esta nova escuta. Minha formação inicial de bailarina deu-se numa escola livre de ballet clássico no interior de São Paulo, que interrompi quando entrei em contato com a dança moderna e a contemporânea e, mais tarde, juntei a isso inúmeros cursos e oficinas que escolhi para compor minha formação, já que considerei que a escola clássica privilegiava a técnica, excluía as contribuições de outras formas de dança e do teatro, considerando-as prejudiciais à técnica clássica. Isso me fez compreender que se orientasse minha pesquisa numa visão disciplinar, com certeza minha formação pareceria um conjunto de fragmentos desconexos que não corresponderiam àquilo que, tradicionalmente, se entende como o perfil convencional de uma bailarina; não encontraria o eixo do meu trabalho, uma vez que minha formação não seguiu o curso normal concebido para a formação do profissional de dança13. Ao inverter o foco para dentro, para o meu interior, o que antes via como fragmentos, reconheci como partes de um tecido. Com isso vislumbrei a possibilidade de, afinal, enxergar este todo e reconhecer nele um outro perfil de bailarina que se forma. Encontrei em GARAUDY (1980) um parceiro para compreender este novo perfil de bailarino, pois ele concebe a dança como pedagogia do entusiasmo que tem uma contribuição importante na construção de uma sociedade que privilegie uma forma de existência que traga um sentido mais amplo à vida humana. Uma existência que não pode ser apenas, comer, beber, trabalhar, comprar, dormir. Uma existência em que haja lugar para o sentir, para o ser, para o pensar, para o imaginar, para o sonhar, para o amar, para a paixão, para a compaixão, para a igualdade, para a diferença, para a liberdade, para a justiça e para a felicidade. Tenho nestas constatações as primeiras pistas que indicam o sentido do caminho que percorri e o que devo seguir. 12 “O termo resgate é um substantivo derivado, regressivo do verbo resgatar, que significa livrar de cativeiro, de seqüestro, etc, a troco de dinheiro ou de outro valor e também retomar, recuperar.” (QUELUZ, 2000, p. 127) 13 Numa escola de ballet um curso tem a duração de oito anos e, mais recentemente a formação do profissional de dança se faz em cursos universitários de quatro anos, numa seqüência de conteúdos cumulativos e progressivos.
  • 42. 31 Pistas que Ivani FAZENDA (2001) chama de vestígios, que se apresentam não como verdades acabadas, mas como lampejos de verdade. Cabendo a mim, como aluna/pesquisadora interdisciplinar, decifrar e reordenar esses lampejos de verdade para intuir o que seria a verdade. Refletindo a respeito dos motivos que me levaram a essa postura de isolamento, no que toca meu aprendizado em dança e também em relação a minha formação como professora, vejo que eles residem na minha relação com o ensino formal. Nesse momento é oportuno aceitar o convite de Regina BOCHNIAK (1998) em seu livro Questionar o conhecimento, para desenhar cenas para ilustrar reflexões e a questionar tudo o que vivi dentro e fora da instituição de ensino. Em minhas cenas, o tema central são as dicotomias, o cenário é a maneira como as escolas são organizadas, em séries e graus de acordo com as fases do desenvolvimento da criança, seu sistema de avaliação por resultados. Como protagonista, eu estudante, vivendo um conflito em que, apesar de ser uma “aluna nota dez”, considerada brilhante, precoce, vive com uma sensação de desajustamento, a sensação de que “não aprendo direito” as disciplinas que são consideradas as mais importantes (matemática, física, química, biologia, gramática) por que concentro minha energia em meus interesses que são outros (arte, filosofia, música, história, literatura, religião). Tomando como referência os critérios de avaliação aos quais fui submetida na escola e nos cursos de dança e comparando-me à maioria dos colegas, muitas coisas no meu processo não aconteceram na "hora certa". Etapas foram puladas, outras levaram muito mais tempo que o previsto para acontecerem, levando-me a me descobrir diferente dos outros. Uma diferença que a escola como é, onde o critério predominante é o da homogeneidade (BOCHNIAK, 1998), não me ajudou a elaborar criativamente, gerando, no meu caso, um solitário xamã14 sem tribo. 