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2006
                                                                            Jacqueline Freire

A Dança

        O relógio da sala marcou a décima segunda badalada daquela noite quando Marisa
levantou da cama. Não conseguia dormir. Trabalhara durante todo o dia planejando o
casamento de um cliente e sua mente, apesar de cansada, estava repleta de pensamento s.
        Seu esposo, Jorge, não percebeu quando a mulher levantou descalça e saiu a passos
lentos até o jardim. Havia chovido desde o anoitecer e o vento soprava frio. A chuva
cessara, mas deixara uma brisa úmida e todas as plantas do jardim ainda pingavam.
        Marisa, perdida em seus pensamentos sobre a festa, o buquê, as flores, não tinha
controle algum sobre seu corpo. Apenas vagava. Quando seus pés tocaram a grama
molhada sentiu um leve calafrio.
__ Eles estão aqui. – pensou.
        Consciente da presença deles, a mulher começou a dançar. A chuva voltou a cair e
sua camisola colou em seu corpo como se fizesse parte de sua pele. Ela continuou
dançando. A música estava em todo lugar. Não apenas ouvia, como sentia todos os
acordes. Dançava conforme a melodia.
__ Eles estão se aproximando.
        Marisa sorria e continuava dançando. A música ficava mais intensa, mais vibrante, e
ela acompanhava dançando e sorrindo. Fechou os olhos para apreciar melhor aquele sonho
maravilhoso.
        Aos cinqüenta e sete anos nunca presenciara tamanha felicidade. A dança era agora
parte de sua vida. A chuva comandava a música que tocava em seu coração. Não parava de
dançar nem por um segundo. Nem tão pouco sentia-se cansada.
__ Eu não ligo se eles vierem agora.
        A chuva ficou mais forte e a música também. Marisa continuava dançando. Um
filme mudo começou a passar em sua mente. Viu seus pais lhe acompanhando à escola no
seu primeiro dia de aula. A pequena criança com sapatos novos que caminhava com uma
mochila nas costas e uma rosa na mão para entregar à professora.
        Viu sua festa de debutante. O passeio de mãos dadas com o primeiro namorado pelo
parque. A briga que teve com a mãe por chegar tarde depois do baile de primavera. O olhar
triste do velho que morava na esquina de sua casa. O sorriso malicioso de D. Cotinha. Viu
os irmãos lhe empurrando na piscina...
        O filme não parava. A chuva, a música e a dança também não. Apenas mudavam de
intensidade conforme as cenas. Marisa viu o dia em que seu pai faleceu. Logo depois sua
mãe também a deixou. Viu o dia de seu casamento com Jorge. O nascimento dos gêmeos...
A primeira roupinha, o primeiro banho, a primeira festinha deles.
        Seus olhos estavam cheios de lágrimas, mas ela não parava de dançar. Estava feliz.
Como se sentia bem! Sua vida era perfeita até então! O filme agora misturava as cenas
antigas com as novas, num vai e vem que a confundia. Olhou de longe o dia em que viajou
de avião pela primeira vez, cheia de medo e insegurança. Também se sentiu assim quando
se separou de Jorge durante três longos anos.
        O dia em casaram de novo foi um dos mais alegres, assim como o dia em que
Mateus e Maurício se formaram no colégio. Fez um dia lindo de sol quando Mateus passou
em Direito e Maurício em Engenharia. Estavam um pouco apreensivos, é verdade, mas
Marisa se sentia muito orgulhosa.
        Marisa não estava muito feliz no dia do casamento de Maurício. A moça era muito
interesseira. Tinha certeza de que aquele casamento não duraria. E acertara. Não demorou
muito. Foi logo após o casamento da primeira filha. Mas Maurício parecia preparado para
enfrentar aquela situação. Morava sozinho com a filha desde que a mulher o deixara, há
seis anos.