14 “ xamã . [Do tungue2 , pelo russo, pelo ingl. shaman e/ou pelo fr. chaman, poss.] S. 2 g. Antrop. Etnol. 1. Entre certos povos asiáticos (Sibéria), espécie de sacerdote ou médico feiticeiro (q. v.), que atua como curandeiro e adivinho. 2. P. ext. Em diversos povos e sociedades, especialista a que se atribui a função e o poder, de natureza ritual mágico-religiosa, de recorrer a forças ou entidades sobrenaturais para realizar curas, adivinhação, exorcismo, encantamentos, etc., e cuja atuação pode ou não envolver um estado de transe. [Não há, na antropologia, consenso geral quanto à diferenciação precisa entre xamã, feiticeiro e sacerdote. Costuma-se empregar o termo xamã (assim
  • 43. 32 Esta imagem resultante do ato de desenhar uma cena me coloca diante de uma das questões da interdisciplinaridade, a da ambigüidade, mais especificamente, solidão/desejo de parceria. Por que esta solidão me levou a uma longa peregrinação em busca de uma tribo onde pudesse me estabelecer, com a qual me identificasse, em que minha linguagem fosse compreendida, encontrando assim meus iguais. No entanto, para poder reconhecê-los deveria primeiro reconhecer-me. Compreendo agora por que, sem explicação, ou memória tangível, a identidade15 tem sido o mote de minha busca na existência. Neste processo de transformação de ator para autor, usando o recurso do resgate da memória retida, ativando-a, relembrando fatos, histórias particulares, épocas, posso proceder a análise e a projeção dos fatos, podendo, assim, recuperar a origem de meu projeto de vida. Fortalecendo, assim, a busca de minha identidade pessoal e profissional, minha atitude primeira, minha marca registrada. Porém, meu maior equívoco foi pensar que isso podia se fazer independentemente de um grupo. Esta constatação me leva a um exercício de me defrontar com uma outra ambigüidade, a do desapego/entrega dessa atitude prepotente. Agora sei que parceria é categoria maior da interdisciplinaridade e que, sem a parceria, o conceito de identidade fica incompleto. Aprofundando um pouco mais essas idéias, o que a interdisciplinaridade me mostrou é que, como sempre suspeitei, identidade não “nasce” pronta e acabada. Ela é construída passo a passo, configurando-se num projeto individual de trabalho e de vida que nunca pode ser dissociado de um projeto maior, o do grupo. “Identidade como categoria da interdisciplinaridade que pode ser classificada como xamanismo [q. v.]) no contexto dos povos asiáticos setentrionais (inclusive os esquimós) e ameríndios, em que esse tipo de especialista tem papel social de destaque.] “ (FERREIRA, 1999, p. 2094) 15 “identidade . [Do lat. tard. identitate.] S. f. 1. Qualidade de idêntico: Há entre as concepções dos dois perfeita identidade. 2. Conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo, defeitos físicos, impressões digitais, etc. 3. O aspecto coletivo de um conjunto de características pelas quais algo é definitivamente reconhecível, ou conhecido: estabelecer a identidade de peças tombadas. 4. Cédula de identidade. 5. Álg. Mod. Elemento identidade. 6. Filos. Qualidade do que é o mesmo (q. v.). [Cf., nesta acepç., alteridade.] 7. Mat. Relação de igualdade válida para todos os valores das variáveis envolvidas. Identidade visual. 1. Personalidade visual de empresa, resultante do efeito iterativo das características comuns de suas imagens visuais. 2. Conjunto de elementos gráfico-visuais padronizados (logotipo, uniformes, embalagens, papéis de correspondência, etc.) que estabelece essa personalidade” (FERREIRA, 1999, p. 1071)
  • 44. 33 como individual ou coletiva, real ou virtual ou todas ao mesmo tempo convivendo, colaborando, competindo, se consumindo ou se multiplicando. Tratar sobre identidade é buscar dentro e fora da gente; é desvelar, desnudar; é deixar cair o véu que nos cobre para nos conhecermos em nós mesmos e nos conhecermos nos outros. Saber onde eu começo e onde termino, onde interajo, onde me separo, onde acredito ou nego. (...) Para me identificar com alguma coisa ou com alguém, não preciso necessariamente estar junto desta pessoa, a identidade também é criada ao redor de idéias e objetivos comuns.” (GUIOTI, 2001, p. 50) Ao identificar-me estabeleço parcerias, que levadas ao nível da intersubjetividade passam a ser muito mais que uma questão de troca, pois o segredo está na intenção da troca, na busca comum da transcendência.” (FAZENDA, 2001, p. 22) Assim sendo, descobri que, na verdade, nunca estive sozinha, pois tenho comigo parceiros que trago para este trabalho para reunirem-se aos novos que agora encontro. Com essa descoberta foi deflagrado um processo transformador, onde vivo, na interdisciplinaridade, a experiência da morte de uma identidade fundada essencialmente num individualismo egocêntrico, para renascer pesquisadora interdisciplinar, formada por várias consciências, um ser habitado por muitos e diferentes aspectos, em comunhão com outros tantos múltiplos e diversos, parceiros desta vida, mestres, professores, alunos. O trecho abaixo retirado do livro Shiva e Dionísio: a religião da natureza e do Eros, de Alain DANIÉLOU (1989, p. 157), me ajuda a expressar como me sinto : “A individualidade humana como a de todo ser é formada por um nó, um ponto onde estão ligados diversos elementos tomados da matéria universal, da consciência universal, do intelecto universal, que cercam um fragmento da alma universal indivisível, como o espaço fechado na urna que não é distinto do espaço universal. Na morte o vaso rompe-se, o nó desfaz-se e cada um dos elementos que constituem o ser humano retorna ao fundo comum, para novamente ser utilizado em outros seres.(...) À sua fonte retornam os quinze constituintes do corpo e aos seus respectivos deuses todas as divindades dos sentidos. As ações, assim como a alma feita de inteligência, tudo se unifica com o Imortal supremo. Como os rios que correm perdem-se no mar, abandonando nomes e formas, do mesmo modo a alma iluminada, livre de seu nome e de sua forma, funde-se ao Homem universal feito de luz, que é mais alto que o mais alto. (Mundaka Upanishad, III, 2, 7-8). Concluo esta reflexão com esta imagem do Gayatri (fig 16), que fotografei na minha primeira viagem à Índia, no Museu de História das Religiões de Prashanti Nilayan (O templo da paz celestial).
  • 45. 34 FIGURA 16 – GAYATRI (ÍNDIA 1998) Uma metáfora visual que uso como recurso para melhor explicar e compreender interdisciplinaridade, metáfora esta resultante do encontro da minha identidade de artista/professora com a da pesquisadora. O Gayatri é uma representação da Grande Mãe Universal onde se reúnem todas as deusas femininas do panteão hindu (Lakshimi, Sarasvati, Durga, Kali) e todos os seus atributos. É interessante notar em seus detalhes que, ao contrário do que poderia se esperar de uma síntese visual, onde geralmente as particularidades e individualidades são anuladas numa imagem única, esta escultura reúne as individualidades, compondo uma unidade. Tanto no significado como na estruturação da forma visual, encontro uma síntese para todos os itens que explorei até aqui sobre interdisciplinaridade. Encerro este movimento de minha pesquisa fazendo minhas as palavras de Ednilson Aparecido Guioti : Ao ler estas linhas espero que meu leitor lance sobre elas um olhar profundo tentando buscar a essência, um significado maior. Poderá ou não identificar-se com o que está escrito. Se esta identidade acontecer, posso começar a fazer parte de você, e assim como para escrevê-lo passei a ser muitos outros que li. (GUIOTI, 2001, p. 51) : Convidando a todos para dançarem comigo os atos desta coreografia/escrita.