                                                                                           1
2006
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       Mateus era um ótimo juíz. Jorge tinha muito orgulho do filho por ter seguido sua
profissão. Marisa viu rapidamente o dia em que Mateus casou-se com uma amiga da
faculdade. Ela agora era promotora da justiça. Ainda não tinham filhos. Mas Marisa já
havia realizado o sonho de ser avó. Sua neta era um doce, assim como o pai.
       De repente, o filme foi passando bem mais rápido, mas ainda se podia distinguir as
cenas. Em contraponto, a música foi ficando mais lenta, mais triste, assim como a chuva
que foi ficando mais fina, quase um chuvisco.
       Foi nesse momento que Marisa visualizou o dia em que estava sentada numa
poltrona confortável em frente ao médico da família. O doutor tinha um rosto de
preocupação. Não sabia como dar aquela notícia. Marisa tinha câncer.
__ Não me importo se eles vierem agora.
       A música parou. A chuva também. Marisa sentou-se na grama molhada. Os olhos
estavam inchados de tanto chorar. Passou as mãos na cabeça lisa. Os cabelos haviam caído
com a quimioterapia. Como haviam sido difíceis aqueles dois últimos anos! Ela agora
sentia-se muito cansada, como se toda a dor daquele tempo tivesse retornado. Enfrentara
com todas as forças do mundo a bateria de exames, remédios e tratamentos... Mas agora
cansara.
       Não se deixara abater em nenhum momento. Mas a doença também não dera
trégua. Hoje, todo o seu corpo encontrava-se atingido pelo mal grave que tanto a
atormentava. Estava em metástase.
       A doença mudara completamente seu modo de ver a vida. Seus pensamentos, seu
jeito de falar, andar, se vestir. Ninguém nunca é o mesmo depois de um câncer. Era o que
ela sempre dizia quando perguntavam como estava.
       Seus esforços para demonstrar que encontrava-se bem sempre a deixavam cansada.
Mas aparentemente, com exceção da falta de cabelos que ela disfarçava com uma peruca e
lenços das mais diversas cores e estampas, parecia uma pessoa perfeitamente saudável. Se
vestia impecavelmente, falava de maneira doce, alimentava-se de forma saudável, não
perdia tempo com brigas ou discussões fúteis.
       Viajou muito, comprava flores, ouvia música, dançava... Até o último momento.
Aquele momento. Deitada na grama sob a chuva, Marisa agradeceu por sua vida e também
por sua doença, que a fizera mais feliz apesar de tudo. Ela começou a valorizar cada
momento. Os casamentos que organizava nunca tinham sido tão bonitos e caprichados
como os que planejara de dois anos pra cá.
       Foi, deitada na grama molhada, que Marisa despediu-se da vida com o seu melhor
sorriso de agradecimento ao Criador. Aquele momento era único em sua vida. Precisava
aproveitar. Seu coração, repleto de felicidade, parara de bater no seu instante de maior
contemplação à vida.
       Na manhã seguinte, Jorge não pôde conter o choro. A tristeza de ver a mulher inerte
no jardim após uma noite de forte chuva. Mas em seu rosto sorridente estava a felicidade
de deixar o mundo com a missão cumprida. Ele sabia:
__ Os anjos vieram. Ela finalmente descansou.