  • 46. 35 4 Ato I: infância FIGURA 17 – MENINA DANÇANDO (Capa National Geographic Magazine , v.155, n. 6, june 1979) Protagoniza o tema deste ato uma imagem de uma menina dançando (fig. 17) que um dia encontrei na capa de uma revista. Meu apego a esta imagem se explica pela sensação que senti na época , de estar me olhando num espelho. Emoldurando essa imagem o trecho do sári que representa este período da minha vida, que pintei sobre um fundo cor-de-rosa, que é a cor que tinge as memórias da minha infância com amorosidade, alegria e ingenuidade. Sobre este fundo, a origem das linhas que vão percorrer toda minha vida, a dança em carmim, a formação escolar em verde limão e as artes plásticas em azul marinho. Nestas linhas localizo o ponto onde começou a germinar a dançarina e a professora de arte. Para poder falar da minha formação de artista e professora e da dança, como eixo dessa formação, resgato como aprendi a dançar, ou de como não
  • 47. 36 aprendi a dançar, iniciando a minha investigação pelo resgate de como se deu a origem deste desejo de aprender a dançar. Identifico esse momento com o ofício de brincar, característica base da infância. Acredito que as crianças, independentemente do nível de consciência que tenham, aprendem a desenvolver, selecionar e organizar suas qualidades de esforço16 por meio das brincadeiras. Ao brincarem, simulam todos os tipos de ações que lembram, de maneira muito marcante,as ações reais (ataque, defesa, tocaia, ardil, vôo, medo, coragem) que terão necessidade de praticar, quando tiverem que se manter autonomamente no futuro.” (LABAN, 1978) Concordo com Laban quando diz que nas crianças denominamos tal atitude de brinquedo, nos indivíduos adultos, dança e representação. Esclarecendo que, também conforme Laban, nada nos impediria de rotular essas brincadeiras de atuação dramática, não estivessem as palavras atuação e drama reservadas para a exibição consciente do homem, no palco, de situações da vida. Há também uma diferença aí, no sentido de que a representação no palco exige um expectador a quem possa o ator se dirigir, ao passo que, ao brincarem, as crianças não têm qualquer preocupação com a presença ou não de platéia. O brinquedo da criança, desta maneira, aproxima- se mais da dança que da representação posto que a dança nem sempre exige público. Se as crianças e os adultos dançam, quer dizer, se executam certas seqüências de combinações de esforço para seu próprio prazer, não é necessário audiência. Na memória das minhas brincadeiras, encontro as raízes da minha dança na descoberta da capacidade de domínio do movimento, das possibilidades de mudar de atitudes em função das necessidades experimentadas. Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva e esse ponto de vista muda conforme o lugar que aqui ocupo; e esse mesmo lugar também muda, segundo as relações que mantenho com outros meios. A sucessão de lembranças, mesmo daquelas que são mais pessoais, explica-se sempre pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos meios coletivos, isto é, em definitivo, pelas transformações desses meios, cada um tomado à parte em seu conjunto.” (HALBWACHS, 1990, p. 51)
  • 48. 37 Por uma questão de sobrevivência, a memória se encarrega de ativar e desativar conexões automaticamente. A informação que se mantém é a que consegue realizar o maior número de interações com o já aprendido,o que já foi estruturalmente assimilado e faz parte do acervo de conhecimentos da pessoa.” (Kenski, 1998, (Atrator Estranho), 30, p.40) Lembrando dos quintais, das ruas, dos pátios, das quadras, dos campos, das praias, das casas da minha infância, percebo o imenso exercício de exploração e domínio do espaço, da discriminação entre o meu espaço pessoal e o espaço global e o compartilhamento destes espaços com o outro. Brincando e adequando meus movimentos aos espaços em que as brincadeiras ocorriam, fui percebendo a minha dimensão corporal em relação às dimensões circundantes e a seleção dos movimentos realizáveis nas diferentes situações espaciais. Vivendo nos quintais a aventura do contato com as árvores o exercício de subir nelas, conhecer sua estrutura, a força de seus galhos em relação ao meu peso, a força necessária para agarrar-me ao tronco para não cair, fui adquirindo a percepção da força da gravidade. Por ter que encontrar a reentrância onde apoiar os pés, moldando o corpo à arvore fui desenvolvendo a flexibilidade. Pude descobrir o prazer de encontrar, nos galhos mais altos, os frutos mais doces e, lá do alto apreciar a paisagem saboreando a fruta madura do sol, assim, experimentei o sentimento de vitória. Aprendendo a compartilhar o espaço com outros habitantes da natureza, os insetos, e, descobrindo como vivem outras formas de vida, perseguindo as formigas até a sua toca, disputando a fruta com as abelhas, escapando das queimaduras das taturanas, observando os brotos, as flores, as raízes penetrando a terra, e, aprendendo com meu pai que é preciso regá-las com a água nos dias quentes de verão e nos períodos de seca, aprendi a acompanhar e conhecer o ciclo vital das plantas. Descobri um mundo fantástico em que me sentia integrada, participante, esticando-me, encolhendo, saltando, arrastando, rolando acompanhando as formas orgânicas da natureza circundante; fui adquirindo agilidade, flexibilidade, precisão e destreza. 16 Impulsos internos a partir dos quais se origina o movimento. O componente constituinte das diferenças nas qualidades de esforço resulta de uma atitude interior (consciente ou inconsciente) relativas aos seguintes fatores de movimento: Peso, Espaço, Tempo, Fluência.
  • 49. 38 Nos amplos espaços descobri que a locomoção pode ser mais que apenas andar, pode-se correr, pular, saltar, girar. A experiência da força do vigor, do fôlego, da respiração, da liberdade, das conquistas em relação ao desafio do equilíbrio, a polaridade da queda e a recuperação, podem sintetizar a idéia da aprendizagem de sentir-se vivo. É muito importante a liberdade para brincar em diferentes espaços, pois a percepção das dimensões do espaço, adicionada aos diferentes níveis de movimento que estes proporcionam são fundamentais para a estruturação da postura ereta e do equilíbrio. Brincando com/em superfícies regulares, irregulares, íngremes, planas, duras, macias, no contato da pele com os elementos, desenvolvi a percepção do quente, do frio, do áspero, do liso, do escorregadio. Por fim, vivendo a sensação da imersão na água, sentindo o corpo flutuando nas ondas do mar, mergulhando e experimentando a sensação de equilibrar-se sem a referência de uma superfície de apoio, aprendi a respeitar uma coisa que é infinitamente mais forte que nós, o sentimento da pequenez da dimensão humana em relação à dimensão do mundo. A princípio fui percebendo o corpo como um todo, em sua força, agilidade flexibilidade e equilíbrio e, depois, conforme os machucados foram aparecendo, os joelhos ralados, os hematomas, os arranhões, as dores nas articulações aos poucos comecei a entender como funciona o esquema corporal, sua estrutura e seus limites. Aprendi que se engolir muita água, a gente pode se afogar que, se correr demais, há uma dor muito forte do lado; que não existe vida sem respiração, que a cabeça deve ser sempre protegida, senão pode-se perder os sentidos numa batida. Meu corpo foi, durante toda a minha infância, meu brinquedo favorito, aquele que mais prazer proporcionou. Durante o dia, explorava suas possibilidades ao máximo e, à noitinha, depois do banho, gostava de observar as marcas que havia adquirido naquele dia, cuidando dos ferimentos eu mesma, pois sabia como me tocar para não sentir dor e o ardor do merthiolate. O mais interessante foi descobrir a capacidade de regeneração que o corpo tem, observando os ferimentos, desde o momento em que estão sangrando, até a formação de uma casca e, por fim, quando a casca começa a se
  • 50. 39 desprender e revelar a pele reconstituída por baixo, ou então, a evolução dos hematomas e suas várias colorações, desde o roxo até o amarelo claro. Saber identificar os diferentes tipos de dores, dos ossos, dos músculos, da pele, dos órgãos, me trazia segurança por entender o que estava acontecendo comigo. Da mesma forma, o conhecimento da duração da dor e o tempo necessário para regeneração daquela parte machucada ensinaram-me o que eu poderia fazer, ou não, enquanto estivesse em recuperação; aprendi a mover-me com cuidado. Percebi que quanto mais concentração e domínio das ações conseguia, desenvolvia mais liberdade e segurança para brincar e satisfazer minha imaginação, sem me machucar. O pior castigo era não poder brincar e por isso, devia me cuidar para não me machucar demais. Devia respeitar os limites, na medida do possível, e enfrentar com resignação os períodos de repouso impostos pelas doenças da infância, como o sarampo, a catapora, que eram situações sobre as quais eu não tinha o menor controle e que me faziam perceber o quanto ainda dependia dos adultos para me cuidar. Enfim, nas brincadeiras, pude experimentar experiências de uma riqueza de movimentos e sensações que por serem vividas intensamente, ficaram impregnadas em mim e formaram um alicerce para minha maneira de ser e estar no mundo. As brincadeiras de rua, de roda, de casinha, de boneca, aquelas em que fazia parte a "massinha", o desenho, as brincadeiras de subir em árvores, as de misturar barro no quintal, patinar, andar de bicicleta, pular corda, amarelinha, despertaram em mim a essência do meu dançar. Nessas brincadeiras também aprendi a me relacionar e a entrar em contato com as minhas emoções. Sentia um desejo constante de aprender, de experimentar novas emoções, novos desafios pelo prazer da superação. Na infância ainda não existe o medo do impulso de sair correndo e perder-se, porque o aprendizado de se perder-se é achar-se. Quem nunca se perdeu num bosque quando era criança nunca vai saber o que se passa para se achar o caminho de volta. Imagino que quase todo mundo tem uma história de perder-se na infância, para contar. Uma grande aventura! Aprendi a arriscar-