                                                                                          2

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A Dança

  • 1. 2006 Jacqueline Freire A Dança O relógio da sala marcou a décima segunda badalada daquela noite quando Marisa levantou da cama. Não conseguia dormir. Trabalhara durante todo o dia planejando o casamento de um cliente e sua mente, apesar de cansada, estava repleta de pensamento s. Seu esposo, Jorge, não percebeu quando a mulher levantou descalça e saiu a passos lentos até o jardim. Havia chovido desde o anoitecer e o vento soprava frio. A chuva cessara, mas deixara uma brisa úmida e todas as plantas do jardim ainda pingavam. Marisa, perdida em seus pensamentos sobre a festa, o buquê, as flores, não tinha controle algum sobre seu corpo. Apenas vagava. Quando seus pés tocaram a grama molhada sentiu um leve calafrio. __ Eles estão aqui. – pensou. Consciente da presença deles, a mulher começou a dançar. A chuva voltou a cair e sua camisola colou em seu corpo como se fizesse parte de sua pele. Ela continuou dançando. A música estava em todo lugar. Não apenas ouvia, como sentia todos os acordes. Dançava conforme a melodia. __ Eles estão se aproximando. Marisa sorria e continuava dançando. A música ficava mais intensa, mais vibrante, e ela acompanhava dançando e sorrindo. Fechou os olhos para apreciar melhor aquele sonho maravilhoso. Aos cinqüenta e sete anos nunca presenciara tamanha felicidade. A dança era agora parte de sua vida. A chuva comandava a música que tocava em seu coração. Não parava de dançar nem por um segundo. Nem tão pouco sentia-se cansada. __ Eu não ligo se eles vierem agora. A chuva ficou mais forte e a música também. Marisa continuava dançando. Um filme mudo começou a passar em sua mente. Viu seus pais lhe acompanhando à escola no seu primeiro dia de aula. A pequena criança com sapatos novos que caminhava com uma mochila nas costas e uma rosa na mão para entregar à professora. Viu sua festa de debutante. O passeio de mãos dadas com o primeiro namorado pelo parque. A briga que teve com a mãe por chegar tarde depois do baile de primavera. O olhar triste do velho que morava na esquina de sua casa. O sorriso malicioso de D. Cotinha. Viu os irmãos lhe empurrando na piscina... O filme não parava. A chuva, a música e a dança também não. Apenas mudavam de intensidade conforme as cenas. Marisa viu o dia em que seu pai faleceu. Logo depois sua mãe também a deixou. Viu o dia de seu casamento com Jorge. O nascimento dos gêmeos... A primeira roupinha, o primeiro banho, a primeira festinha deles. Seus olhos estavam cheios de lágrimas, mas ela não parava de dançar. Estava feliz. Como se sentia bem! Sua vida era perfeita até então! O filme agora misturava as cenas antigas com as novas, num vai e vem que a confundia. Olhou de longe o dia em que viajou de avião pela primeira vez, cheia de medo e insegurança. Também se sentiu assim quando se separou de Jorge durante três longos anos. O dia em casaram de novo foi um dos mais alegres, assim como o dia em que Mateus e Maurício se formaram no colégio. Fez um dia lindo de sol quando Mateus passou em Direito e Maurício em Engenharia. Estavam um pouco apreensivos, é verdade, mas Marisa se sentia muito orgulhosa. Marisa não estava muito feliz no dia do casamento de Maurício. A moça era muito interesseira. Tinha certeza de que aquele casamento não duraria. E acertara. Não demorou muito. Foi logo após o casamento da primeira filha. Mas Maurício parecia preparado para enfrentar aquela situação. Morava sozinho com a filha desde que a mulher o deixara, há seis anos. 1
  • 2. 2006 Jacqueline Freire Mateus era um ótimo juíz. Jorge tinha muito orgulho do filho por ter seguido sua profissão. Marisa viu rapidamente o dia em que Mateus casou-se com uma amiga da faculdade. Ela agora era promotora da justiça. Ainda não tinham filhos. Mas Marisa já havia realizado o sonho de ser avó. Sua neta era um doce, assim como o pai. De repente, o filme foi passando bem mais rápido, mas ainda se podia distinguir as cenas. Em contraponto, a música foi ficando mais lenta, mais triste, assim como a chuva que foi ficando mais fina, quase um chuvisco. Foi nesse momento que Marisa visualizou o dia em que estava sentada numa poltrona confortável em frente ao médico da família. O doutor tinha um rosto de preocupação. Não sabia como dar aquela notícia. Marisa tinha câncer. __ Não me importo se eles vierem agora. A música parou. A chuva também. Marisa sentou-se na grama molhada. Os olhos estavam inchados de tanto chorar. Passou as mãos na cabeça lisa. Os cabelos haviam caído com a quimioterapia. Como haviam sido difíceis aqueles dois últimos anos! Ela agora sentia-se muito cansada, como se toda a dor daquele tempo tivesse retornado. Enfrentara com todas as forças do mundo a bateria de exames, remédios e tratamentos... Mas agora cansara. Não se deixara abater em nenhum momento. Mas a doença também não dera trégua. Hoje, todo o seu corpo encontrava-se atingido pelo mal grave que tanto a atormentava. Estava em metástase. A doença mudara completamente seu modo de ver a vida. Seus pensamentos, seu jeito de falar, andar, se vestir. Ninguém nunca é o mesmo depois de um câncer. Era o que ela sempre dizia quando perguntavam como estava. Seus esforços para demonstrar que encontrava-se bem sempre a deixavam cansada. Mas aparentemente, com exceção da falta de cabelos que ela disfarçava com uma peruca e lenços das mais diversas cores e estampas, parecia uma pessoa perfeitamente saudável. Se vestia impecavelmente, falava de maneira doce, alimentava-se de forma saudável, não perdia tempo com brigas ou discussões fúteis. Viajou muito, comprava flores, ouvia música, dançava... Até o último momento. Aquele momento. Deitada na grama sob a chuva, Marisa agradeceu por sua vida e também por sua doença, que a fizera mais feliz apesar de tudo. Ela começou a valorizar cada momento. Os casamentos que organizava nunca tinham sido tão bonitos e caprichados como os que planejara de dois anos pra cá. Foi, deitada na grama molhada, que Marisa despediu-se da vida com o seu melhor sorriso de agradecimento ao Criador. Aquele momento era único em sua vida. Precisava aproveitar. Seu coração, repleto de felicidade, parara de bater no seu instante de maior contemplação à vida. Na manhã seguinte, Jorge não pôde conter o choro. A tristeza de ver a mulher inerte no jardim após uma noite de forte chuva. Mas em seu rosto sorridente estava a felicidade de deixar o mundo com a missão cumprida. Ele sabia: __ Os anjos vieram. Ela finalmente descansou. 2