  • 51. 40 me, a ousar e, aos poucos fui aprendendo, também, a dosar meus impulsos, quase a ponto de não reprimi-los. Enquanto estava brincando sozinha, tudo era muito fácil; eu no meu mundo particular, criava minhas próprias regras, seguindo meus desejos, inquietações, curiosidades e fantasias, exercitando o outro aspecto de me aventurar, a aventura da imaginação. Nas brincadeiras sociais, experimentei novos desafios, nas brincadeiras de roda as meninas mais velhas ensinavam as cantigas e coreografias que, depois de aprendidas após várias repetições e erros, proporcionavam o enorme prazer de pertencer e estar em sintonia com um grupo, num processo que envolve também uma identificação cultural. As rodas, as amarelinhas e as cordas abriram para mim um universo de movimentos mais sofisticados, como o saltar numa perna só, saltar e girar ao mesmo tempo, controlar a distância dos saltos, o equilíbrio numa perna só, o skip (saltitar), o galope, o agachar, o congelamento da ação. Crianças ensinando crianças. Há um tipo muito especial de brincadeira, que chamo de brincadeiras dramatizadas, em que faz parte também a representação, nos momentos em que se tem que ir ao centro da roda recitar versos ou pagar uma prenda. Outras exigiam também variações de ritmos e velocidades conforme a história; com essas brincadeiras aprendi a conquistar meu espaço no grupo. E havia as brincadeiras de rua em que participavam as meninas e os meninos, em que se percebia, em primeiro lugar, a supremacia física dos meninos sobre as meninas; os meninos sempre mais fortes e velozes eram um constante desafio; com eles aprendi a força, o impulso e a explosão no movimento. Além dessas, uma das coisas mais importantes das brincadeiras de pegar foi aprender a “dar bailinho” no pegador, o que significa driblar o oponente com jogos do corpo, como forma de superar a falta de velocidade, de desenvolver os reflexos e liberar os instintos. Aprendi com isso a observar a perceber o outro pelos movimentos e reações. Brincar era também um exercício intenso de decorar, entender e dominar regras, regras e mais regras, sem contar as novas que eram criadas durante a brincadeira, cada uma com seu conjunto próprio de condições e que, ao mesmo tempo, variavam de grupo para grupo, de acordo com a cultura
  • 52. 41 local e cuja compreensão dependia a possibilidade de participar das atividades de que tanto gostava. Nessas brincadeiras sociais, além dos movimentos, tantas coisas foram aprendidas, como o convívio com as diferenças, a lealdade, a derrota e a vitória, os confrontos, as comemorações, o espaço do outro e o meu espaço no espaço do grupo, quantas amizades nasceram e quantas foram desfeitas... o amor e o desamor pelo meu semelhante... quantas descobertas... O desafio do movimento e suas diversas modalidades, a habilidade de improvisar diante do inesperado, o contato com os sentimentos, abriu novas possibilidades de expressão para meu espírito inquieto, num corpo em crescimento, cheio de vida e temperamento. Por fim as brincadeiras dramatizadas, mais calmas... as casinhas, as bonecas, as comidinhas, a escolinha, as artes permitiram-me a descoberta e o exercício da capacidade de criar. O momento de aquietar-se para pensar na vida, para exercitar o aprendizado e simbolizar as experiências vividas constitui-se num momento solitário de profunda introspecção e luta interior em busca da tradução perfeita das imagens que emergiam do meu interior, na tentativa de materializar uma idéia que surge como resposta a um problema existencial. A expressão de uma verdade interior como resposta a uma pergunta levou-me aos primeiros contatos com o não saber. Era um momento de estar comigo mesma, de pensar na vida, de me acalmar dos aborrecimentos e tristezas, de elaborar meus projetos, de fazer planos, de estar com meus irmãos e meus amigos mais queridos numa situação menos agitada. Mais uma vez, crianças ensinando crianças. Momentos em que nos ensinávamos uns aos outros uma série de “novidades” que havíamos aprendido. Cada um ensinava as suas melhores habilidades aos outros, como desenhar, modelar, pintar, rodar pião, jogar bolinha de gude, bater figurinhas, jogar saquinhos, contar e representar estórias e, assim aprendendo a trabalhar em grupo, aprendíamos a cumplicidade e o companheirismo.
  • 53. 42 Nessas brincadeiras exercitava-se a possibilidade de refletir sobre a vida e as relações da família, da escola, enfim as relações humanas aconteciam, através do jogo teatral. O jogo teatral permitia a elaboração simbólica dos papéis da mãe, do pai, da professora, assim como a aprender a lidar melhor com as questões que me eram difíceis de compreender, como o medo do escuro o medo da bruxa, o medo dos pesadelos, enfim, o medo do desconhecido! Aprendi que esse tipo de medo estava relacionado com a percepção de uma coisa que apenas se sente, que está presente mas a gente não consegue ver. Brincar, jogar, dramatizar, enfim, poder, numa situação de tensão, escolher o final da história e ainda que se soubesse que o perigo naquela situação era passageiro, podia-se contar com uma frase salvadora:  Não quero mais brincar disso! Esse é o exercício de arriscar-se e salvar-se, da coragem e do recuo. Descobri também que um desenho sempre pode ser refeito, até que se consiga uma versão satisfatória. Com isso pude aprender com o erro, sem ficar paralisada. Essa descoberta foi fundamental para que o repetir, o refazer, o recontar, o errar e o recomeçar em busca do acerto fizessem parte da minha vida, até hoje. Lembro que era capaz de passar dias inteiros brincando no espaço fantástico que havia criado, no mundo do faz-de-conta onde tudo é possível, representando personagens, construindo espaços com panos e brinquedos e o que mais pudesse conseguir na casa para os empreendimentos arquitetônicos das casas, castelos e cabanas em que os objetos mudavam de função e eram ressignificados em razão do tema da brincadeira. Não posso esquecer os figurinos, as roupas da mamãe retiradas às escondidas do guarda roupa para vestir os mais variados personagens, as bonecas e seu teatro e os brinquedos todos. Creio que, por conta de tantas brincadeiras de casinha, por conta dos quintais que me trazem a lembrança de momentos de muita felicidade, vivi os simples divertimentos de criança, com a intensidade de grandes projetos de vida e me projetei mãe, bailarina, nadadora, artista plástica, e tantos personagens mais. E com isso pensei, precisei elaborar sentimentos, viver sensações, imaginar, criar, me expressar. Aprendi a extravasar todo um
  • 54. 43 universo que inundava o meu interior. Lidei com um sentimento de não caber em mim que a felicidade provocava, com uma necessidade de dizer, de trocar, de comunicar, de sensibilizar o outro, de conhecer o igual e o diferente de entender o trânsito entre eles no binômio guerra e paz... presente nas relações humanas desde a mais tenra infância... Desde quando posso lembrar-me tenho o hábito de olhar para dentro e procurar quem sou, como sou e, a cada etapa da vida, encontro sempre um ser que mudou, um ser sempre mutante. Também, por uma razão inexplicável, sei que meu ser mudou porque aprendeu. Se há um lado tangível nesta busca é a consciência e a concretude das coisas aprendidas na escola e na vida, ou na escola da vida. Revisitando essa minha escrita da minha infância posso concluir que as brincadeiras me ensinaram que a vida é mais que comer, dormir, tomar banho, escovar os dentes, limpar as unhas e as orelhas, ir à escola. Identifico nos grandes quintais com pomar, que trazem a lembrança de saltos, giros, gritos de prazer sob o sol da manhã, do repouso no alto da pitangueira, das tardes encolhidas numa cabana de cobertores na cama beliche brincando de navio, esperando a chuva passar, o espaço onde começou a nascer a bailarina. Ainda vive em mim uma criança apaixonada pela vida por seu esplendor, pela paixão pelo movimento e que adora ser feliz e dançar! Que sabe que os melhores momentos da vida são aqueles usados para conhecer-se, que a vida é um eterno descobrir-se, e que é preciso aprender a ser independente para poder ter suas próprias idéias. Aos poucos, ao apossar-me das minhas lembranças da infância e ao cristalizá-las na minha escrita, pude entender que realizei o contínuo exercício de descobrir o caminho do meio para conectar-me ao meu centro, meu núcleo, meu interior e que ganhei, com o relato, a consciência de um tempo vivido. É esta infância sempre viva aqui dentro que me faz bailarina pois, quando dos brinquedos a vida se despiu, restaram todos os movimentos impressos no corpo. A herança deste momento de vida então se torna repertório, experiência de coisa vivida, um saber.
  • 55. 44 Sinto hoje que é, neste trânsito, que ocorre a interdisciplinaridade, sobre a corda bamba da alteridade um eco dos anos 70. Afinal, identifiquei no meu jeito de ser criança um dos aspectos importantes da interdisciplinaridade – as fronteiras. Pelo teatro, saí do real e fui para a fantasia, treinando um olhar e um ouvido sensíveis aos personagens e pela dança, refinei gestos e movimentos até ficar em dúvida, danço eu ou a vida baila comigo? Quem sabe encontro outras pistas na adolescência? 5 Ato II: adolescência FIGURA 18 - NATALIA MAKAROVA Para dançar este ato trago o primeiro modelo de bailarina que conheci, a bailarina clássica 17 (fig. 18) com suas sapatilhas de ponta. A sua imagem diáfana, mágica, que me abriu as portas para o mundo da dança, sobrepõe duas lâminas da pintura, na linha divisória entre a infância/adolescência e projeta-se sobre o início a vida adulta, tentando retratar, desta forma, o período em que foi primeiramente modelo a ser atingido, depois como um modelo a ser 17 Natalia Makarova, bailarina clássica russa , em O lago dos Cisnes (coreografia de Petipa e música de Tchaikovsky) que utilizo aqui para ilustrar o modelo de bailarina que tinha em mente ao iniciar as aulas de balé clássico.
  • 56. 45 negado e, por fim, como um modelo que se tornou referência nas minhas reflexões. Identifica o momento em que aprendi que para ser uma dançarina e que para poder ensinar é preciso pensar a dança, não apenas dançar. Lembro-me que, na adolescência, os brinquedos foram desaparecendo e o ensino formal tomando esse lugar. A escola consumia metade do dia, e a outra metade, as aulas de natação, inglês, balé, pintura, desenho, datilografia, enfim, as aulas daquilo que a escola não ensinava e que os valores familiares consideravam importantes para minha formação. O ensinamento desta estratégia de meus pais foi o de que a escola não dá conta de ensinar tudo o que é preciso saber. Outro dia, conversando com minha mãe sobre isso, perguntei o porquê deste procedimento e ela na sua maneira simples, objetiva e autêntica, serenamente foi me explicando seus motivos: “ Oras, por que eu e seu pai nos preocupávamos em estimular as aptidões artísticas que percebemos em você e seus irmãos, vocês viviam sempre desenhando, sempre envolvidos nas modelagens com massinha que achamos importante proporcionar essa formação a vocês. Também porque, apesar de sabermos que Educação Artística fazia parte do currículo escolar, consideramos que, numa sala de aula havia muita gente para o professor atender e num curso de artes, vocês poderiam ter um atendimento melhor. Assim foi com todas as coisas que os estimulamos a fazer, já que consideramos nos terem sido muito úteis na vida e quisemos que vocês também tivessem as mesmas oportunidades que nós, como a natação, a datilografia, o inglês, corte e costura, etc...” Esta fala de minha mãe me fez recordar certos princípios sobre educação que faziam parte de nossa família. Educação, para meus pais, tinha a função de nos preparar para a vida, para a imprevisibilidade nela contida. Acreditavam numa educação voltada para o ser, não para o ter. Sempre ouvi de meus pais que o importante era ser reconhecido e admirado pelo que se é e não pelo que se tem. Sendo assim concluo que essa preparação para a vida segundo a interpretação deles, “ser alguém” não significava, ser bem sucedido numa profissão ou bem sucedido financeiramente, significava antes, de qualquer coisa, ser feliz e realizado enquanto pessoa, enquanto ser humano. Concluo estar implícita aí a idéia de totalidade, no momento em que havia neles a preocupação com o desenvolvimento de todas as nossas potencialidades. Estavam sempre lendo, atualizando-se sobre psicologia e educação e, às vezes, até nos irritavam com certos psicologismos e análises, que